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4 Comunidades Remanescentes de Quilombo no RS ... - UFRB

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<strong>Comunida<strong>de</strong>s</strong> <strong>Remanescentes</strong> <strong>de</strong> <strong>Quilombo</strong> <strong>no</strong> <strong>RS</strong>: histórico e situação atual 1Resumo: Este texto traz um sucinto histórico sobre a emergência da questão quilombola <strong>no</strong>estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e realiza uma avaliação da situação atual das comunida<strong>de</strong>sremanescentes <strong>de</strong> quilombos gaúchas, sob a perspectiva da regularização fundiária dos seusterritórios, mais especificamente <strong>no</strong> que tange as dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas para promoveresta política pública. Enten<strong>de</strong>-se que é extremamente necessário o conhecimento e análisedas diversas situações regionais, assim como o discernimento <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong>regularização fundiária que não po<strong>de</strong> estar pautado exclusivamente pela experiência estatal<strong>de</strong> promoção da reforma agrária ou <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> territórios indígenas. Poisembora sejam referenciais importantes, não são suficientes para dar conta da específica eambivalente inserção da população negra na socieda<strong>de</strong> brasileira e <strong>de</strong> sua relação com aterra.Palavras - Chaves: comunida<strong>de</strong>s remanescentes <strong>de</strong> quilombos gaúchas e regularizaçãofundiária.1 Ana Paula Comin <strong>de</strong> Carvalho é professora adjunta da <strong>UFRB</strong>.1


I Este artigo tem dois objetivos: apresentar um breve histórico sobre a emergência daquestão quilombola <strong>no</strong> estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e realizar uma avaliação da situaçãoatual das comunida<strong>de</strong>s remanescentes <strong>de</strong> quilombos gaúchas, sob a perspectiva daregularização fundiária dos seus territórios, mais especificamente <strong>no</strong> que tange asdificulda<strong>de</strong>s enfrentadas para promover esta política pública. Para tanto realizou-se umapesquisa bibliográfica das produções acadêmicas que versam sobre o assunto e utilizou-sedados provenientes das experiências <strong>de</strong> pesquisa antropológica junto a duas coletivida<strong>de</strong>sque se auto-i<strong>de</strong>ntificam como remanescentes <strong>de</strong> quilombos e <strong>de</strong> trabalho na regularizaçãofundiária <strong>de</strong> 39 territórios quilombolas nesta região do país.Em 1994, o Núcleo <strong>de</strong> Estudos sobre I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e Relações Interétnicas (NUER) daUniversida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina iniciou o projeto “Plurietnicida<strong>de</strong>s e Intolerâncias:relações interétnicas <strong>no</strong> sul do Brasil”, com o objetivo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar territórios negros <strong>no</strong>sestados do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, Santa Catarina e Paraná 2 . Quarenta e três agrupamentosforam mapeados <strong>no</strong> <strong>RS</strong>. Dentre eles a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Casca, localizada <strong>no</strong> município <strong>de</strong>Mostardas.Em 1995 seus integrantes solicitaram a Prefeitura Municipal à regularização <strong>de</strong> suasterras por meio do artigo 68 do ADCT, tornando-se a primeira coletivida<strong>de</strong> negra do estadoa invocar esta prerrogativa constitucional para garantir seus direitos territoriais.Este pleito teve o acompanhamento da Procuradoria da República do Rio Gran<strong>de</strong> doSul que, em 1996, instaurou um Inquérito Civil Público com o propósito <strong>de</strong> averiguar sobrea procedência, usos e usufruto das terras da Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Casca. Além disso, contou coma assessoria política <strong>de</strong> militantes dos movimentos sociais negros que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1999,participam das discussões com a comunida<strong>de</strong>; e com o trabalho realizado pelospesquisadores do NUER que, <strong>no</strong> período <strong>de</strong> 1998 a 2000, elaboraram o laudo antropológicosobre este grupo com o apoio financeiro da Fundação Ford e do Conselho Nacional <strong>de</strong>Desenvolvimento Científico e Tec<strong>no</strong>lógico (CNPq) 3 .Em 2001, outras cinco comunida<strong>de</strong>s apontadas neste levantamento – São Miguel eRincão dos Martimia<strong>no</strong>s, em Restinga Seca, Arvinha e Mormaça, em Sertão, e Morro Alto,2Des<strong>de</strong> 1988 este núcleo <strong>de</strong> pesquisa já vinha mapeando em SC áreas rurais e urbanas ocupadas porpopulações negras.3 Leite, Ilka Boaventura. O legado do testamento: a Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Casca em perícia. Porto Alegre: Editorada UFRGS; Florianópolis: NUER/UFSC, 2004.2


