Caprichos & relaxos: faÃscas da poesia de Leminski
Caprichos & relaxos: faÃscas da poesia de Leminski
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Revista Litteris -LiteraturaNovembro <strong>de</strong> 2010Número 6<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> alicesó alicecom aliceali se parece“ali” arma um jogo sonoro-semântico entre “ali se” e “alice”, neste caso, AliceRuiz, poeta e mulher <strong>de</strong> <strong>Leminski</strong>. Outro exemplo <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira sonoro-semânticaenvolvendo a musa do poeta, é o poema “você me alice”:você me aliceeu todo me aliciasseasasto<strong>da</strong>s se alassemsobre águas cor <strong>de</strong> alfacealisimeu me aliviasseOn<strong>de</strong> a saca<strong>da</strong> poético-linguística centra-se na semelhança sonora entre o nomepróprio Alice e o verbo aliciar.O poema “parar <strong>de</strong> escrever” remete ao cânone literário aprazível ao poetacuritibano:parar <strong>de</strong> escreverbilhetes <strong>de</strong> felicitaçõescomo se eu fosse camõese as ilía<strong>da</strong>s dos meus diasfossem lusía<strong>da</strong>s,rosas, vieiras, sermõesO bom e velho Lema 6 sorveu bastante <strong>da</strong> tradição literária, através do forteapego que teve ain<strong>da</strong> jovem pelas obras eruditas, principalmente as gregas e latinas, queele apren<strong>de</strong>u a <strong>de</strong>codificar durante sua estadia no mosteiro beneditino paulista. Aerudição também habitava sua produção juntamente com o coloquialismo e o6 Lema, uma <strong>da</strong>s alcunhas do poeta, inspirou o personagem Tio Lema, do cartunista Glauco, vinculado naFolha <strong>de</strong> S. Paulo nos anos 80.Revista Litteriswww.revistaliteris.com.brISSN: 1983 7429 www.revistaliteris.com.br Número 6
Revista Litteris -LiteraturaNovembro <strong>de</strong> 2010Número 6“fanatismo” pela experimentação. Nesse poema, especificamente, a tradição literária,representa<strong>da</strong> por Os Lusía<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Camões, pela Ilía<strong>da</strong> <strong>de</strong> Homero, pelos Sermões <strong>de</strong>Padre Vieira e por Guimarães Rosa, é evoca<strong>da</strong> como signos convi<strong>da</strong>dos para integraremo poema, como referências para a elaboração do próprio poema, grafados como man<strong>da</strong> atradição leminskiana inicial (em letras minúsculas) que, paradoxalmente, atestam agrandiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sses signos.A evocação aos gran<strong>de</strong>s velhos poetas, <strong>de</strong> certa forma, também é feita em “Bomdia, poetas velhos”:Bom dia, poetas velhos.Me <strong>de</strong>ixem na bocao gosto <strong>de</strong> versosmais fortes que não farei.Dia vai vir que os saibatão bem que vos citecomo quem tê-losum tanto feito também,acredite.Além <strong>da</strong> evocação aos poetas velhos e, consequentemente, bons, por meio dosúltimos versos “dia vai vir que os saiba/ tão bem que vos cite/ como quem tê-los/ umtanto feito também,/ acredite” encaixa-se, <strong>de</strong> certa forma, na i<strong>de</strong>ia leminskiana <strong>de</strong> que oreceptor <strong>de</strong> <strong>poesia</strong> também é um poeta, pois segundo ele, para enten<strong>de</strong>r <strong>poesia</strong>, precisaseser um pouco poeta também. <strong>Leminski</strong> esclarece sua i<strong>de</strong>ia no ensaio Poesia noreceptor:E que dizer <strong>de</strong> uma frase assim: a <strong>poesia</strong> existe para satisfazer anecessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>poesia</strong> dos poetas? Escân<strong>da</strong>lo, loucura e anátema!Quando, em minhas palestras, chego nesse ponto, instala-se o tumulto,que <strong>de</strong>ixo <strong>de</strong>senvolver-se um pouco para valorizar a frase que vem aseguir. – Um momento. Poeta não é só quem faz <strong>poesia</strong>. É tambémquem tem sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> para enten<strong>de</strong>r e curtir <strong>poesia</strong>. Mesmo quenunca tenha arriscado um verso. Quem não tem senso <strong>de</strong> humor,nunca vai enten<strong>de</strong>r a pia<strong>da</strong>. E concluo: – Tem que ter tanta <strong>poesia</strong> noreceptor quanto no emissor. Nesse auge, a multidão prorrompe emaplausos e me carrega em triunfo até o bar mais próximo, on<strong>de</strong>beberemos à saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os poetas-produtores e todos os poetasreceptoresdo mundo. Saú<strong>de</strong> a vocês que fazem, saú<strong>de</strong> a vocês queRevista Litteriswww.revistaliteris.com.brISSN: 1983 7429 www.revistaliteris.com.br Número 6
Revista Litteris -LiteraturaNovembro <strong>de</strong> 2010Número 6curtem, pólos magnéticos por on<strong>de</strong> passa a faísca <strong>da</strong> <strong>poesia</strong>.(LEMINSKI, 1997, p.51) [grifo meu].Na obra leminskiana é comum perceber como to<strong>da</strong> a produção do poeta éimbrica<strong>da</strong>, às vezes, um poema serve <strong>de</strong> base para um conto; romance, etc. (e viceversa),como aponta Fabrício Marques, já que “Explorando (e atravessando) fronteiras,o poeta praticou em muitos <strong>de</strong> seus poemas uma espécie <strong>de</strong> exílio metalingüístico,recheando seus textos <strong>de</strong> citações à própria obra.” (MARQUES, 2001, p.20-1), alémdisso, por muitas vezes as temáticas são pareci<strong>da</strong>s e um leitor atento acaba porrelacionar tais obras, tal questão ocorre, por exemplo, entre o conto Céu embaixo,publicado em Gozo Fabuloso, e o poema minhas 7 que<strong>da</strong>s:minhas 7 que<strong>da</strong>sminha primeira que<strong>da</strong>não abriu o pára-que<strong>da</strong>s<strong>da</strong>í passei feito uma pedrapra minha segun<strong>da</strong> que<strong>da</strong><strong>da</strong> segun<strong>da</strong> à terceira que<strong>da</strong>foi um pulo que é uma se<strong>da</strong>nisso uma quinta que<strong>da</strong>pega a quarta e arreme<strong>da</strong>na sexta continuei caindoagora com licençamais um abismo vem vindoO conto Céu embaixo, não traz um número maior <strong>de</strong> que<strong>da</strong>s, ou melhor, a altura<strong>da</strong> que<strong>da</strong> é que maior (do décimo sétimo an<strong>da</strong>r e não do sétimo an<strong>da</strong>r), mas assemelhaseà temática do poema: a <strong>da</strong> que<strong>da</strong> provoca<strong>da</strong> por um abismo interior, que no poemaversa sobre sete que<strong>da</strong>s distintas (ou não) e no conto sobre uma distinta que<strong>da</strong> fatalfragmenta<strong>da</strong> a ca<strong>da</strong> an<strong>da</strong>r, como dimensionado nesse trecho:Revista Litteriswww.revistaliteris.com.brISSN: 1983 7429 www.revistaliteris.com.br Número 6
Revista Litteris -LiteraturaNovembro <strong>de</strong> 2010Número 617. JANELAS, ESCANCARADAS janelas do décimo sétimo an<strong>da</strong>r,aqui vou eu, aqui vai to<strong>da</strong> essa minha nossa estúpi<strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>apagar a luz, única maneira <strong>de</strong>cente <strong>de</strong> apagar a dor.16. Décimo sexto an<strong>da</strong>r. Até aqui, tudo bem. A temperatura está a<strong>de</strong>zessete graus, o céu azul, e a lei <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> continua funcionandocom o costumeiro rigor. Quem partiu, tem que chegar. [...]7. Parece mentira, mas cheguei ao sétimo an<strong>da</strong>r. A que pontochegamos! Nessa veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>, a lembrança do décimo segundo an<strong>da</strong>rparece apenas uma lembrança. A Física ensina que os corpos têm suaque<strong>da</strong> acelera<strong>da</strong> à medi<strong>da</strong> que se aproximam do <strong>de</strong>stino. Não vejo porque <strong>de</strong>veria ser diferente comigo. A lei <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> é a mais<strong>de</strong>mocrática <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s. Rege, com idêntico rigor, gregos e