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História e mito em “O dia em que explodiu Mabata-bata”, de Mia ...

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Revista Litteris – ISSN 19837429Março 2011. N. 7História e <strong>mito</strong> <strong>em</strong> “O <strong>dia</strong> <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>explodiu</strong> <strong>Mabata</strong>-bata”, <strong>de</strong> <strong>Mia</strong> CoutoAn<strong>de</strong>rson <strong>de</strong> Souza Frasão (UPE) 1Resumo: Este trabalho faz uma análise do conto “O <strong>dia</strong> <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>explodiu</strong> <strong>Mabata</strong>-bata”,<strong>de</strong> <strong>Mia</strong> Couto, tendo como fio condutor a verossimilhança dos fatos pelo viés da criaçãomítica, na perspectiva <strong>de</strong> d<strong>em</strong>onstrar o olhar <strong>de</strong>sse escritor sobre a <strong>de</strong>vastação cultural<strong>em</strong> Moçambi<strong>que</strong>. Analisar-se-á, ainda, tendência atual das literaturas africanas <strong>de</strong> línguaportuguesa <strong>de</strong> re-criar<strong>em</strong> tradição do seu povo.Palavras-chave: <strong>Mia</strong> Couto; verossimilhança; história; <strong>mito</strong>; Moçambi<strong>que</strong>.Abstract: This paper is an analysis of the short story “The day explo<strong>de</strong>d <strong>Mabata</strong>-bata”,by <strong>Mia</strong> Couto having as main driver the likelihood of bias by the facts of creationmythical, in or<strong>de</strong>r to d<strong>em</strong>onstrate the look of this writer on the cultural <strong>de</strong>vastation inMozambi<strong>que</strong> and current trend of African literatures in Portuguese re-establish thetradition of his people.Keywords: <strong>Mia</strong> Couto; likelihood; history; myth; Mozambi<strong>que</strong>.É tendência nas literaturas africanas <strong>de</strong> língua portuguesa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua orig<strong>em</strong>, aconstrução <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al nacional comprometido com anti-colonialismo, dandopreferência e ênfase a t<strong>em</strong>áticas próprias da “nação” s<strong>em</strong> antes mesmo havernacionalida<strong>de</strong>, fato <strong>que</strong>, posteriormente com a in<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong>sses países africanos vaiconfluir na necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “re-criar” a tradição <strong>de</strong>vastada pelo colonizador, noproposito <strong>de</strong> “criar”, efetivamente, a nação.Nessa perspectiva <strong>de</strong> re-construção, surge <strong>Mia</strong> Couto com uma estruturanarrativa <strong>em</strong>penhada <strong>em</strong> buscar nos aspectos culturais do povo moçambicano umai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, pois sendo ele fundamentalmente “um atento ouvidor <strong>de</strong> casos ehistórias da boca do povo” d<strong>em</strong>onstra <strong>em</strong> sua escrita “traços her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> um realismo<strong>de</strong>scritivo, socialmente revelador” (LARANJEIRA, 2001, p. 197).1Graduando <strong>em</strong> Letras e suas Literaturas (Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pernambuco, Garanhuns – PE, Brasil), e-mail –an<strong>de</strong>rsonfrasao@hotmail.com, currículo Lattes – http://lattes.cnpq.br/1738572277015528Revista Litteris – www.revistaliteris.com.brMarço 2011. N. 7


