cecília meireles: intimismo, lirismo e tendência ao misticismo em ...
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Revista Mundo & Letras 48CECÍLIA MEIRELES: INTIMISMO, LIRISMO E TENDÊNCIA AO MISTICISMO EMVERSOS DE GRANDE BELEZA E PERFEIÇÃO FORMAL.MUNHOZ, Rafael 1Resumo: O artigo busca relatar a trajetória de uma das mais importantes escritorasbrasileiras. Habilidosa na escolha das palavras, Cecília Meireles, explora acomplexidade simbólica presente nas imagens de forte apelo sensorial. A presença det<strong>em</strong>as voltados para o <strong>misticismo</strong>, <strong>intimismo</strong> e <strong>lirismo</strong>, dão à poesia da autora umcaráter fluido e etéreo, que confirmam a inclinação neo-simbolista e sua importanteposição na literatura brasileira do século XX.A literatura é um instrumento capaz de mostrar o ser humano com umaveracidade que as ciências talvez não tenham. Ela é um documento espontâneo da vida<strong>em</strong> transito. É o depoimento vivo, natural, autêntico. Os próprios pretextos que buscamevitar uma dificuldade são trajes novos que encobr<strong>em</strong>, mas não desfiguram as formasque conduz<strong>em</strong>. Quando um poeta conta, é que nele se operou todo um processo desíntese: sua sensibilidade, sua personalidade recolheu os el<strong>em</strong>entos do momento, daraça, da terra, dos contatos sociais e espirituais, todo o complexo da vida, nareceptividade ativa e criadora de um hom<strong>em</strong> poder produzir máquinas ou leis, sist<strong>em</strong>asou canções.Quanto à poesia, nascida com a primeira <strong>em</strong>oção humana, desde então nuncamais deixou de acompanhar o destino dos homens, fazendo florir todos os impossíveisdesejados. Foi o <strong>lirismo</strong> espontâneo, celebrando a alegria e o amor das primeirascriaturas, foi a voz da inquietação diante dos primeiros mistérios pressentidos e o hinodas suas intenções místicas.“O escritor é a pessoa que diz o que muitos sent<strong>em</strong> e não sab<strong>em</strong> expressá-las.Nossa responsabilidade é de dizer essas coisas com clareza. E há, também,essas coisas que n<strong>em</strong> todas as pessoas sent<strong>em</strong>, mas que o escritor ensina asentir.” 2Atualmente, as mulheres têm ocupado um grande espaço no meio poético,porém, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre foi assim, pois se for feito um levantamento, a fisionomia poéticada mulher era nitidamente difícil de sapará-la da fisionomia poética do hom<strong>em</strong>. No finaldos anos 70, as condições sociais separaram por muito t<strong>em</strong>po o hom<strong>em</strong> e a mulher <strong>em</strong>campos específicos. No entanto, se for levado <strong>em</strong> consideração que uma boa parte dasabedoria universal foi defendida, desde r<strong>em</strong>otos t<strong>em</strong>pos, oralmente, pela mulher, naconservação do Folclore Literário, percebe-se que s<strong>em</strong> instrumentação sist<strong>em</strong>atizada, amulher, é um livro vivo e <strong>em</strong>ocionante, repleto de canções de berço, históriasencantadas, contos, lendas, provérbios, fábulas, rimas para dançar e curar e todos osensinamentos morais e práticos retidos permanent<strong>em</strong>ente pela m<strong>em</strong>ória e transmitidoscom encanto de estilo, segundo os dons naturais de imaginação e linguag<strong>em</strong> de cadauma.No dia 7 de nov<strong>em</strong>bro de 1901, nasce no Rio de Janeiro uma das mais brilhantesmulheres que faz<strong>em</strong> parte da história literária brasileira, Cecília Benevides de Carvalho1Graduando <strong>em</strong> Letras Português/Francês. Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail:rafael_letrasuepg@hotmail.com.2 Cecília Meireles <strong>em</strong> uma entrevista <strong>ao</strong> jornal Correio da Manhã <strong>em</strong> 1964.Mundo e Letras, José Bonifácio/SP, v. 1, n. 1, Maio/2010