em Maquiné - passaram a vivenciar processos <strong>de</strong> regularização <strong>de</strong> seus territórios comoquilombolas graças à celebração <strong>de</strong> um convênio entre o gover<strong>no</strong> fe<strong>de</strong>ral, por intermédio daFundação Cultural Palmares (FCP), ligada ao Ministério da Cultura (MinC), e o gover<strong>no</strong>estadual, através da Secretaria do Trabalho, Cidadania e Assistência Social (STCAS). AUnião repassou ao estado a maior parte dos recursos necessários à elaboração dos estudostécnicos, mapas e memoriais <strong>de</strong>scritivos das áreas, enquanto este último viabilizou arealização dos trabalhos através da contratação <strong>de</strong> profissionais especializados e dacomplementação orçamentária 4 .O antropólogo José Carlos Gomes dos Anjos (2005), num artigo em que produzalgumas reflexões sobre o processo <strong>de</strong> elaboração do relatório técnico da comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>São Miguel do qual participou, consi<strong>de</strong>ra que a conversão dos territórios negrosi<strong>de</strong>ntificados na pesquisa realizada pelo NUER em comunida<strong>de</strong>s remanescentes <strong>de</strong>quilombos foi resultado <strong>de</strong> um trabalho institucional <strong>de</strong> <strong>no</strong>meação, permeado <strong>de</strong> pequenaslutas políticas empreendidas por diferentes mediadores: políticos, militantes dosmovimentos sociais negros, li<strong>de</strong>ranças locais e acadêmicos.Entretanto, como aponta este autor, para que este processo <strong>de</strong> mediação - que tor<strong>no</strong>utoda uma população politicamente pensável para os atuais parâmetros da ação estatal - seefetivasse foi preciso encontrar nestes grupos algumas condições objetivas e subjetivas, taiscomo: a) o reconhecimento <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> local da existência <strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong>s formadasmajoritariamente por negros ou “more<strong>no</strong>s”, cujo direito sobre as terras que ocupam ou jáocuparam foi precariamente respeitado pela socieda<strong>de</strong> envolvente, resultando em condiçõessócio-econômicas extremamente <strong>de</strong>sfavoráveis na atualida<strong>de</strong>; b) mitos <strong>de</strong> origem <strong>de</strong>stesgrupos relacionados à apropriação da terra que, por vezes, remontam a escravidão e c)frágeis processos <strong>de</strong> documentação da proprieda<strong>de</strong> das terras ocupadas que propiciaram aexpropriação <strong>de</strong> partes significativas <strong>de</strong> suas áreas ao longo do tempo.É importante lembrar também que a chegada <strong>de</strong> Olívio Dutra, do Partido dosTrabalhadores, ao gover<strong>no</strong> do estado, configurou um contexto favorável à formulaçãopública da problemática quilombola e a institucionalização das soluções para as mazelas4 Os estudos antropológicos <strong>de</strong> Morro Alto, São Miguel e Rincão dos Martimia<strong>no</strong>s foram publicados atravésda linha editorial da UFRGS: <strong>Comunida<strong>de</strong>s</strong> Tradicionais. Barcellos, Daisy Macedo <strong>de</strong> [et al.]. Comunida<strong>de</strong>negra <strong>de</strong> Morro Alto: historicida<strong>de</strong>, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e territorialida<strong>de</strong>. Porto Alegre: Editora da UFRGS/ FundaçãoCultural Palmares, 2004. Anjos, José Carlos Gomes dos [et al]. São Miguel e Rincão dos Martimia<strong>no</strong>s:ancestralida<strong>de</strong> negra e direitos territoriais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.3


sociais relacionadas à questão. Vários militantes dos movimentos sociais negros,acadêmicos, políticos e li<strong>de</strong>ranças preocupadas com a situação territorial <strong>de</strong>stascomunida<strong>de</strong>s negras são filiados a este partido ou a outros que compunham a FrentePopular 5 .Não por acaso esta questão emerge <strong>no</strong> Rio Gran<strong>de</strong> do Sul simultaneamente aorecrutamento <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> agentes para atuação junto a este público especial. Trata-se<strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> capacitação para atuação junto a comunida<strong>de</strong>s remanescentes <strong>de</strong> quilombos,promovido em 2001 pelo Conselho <strong>de</strong> Participação e Desenvolvimento da Comunida<strong>de</strong>Negra do Estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (CODENE) e pela STCAS. Engajaram-se nestecurso pessoas oriundas da militância (várias com formação superior em áreas sociais eafins) e da aca<strong>de</strong>mia interessadas <strong>no</strong> tema.Outrossim, como constata a antropóloga Cíntia Beatriz Muller (2006) em sua tese<strong>de</strong> doutorado sobre a Comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Morro Alto, experiências promissoras em outrosestados do Brasil, como o Maranhão 6 , serviram <strong>de</strong> inspiração para a formulação do projeto<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação das cinco comunida<strong>de</strong>s anteriormente <strong>de</strong><strong>no</strong>minadas que resultou <strong>no</strong>convênio entre a União e o gover<strong>no</strong> estadual.Cabe salientar que, em 2002, o governador do Estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, OlívioDutra, promulgou uma lei e um <strong>de</strong>creto que dispõem sobre a regularização das terras dascomunida<strong>de</strong>s remanescentes <strong>de</strong> quilombos 7 , possibilitando que o mesmo viesse a realizar astitulações das áreas existentes. Contudo, nenhuma das seis coletivida<strong>de</strong>s negras gaúchasanteriormente mencionadas - que já possuíam estudos antropológicos, mapas e memoriais<strong>de</strong>scritivos <strong>de</strong> suas áreas - obteve os títulos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> através <strong>de</strong>sta legislação 8 .Neste mesmo a<strong>no</strong> uma comunida<strong>de</strong> negra, em Porto Alegre, solicitou aregularização do seu território através do artigo 68 do ADCT. Trata-se da Família Silva,primeiro grupo urba<strong>no</strong> a invocar a legislação quilombola para garantir os seus direitosterritoriais <strong>no</strong> <strong>RS</strong> e <strong>no</strong> Brasil. É pertinente observar que em 2003, o Partido dosTrabalhadores governava a nível municipal e fe<strong>de</strong>ral. Um expressivo número <strong>de</strong> militantes5 Frente <strong>de</strong> Partidos <strong>de</strong> esquerda, li<strong>de</strong>rada pelo PT.6 Projeto Vida <strong>de</strong> Negro, implementado <strong>no</strong> estado do Maranhão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1988.7 Lei n° 11.731, <strong>de</strong> 09 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2002 e Decreto 41.498 <strong>de</strong> 25 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2002.8 Os processos <strong>de</strong> regularização <strong>de</strong>stes territórios não tiveram prosseguimento <strong>no</strong> gover<strong>no</strong> <strong>de</strong> Germa<strong>no</strong>Rigotto, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Nenhuma outra experiência <strong>de</strong>ste tipo foirealizada em âmbito estadual <strong>de</strong>ste então.4