Revista Litteris – ISSN 19837429Março 2011. N. 7É certo, porém, <strong>que</strong> não cabe à literatura contar os fatos históricos, mas acabanos r<strong>em</strong>etendo a eles segundo a verossimilhança ou mesmo a necessida<strong>de</strong>(ARISTÓTELES, 2005, p. 43), sendo <strong>que</strong>, neste caso, “a literatura, como „totalida<strong>de</strong>significante‟, t<strong>em</strong> a ver com a imag<strong>em</strong> e o registro da tradição, sendo a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>literária um dos campos privilegiados da construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional” (MATA,2001, p. 37). Dessa forma, seria mais coerente perceber <strong>que</strong> <strong>Mia</strong> Couto, através <strong>de</strong>escrita, não resgata a tradição <strong>de</strong>vastada, mas, sobretudo, intenta <strong>que</strong> esta seja re-criada.No seu livro “Vozes Anoitecidas” (1986) parece conter uma sintetização dasvertentes literárias bastante verossímeis com a realida<strong>de</strong> moçambicana, <strong>que</strong> sãoabsorvidas no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> outros trabalhos subse<strong>que</strong>ntes, a ex<strong>em</strong>plo da justiçasendo confortada pela tradição e a escrita permeada pela oralida<strong>de</strong> (CHAGAS, 2006, p.93). Assim, esse “aproveitamento” do real parece ficar b<strong>em</strong> evi<strong>de</strong>nte na compreensão <strong>de</strong>Maria Aparecida Santilli, pois para ela “<strong>de</strong> fato, „qual<strong>que</strong>r coisa acontecida <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>‟– como anuncia o „texto <strong>de</strong> abertura‟ <strong>de</strong> Vozes anoitecidas – teria <strong>em</strong>brionado a criaçãodas histórias <strong>de</strong> <strong>Mia</strong> Couto” (1999, p. 99). (Grifos da autora).Diante disso, a análise <strong>que</strong> ir<strong>em</strong>os <strong>em</strong>preen<strong>de</strong>r do conto “O <strong>dia</strong> <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>explodiu</strong><strong>Mabata</strong>-bata” nos permite consi<strong>de</strong>rar o contexto conflituoso <strong>de</strong> pós-in<strong>de</strong>pendência e <strong>de</strong>guerra civil <strong>em</strong> Moçambi<strong>que</strong>, b<strong>em</strong> como apreen<strong>de</strong>r o traço estético hipersensível erevelador do escritor <strong>que</strong> não se dissocia dos fatores sociais aos quais está inserido e,por conseguinte, conceber uma literatura análoga a essas <strong>que</strong>stões.Um Paradoxo da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>?Ao iniciar a leitura do conto “O <strong>dia</strong> <strong>em</strong> <strong>que</strong> <strong>explodiu</strong> <strong>Mabata</strong>-bata” nos<strong>de</strong>paramos ime<strong>dia</strong>tamente com uma tragé<strong>dia</strong> <strong>que</strong> se abre no momento exato <strong>em</strong> <strong>que</strong> anarrativa t<strong>em</strong> começo, e por isso partilhamos <strong>de</strong>sse acontecimento <strong>que</strong> irá se <strong>de</strong>svelando<strong>de</strong> modo a envolver todos os personagens. Note-se:Revista Litteris – www.revistaliteris.com.brMarço 2011. N. 7De repente, o boi <strong>explodiu</strong>. Rebentou s<strong>em</strong> múúú. No capim <strong>em</strong> voltachoveram pedaços e fatias, grãos e folhas <strong>de</strong> boi. A carne eram já borboletasvermelhas. Os ossos eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram numqual<strong>que</strong>r ramo, balouçando a imitar a vida, no invisível pescoço do vento(COUTO, 1986, p. 27).


Revista Litteris – ISSN 19837429Março 2011. N. 7E, logo <strong>de</strong> saída nos é apresentado o pastor <strong>que</strong> cuidava <strong>de</strong>sse animal e o seu espanto<strong>dia</strong>nte o ocorrido, tendo <strong>em</strong> vista <strong>que</strong> há “um instante” ele observava o animal <strong>que</strong> era omaior da manada e estava <strong>de</strong>stinado à prenda do lobolo 2 <strong>de</strong> seu tio. A ocorrência <strong>de</strong>ssefato e a posterior apresentação do pe<strong>que</strong>no pastor nos leva a crer <strong>que</strong> seja este último“agente principal como <strong>de</strong>rivativo do mesmo acontecimento” (SANTILLI, 1999, p.101). Notamos nesse fragmento, ainda, uma