Revista Mundo & Letras 49Meireles. No entanto, a ronda da morte, que já havia levado três irmãos, leva também opai, três meses antes do nascimento da escritora, e a mãe, três anos depois, sendoCecília cuidada pela avó materna.“À casa de minha avó chegavam continuamente malas, de gente da família queia faltando e eu, <strong>em</strong> vez de conhece-las <strong>em</strong> seus lugares, via-as saindo d<strong>em</strong>alas. L<strong>em</strong>bro b<strong>em</strong> de uma da qual saíram: uma capa de seda de mamãe, umafantasia de dominó, roupas de banho de mar listradas da época.” 3Essa infância terrível, porém, feliz moldou as bases do t<strong>em</strong>peramento poéticoque se desenvolveu. A morte viria a ser na poesia, o absoluto que o espírito anseia, masé incapaz de assumir. A solidão, o silencio e a consequente serenidade vivenciada porela seriam o ponto de partida para esse espírito criador que se conhece sobre a poeta.Além disso, a iniciação poética de Cecília foi <strong>em</strong>balada desde cedo pela a avómaterna e pela ama, ensinando-lhe os sentimentos mais puros da arte folclórica.Também desde a infância, desenvolvia seus escritos que acompanhariam a escritora portoda vida e <strong>em</strong> 1910, recebia das mãos de Olavo Bilac, uma medalha de ouro feitaespecialmente para homenageá-la.A poesia de Cecília Meireles apresenta várias <strong>tendência</strong>s de outras escolasliterárias que não apenas as do Modernismo e influências causadas pela vida pessoal daescritora que traz<strong>em</strong> enigmas, desafiando tanto leitores quanto críticos literários naanálise de suas obras.O Caminho da místicaTendo publicado, ainda jov<strong>em</strong>, o volume Espectros, Cecília Meireles começa atomar feição poética própria <strong>em</strong> sua obra de juventude. Herdeira de uma sólida criaçãocristã, a palavra que mais precisamente caracteriza a poesia ceciliana desta fase seriamística. Assim sendo, a t<strong>em</strong>ática de Nunca mais... - primeira parte do livro - é a morte eseus indícios. A abertura é a visão de serenidade idealizada <strong>em</strong> À hora <strong>em</strong> que os cisnescantam e o fecho é já a iniciação no mistério da Inominável:A InominávelLeve... - Pluma... Surdina... Aroma... Graça...Qualquer coisa infinita... Amor... Pureza...Cabelo <strong>em</strong> sombra, olhar ausente, passaComo a bruma que vai na arag<strong>em</strong> presa...Silenciosa. Imprecisa. Etérea taçaEm que adormece luar... Delicadeza...Não se diz... Não se exprime... Não se traça...Fluido... Poesia... Névoa... Flor... Beleza...ZAGURY (1973, p. 24)De uma atitude a outra, a longa série de exercícios de renúncia <strong>ao</strong>s bens e malesda terra e de percepção do indício e formulação da resposta intensa está expressa <strong>em</strong>seus po<strong>em</strong>as. A partir daí, inicia-se uma tentativa de escavação da m<strong>em</strong>ória e grandequantidade de novos indícios, criando uma forma sofisticada de exercício místico, rica<strong>em</strong> possibilidades de realização poética, pela pesquisa quanto <strong>ao</strong> próprio passadohistórico.3 Cecília Meireles <strong>em</strong> uma entrevista a Revista Manchete <strong>em</strong> 1964.Mundo e Letras, José Bonifácio/SP, v. 1, n. 1, Maio/2010