dos movimentos sociais negros era filiado a este partido e ocupava cargos em ambas asadministrações.Pela primeira vez a ocupação territorial negra urbana tomou contor<strong>no</strong>s diversos dasimples remoção <strong>de</strong> uma “vila irregular” ou da proclamação <strong>de</strong> um bem público que excluiaqueles que estão fora das regras da urbanida<strong>de</strong>, ações empreendidas durante a década <strong>de</strong>90 pelo mesmo partido junto a Prefeitura Municipal da capital do estado 9 . O estudoantropológico e histórico <strong>de</strong>sta comunida<strong>de</strong> foi realizado em 2004 com recursos da União,através da FCP, e do Município, por intermédio da Secretaria <strong>de</strong> Direitos Huma<strong>no</strong>s eSegurança Urbana (SDHSU) 10 .Em outubro <strong>de</strong> 2003 realizou-se a “1º Conferência Estadual <strong>de</strong> <strong>Comunida<strong>de</strong>s</strong><strong>Remanescentes</strong> <strong>de</strong> <strong>Quilombo</strong>s do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul” em Restinga Seca. Este evento foipromovido pelo CODENE, Programa <strong>RS</strong> Rural, Associação Riogran<strong>de</strong>nse <strong>de</strong>Empreendimentos <strong>de</strong> Assistência Técnica e Extensão Rural (ASCAR- EMATER/<strong>RS</strong>) e ascomunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> São Miguel e Martimia<strong>no</strong>s.O <strong>de</strong>creto presi<strong>de</strong>ncial 3.912 11 , que regulamentava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2001 os procedimentospara a i<strong>de</strong>ntificação, reconhecimento, <strong>de</strong>limitação, <strong>de</strong>marcação e titulação das terrasocupadas por remanescentes das comunida<strong>de</strong>s dos quilombos, foi substituído, em<strong>no</strong>vembro <strong>de</strong> 2003, pelo 4.887 12 .A regularização fundiária antes <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> da Fundação Cultural Palmares,que tentava realizá-la <strong>no</strong> estado através <strong>de</strong> parcerias com o gover<strong>no</strong> do estado e communicípios, passou para o INCRA. A caracterização das comunida<strong>de</strong>s remanescentes <strong>de</strong>9 Vi<strong>de</strong> o exemplo da Vila Mirim, que foi removida <strong>de</strong> sua localização original <strong>no</strong> início dos a<strong>no</strong>s 90, emvirtu<strong>de</strong> da construção da Avenida Nilo Peçanha, <strong>no</strong> bairro Três Figueiras, apesar da resistência <strong>de</strong> seusmoradores e da atuação do Movimento Negro Unificado. É interessante observar que esta “ocupaçãoirregular” ficava próxima da área da “Família Silva”. Para maiores informações sobre a Vila Mirim vi<strong>de</strong>:ANJOS,José Carlos dos. O território da linha cruzada: Rua Mirim versus Avenida Nilo Peçanha – PortoAlegre (1992-1993). Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Instituto <strong>de</strong> Filosofia e CiênciasSociais, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, 1993.10 Carvalho, Ana Paula Comin <strong>de</strong>. Weimer, Rodrigo <strong>de</strong> Azevedo. Família Silva: Resistência Negra <strong>no</strong> bairroTrês Figueiras. Laudo antropológico e histórico <strong>de</strong> reconhecimento da comunida<strong>de</strong> remanescente <strong>de</strong> quilomboFamília Silva para cumprimento ao art. 68/ADCT. Fundação Cultural Palmares/Prefeitura Municipal <strong>de</strong> PortoAlegre. Porto Alegre, 2004.11 “(...) somente po<strong>de</strong> ser reconhecida a proprieda<strong>de</strong> sobre terras que: I – eram ocupadas por quilombos em1888; II- estavam ocupadas por remanescentes das comunida<strong>de</strong>s dos quilombos em 5 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1988.”12 “(...) Consi<strong>de</strong>ram-se remanescentes das comunida<strong>de</strong>s dos quilombos, para fins <strong>de</strong>ste Decreto, os gruposétnicosraciais, segundo critérios <strong>de</strong> auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados <strong>de</strong> relaçõesterritoriais específicas, com presunção <strong>de</strong> ancestralida<strong>de</strong> negra relacionada com a resistência à opressãohistórica sofrida.”5