peculiarida<strong>de</strong> estilística <strong>de</strong>sse autor <strong>em</strong>trazer para escrita traços típicos da oralida<strong>de</strong>, a ex<strong>em</strong>plo da utilização da onomatopeia<strong>que</strong> <strong>de</strong>screve o mungido do boi, atenuando a verossimilhança.Azarias é menino órfão <strong>que</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>que</strong> per<strong>de</strong>u seus pais trabalha na criação dosbois para seu tio Raul, pois a este é representada a figura paterna. Diante da explosão <strong>de</strong>um dos bois <strong>de</strong> seu tio, <strong>que</strong> chega a ser uma <strong>de</strong>sgraça – não só por ele estar <strong>de</strong>stinado aolobolo, mas por significar uma perda –, o pe<strong>que</strong>no pastor busca uma explicação: “„Deveser foi um relâmpago‟, pensou. Mas relâmpago não po<strong>dia</strong>. O céu estava liso, azul s<strong>em</strong>mancha. De on<strong>de</strong> saíra o raio? O foi a terra <strong>que</strong> relampejou?” (COUTO, 1986, p. 27-28). (Grifos do autor). Mas essa hipótese é rapidamente abandonada por não sercoerente <strong>dia</strong>nte as perspectivas dos fatos, o <strong>que</strong> acaba por instaurar incertezas.Dessa maneira, Azarias recorre a outra explicação, mas sendo esta fundamentadano seu conhecimento cultural:Interrogou o horizonte, por cima das árvores. Talvez o ndlati, a ave dorelâmpago, ainda rodasse os céus. Apontou os olhos na montanha <strong>em</strong> frente.A morada do ndlati era ali, on<strong>de</strong> se juntam os todos rios para nascer<strong>em</strong> damesma vonta<strong>de</strong> da água. O ndlati vive nas quatro cores escondidas só se<strong>de</strong>stampa quando as nuvens rug<strong>em</strong> na rouquidão do céu. É então <strong>que</strong> o ndlatisobe aos céus, enlou<strong>que</strong>cido. Nas alturas se veste <strong>de</strong> chamas, e lança seu vôoincen<strong>dia</strong>do sobre os seres da terra. Às vezes atira-se no chão, buracando-o.Fica na cova e <strong>de</strong>ita sua urina (COUTO, 1986, p. 28).É perceptível a influência das forças cósmicas na vida <strong>de</strong>sse personag<strong>em</strong>, pois ele buscana sua tradição a explicação para esses fatos. Essa ocorrência nas obras <strong>de</strong> <strong>Mia</strong> Couto sedá pelo fato <strong>de</strong> ser<strong>em</strong> as raízes míticas <strong>de</strong> sua escrita proveniente da tradição oral dosbantos, on<strong>de</strong> o <strong>mito</strong> e a cont<strong>em</strong>plação da natureza exerc<strong>em</strong> gran<strong>de</strong> relevância2 Costume tradicional <strong>em</strong> Moçambi<strong>que</strong>, segundo o qual a família da noiva <strong>de</strong>ve receber pela “perda” <strong>que</strong> o casamento <strong>de</strong>starepresenta.Revista Litteris – www.revistaliteris.com.brMarço 2011. N. 7


Revista Litteris – ISSN 19837429Março 2011. N. 7(CHAGAS, 2006, p. 89). E Carmen Secco reitera a utilização <strong>de</strong>sse traço estilístico doreferido autor:Revista Litteris – www.revistaliteris.com.brMarço 2011. N. 7Mitos, ritos e sonhos são caminhos ficcionais trilhados pelas narrativas <strong>de</strong><strong>Mia</strong> Couto <strong>que</strong> enveredam pelos labirintos e ruínas da m<strong>em</strong>ória coletivamoçambicana como uma forma encontrada para resistir à morte das tradiçõescausada pelas <strong>de</strong>struições advindas da guerra (2006, p. 72).Essa recorrência ao conhecimento mítico ancestral nos parece esteticamente b<strong>em</strong>peculiar neste escritor moçambicano, pois ele busca através da linguag<strong>em</strong> r<strong>em</strong><strong>em</strong>oraresses valores e trazê-los para o presente, haja vista sua relevância. E isso nos r<strong>em</strong>etendoao <strong>que</strong> diz Inocência Mata, pois segundo ela “Já não se trata, pois, um mero processo <strong>de</strong>evocação ao passado, mas a sua explicação para <strong>que</strong> funcione como factor interior aopresente” (MATA, 2001, p. 69).Vale ressaltar, ainda, <strong>que</strong> segundo a psicanálise é provável <strong>que</strong> os <strong>mito</strong>s sejamamostras distorcidas <strong>de</strong> fantasias e <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> nações e <strong>de</strong>ssa forma representariam os“sonhos seculares da humanida<strong>de</strong> jov<strong>em</strong>” (FREUD, 1974, p. 157). (Grifos do autor).Dessa maneira a explosão do boi não po<strong>de</strong>ria ser explicada <strong>de</strong> outra forma, já<strong>que</strong> a urina do ndlati era maligna e po<strong>de</strong>ria provocar efeitos <strong>de</strong>sastrosos. Sendo aténecessário, certa vez, evocar os saberes do velho feiticeiro para retirá-las. Diante <strong>de</strong>ssepressuposto, provavelmente o <strong>Mabata</strong>-bata teria pisado <strong>em</strong> uma <strong>de</strong>ssas réstias malignasda ave e explodido. Mas o pe<strong>que</strong>no pastor sabia <strong>que</strong> os d<strong>em</strong>ais não compreen<strong>de</strong>riam poressa ótica já <strong>que</strong> quando <strong>que</strong>imados por relâmpagos os bois <strong>de</strong>ixam seus fragmentos <strong>de</strong>cinza, o <strong>que</strong> não aconteceu com <strong>Mabata</strong>-bata. E, através disso nos parece coerenteafirmar <strong>que</strong> Azaria é uma metáfora da presença da tradição no presente, pois ele éportador <strong>de</strong> saberes <strong>que</strong> parec<strong>em</strong> estar dizimados nos d<strong>em</strong>ais personagens da narrativa,haja vista <strong>que</strong> a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> advinda pela guerra parece romper com a tradição culturallocal.Ao observar <strong>que</strong> os outros bois se assustaram e se espalharam Azarias vaitomando consciência da gravida<strong>de</strong> da situação e o <strong>que</strong> ela po<strong>de</strong> lhe proporcionar, e éjustamente neste momento da narrativa julgamos um momento bastante especial, poissignifica um novo direcionamento na cadência dos novos acontecimentos. O modocomo a personag<strong>em</strong> apreen<strong>de</strong> a realida<strong>de</strong> <strong>em</strong> grau máximo, ou seja, a epifania. SegundoNá<strong>dia</strong> Battella Gotlib a


Revista Litteris – ISSN 19837429Março 2011. N. 7Epifania, tal como a concebeu James Joyce, é i<strong>de</strong>ntificada como uma espécieou grau <strong>de</strong> apreensão do objeto <strong>que</strong> po<strong>de</strong>ria ser i<strong>de</strong>ntificada com o objetivodo conto, enquanto uma forma <strong>de</strong> representação da realida<strong>de</strong>. Para Joyce,segundo um dos capítulos <strong>de</strong> seu Stephen Hero, epifania é “umamanifestação espiritual súbita”, <strong>em</strong> <strong>que</strong> um objeto se <strong>de</strong>svenda ao sujeito.Trata-se <strong>em</strong> ultima instância, do modo <strong>de</strong> se ajustar um foco ao objeto, pelosujeito. Seria um último estágio <strong>de</strong>ssa tentativa <strong>de</strong> ajuste, <strong>que</strong> se faz primeiropor tentativas, <strong>de</strong>pois, com sucesso (1995, p. 51). (Grifos da autora).Sendo esta realida<strong>de</strong> intensificada quando o menino l<strong>em</strong>bra as advertências do seu tio:“– Não apareças s<strong>em</strong> um boi, Azarias. Só digo: é melhor n<strong>em</strong> apareceres”(COUTO, 1986, p. 28). (Grifos do autor). O <strong>que</strong> fazer <strong>dia</strong>nte das ameaças do seu tio?Azarias se interroga tomado por um <strong>de</strong>nso sentimento <strong>de</strong> medo. A única alternativa <strong>que</strong>lhe v<strong>em</strong> é fugir. É acalentado pela i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>que</strong> não <strong>de</strong>ixará