Revista Mundo & Letras 50Na segunda parte do livro, Po<strong>em</strong>a dos Po<strong>em</strong>as, a poesia mística se formalizaespecificamente. A obra composta por 21 po<strong>em</strong>as, estão divididos <strong>em</strong> 3 grupos de 7po<strong>em</strong>as, que correspond<strong>em</strong> a três estágios místicos progressivos, que segu<strong>em</strong> desde oprimeiro Po<strong>em</strong>a da Fascinação até o último Po<strong>em</strong>a da Sabedoria.Em seu segundo livro, Baladas para El-Rei, a t<strong>em</strong>ática é a mesma do livroanterior, porém, vai um pouco mais longe, saindo da mística tradicional e iniciando omistério transcendental. Vida e morte passam a ter menos importância, para ser<strong>em</strong>apenas meios de dificultar ou facilitar o acesso a essência mística, que se configura noamor a El-Rei. A própria organização dos po<strong>em</strong>as no livro d<strong>em</strong>onstra um estágio maiscomplexo, existindo uma trajetória, tornando um ciclo diante do desenvolvimento dosregistros de passado e m<strong>em</strong>ória, que abr<strong>em</strong> outras expectativas para o enfoque domístico, já não tradicionalmente cristão. Dando mais força a noção de contorno cada vezmenos preciso no que diz respeito a vida e a morte, havendo um po<strong>em</strong>a antes e umdepois, que de certa forma tentam definir o começo das coisas.Os exercícios místicos figurados nos po<strong>em</strong>as que formam os livros pod<strong>em</strong> seragrupados, como <strong>em</strong> Po<strong>em</strong>a dos Po<strong>em</strong>as, <strong>em</strong> três estágios progressivos, mas a autoranão os organiza dessa forma, pelo contrário, mistura os estágios intercalando de modoquase confuso os po<strong>em</strong>as, o que cria um ritmo mais realista de leitura, <strong>em</strong> harmoniacom a experiência mística, cheia de altos e baixos.O primeiro estágio se revela de maneira nostálgica. Um dos po<strong>em</strong>as mais típicosé S<strong>em</strong> Fim onde se desenvolve uma pesquisa do passado histórico, figuração poética daescavação da m<strong>em</strong>ória na busca de indícios, iniciando uma balada medieval.S<strong>em</strong> FimEra uma vez uma donzela,Nos bons t<strong>em</strong>pos do rei Gunthar...Era uma vez uma donzela,Profunda, imensamente bela,E que tinha medo de amar...Era uma vez uma donzelaQue vivia a amestrar falcões...Era uma vez uma donzela,Sabendo a vida paralelaA infinitas desilusões...Era uma vez uma donzelaQue, num sonho revelador,-Era uma vez uma donzela...E que imensa desgraça, aquela!-Soube que ia morrer de amor...Era uma vez uma donzela,Irmã do moço Giselher...Era uma vez uma donzela...Era uma vez, numa novela...Era uma vez uma mulher...Mundo e Letras, José Bonifácio/SP, v. 1, n. 1, Maio/2010
Revista Mundo & Letras 51Era uma vez uma donzela,Nos bons t<strong>em</strong>pos do rei Gunthar...Era uma vez uma donzela,Profunda, imensamente bela,E que tinha medo de amar...ZAGURY (1973, p.28)A aparente disposição frustrada, contaminada pelo medo da protagonista, é outraforma de caracterizar o primeiro estágio místico, <strong>em</strong> que o medo da morte é o medo daconsciência da morte que é a vida. O segundo estágio é o apelo, a percepção angustiadado chamado do além.Do meu outonoO outono vai chegar... T<strong>em</strong> vozes do passado,As horas loiras, a cantar<strong>em</strong> vagarosas,Com ressonâncias de convento abandonado...Vozes de sonho, vozes lentas, do passado,Falando coisas nebulosas, nebulosas...ZAGURY (1973, p. 29)O terceiro estágio é a comunicação frustrada cristalizando liricamente a imag<strong>em</strong>do sentimento dominante nesse estágio místico.Do crisânt<strong>em</strong>o brancoEste crisânt<strong>em</strong>o <strong>em</strong> que poiso a alma, cismando,No pessimismo impressional dos sonhos meus,Este crisânt<strong>em</strong>o <strong>em</strong> que poiso a alma, cismando,E', numa noite de