quilombos <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> estar atrelada à permanência centenária em um <strong>de</strong>terminado territóriopara <strong>de</strong>finir-se a partir da auto-i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>stes grupos e <strong>de</strong> conceitos como resistência,historicida<strong>de</strong> e territorialida<strong>de</strong>.Em 2004, a Secretaria da Agricultura e Abastecimento do Estado do Rio Gran<strong>de</strong> doSul, por intermédio do Programa <strong>RS</strong> Rural, e o Instituto Interamerica<strong>no</strong> <strong>de</strong> Cooperaçãopara a Agricultura (IICA) disponibilizaram recursos para a realização <strong>de</strong> um diagnósticodas comunida<strong>de</strong>s negras rurais remanescentes <strong>de</strong> quilombos para que as mesmas pu<strong>de</strong>ssemser contempladas pelas políticas <strong>de</strong>senvolvidas pelo referido programa <strong>no</strong> âmbito <strong>de</strong>stasecretaria. Neste trabalho foram i<strong>de</strong>ntificadas quarenta e duas coletivida<strong>de</strong>s compotencialida<strong>de</strong> para se auto-reconhecerem como quilombolas 13 .A oferta <strong>de</strong> políticas públicas voltadas para comunida<strong>de</strong>s negras, como o Programa<strong>RS</strong> Rural (que se <strong>de</strong>stinava ao melhoramento das moradias e a implementação <strong>de</strong> criação <strong>de</strong>animais <strong>de</strong> peque<strong>no</strong> porte, como ovelhas e galinhas) estimulou estes grupos a organizaremsee buscarem a regularização <strong>de</strong> suas terras, na medida em que a singularida<strong>de</strong> da suacondição étnica e a precarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas condições <strong>de</strong> vida passaram <strong>de</strong> fatorestigmatizante a fundamento para inclusão em programas sociais.Em 2005 formou-se a Associação das <strong>Comunida<strong>de</strong>s</strong> <strong>Remanescentes</strong> <strong>de</strong> <strong>Quilombo</strong>sdo Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e <strong>no</strong> a<strong>no</strong> seguinte foi constituída a Fe<strong>de</strong>ração <strong>de</strong>stes grupos. Emvirtu<strong>de</strong> das diferenças regionais que o estado apresenta, surgiram também organizações queenglobam coletivida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> municípios vizinhos. A emergência <strong>de</strong>stas organizações éexpressão <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> relativa auto<strong>no</strong>mização das comunida<strong>de</strong>s quilombolas -majoritariamente rurais - em relação aos movimentos sociais negros que vinhamacompanhando os seus pleitos e que tinham uma experiência predominantemente urbana <strong>de</strong>mobilização política. Com a criação <strong>de</strong>stas entida<strong>de</strong>s, gradativamente elas se fazemrepresentar por suas próprias li<strong>de</strong>ranças locais em todo o tipo <strong>de</strong> evento <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong>stesgrupos, assim como passam a participar diretamente da disputa pela captação <strong>de</strong> recursospara o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> projetos em suas coletivida<strong>de</strong>s.Fenôme<strong>no</strong> semelhante foi analisado pela antropóloga Sara Alonso (2006) <strong>no</strong> estadodo Maranhão. Esta autora aponta a importância <strong>de</strong> encontros e reuniões que tematizam a13 RUBERT, Rosane A. <strong>Comunida<strong>de</strong>s</strong> negras rurais <strong>no</strong> <strong>RS</strong>: um levantamento sócio-antropológico preliminar.Porto Alegre: <strong>RS</strong> RURAL, IICA, 2005.6


questão quilombola para objetivar e criar as comunida<strong>de</strong>s nestes eventos e,simultaneamente, forjar suas li<strong>de</strong>ranças. Ela sublinha também a estreita conexão existenteentre o aumento das associações e a disputa pela captação <strong>de</strong> recursos, que está inseridanum contexto maior <strong>de</strong> políticas sociais e das condições impostas pelas agênciasfinanciadoras para aprovar projetos.A Superintendência Regional do INCRA <strong>no</strong> estado iniciou, ainda em 2004, ostrabalhos <strong>de</strong> regularização fundiária dos territórios quilombolas em comunida<strong>de</strong>s que jápossuíam estudo antropológico (Casca, em Mostardas, Morro Alto, em Osório/Maquiné,São Miguel e Rincão dos Martimia<strong>no</strong>s, ambas em Restinga Seca, e Família Silva, em PortoAlegre).A Autarquia realizou entre 2005 e 2007 pesquisas antropológicas e históricas emoutras oito coletivida<strong>de</strong>s (Cambará, em Cachoeira do Sul, Ma<strong>no</strong>el Barbosa, em Gravataí,Mormaça, em Sertão, Luiz Guaranha/Areal e Alpes, ambas em Porto Alegre, Chácara dasRosas, em Ca<strong>no</strong>as, Rincão dos Negros, em Rio Pardo, e Palmas, em Bagé) por meio <strong>de</strong>convênios com a Fundação <strong>de</strong> Apoio da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul(FAURGS).Ela promoveu, em 2005, através <strong>de</strong> convênio com organizações dos movimentossociais negros, oficinas <strong>de</strong> aproximação com outros quarenta e seis grupos. Foramelaborados também, ao longo do a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 2008, cinco <strong>no</strong>vos relatórios antropológicos, porintermédio <strong>de</strong> convênios com as fundações <strong>de</strong> apoio a pesquisa das Universida<strong>de</strong>s Fe<strong>de</strong>rais<strong>de</strong> Pelotas, Santa Maria e Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, junto às comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ma<strong>no</strong>el do Rego,em Canguçu, Arnesto Penna Carneiro, em Santa Maria, Família Fidélix, em Porto Alegre,Limoeiro, em Palmares do Sul e Rincão dos Caixões, em Jacuízinho.Estas ações configuraram a atual situação: setenta e dois processos administrativos<strong>de</strong> regularização <strong>de</strong> territórios quilombolas abertos, <strong>de</strong>z relatórios técnicos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificaçãoe <strong>de</strong>limitação <strong>de</strong> territórios quilombolas, sete portarias <strong>de</strong> reconhecimento e quatro <strong>de</strong>cretospresi<strong>de</strong>nciais <strong>de</strong> <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> interesse social publicados, mas até o presente momentoapenas três títulos <strong>de</strong>finitivos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> foram emitidos em prol das comunida<strong>de</strong>sremanescentes <strong>de</strong> quilombo do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, sendo dois <strong>de</strong>les parciais. Diante <strong>de</strong>stecenário em âmbito estadual, torna-se importante refletir sobre algumas características daregularização fundiária dos territórios quilombolas que tornam tão difícil a sua efetivação.7