troianos,jóias e paralelepípedos, impérios e pétalas <strong>de</strong> magnólia. Sete é conta<strong>de</strong> mentiroso. Ela me mentiu. Na<strong>da</strong> mais fácil que mentir que se amaalguém. Basta dizer: eu te amo. Quem vai saber? Como medir? Comoprovar? As palavras também estão sujeitas à lei <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong><strong>de</strong>? [...]2. Não há muito a dizer, nunca há. Meia dúzia <strong>de</strong> palavras resolvemproblemas <strong>de</strong> mil anos atrás. Fomos nos dizendo ca<strong>da</strong> vez menos.Dizer sempre é uma outra coisa.1. O chão é duro. (LEMINSKI, 2004, p.75-7).A segun<strong>da</strong> e terceira parte <strong>de</strong> <strong>Caprichos</strong> & <strong>relaxos</strong>, intitula<strong>da</strong>s Polonaises e Nãofosse isso e era menos. Não fosse tanto e era quase, republica, nessa obra, a maioria dospoemas contidos nas edições originais, publica<strong>da</strong>s pelo autor. No entanto, além <strong>da</strong>ausência <strong>de</strong> alguns poemas, a or<strong>de</strong>m e a disposição gráfica <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les não figuracomo nas obras iniciais, que apresentam letras “estoura<strong>da</strong>s” nas páginas. Além disso,alguns itens também foram subtraídos, como por exemplo, a <strong>de</strong>dicatória <strong>de</strong> polonaises aBoris Schnai<strong>de</strong>rman e a indicação temporal “(<strong>de</strong> 63 pra cá)” <strong>de</strong> não fosse isso/ e eramenos/ não fosse tanto/ e era quase.I<strong>de</strong>olágrimas, a quarta parte <strong>de</strong> <strong>Caprichos</strong> & <strong>relaxos</strong>, é a seção <strong>da</strong> obra em quesão apresentados os haikais, um dos dôs, e um dos gêneros literários emblemáticos <strong>da</strong>obra leminskiana, pela agili<strong>da</strong><strong>de</strong> e astúcia, características também cabíveis em relaçãoao poeta. O poema “no que eu sinta” antece<strong>de</strong> uma sequência <strong>de</strong> haikais “do mundo”:no que eu sintasim um pouco <strong>de</strong> papelmuito <strong>de</strong> fitae um tanto <strong>de</strong> tintapego esse mundobato na cabeçaRevista Litteriswww.revistaliteris.com.brISSN: 1983 7429 www.revistaliteris.com.br Número 6
Revista Litteris -LiteraturaNovembro <strong>de</strong> 2010Número 6quem sabe eu esqueçaquem sabe ele enfimhaikai do mundohaikai <strong>de</strong> mimO lirismo também aparece nessa seção, um dos mais bonitos haikais, presentesno fragmento I<strong>de</strong>olágrimas, é o quase pictórico e/ou imagético “duas folhas nasandália”:duas folhas na sandáliao outonotambém quer an<strong>da</strong>rOutro exemplo <strong>de</strong> “haikai <strong>de</strong> mim” leminskiano, extremamente lírico e conciso,como são os bons haikais japoneses, percebe-se em:na<strong>da</strong> me <strong>de</strong>moveain<strong>da</strong> vou sero pai dos irmãos KaramazovHaikai que sugere, metaforicamente, que o poeta ain<strong>da</strong> será o pai, o autor <strong>de</strong>uma gran<strong>de</strong> obra, como a dos irmãos Karamazov, <strong>de</strong> Fiódor Dostoiévski. Talvez o poetatenha conseguido tal intento com seu célebre Catatau, que narra a hipotética passagem<strong>de</strong> Renatus Cartesius (o filósofo francês René Descartes) pela Olin<strong>da</strong> batava do séculoXVII.A dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> construir uma gran<strong>de</strong> obra também é evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong> por <strong>Leminski</strong>no haikai “cabelos que me caem”, em que o poeta lança mão do fingimento poético, queo polaco tanto punha em prática:cabelos que me caemem ca<strong>da</strong> ummil anos <strong>de</strong> haikaiRevista Litteriswww.revistaliteris.com.brISSN: 1983 7429 www.revistaliteris.com.br Número 6