amargura, não sei quando,A tua mão, cheia de luar, dizendo adeus...ZAGURY (1973, p. 30)Hoje, pode-se rever esta obra inicial ceciliana e nela encontrar os antecedentesdecisivos da configuração poética peculiar da obra posterior, obra de exceção nopanorama da época, equívoca e por isto mesmo fascinante.Intimismo presente <strong>em</strong> Cecília MeirelesEsta parte foi selecionada para análise de po<strong>em</strong>as de Cecília Meireles, nos quais ost<strong>em</strong>as envolv<strong>em</strong> o <strong>intimismo</strong> ceciliano que é notado pela sensibilidade e beleza, intuiçãoe <strong>em</strong>oção e pela maneira como são <strong>em</strong>pregadas as palavras.Cecília Meireles, afirma que sua poesia é resultado de um processo interior, umaconversa com a realidade e com o que não faz parte desse plano, que a autora chama de“transmundo”. Cecília Meireles afirma que o contato com a morte, sendo ela tão jov<strong>em</strong>,proporcionou uma compreensão maior e mais suave entre o passageiro e o eterno. Asolidão e o silêncio, desde muito cedo fizeram parte de sua vida e <strong>ao</strong> contrário do que sepode imaginar, Cecília criou um mundo onde refinava sua sensibilidade e trabalhavasua consciência.“Creio que a poesia, como qualquer ofício, requervocação. A vocação implica muitas coisas deMundo e Letras, José Bonifácio/SP, v. 1, n. 1, Maio/2010
Revista Mundo & Letras 52sensibilidade, de formação interior, de 'iluminação'.Isso quanto <strong>ao</strong>s que apenas quer<strong>em</strong> aprender aentender poesia. Quanto <strong>ao</strong>s que pretende fazê-la, nãosei por onde começar. Mas no meu caso, interessa-m<strong>em</strong>ais 'construir-me' interiormente, espiritualmente, doque escrever um po<strong>em</strong>a. Parece que os po<strong>em</strong>as sãoapenas o resultado de um diálogo do espírito com omundo. Do meu espírito ou do Espírito.” 4Em sua poesia, Cecília Meireles, evidencia suas percepções de mundo, dohom<strong>em</strong> e de si mesma influenciada pelas perdas ocorridas <strong>em</strong> sua família, o que fazcom que comec<strong>em</strong> a surgir os questionamentos, as angústias e a importante presença dotranscendentalismo <strong>em</strong> suas obras que faz<strong>em</strong> com que o <strong>intimismo</strong> fique claro <strong>em</strong> seuspo<strong>em</strong>as. Portanto, a escritora usa do recurso da imag<strong>em</strong> que sugere a ligação entre assensações, sentimentos e palavras. Sendo assim, o leitor passa a criar uma idéia do queo “eu” lírico estava sentindo ou até visualizar esses sentimentos dentro do po<strong>em</strong>a.Dessa forma, a imag<strong>em</strong> poética pode ser comparada a uma fotografia imaginadapelo autor <strong>em</strong> contato com sua realidade. Entretanto, quanto mais o po<strong>em</strong>a estiverenvolvido com o mundo do mistério, mais as imagens usadas fog<strong>em</strong> do concreto,ajustando-se assim <strong>ao</strong> mundo místico.Em Canção, publicado <strong>em</strong> 1939 no livro Viag<strong>em</strong>, Cecília Meireles cria umaimag<strong>em</strong> poética fazendo a fusão com el<strong>em</strong>entos da realidade concreta através dasensibilidade presente nos seguintes trechos do po<strong>em</strong>a: “abrir o mar com as mãos”,“mãos molhadas”, “a cor que escorre dos meus dedos”, “frio”, “vento” e “olhos secos”representando o sentido do tato e <strong>em</strong>: “navio <strong>em</strong> cima do mar”, “azul das ondas”, “praialisa”, “águas ordenadas” e “duas mãos quebras” representam o sentido da visão.CançãoPus o meu sonho num navioe o navio <strong>em</strong> cima do mar;-depois, abri o mar com as mãos,para o meu sonho