Um dos primeiros aspectos que precisam ser mencionados diz respeito àinexistência <strong>de</strong> um órgão estatal exclusivo, com condições técnicas e operacionaisa<strong>de</strong>quadas para a execução <strong>de</strong>sta tarefa. Como se sabe, esta atribuição já foi da FundaçãoCultural Palmares (cuja principal função e a valorização do patrimônio e da cultura afrobrasileira)e hoje é do Instituto Nacional <strong>de</strong> Colonização e Reforma Agrária (cujasprincipais funções são a realização do or<strong>de</strong>namento fundiário e da reforma agrária), semprejuízo da atuação dos estados e dos municípios. Nenhuma <strong>de</strong>stas autarquias foi criadacom este fim e consequentemente não possuem todos os profissionais necessários a suarealização. Mesmo <strong>no</strong>s estados em que foi criada uma legislação específica, a atuaçãoestatal não se dá <strong>de</strong> forma contínua, como o exemplo do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul anteriormentemencionado <strong>de</strong>monstra.Os convênios estabelecidos pela FCP com os estados e municípios, os que foramfirmados pelo INCRA com as Universida<strong>de</strong>s Fe<strong>de</strong>rais e os concursos que este último órgãorealizou para a contratação <strong>de</strong> antropólogos não foram suficientes para aten<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>mandacrescente das comunida<strong>de</strong>s. Outrossim, tais parcerias viabilizaram a produção <strong>de</strong> apenasalgumas das peças técnicas necessárias a titulação <strong>de</strong>stes territórios, em especial dosrelatórios antropológicos, <strong>de</strong>ixando para trás outras etapas fundamentais para a conclusão<strong>de</strong>stes processos. Dentre estas, a da <strong>de</strong>sapropriação dos imóveis inseridos <strong>no</strong>s perímetrosdas áreas reivindicadas.Este último é, inclusive, um dos aspectos mais polêmicos da regularização fundiáriados quilombos. Ele tem fomentado ações judiciais contra o <strong>de</strong>creto 4.887, contra oandamento <strong>de</strong> processos administrativos em algumas Superintendências do INCRA e atémesmo a alteração da Instrução Normativa do INCRA sobre o tema. O entendimentopredominante, em especial entre entida<strong>de</strong>s representativas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s proprietários rurais, é<strong>de</strong> que o direito <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> estaria sendo <strong>de</strong>srespeitado quando o Estado brasileiro<strong>de</strong>sapropria uma área para titulá-la em prol <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> remanescente <strong>de</strong> quilombo.Ainda que tal ato seja fomentado pelo interesse social <strong>de</strong> reparar uma injustiça histórica queproduziu gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>svantagens sócio-econômicas para esta parcela da população negra eque a in<strong>de</strong>nização seja realizada em espécie e pelo valor <strong>de</strong> mercado.O Brasil, enquanto nação, estabeleceu formas específicas <strong>de</strong> construção e relaçãocom a sua alterida<strong>de</strong> interior, configurando-se assim numa formação da diversida<strong>de</strong>8


