07PORTUGAL POST - Juli 12 Druck:portugal POST Feb 09
07PORTUGAL POST - Juli 12 Druck:portugal POST Feb 09
07PORTUGAL POST - Juli 12 Druck:portugal POST Feb 09
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
14 Livros<br />
PORTUGAL <strong>POST</strong> Nº 216 • Julho 20<strong>12</strong><br />
Um Olhar sobre as circunstâncias do Mundo –<br />
Jerusalém de Gonçalo M. Tavares<br />
Luísa Coelho *<br />
No dia <strong>12</strong> de junho, a Representação<br />
alemã da Comissão Europeia em Berlim,<br />
no âmbito das atividades da rede<br />
EUNIC, com o apoio do Instituto Camões<br />
e da Embaixada de Portugal, recebeu<br />
o escritor português Gonçalo<br />
M. Tavares. Gonçalo, em conversa<br />
com Thomas Wohlfahrt, falou da filosofia<br />
e da estética que está subjacente<br />
ao seu trabalho em geral e, sobretudo,<br />
apresentou a sua obra Jerusalém, traduzida<br />
para alemão por Marianne Gareis/DA<br />
com o título Die Versehrten.<br />
Este romance, publicado em Portugal<br />
em 2005 pela editora Caminho, recebeu<br />
vários prémios literários e foi selecionado<br />
para figurar na edição<br />
europeia dos “1001 livros para ler<br />
antes de morrer – um guia cronológico<br />
dos mais importantes romances<br />
de todos os tempos”. Gonçalo M. Tavares<br />
é o escritor português mais unanimemente<br />
elogiado da atualidade.<br />
Muito premiado, em Portugal, no<br />
Brasil e em França, publicou o seu<br />
primeiro texto em 2001 e desde essa<br />
data nunca mais parou, numa produtividade<br />
assustadora. É natural de<br />
Luanda, onde nasceu em 1970 e de<br />
onde veio para Portugal aos 3 anos.<br />
Da infância e adolescência em Aveiro<br />
passou a Lisboa para estudar na Universidade<br />
de Motricidade Humana,<br />
onde se licenciou e é, hoje em dia,<br />
Professor de Epistemologia.<br />
O livro Jerusalém, apresentado<br />
em Berlim, faz parte de uma tetralogia<br />
intitulada “O Reino - Livros Pretos”<br />
composta pelas seguintes obras:<br />
Um homem Klaus Klump (2003); A<br />
máquina de Joseph Walser (2004);<br />
Jerusalém (2005) e Aprender a rezar<br />
na era da técnica (2007). Em cada um<br />
destes quatro romances, cujo tema<br />
principal é o Mal, a acção passa-se<br />
numa cidade diferente, ocupada em<br />
tempo de guerra. No caso preciso da<br />
obra em questão, a cidade é Jerusalém,<br />
como cidade símbolo da encruzilhada<br />
de civilizações, remetendo<br />
para os caminhos obscuros que a<br />
mente humana pode percorrer. E o<br />
Reino a que referem estes Livros Pretos<br />
aparece-nos em filigrana como<br />
sendo apenas uno – o nosso Mundo<br />
(interior) – a nossa mente. São quatro<br />
romances árduos, com pequenos e<br />
bem definidos pontos de humor<br />
negro, onde o autor discorre sobre os<br />
comportamentos do homem moderno,<br />
os limites da razão e da religião, o<br />
pessimismo face ao futuro da humanidade,<br />
a desadequada utilização da<br />
tecnologia e sobre a nostalgia de um<br />
sagrado redentor.<br />
Através destes seus escritos, Gonçalo<br />
pega no Mundo, no Reino, e<br />
fragmenta-o para, de seguida, o reconstruir,<br />
aproximando perigosa-<br />
mente as fronteiras entre a loucura, o<br />
medo, a dor e a lucidez e a razão.<br />
Neles espelha a alienação do mundo<br />
contemporâneo, numa escrita que balança<br />
entre o romance, o teatro e o ensaio<br />
e onde nos mostra o lado sombrio<br />
da modernidade. Faz-nos ver que a<br />
neutralidade não existe. Nós somos,<br />
ao mesmo tempo, os dois lados da<br />
nossa circunstância, o lado sombrio e<br />
o luminoso. Não há, na escrita de<br />
Gonçalo, qualquer desperdício de palavras.<br />
Vemo-nos perante um tom<br />
brusco, inscrito num estilo enxuto:<br />
“Escrevo rapidamente e muito. E depois,<br />
lentamente, corto e volto a cortar”<br />
– diz-nos Gonçalo sobre a sua<br />
técnica que resulta despojada e que é,<br />
finalmente, muito trabalhada. O seu<br />
discurso, propositadamente livre de<br />
artifícios estilísticos, faz uso de um lé-<br />
xico corrente, com frases e parágrafos<br />
curtíssimos. A cada palavra corresponde<br />
o significado que cada leitor<br />
lhe quiser atribuir. Em traços sóbrios<br />
e contidos envolve-nos num labirinto<br />
de contradições humanas e absurdos<br />
que identificamos e reconhecemos.<br />
Que nos assustam. Os seus personagens<br />
e os espaços que percorrem têm<br />
nomes que nos são estranhos, para<br />
que o autor, e nós com ele, possamos<br />
criar uma distância entre o que conta<br />
e o que é contado, explica-nos Gonçalo.<br />
O leitor é uma peça chave na<br />
construção do sentido, no apagar do<br />
estranhamento. A ele, o autor, o criador<br />
do texto, compete-lhe dizer apenas<br />
o essencial.<br />
A estória de Jerusalém inicia-se<br />
na noite de 28 de maio, no momento<br />
em que quatro personagens vagueiam<br />
na escuridão. Uma força secreta parece<br />
atrai-los para um encontro inevitável<br />
e as suas estórias individuais<br />
cruzam-se num ambiente de loucura<br />
e violência que nos levam a pensar e<br />
questionar a barbárie do mundo contemporâneo<br />
e o nosso próprio comportamento.<br />
A trama central gira à<br />
volta de Mylia, uma mulher que sofre<br />
de uma doença mental e que é internada<br />
num hospício pelo seu médico<br />
que é também o seu marido, Theodor<br />
Busbeck. Este último é um cientista<br />
que desenvolve um trabalho onde<br />
procura tecer as relações que se inscrevem<br />
entre o Mal e o Horror, ao<br />
longo da história da humanidade. Não<br />
há muita empatia entre o leitor e as<br />
personagens trágicas de Jerusalém<br />
que acabam por nos deixar solitárias<br />
num mundo hostil e desencantado. “É<br />
uma obra sobre o desencanto”, disse<br />
alguém ao autor: “Desencanto é a interrupção<br />
do canto, é uma coisa que<br />
incomoda”, respondeu um dia o autor.<br />
É sobretudo, uma obra que nos obriga<br />
a um mergulho na mente humana, que<br />
não nos deixa indiferentes, nos remete<br />
em questão e desafia o nosso otimismo.<br />
* Leitora do Instituto Camões<br />
em Berlim<br />
Texto escrito de acordo com o Novo<br />
Acordo Ortográfico.<br />
PUB