naufragar.Minhas mãos ainda estão molhadasdo azul das ondas entreabertas,e a cor que escorre dos meus dedoscolore as areias desertas.O vento v<strong>em</strong> vindo de longe,a noite se curva de frio;debaixo da água vai morrendomeu sonho, dentro de um navio...Chorarei quanto for preciso,para fazer com que o mar cresça,e o meu navio chegue <strong>ao</strong> fundoe o meu sonho desapareça.Depois, tudo estará perfeito:praia lisa, águas ordenadas,4 Cecília Meireles <strong>em</strong> uma entrevista <strong>ao</strong> jornal Correio da Manhã <strong>em</strong> 1958.Mundo e Letras, José Bonifácio/SP, v. 1, n. 1, Maio/2010
Revista Mundo & Letras 53meus olhos secos como pedrase as minhas duas mãos quebradas.MEIRELES (2000, p.28)O po<strong>em</strong>a Canção apresenta uma recordação infantil: o sonho colocado <strong>em</strong> umnavio, o navio colocado no mar, o mar aberto com as mãos. A imag<strong>em</strong> é lentamenteformada, assim como um desenho que vai se definindo <strong>ao</strong>s poucos. Essa sequência decenas ligadas às rimas do segundo e terceiro verso de cada estrofe faz<strong>em</strong> com que opo<strong>em</strong>a adquira musicalidade e leveza. Contudo, o aparecimento do “eu” líricotransforma-se <strong>em</strong> reflexão: o sonho que naufraga, a desilusão provoca o choro econsequent<strong>em</strong>ente reflete na dura paciência perante o sofrimento diante da vida quandomenciona os “olhos secos com pedras” e as “minhas duas mãos quebradas”. Talvezpossa ter sido um sonho que Cecília Meireles teve com a família que perdeu, por isso,torna-se impossível de realizar e seja necessário esquecer jogando-o no mar doesquecimento, representando com isso os traços intimistas do po<strong>em</strong>a.Através das cont<strong>em</strong>plações humanas, a escritora critica o hom<strong>em</strong> e a sociedade,o que segundo Zambolli (2002, p.67), faz com que a restauração da vida <strong>em</strong>comunidade, pareça ser o objetivo principal de suas obras. Sabendo do seu papelhistórico, Cecília Meireles se opõe <strong>ao</strong>s valores padronizados fazendo dos homensmáquinas de trabalhar, expressando sua critica através do po<strong>em</strong>a Mulher <strong>ao</strong> Espelho,publicado <strong>em</strong> 1945 no volume Mar Absoluto e Outros Po<strong>em</strong>as:Mulher <strong>ao</strong> EspelhoHoje, que seja esta ou aquela,pouco me importa.Quero apenas parecer bela,pois, seja qual for, estou morta.Já fui loura, já fui morena,Já fui Margarida e Beatriz,Já fui Maria e Madalena.Só não pude ser o que quis.Que mal faz, esta cor fingidado meu cabelo, e do meu rosto,se tudo é tinta: o mundo, a vida,o contentamento, o desgosto?Por fora, serei com queira,a moda, que vai me matando.Que me lev<strong>em</strong> pele e caveira<strong>ao</strong> nada, não me importa quando.Mas qu<strong>em</strong> viu, tão dilacerados,olhos, braços e sonhos seus,e morreu pelos seus pecados,falará com Deus.Falará, coberta de luzes,do alto penteado <strong>ao</strong> rubro artelho.Porque uns expiram sobre cruzes,outros, buscando-se no espelho.Mundo e Letras, José Bonifácio/SP, v. 1, n. 1, Maio/2010
Revista Mundo & Letras 54MEIRELES (2002, p.62)Cecília Meireles critica o superficialismo das relações pessoais, a indiferença, ahipocrisia, a preocupação com a aparência e os valores perdidos. A autora mostra umamorte contínua e lenta àqueles que segu<strong>em</strong> a ditadura da moda, através do uso dogerúndio no segundo verso da quarta estrofe. A moda não traz conhecimento n<strong>em</strong>sabedoria, mas a perdição. Para o “eu” lírico ceciliano, o narcisismo egoísta, limitado <strong>ao</strong>próprio indivíduo, deve, então ser levado <strong>ao</strong> encontro