Revista Litteris -LiteraturaNovembro <strong>de</strong> 2010Número 6O poema traz a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se compor haikais, mas na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>Leminski</strong>gostava e estava acostumado com a concisão e o “tiro” certeiro dos pequenos poemas <strong>de</strong>origem japonesa, pois pregava a síntese sempre; na<strong>da</strong> <strong>de</strong> rebuscamentos <strong>de</strong>snecessários,no entanto, fazia isso <strong>de</strong> uma maneira ímpar (sem que parecesse falta <strong>de</strong> erudiçãopoética). Embora na prosa, <strong>Leminski</strong> tenha transitado por experimentações linguísticasutilizando, por exemplo, o uso expressivo <strong>da</strong>s palavras-valise, já utiliza<strong>da</strong>s eemprega<strong>da</strong>s por referenciais leminskianos, como Lewis Carroll via Pound e JamesJoyce.A quinta parte <strong>de</strong> <strong>Caprichos</strong> & <strong>relaxos</strong>, intitula<strong>da</strong> Sol-te, consiste numa seleção<strong>de</strong> poemas <strong>de</strong> características mais visuais. A arte feita nesses poemas é fruto <strong>da</strong>scabeças pensantes <strong>de</strong> Rettamozo, capista <strong>de</strong> polonaises, Mirandinha, Sol<strong>da</strong>, Swain,Bellen<strong>da</strong>, Fui vai e Tiko, nomes consagrados na publici<strong>da</strong><strong>de</strong> curitibana <strong>da</strong> época <strong>de</strong>lançamento <strong>da</strong> obra. Com um <strong>de</strong>les, <strong>Leminski</strong> formaria o Sequelas do Alcoolismo,grupo formado pelo poeta e pelos artistas gráficos Sol<strong>da</strong> e Rogério Dias. O grupoesbanjava criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> nas agências publicitárias por on<strong>de</strong> trabalharam, mas semprealimenta<strong>da</strong> pelo álcool. Segundo Vaz, “Eles faziam <strong>poesia</strong>s [...] e compunham músicasengraça<strong>da</strong>s que cantavam informalmente em bares e casas <strong>de</strong> amigos. Como o próprionome sugere, todos bebiam muito. Costumavam <strong>de</strong>rrubar uma garrafa <strong>de</strong> vodca durantea tar<strong>de</strong>, no bar <strong>da</strong> esquina, on<strong>de</strong> efetivamente trabalhavam.” (VAZ, 2005, p.232).Um exemplo <strong>de</strong> poema visual, contido em Sol-te e trabalhado por esse criativo ealcoólico grupo, é o poema que reproduzo abaixo:Revista Litteriswww.revistaliteris.com.brISSN: 1983 7429 www.revistaliteris.com.br Número 6
Revista Litteris -LiteraturaNovembro <strong>de</strong> 2010Número 6Além <strong>da</strong> agili<strong>da</strong><strong>de</strong> que, teoricamente, teria uma mosca para não se <strong>de</strong>ixarenquadrar, ou melhor, circular, que confere certo humor ao poema, há ain<strong>da</strong> neleresquícios <strong>de</strong> uma pega<strong>da</strong> autobiográfica, pois esse poema visual em muito lembra umepisódio narrado pelo biógrafo do poeta, em que, segundo ele, diante <strong>da</strong>s informaçõesque o poeta dispunha, seus antepassados poloneses seriam <strong>de</strong> uma província chama<strong>da</strong>Narájow, no entanto, essa informação nunca foi comprova<strong>da</strong>, já que na época <strong>da</strong> vin<strong>da</strong>dos <strong>Leminski</strong> para o Brasil, a Polônia e a Ucrânia ain<strong>da</strong> formavam o Império Austro-Húngaro, o que acabou por causar divergências geográficas e <strong>de</strong>nominativas nosregistros dos documentos oficiais. Então, diante disso, certo dia <strong>Leminski</strong> <strong>de</strong>cidiuinvestigar no mapa-múndi para tentar localizar a tal Narájow, mas na<strong>da</strong> conseguiu.Como aponta Toninho Vaz, “Narájow, <strong>de</strong>finitivamente, não estava no mapa, <strong>de</strong>ntro doterritório <strong>da</strong> Polônia. Calmamente ele pegou uma caneta e fez um círculo no ponto exatoon<strong>de</strong> o inseto esfregava as patinhas – para <strong>de</strong>cidir que ali estava Narájow!” (VAZ, 2005,p.247).Alguns anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sse episódio em que “só o círculo existe”, <strong>Leminski</strong>publicaria em seu livro Distraídos Venceremos, o resultado poético <strong>da</strong> busca frustra<strong>da</strong>pela pequena e não notável Narájow:NARÁJOWRevista Litteriswww.revistaliteris.com.brISSN: 1983 7429 www.revistaliteris.com.br Número 6