sauda<strong>de</strong>s <strong>em</strong> ninguém, poiscomo s<strong>em</strong>pre foi s<strong>em</strong>pre vítima <strong>de</strong> maus tratos do seu tio e exaustivo trabalho, eraarrancado da cama antes <strong>de</strong> todos e só dormia <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> todos já tivess<strong>em</strong> dormido e,mais <strong>que</strong> isso, era privado até <strong>de</strong> ir à escola. Partiu, mas “Sentia <strong>que</strong> não fugia: estavaapenas a começar o seu caminho” (COUTO, 1986, p. 29). Aqui, a instauração do efeitotrágico nos é bastante evi<strong>de</strong>nte, pois, como sab<strong>em</strong>os, esse tipo <strong>de</strong> imitação implica <strong>em</strong>uma ação, e está, por sua vez, alu<strong>de</strong> a atitu<strong>de</strong>s dos personagens. Dessa maneira,entend<strong>em</strong>os a tragé<strong>dia</strong> não como a imitação dos homens, mas as suas ações(ARISTÓTELES, 2005, p. 36).Entar<strong>de</strong>cendo, a avó Carolina espera Raul com aflição, já preocupado com ad<strong>em</strong>ora do pe<strong>que</strong>no pastor:– Essas horas e o Azarias ainda não chegou com os bois.– O quê? Esse malandro vai apanhar muito b<strong>em</strong>, quando chegar.– Não é <strong>que</strong> aconteceu uma coisa, Raul? Tenho medo, esses bandidos...– Aconteceu brinca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong>le, mais nada. (COUTO, 1986, p. 29-30).(Grifos do autor)E, <strong>de</strong>pois da janta, quando se ocupam os com assuntos referentes ao lobolo e ocasamento <strong>de</strong> Raul, são interrompidos por três soldados <strong>que</strong> vêm comunicar a explosãodo <strong>Mabata</strong>-bata:Revista Litteris – www.revistaliteris.com.brMarço 2011. N. 7


Revista Litteris – ISSN 19837429Março 2011. N. 7Revista Litteris – www.revistaliteris.com.brMarço 2011. N. 7– Boa noite. Vimos comunicar o acontecimento: rebentou uma mina estatar<strong>de</strong>. Foi um boi <strong>que</strong> pisou. Agora, esse boi pertencia daqui.Outro soldado acrescentou:– Quer<strong>em</strong>os saber on<strong>de</strong> está o pastor <strong>de</strong>le.– O pastor estamos à espera, respon<strong>de</strong>u Raul. E vociferou: Malditosbandos!– Quando chegar <strong>que</strong>r<strong>em</strong>os falar com ele, saber como foi sucedido. Ébom ninguém sair na parte da montanha. Os bandidos andaramespalhar minas nesse lado. (COUTO, 1986, p. 30). (Grifos do autor).Ao se voltar sobre essa ocorrência, perceb<strong>em</strong>os <strong>que</strong> ela acontece meramente porintermédio dos fatos, <strong>de</strong>sprezando a tradição. Note-se <strong>que</strong> a explicação <strong>de</strong> Azarias écontradita pelos soldados, o <strong>que</strong> institui um paradoxo. Ou seja, <strong>mito</strong> e história sãocolocados lado a lado, pois t<strong>em</strong>os a versão da criança portadora <strong>de</strong> um discurso culturale a dos adultos marcada pela presença da “realida<strong>de</strong>” dos fatos. Sobre isso nos dizSantilli:Neste conto, os mesmos eventos perceb<strong>em</strong>-se por duas óticas contrárias <strong>que</strong>corr<strong>em</strong> paralelas até a cena final: a<strong>que</strong>la do menino, <strong>em</strong> cuja visão mítica as<strong>de</strong>sgraças ligam-se à ave ndlati, e versão da outra faixa etária – a dos adultos– <strong>que</strong> se constrói com os informantes históricos, sobre as minas <strong>que</strong>explod<strong>em</strong>, responsáveis, como agentes dramáticos, pelo infeliz (2003, p. 169)(Grifos da autora).Com isso, recebendo as <strong>de</strong>vidas instruções dos soldados sobre o perigo <strong>de</strong> sair <strong>de</strong> casa,tendo <strong>em</strong> vista <strong>que</strong> os bandidos andaram espalhando minas nos entornos, Raul<strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>ce no intuito <strong>de</strong> procurar os outros bois