do verdadeiro narcisismo, que nãonega a importância das diferenças.Apesar de toda a preocupação com a sociedade e a vida cotidiana, CecíliaMeireles vivia <strong>em</strong> uma busca incansável por si mesma através da natureza, do espaçofísico e do plano espiritual, e essa busca evidencia-se no po<strong>em</strong>a Medida daSignificação:Medida da Significação“Procurei-me nesta água da minha m<strong>em</strong>óriaque povoa todas as distâncias da vidae, onde, como nos campos, se podia s<strong>em</strong>ear, talvez,tanta imag<strong>em</strong> capaz de ficar florido...Procurei minha forma entre os aspectos das ondas,para sentir, na noite, o aroma da minha duração.Compreendo que, da fonte <strong>ao</strong>s pés, sou de ausência absoluta:Desapareci como aquele – no entanto, árduo – ritmoQue, sobre fingidos caminhos,Sustentou a minha passag<strong>em</strong> desejosa......Desde agora saberei que sou s<strong>em</strong> rastros.Esta água de minha m<strong>em</strong>ória reúne o sulcos feridos:As sombras efêmeras afogam-se na conjunção das ondas.E aquilo que restaria eternamenteé tão da cor destas águas,é tão do tamanho do t<strong>em</strong>poé tão edificado de silênciosque, refletido aqui,permanece inflável.”MEIRELES (2002, p.53)No po<strong>em</strong>a acima, a autora usa el<strong>em</strong>entos da natureza como água, campos, ondas,noite e também palavras que indicam uma relação entre o físico e o espiritual comom<strong>em</strong>ória, vida, passag<strong>em</strong>, ausência, efêmeras, eternamente e inefável deixando expressasua opinião que um depende do outro.O <strong>lirismo</strong> cecilianoSe existe um traço f<strong>em</strong>inino na poesia lírica ou um traço lírico na mulher, comosugeriu Emil Staiger, <strong>em</strong> Conceitos Fundamentas da Poética, pode-se afirmar que aexpressão máxima do <strong>lirismo</strong> na Literatura Brasileira é a obra poética de CecíliaMeireles, cuja sensibilidade era tão rara e tão delicada, que pode ser comparada a um deseus po<strong>em</strong>as, Pequena Flor.Mundo e Letras, José Bonifácio/SP, v. 1, n. 1, Maio/2010
Revista Mundo & Letras 55Pequena florComo pequena flor que recebeu uma chuva enormee se esforça por sustentar o oscilante cristal das gotasna seda frágil e preservar o perfume que ai dorme,e vê passar<strong>em</strong> as leves borboletas livr<strong>em</strong>ente,e ouve cantar<strong>em</strong> os pássaros acordados nesta angústia,e o sol claro do dia as claras estátuas beijando sente.E espera que desprenda o excessivo úmido orvalhopousado, trêmulo, e sabe que talvez o ventoa libertasse, porém a desprenderia do galho,e nesse tr<strong>em</strong>or e esperança aguarda o mistério transidaassim repleto de acasos e todo coberto de lágrimashá um coração nas lânguidas tardes que envolv<strong>em</strong> a vida.MEIRELES (1994, p. 211)Cecília também recebeu “uma chuva enorme” de perdas <strong>em</strong> sua vida, mas apesardisto, conseguiu preservar o perfume da poesia que dormia “na seda frágil”.No po<strong>em</strong>a, a fragilidade está relacionada com a angústia existente no coração“todo coberto de lágrimas” como o “excessivo orvalho” na pele da flor, presa <strong>ao</strong> galhooposto da livres e leves borboletas e <strong>ao</strong>s pássaros s<strong>em</strong> angústia. Entre o medo dosofrimento e da morte e a esperança de ter uma vida livre, a flor aguarda o mistério daexistência que se mistura <strong>ao</strong> mistério da própria criação poética. Pois a comparação feitano primeiro verso só se completa nos dois últimos, revelando um coração capaz derecordar. O “eu” lírico não se apresenta diretamente, o que contribui para aumentar afusão entre “flor” e “coração”, igualando-se no mesmo estado afetivo.No percurso da busca pelas águas da m<strong>em</strong>ória, o “eu” lírico procura encontrarsentido para sua existência, o sentido da vida e do mundo e possivelmente <strong>em</strong> pressentira verdade, pois todas as l<strong>em</strong>branças são cheias de significação. Ele percebe suafragilidade diante do t<strong>em</strong>po, que apaga suas m<strong>em</strong>órias mais preciosas que o “eu” líricobusca conservar todos os dias.