(SEGATO, 1998). Mas qual lugar tem a população negra nesta formação? Em relação aeste tema, o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2001) argumenta que, <strong>no</strong>or<strong>de</strong>namento simbólico brasileiro, não se reconhece o negro como sujeito político ou <strong>de</strong>direito, mas apenas como objeto cultural, como marco da nacionalida<strong>de</strong> e da civilizaçãobrasileira. Ainda segundo este autor, o or<strong>de</strong>namento jurídico, embora aponte para direçõesme<strong>no</strong>s simbólicas, ten<strong>de</strong> a ficar encapsulado pela lógica cultural.Em sua análise sobre o surgimento do artigo 68 do ADCT, o antropólogo JoséMaurício Paiva <strong>de</strong> Andion Arruti (2006) aponta que o campo da cultura era, até aquelemomento, o próprio limite permitido ao reconhecimento público e político da populaçãonegra. Tais afirmações, associadas à análise comparativa <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> reconhecimentoterritorial e cultural negro que realizei em minha tese <strong>de</strong> doutorado (CARVALHO, 2008),levam a crer que a cultura continua sendo o lugar por excelência reservado ao tema dapopulação negra em <strong>no</strong>sso país, isto é, o espaço da diferença. Embora as analogias com aquestão indígena sejam freqüentes <strong>no</strong> que tange a regularização dos territórios quilombolas,<strong>de</strong> maneira geral os negros não são vistos como tendo, ou preten<strong>de</strong>ndo ter, uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>cultural distinta da que possui a população brasileira que justifiquem a concessão <strong>de</strong>direitos coletivos, tal como ocorre com os índios.Quando os títulos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> inci<strong>de</strong>ntes <strong>no</strong>s territórios quilombolas apresentamvícios <strong>de</strong> origem, eles precisam ser anulados. Ainda que as evidências <strong>de</strong> invalida<strong>de</strong> sejamextremamente contun<strong>de</strong>ntes, a conclusão <strong>de</strong>ste procedimento <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do trâmite judicial,que, via <strong>de</strong> regra, é bastante moroso. Este é o caso <strong>de</strong> parte significativa da área daComunida<strong>de</strong> Remanescente <strong>de</strong> <strong>Quilombo</strong> <strong>de</strong> Casca, em Mostardas, que aguarda afinalização do processo judicial <strong>de</strong> anulação <strong>de</strong> uma matrícula para obter a titulação <strong>de</strong> suasterras.Outrossim, diferentemente do que tem sido a praxe do INCRA <strong>no</strong> âmbito dareforma agrária, especialmente em estados como o Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, não trata-se <strong>de</strong><strong>de</strong>sapropriar uma gran<strong>de</strong> área para fracioná-la em peque<strong>no</strong>s lotes que serão distribuídos aum número fixo <strong>de</strong> famílias que utilizarão este espaço para moradia, produção agrícola ecriação <strong>de</strong> animais para subsistência e comercialização. Na maior parte dos casos gaúchos,a regularização dos territórios quilombolas implica na <strong>de</strong>sapropriação <strong>de</strong> um númeroconsi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> pequenas e médias proprieda<strong>de</strong>s que serão unificadas, tornando-se uma9


única área que será utilizada <strong>de</strong> forma extremamente diversificada pelas comunida<strong>de</strong>sremanescentes conforme seus usos, costumes e tradições.Esta questão torna-se bastante problemática quando consi<strong>de</strong>ramos que a tarefa <strong>de</strong>regularização fundiária dos territórios quilombolas está a cargo <strong>de</strong> um órgão que buscacombater a concentração <strong>de</strong> terras através do seu parcelamento. Em certas regiões do país,como a sul, a execução <strong>de</strong>sta política resulta na transformação <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> pequenase médias proprieda<strong>de</strong>s familiares agrícolas num único e extenso território. Este ficará acargo <strong>de</strong> um grupo que po<strong>de</strong>, por diversas circunstâncias, sequer <strong>de</strong>senvolver ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>cultivo ou criação <strong>de</strong> animais ou as faz numa escala muito inferior aos padrõesprodutivistas impregnados na mentalida<strong>de</strong> dos técnicos da instituição. As situações em queos futuros <strong>de</strong>sapropriados compõem a clientela prioritária da Autarquia – peque<strong>no</strong>sprodutores rurais - são aquelas que geram os maiores dilemas profissionais entre muitos dosservidores do INCRA envolvidos na regularização dos territórios quilombolas.É evi<strong>de</strong>nte que não é possível proce<strong>de</strong>r do mesmo modo que na obtenção <strong>de</strong> áreaspara a reforma agrária, com um <strong>de</strong>creto presi<strong>de</strong>ncial para cada imóvel a ser <strong>de</strong>sapropriado,uma vez que a titulação das terras <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> remanescente <strong>de</strong> quilombo po<strong>de</strong>riaimplicar na emissão <strong>de</strong> inúmeros <strong>de</strong>cretos presi<strong>de</strong>nciais para o mesmo processo. Talquestão já foi superada, através <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>ta técnica formulada pela Procuradoria Fe<strong>de</strong>ralEspecializada a este respeito, que recomenda a emissão <strong>de</strong> um único <strong>de</strong>creto presi<strong>de</strong>ncialabrangendo o perímetro <strong>de</strong> toda a área a ser regularizada em prol da comunida<strong>de</strong>quilombola.Contudo, isto não torna <strong>de</strong>snecessária a abertura <strong>de</strong> um processo judicial <strong>de</strong><strong>de</strong>sapropriação para cada imóvel inserido <strong>no</strong> território. Estes processos têm duraçãovariada, a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da concordância ou não como os valores in<strong>de</strong>nizatórios <strong>de</strong>positados emjuízo, fazendo com que alguns imóveis sejam <strong>de</strong>sapropriados antes <strong>de</strong> outros. Este é o casoda Família Silva, em Porto Alegre. Dos quatro processos judiciais <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapropriaçãorelativos ao seu território, apenas um já foi concluído sem contestações dos valoresin<strong>de</strong>nizatórios. Foi possível realizar uma titulação parcial em prol <strong>de</strong>sta comunida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>poisque a associação <strong>de</strong>ssa coletivida<strong>de</strong> foi <strong>de</strong>vidamente registrada.Esta é uma das várias dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas por estes grupos para obter aregularização <strong>de</strong> seus territórios. Como se trata <strong>de</strong> uma titulação coletiva, ela precisa10