mato a<strong>de</strong>ntro, pois ele é reconhecia asabedoria do menino e “Ninguém competia com ele na sabedoria da terra” (COUTO,1986, p. 31). Fez cálculos <strong>de</strong> on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria o pe<strong>que</strong>no pastor teria se refugiado.Chegando ao lugar hipoteticamente calculado, Raul or<strong>de</strong>na: “– Azarias, volta.Azarias!”, s<strong>em</strong> encontrar resposta além do barulho do rio. “– Apareça lá, não tenhasmedo. Não vou-te bater, juro” (COUTO, 1986, p.31). (Grifos do autor). Contudo, nãodizia a verda<strong>de</strong>.Nesse ínterim, a avó Carolina segue Raul e quando esse escuta o barulho <strong>de</strong>passos julga <strong>que</strong> foss<strong>em</strong> <strong>de</strong> Azarias, contudo era da avó. Ele Reclama: “– Volta <strong>em</strong>


Revista Litteris – ISSN 19837429Março 2011. N. 7casa, avó! – O Azarias vai negar <strong>de</strong> ouvir quando chamares. A mim, há-<strong>de</strong> ouvir”(COUTO, 1986, p. 31). (Grifos do autor). E era b<strong>em</strong> verda<strong>de</strong>, pois o menino só confiouna avó e só a ela confi<strong>de</strong>nciou <strong>que</strong> iria fugir, mesmo não havendo lugar para ir. Durantetodo esse t<strong>em</strong>po Raul permanece impermeável a qual<strong>que</strong>r <strong>em</strong>otivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixandotransparecer apenas os pensamentos <strong>de</strong> agressão ao menino: “– Esse gajo vai voltarn<strong>em</strong> <strong>que</strong> eu lhe chambo<strong>que</strong>ie até partir-se dos bocados” (COUTO, 1986, p. 32).(Grifos do autor). Mas ele é repreendido pela avó, <strong>que</strong> enten<strong>de</strong> o sofrimento dope<strong>que</strong>no: “– Cala-te, Raul. Na tua vida n<strong>em</strong> sabes da miséria” (COUTO, 1986, p.32). (Grifos do autor) Note-se <strong>que</strong> esse momento da narrativa nos aproxima do efeitotrágico, tendo <strong>em</strong> vista <strong>que</strong> este representa uma ação <strong>que</strong> representando pena e t<strong>em</strong>oropera a catarse das <strong>em</strong>oções (ARISTÓTELES, 2005, p. 35), copiosamente como anarrativa. Avó Carolina é reconhecedora do sofrimento do pe<strong>que</strong>no e, principalmente,sabe <strong>que</strong> ele não t<strong>em</strong> culpas pelo inci<strong>de</strong>nte do boi e <strong>que</strong> por isso não <strong>de</strong>ve ser punido.Nesse espaço <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po ela consegue obter retorno pelo chamado ao neto, e apósele lhe dizer <strong>que</strong> já recolheu os bois ela faz com <strong>que</strong> seu tio lhe prometa o direito <strong>de</strong> ir àescola no próximo ano. E Raul promete, mas mentiras. O <strong>que</strong> nos r<strong>em</strong>ete a MariaAparecida Santilli:Por um lado, o <strong>de</strong>sejo aqui se manifesta no jogo <strong>de</strong> contrários, do prazer e dador: da dor da vida reprimida/insatisfeita e a do prazer do b<strong>em</strong>-para-ohom<strong>em</strong>,aqui projetado no imaginário juvenil, na transmutação <strong>de</strong>implicações i<strong>de</strong>alistas, por necessida<strong>de</strong>s ditadas pelas condições <strong>em</strong> <strong>que</strong> apersonag<strong>em</strong>, Azarias, vive (1999, p. 103).Assim, <strong>dia</strong>nte <strong>de</strong>ssa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> realização <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sejo reprimido, Azarias vai serevelando, saindo do oculto. Contudo, um fato inesperado ocorre e atribui à narrativanovos caminhos. O menino vê uma clarida<strong>de</strong> súbita no meio da noite. O pe<strong>que</strong>no pastorabsorve o vermelho <strong>que</strong> se faz com o barulho <strong>de</strong> fogo estourando, e eis <strong>que</strong> no escuro danoite ele avista o ndlati. Sentiu vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> gritar perguntando <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> a ave pousaria,porém não o fez. Então, Azarias pensa:– Vens pousar a avó, coitada, tão boa? Ou preferes no tio, afinal dascontas, arrependido e prometente como o pai verda<strong>de</strong>iro <strong>que</strong> morreume?Revista Litteris – www.revistaliteris.com.brMarço 2011. N. 7