“A água de minha m<strong>em</strong>ória devora todos os reflexosDesfizeram-se, por isso, todas as minhas presençasE s<strong>em</strong>pre continuarão a desfazer.É inútil o meu esforço de conservar-me;Todos os dias sou meu completo desmoronamento;E assisto à decadência de tudo,Nesses espelhos s<strong>em</strong> reprodução.Voz obstinada que estás <strong>ao</strong> longe chamando-meConduze-te a mim, para compreenderes minha ausência.”MEIRELES (2002, p.53)O <strong>lirismo</strong> é caracterizado pelo uso do pronome possessivo e os verbos, ambos<strong>em</strong> primeira pessoa no qual a cont<strong>em</strong>plação narcísica é presença constante, da mesmaforma o <strong>intimismo</strong> é apresentado <strong>em</strong> versos como: “A água da minha m<strong>em</strong>ória devoratodos os reflexos / Desfizeram-se, e por isso, todas as minhas presenças / E s<strong>em</strong>precontinuarão a desfazer.” Eles mostram o sentimento da perda das l<strong>em</strong>branças, aimpossibilidade de reverter o passado e da consciência do “eu” lírico quanto àef<strong>em</strong>eridade do mundo.Mundo e Letras, José Bonifácio/SP, v. 1, n. 1, Maio/2010
Revista Mundo & Letras 56No po<strong>em</strong>a, Medida da Significação o sujeito lírico revela que a procura por simesmo é uma forma irredutível de compreender sua própria orig<strong>em</strong> e seu destino,persistência que se opõe as respostas que fog<strong>em</strong> rapidamente através do espelho daságuas que devoram todos os reflexos. Em Retrato, publicado no livro Viag<strong>em</strong> de 1939,o “eu” poético, já não busca a si mesmo, mas faz um auto-retrato para l<strong>em</strong>brar de qu<strong>em</strong>foi no passado. Sendo composto quase todo por versos de oito sílabas, com rimasalternadas, que <strong>em</strong> alguns casos são a transposição das palavras, como se estivess<strong>em</strong>escritas <strong>em</strong> um espelho, uma imag<strong>em</strong> refletindo a outra invertida como por ex<strong>em</strong>plo“magro”/”amargo” e “mortas”/”mostra”.RetratoEu não tinha esse rosto de hoje,assim calmo, assim triste, assim magro,n<strong>em</strong> estes olhos tão vazios,n<strong>em</strong> o lábio amargo.Eu não tinhas estas mãos s<strong>em</strong> força,tão paradas e frias e mortas;Eu não tinha esse coraçãoque n<strong>em</strong> se mostra.Eu não me dei por esta mudança,tão simples, tão certa, tão fácil;-Em que espelho ficou perdida?A minha face?MEIRELES (2000, p.40)O po<strong>em</strong>a revela a busca do “eu” poético por perceber a si mesmo, pois o que s<strong>em</strong>ostra diante do leitor não é apenas um retrato e sim um auto-retrato, fazendo que como “eu” poético se olhe no presente, mas comparando-se com o que foi no passado,analisando seu próprio rosto, que antes não o via da mesma forma.As palavras de significados negativos (“não”, “n<strong>em</strong>”), expressões negativas(“mãos de força”) e adjetivos pertencentes <strong>ao</strong> mesmo campo s<strong>em</strong>ântico como rosto“triste” e “magro” assum<strong>em</strong> considerável importância, pois expressam a rejeição dofuturo e a confirmação do passado. Os olhos “vazios” mostram uma idéia de mundocom ausência