acontecer em <strong>no</strong>me da associação dos remanescentes <strong>de</strong> quilombos. Para a criação <strong>de</strong> umaassociação as comunida<strong>de</strong>s precisam elaborar atas, estatutos, contratar um advogado e umcontador e pagar às taxas cobradas para o registro da entida<strong>de</strong> e emissão do CNPJ. Muitos<strong>de</strong>stes grupos têm baixa escolarida<strong>de</strong> e são extremamente pobres, não se sentido capazes <strong>de</strong>elaborar todos os documentos necessários e não tendo condições <strong>de</strong> arcar com os custospara a regularização <strong>de</strong> suas entida<strong>de</strong>s representativas.Por fim, uma das questões mais complexas a ser enfrentada nestes processos <strong>de</strong>regularização <strong>de</strong> territórios quilombolas diz respeito ao tratamento dispensado aos imóveisregistrados em <strong>no</strong>me <strong>de</strong> integrantes das comunida<strong>de</strong>s remanescentes <strong>de</strong> quilombos, situaçãobastante recorrente <strong>no</strong> caso do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, on<strong>de</strong> muitas terras foram obtidas através<strong>de</strong> compras e doações (estes são os casos <strong>de</strong> Morro Alto, em Maquine/Osório, Casca, emMostardas, São Miguel, Rincão dos Martimia<strong>no</strong>s, ambas em Restinga Seca, Ma<strong>no</strong>elBarbosa,em Gravataí, entre outros).Em relação a este aspecto, a Procuradoria Fe<strong>de</strong>ral Especializada formulou uma <strong>no</strong>tatécnica estabelecendo que os remanescentes <strong>de</strong> quilombos que possuem títulos <strong>de</strong>proprieda<strong>de</strong>s serão in<strong>de</strong>nizados apenas pelas suas terras, visto que permanecerãousufruindo das benfeitorias existentes <strong>no</strong> local após a titulação da comunida<strong>de</strong>. Ainda sim,há uma gran<strong>de</strong> resistência por parte daqueles que conseguiram registrar suas posses. Dentreos principais motivos que fomentam esta recusa está o <strong>de</strong> que a associação é, geralmente,uma forma <strong>de</strong> representação e tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão coletiva imposta a estes grupos peloor<strong>de</strong>namento jurídico que não condiz com os mecanismos tradicionalmente empregados poreles para se fazerem ouvir e <strong>de</strong>cidir enquanto tais.Neste mo<strong>de</strong>lo associativo, que obrigatoriamente tem que ser adotado, sãoprincipalmente os mais jovens, mais escolarizados, com maior disponibilida<strong>de</strong> e habilida<strong>de</strong>para <strong>de</strong>slocamento e trânsito entre as instituições estatais, ong’s, partidos e movimentossociais que acabam assumindo o papel <strong>de</strong> direção nas associações. Várias <strong>de</strong>stas li<strong>de</strong>rançastêm visões sobre o futuro <strong>de</strong> suas comunida<strong>de</strong>s que se chocam com a <strong>de</strong> outros que asintegram, em especial dos membros mais velhos.Além disso, este constante processo <strong>de</strong> representar o seu grupo <strong>no</strong>s diferenteseventos relacionados à questão quilombola muitas vezes faz com que estas li<strong>de</strong>ranças sedistanciem do cotidia<strong>no</strong> dos seus grupos e consequentemente dos seus interesses e opiniões,11


per<strong>de</strong>ndo legitimida<strong>de</strong> interna. Deste modo, muitos dos membros das comunida<strong>de</strong>s não sesentem efetivamente representados por aqueles que presi<strong>de</strong>m suas associações.Por outro lado, a i<strong>de</strong>ntificação da associação com aqueles que a li<strong>de</strong>ram <strong>no</strong>momento, faz com que as possíveis divergências individuais tornem-se obstáculos a<strong>de</strong>sapropriação das terras dos proprietários quilombolas. Não é raro ouvir integrantes <strong>de</strong>algumas comunida<strong>de</strong>s remanescentes <strong>de</strong> quilombos gaúchas dizerem aos servidores doINCRA “que não entregarão os títulos <strong>de</strong> seus imóveis para aquele fula<strong>no</strong> (o (a) presi<strong>de</strong>nteda associação) nem mortos”.Por si só, a existência <strong>de</strong> quilombolas <strong>de</strong> um mesmo grupo com e sem títulos <strong>de</strong>proprieda<strong>de</strong> individual <strong>de</strong>monstra que uma comunida<strong>de</strong> não é formada por um grupohomogêneo <strong>de</strong> pessoas, mas por indivíduos que tem alguns vínculos e objetivos comunsque po<strong>de</strong>m ser potencializados <strong>no</strong> processo <strong>de</strong> mobilização política pela titulação <strong>de</strong> suasterras, assim como po<strong>de</strong>m ter divergências e conflitos entre si que ganham, em<strong>de</strong>terminados momentos, maior ou me<strong>no</strong>r importância, especialmente em situações comoestas.Uma das gran<strong>de</strong>s preocupações dos membros mais velhos <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>sremanescentes <strong>de</strong> quilombos que possuem títulos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> individual diz respeito àgarantia da herança <strong>de</strong> seus filhos e <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> retor<strong>no</strong> daqueles que por diversosmotivos migraram em períodos anteriores para outras localida<strong>de</strong>s e cida<strong>de</strong>s. Este é um dosprincipais questionamentos que os quilombolas fazem aos servidores do INCRA durante oprocesso <strong>de</strong> regularização <strong>de</strong> seus territórios. Cabe <strong>de</strong>stacar que o que está em jogo aquinão é a preservação do direito <strong>de</strong> dispor <strong>de</strong> sua área como mercadoria, mas enquantopatrimônio familiar que garantirá o futuro das próximas gerações.Diante da titulação coletiva - que vários temem que implique em comunização totaldos recursos territoriais - muitas são as dúvidas sobre a reprodução social dos gruposfamiliares que compõem as comunida<strong>de</strong>s e o grau <strong>de</strong> participação das parentelas queembora não habitem atualmente o território, compõem a coletivida<strong>de</strong>. Algumascomunida<strong>de</strong>s preten<strong>de</strong>m registrar as posses atuais e garantir documentalmente que asmesmas permanecerão com os seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes ainda que suas proprieda<strong>de</strong>s estejam em<strong>no</strong>me das associações. Num caso extremo, as divergências entre aqueles que permaneceram12