Revista Litteris -LiteraturaNovembro <strong>de</strong> 2010Número 6Uma mosca pouse no mapae me pouse em Narájow,a al<strong>de</strong>ia don<strong>de</strong> veioo pai do meu pai,o que veio fazer a América,o que vai fazer o contrário,a Polônia na memória,o Atlântico na frente,O Vístula na veia.Quem sabe a mosca <strong>da</strong> feri<strong>da</strong>que a distância faz na carne viva,quando um navio sai do portojogando a última parti<strong>da</strong>?On<strong>de</strong> andou esse mapaque só agora esten<strong>de</strong> a palmapara receber essa mosca,que nele cai, matemática?A sexta parte <strong>de</strong> <strong>Caprichos</strong> & <strong>relaxos</strong>, Contos semióticos, é constituí<strong>da</strong> por doiscontos bastante significativos. PAPAJOYCEATWORK:PAPAJOYCEATWORK(Noite. Joyce começa a escrever)Madmanam eye! Light gone out!(Cai no papel)Mustmakesomething! Reverythming!(Mor<strong>de</strong> os lábios e gargalha)A poorirish is a writer mehrlichtsearching,yesternighteterni<strong>da</strong><strong>de</strong>s!(Troveja. Relâmpagos iluminam o quarto. Joyceprossegue)Thomasmorrows? Horriver!Nice and sweet – the speech of England,<strong>da</strong>mnyou! Don’t?Must <strong>de</strong>stroy it, just like a <strong>de</strong>stroyer would do ityourself! Como um verme. Yes, I no.Done to Ireland! What have they done? It will do.Beforeblacksblanco, we are even, this very evening!Think is so.My vengeance will be as big as say a country as bigRevista Litteriswww.revistaliteris.com.brISSN: 1983 7429 www.revistaliteris.com.br Número 6
Revista Litteris -LiteraturaNovembro <strong>de</strong> 2010Número 6Some<strong>da</strong>y my prince will come. Our prince:Arrise, Lewisrockandcarroll!Waterrestrela, am I a <strong>da</strong>yer?Just a wakewriter.as say Brazil.Seabastião!Esse conto semiótico leminskiano, bastante criativo, <strong>de</strong>monstra relação comduas referências do poeta, James Joyce e Lewis Carroll, sobretudo, por meio <strong>da</strong>utilização <strong>da</strong> técnica <strong>da</strong>s palavras-valise, pois no poema há a particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>spalavras em português e inglês estarem aglutina<strong>da</strong>s para evi<strong>de</strong>nciar o trabalho poéticojoyceano.Já o conto O assassino era o escriba joga com as <strong>de</strong>nominações e classificações<strong>da</strong> gramática tradicional para <strong>da</strong>r o <strong>de</strong>sfecho ao conto:O assassinoera o escribaMeu professor <strong>de</strong> análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.Um pleonasmo, o principal predicado <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, regular com um paradigma <strong>da</strong> 1ªconjugação.Entre uma oração subordina<strong>da</strong> e um adjunto adverbial, ele não tinha dúvi<strong>da</strong>s: sempreachava um jeito assindético <strong>de</strong> nos torturar com um aposto.Casou com uma regência.Foi infeliz.Era possessivo como um pronome.E ela era bitransitiva.Tentou ir para os EUA.Não <strong>de</strong>u.Acharam um artigo in<strong>de</strong>finido em sua bagagem.A interjeição do bigo<strong>de</strong> <strong>de</strong>clinava partículas expletivas, conetivos e agentes <strong>da</strong> passiva,o tempo todo.Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.Talvez, com esse dois contos, <strong>Leminski</strong> evi<strong>de</strong>ncie a morte <strong>da</strong> escrita dura eformal que ele certamente mataria “com um objeto direto na cabeça”, caso um dia ativesse produzido.Revista Litteriswww.revistaliteris.com.brISSN: 1983 7429 www.revistaliteris.com.br Número 6