Revista Litteris – ISSN 19837429Março 2011. N. 7E antes <strong>que</strong> a ave do fogo se <strong>de</strong>cidisse Azarias correu e abraçou-a na viag<strong>em</strong>da sua chama (COUTO, 1986, p. 33). (Grifos do autor).Diante disso, pod<strong>em</strong>os enten<strong>de</strong>r a similarida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sfecho da narrativa com o começo.Justapor seres diferentes <strong>em</strong> uma tipicida<strong>de</strong> dos fatos nos faz refletir sobre o contextoatribulado e conflituoso <strong>em</strong> Moçambi<strong>que</strong>. E esse abraço com a ave do trovão nada maisé <strong>que</strong> a resultante busca por liberda<strong>de</strong> e salvação, o <strong>que</strong> culmina na catarse dapersonag<strong>em</strong> (SANTILLI, 1999, p. 104).Consi<strong>de</strong>rações FinaisNa narrativa analisada, pud<strong>em</strong>os constatar um confronto entre a tradição e amo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> ocasionada pela presença do colonizador e a guerra civil, <strong>de</strong> modo <strong>que</strong> ela– a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> – personificada nas minas explosivas, po<strong>de</strong> também ser vistasmetaforicamente, pois esse contexto além <strong>de</strong> ocasionar perda <strong>de</strong> homens, mas tambémtrás a perda dos valores ancestrais.Assim, neste conto <strong>Mia</strong> Couto configura <strong>em</strong> uma criança a resistência <strong>de</strong> taisvalores, caracterizando no universo juvenil uma oposição a essa <strong>de</strong>vastação, nosr<strong>em</strong>etendo ao <strong>que</strong> diz Pires Laranjeira sobre essa caracterização nas literaturas africanas,a utilização <strong>de</strong>sse universo para se chegar ao nacionalismo, pois são jovens “<strong>que</strong>carregam nos ombros o sonho e a responsabilida<strong>de</strong> da mudança, às vezes morrendo porela” (LARANJEIRA, 2001, p. 199). Em outras palavras, a re-criação da nação para serconstituída me<strong>dia</strong>nte a literatura ten<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar os aspectos reais do coti<strong>dia</strong>nomoçambicano, pois nas próprias palavras do autor <strong>em</strong> entrevista a Vera Maquêa:“Quanto mais perto <strong>de</strong>ssa „tradição‟ e <strong>de</strong> uma certa „oralida<strong>de</strong>‟ mais próximosestaríamos <strong>de</strong>ssa tal moçambicanida<strong>de</strong>” (2005, p. 207-208).Vale ressaltar, ainda, <strong>que</strong> a formação do nacionalismo através da obra poética éum intento compartilhado por outros autores moçambicanos antes mesmo dain<strong>de</strong>pendência das colônias, mas sendo na década <strong>de</strong> 1980 <strong>que</strong> se alarga esse processo,principalmente com a fundação da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO),pois como nos diz Inocência Mata “Uma das tendências mais significativas da actualliteratura africana, com especial ênfase para a literatura angolana, é o trabalho <strong>de</strong>Revista Litteris – www.revistaliteris.com.brMarço 2011. N. 7