e os que saíram do território <strong>de</strong> um mesmo grupo resultaram na criação <strong>de</strong> duasassociações.De toda a sorte, como buscamos <strong>de</strong>monstrar sucintamente, os limites da ação estatalem relação a esta questão na atualida<strong>de</strong> trazem inúmeras implicações para os processos <strong>de</strong>regularização <strong>de</strong> territórios quilombolas em andamento <strong>no</strong> estado do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul e,certamente, em todo o país.Como guisa <strong>de</strong> conclusão, é importante frisar que a superação dos obstáculos emrelação à titulação das comunida<strong>de</strong>s remanescentes <strong>de</strong> quilombos passa necessariamentepelo conhecimento e análise das diversas situações regionais, assim como pelodiscernimento <strong>de</strong> que trata-se <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> regularização fundiária que não po<strong>de</strong> estarpautado exclusivamente pela experiência estatal <strong>de</strong> promoção da reforma agrária ou <strong>de</strong>reconhecimento <strong>de</strong> territórios indígenas, pois embora sejam referenciais importantes, nãosão suficientes para dar conta da específica e ambivalente inserção da população negra nasocieda<strong>de</strong> brasileira e <strong>de</strong> sua relação com a terra. Espera-se que este artigo tenhacontribuído ainda que mo<strong>de</strong>stamente para subsidiar a reflexão sobre o tema.Referências Bibliográficas:ALONSO, Sara. O “movimento” pela i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e “resgate das terras <strong>de</strong> preto”: umaprática <strong>de</strong> socialização. In: Prêmio ABA/MDA Territórios <strong>Quilombo</strong>las. AssociaçãoBrasileira <strong>de</strong> Antropologia (Organizador). Brasília: Ministério do DesenvolvimentoAgrário, Núcleo <strong>de</strong> Estudos e Desenvolvimento Rural, 2006.ANJOS, José Carlos Gomes dos. <strong>Remanescentes</strong> <strong>de</strong> <strong>Quilombo</strong>s: Reflexões epistemológicas.In: Laudos Periciais Antropológicos em <strong>de</strong>bate. Ilka Boaventura Leite (Org.).Florianópolis: NUER/ABA,2005.ARRUTI, José Maurício P. Andion. Mocambo. Antropologia e História do processo <strong>de</strong>formação quilombola. Bauru, SP: Edusc, 2006.CARVALHO, Ana Paula Comin <strong>de</strong>. O espaço da diferença <strong>no</strong> Brasil: et<strong>no</strong>grafia <strong>de</strong>políticas públicas <strong>de</strong> reconhecimento territorial e cultural negro <strong>no</strong> sul do país. Tese <strong>de</strong>Doutorado apresentada ao Programa <strong>de</strong> Pós Graduação em Antropologia Social da UFRGS.Porto Alegre, 2008.13


GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Nacionalida<strong>de</strong> e <strong>no</strong>vas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s raciais <strong>no</strong>Brasil: uma hipótese <strong>de</strong> trabalho. In: Democracia hoje: <strong>no</strong>vos <strong>de</strong>safios para a teoria<strong>de</strong>mocrática contemporânea. Jessé <strong>de</strong> Souza (Org.). Brasília: Editora Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Brasília, 2001.MÜLLER, Cíntia Beatriz. Comunida<strong>de</strong> remanescente <strong>de</strong> quilombo <strong>de</strong> Morro Alto: umaanálise et<strong>no</strong>gráfica dos campos <strong>de</strong> disputa em tor<strong>no</strong> da construção do significado dai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> jurídico política <strong>de</strong> “remanescentes <strong>de</strong> quilombos”. Tese <strong>de</strong> Doutoradoapresentada ao Programa <strong>de</strong> Pós Graduação em Antropologia Social da UFRGS. PortoAlegre, 2006.SEGATO, Rita Laura. Alterida<strong>de</strong>s históricas/i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s políticas: uma crítica a lãscertezas <strong>de</strong>l pluralismo global. Série Antropologia, n° 234.Brasília: Departamento <strong>de</strong>Antropologia da UNB, 1998.14

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