total de beleza. As “mãos s<strong>em</strong> força” apresentam um “eu” lírico fracodiante da realidade de um mundo misterioso e violento. Esses sentimentos pod<strong>em</strong> serelacionar a aspectos da vida pessoal da autora.Valdivino de Oliveira comenta sobre a composição do po<strong>em</strong>a:“A fisicalidade é a tônica deste po<strong>em</strong>a. A figura vai sendo esboçadametonimicamente: o rosto, os olhos, o lábio, as mãos, o coração, signosparadigmáticos da condição humana. Há perfeita coerência na estruturaçãoda figura; o abandono das mãos corresponde <strong>ao</strong> vazio dos olhos, <strong>ao</strong> amargodo lábio, <strong>ao</strong> triste do rosto. Esse exterior se configura assim, é porque faltaimpulso de dentro, de um coração que n<strong>em</strong> se mostra. A pátina do t<strong>em</strong>po, afugacidade do instante, o transitório da vida resultam da mudança queimperceptivelmente, corrói a imag<strong>em</strong>.” ZAMBOLI (2002, p. 86)O po<strong>em</strong>a apresenta o <strong>lirismo</strong>, por meio da preocupação da autora com o próprioeu, com a aflita admiração diante do espelho, as dores e sensações e através dasperguntas feitas nos versos finais. A poetisa rel<strong>em</strong>bra com tristeza a pessoa que foi numMundo e Letras, José Bonifácio/SP, v. 1, n. 1, Maio/2010
Revista Mundo & Letras 57passado que, para ela não se parece distante, <strong>ao</strong> questionar a velocidade com que ot<strong>em</strong>po foge do espelho onde havia ficado perdida sua face.ConclusãoO estudo das poesias de Cecília Meireles permite d<strong>em</strong>onstrar a partir dos textosselecionados que sua obra forma-se através de um conjunto de imagens e reflexos quese un<strong>em</strong> <strong>ao</strong> “eu” lírico, no qual intercalam <strong>em</strong> dimensões místicas e intimas. Essainvasão mostra a essência do ser humano, seus amores, suas dores e suas preocupaçõespor meio de questionamentos s<strong>em</strong> fim que faz<strong>em</strong> parte de toda sua obra.Diante desses questionamentos, conclui-se que os fatores que levaram CecíliaMeireles a escrever uma poesia lírica com traços intimistas sendo participante domovimento modernista, foi a busca do entendimento do mundo através de suasexperiências e intimidade com a morte. Dessa forma, a autora procurou a compreensão,a reflexão e o conhecimento das coisas da vida e do seu próprio reconhecimento atravésdos olhares atentos sobre a mortalidade do mundo e do seu próprio “eu”.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASAMORA, Soares. Minidicionário da língua portuguesa. 7ª.ed. São Paulo: Saraiva,1997DAMASCENO, Darcy. Poesia do sensível e do imaginário. In: MEIRELES, Cecília.Obra poética. Volume único. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1972. p.13-55GOUVÊA, Leila Vila Lobos. Pensamento e “<strong>lirismo</strong> puro” na poesia de CecíliaMeireles. São Paulo: EDUSP, 2008.LAMEGO, Valéria. A Farpa na Lira: Cecília Meireles na revolução de 30. Rio deJaneiro: Record, 1996.MEIRELES, Cecília. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.________. Viag<strong>em</strong>/Vaga Música. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.PEREZ, Renard. Escritores Brasileiros Cont<strong>em</strong>porâneos. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 1971.STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: T<strong>em</strong>poBrasileiro, 1972.ZAGURY, Eliane. Cecília Meireles: notícia biográfica, estudo crítico, antologia,discografia, partituras. Petrópolis: Vozes, 1973.ZAMBOLI, Jose Carlos. A poeta e o espelho: Cecília Meireles e o Mito de Narciso.São Paulo: USP, 2002.Mundo e Letras, José Bonifácio/SP, v. 1, n. 1, Maio/2010