Revista Litteris – ISSN 19837429Março 2011. N. 7interpretação do passado, seu funcionamento e projecção no presente através d<strong>em</strong>e<strong>dia</strong>ções metafóricas, simbólicas e alegóricas” (MATA, 2001, p. 59).Me<strong>dia</strong>nte esta narrativa ambientada no coti<strong>dia</strong>no local é possível nosaproximarmos da realida<strong>de</strong> contextual <strong>de</strong>ssas comunida<strong>de</strong>s através da verossimilhança e<strong>de</strong>svelar parte da história <strong>de</strong> Moçambi<strong>que</strong>, já <strong>que</strong> essas “estórias enraízam-se na históriada comunida<strong>de</strong>, e isso t<strong>em</strong> pelo menos uma conseqüência a nível <strong>de</strong> metáfora: ela acabapor referir, s<strong>em</strong>pre (ainda <strong>que</strong> por sugestão subtilizada quase ao máximo) a realida<strong>de</strong>concreta <strong>de</strong> Moçambi<strong>que</strong>” (LEPECKI apud CHAGAS, 2006, p. 88). Dessa maneira, pormeio da linguag<strong>em</strong> <strong>Mia</strong> Couto possibilita <strong>que</strong> seus leitores se aproxim<strong>em</strong> do contextocultural do seu país, corroborando o <strong>que</strong> já foi antedito, <strong>que</strong> a literatura não conta osfatos históricos, mas nos r<strong>em</strong>ete a eles.Referências BibliográficasARISTÓTELES. Arte poética. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005.COUTO, <strong>Mia</strong>. Vozes Anoitecidas. Moçambi<strong>que</strong>: A.E.M.O., 1986. (ColeçãoKaringana).CHAGAS, Silvania Núbia. Nas fronteiras da m<strong>em</strong>ória: Guimarães Rosa e <strong>Mia</strong>Couto, olhares <strong>que</strong> se cruzam. 2006. 161 f. Tese (Doutorado <strong>em</strong> Letras) – Faculda<strong>de</strong><strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, São Paulo.FREUD, Sigmund. Escritores criativos e <strong>de</strong>vaneios. In: Obras completas. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Imago, 1976, p.147-158.GOTLIB, Ná<strong>dia</strong> Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática. 1995.LARANJEIRA, Pires José. <strong>Mia</strong> couto e as literaturas africanas <strong>de</strong> língua portuguesa.Revista <strong>de</strong> Filologia Românica Anejos. n. 2, Madrid, 2001, p. 185-205.MATA, Inocência. Literatura angolana: silêncios e falas <strong>de</strong> uma voz inquieta.Lisboa: Mar além, 2001. (Coleção Mar Profundo).MAQUÊA, Vera. Entrevista com <strong>Mia</strong> Couto. Via Atlântica: Revista da área <strong>de</strong>Estudos Comparados <strong>de</strong> Literaturas <strong>de</strong> Língua Portuguesa. São Paulo, n. 8, <strong>de</strong>z.2005, p. 205-217.Revista Litteris – www.revistaliteris.com.brMarço 2011. N. 7


Revista Litteris – ISSN 19837429Março 2011. N. 7SANTILLI, Maria Aparecida. O fazer-crer nas histórias <strong>de</strong> <strong>Mia</strong> Couto. Via Atlântica:Revista da área <strong>de</strong> Estudos Comparados <strong>de</strong> Literaturas <strong>de</strong> Língua Portuguesa. SãoPaulo, n. 3, <strong>de</strong>z. 1999, p. 98-109.______. No limiar do drama: contos <strong>de</strong> José Saramago, José Luandino Vieira, <strong>Mia</strong>Couto e Guimarães Rosa. In: SANTILLI, Maria Aparecida. Paralelas e tangentes:entre literaturas <strong>de</strong> língua portuguesa. São Paulo: Arte e Ciência, 2003, p. 159-174.(Coleção Via Atlântica, n. 4).______. Prosa <strong>de</strong> ficção e apelos teatrais: Manuel da Fonseca. José Luandino Vieira,<strong>Mia</strong> Couto e Guimarães Rosa. Via Atlântica: Revista da área <strong>de</strong> EstudosComparados <strong>de</strong> Literaturas <strong>de</strong> Língua Portuguesa. São Paulo, n. 9, jun. 2006, p. 63-70.SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. <strong>Mia</strong> Couto: o outro lado das palavras e dossonhos. Via Atlântica: Revista da área <strong>de</strong> Estudos Comparados <strong>de</strong> Literaturas <strong>de</strong>Língua Portuguesa. São Paulo, n. 9, jun. 2006, p. 72-83.SOUSA, Luís Manana <strong>de</strong>. A Interversão do Código Linguístico <strong>em</strong> <strong>Mia</strong> Couto.Babilónia: Revista Lusófona <strong>de</strong> Línguas, Culturas e Tradução, Portugal, n. 6, v.7,2009, p. 127-144.Revista Litteris – www.revistaliteris.com.brMarço 2011. N. 7

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