Revista Litteris -LiteraturaNovembro <strong>de</strong> 2010Número 6A última parte <strong>de</strong> <strong>Caprichos</strong> & <strong>relaxos</strong>, Invenções, traz os poemas que forampublicados na revista Invenção <strong>de</strong> São Paulo nos números 4 (<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1964) e 5(<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1966). Um exemplo <strong>de</strong> níti<strong>da</strong> referência concreta, presente em Invenções,é “materesmofo”:materesmofotemaserfomotermosfameotremesfoomametrofasemomortemesafoamorfotemesemarometesferamosfetemfetomormesamesamorfetoefatormesommaefortosemsaotemorfemtermosefomafaseortomenmotormefasematermofesometaformoseO poema traz em seu cerne as palavras mãe, feto e amor, vocábulos brotados apartir dos versos do poema finalizado com a emblemática “metaformose”, 7 na qual asletras <strong>da</strong> palavra “[...] vão se recombinando para traduzir a idéia dinâmica <strong>de</strong> mutação.”(MARQUES, 2001, p.20). “materesmofo”, graças ao seu emaranhado vocabular,também se transformou em <strong>poesia</strong> visual, literalmente, no programa Jornal <strong>de</strong>Vanguar<strong>da</strong>, apresentando por Dóris Giesse e que tinha a participação do velho Lema,em 1988.A coletânea <strong>de</strong> poemas que apresenta boa parte <strong>da</strong> primeira produção poética <strong>de</strong><strong>Leminski</strong>, <strong>Caprichos</strong> & <strong>relaxos</strong>, consiste, como po<strong>de</strong> ser visto, quase numa antologiaque evi<strong>de</strong>ncia as referências e as vanguar<strong>da</strong>s que influenciaram o poeta curitibano ao7 O vocábulo metaformose serviu <strong>de</strong> título <strong>da</strong> prosa leminskiana, Metaformose: uma viagem peloimaginário grego, que ren<strong>de</strong>u, postumamente, um prêmio jabuti ao poeta.Revista Litteriswww.revistaliteris.com.brISSN: 1983 7429 www.revistaliteris.com.br Número 6
Revista Litteris -LiteraturaNovembro <strong>de</strong> 2010Número 6longo <strong>de</strong> duas déca<strong>da</strong>s, do início dos anos 60 ao início dos anos 80, ou seja, passandointegralmente pela efervescência dos emblemáticos anos 70. Sua quali<strong>da</strong><strong>de</strong> é notável, e,não à toa, no fim <strong>da</strong> obra, na contracapa propriamente dita, há uma <strong>de</strong>claração informal<strong>de</strong> Caetano Veloso que diz: “Esse livro <strong>de</strong> poemas é uma maravilha, porque os poemasdo <strong>Leminski</strong> são muito sintéticos, muito concisos, muito rápidos, muito inspirados”,características que, certamente, <strong>de</strong>finem muito bem essa obra relaxa<strong>da</strong>, mas caprichosae cheia <strong>de</strong> pequenos gran<strong>de</strong>s acertos poéticos.REFERÊNCIASLEMINSKI, Paulo. <strong>Caprichos</strong> & Relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1985._______________. Catatau. Curitiba: Grafipar, 1975._______________. Distraídos Venceremos. São Paulo: Brasiliense, 2002._______________. Ensaios e Anseios Crípticos. Curitiba: Pólo Editorial do Paraná,1997._______________. Gozo Fabuloso. São Paulo: DBA, 2004._______________. La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 2004._______________. não fosse isso/e era menos/ não fosse tanto/e era quase. Curitiba:ZAP, 1980._______________. polonaises. Curitiba: Edição do autor, 1980.LIMA, Manoel Ricardo <strong>de</strong>. Entre Percurso e Vanguar<strong>da</strong>: Alguma <strong>poesia</strong> <strong>de</strong> P.<strong>Leminski</strong>. São Paulo: Annablume, 2002.MARQUES, Fabrício. Aço em Flor: A <strong>poesia</strong> <strong>de</strong> Paulo <strong>Leminski</strong>. Belo Horizonte:Autêntica, 2001.VAZ, Toninho. Paulo <strong>Leminski</strong>: o bandido que sabia latim. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record,2005.*Lizaine Weingärtner Machado é Bacharel e Licencia<strong>da</strong> em Letras – LínguaPortuguesa e Literaturas pela UFSC (Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina). E-mail:lizainewm@yahoo.com.br.Revista Litteriswww.revistaliteris.com.brISSN: 1983 7429 www.revistaliteris.com.br Número 6