Vestibular Comentado - UVA/2008.1 03

Vestibular Comentado - UVA/2008.1Conhecimentos EspecíficosLÍNGUA PORTUGUESAComentários: Profs.Evaristo Nascimento, Jackson Bezerra, Márcio Borges eVicente Júnior.Texto01 O francês Paul – misantropo devoto e excelente fabricante de sinetes que, na02 despreocupada viagem de aventura pelo mundo, encalhara em Sobral – costumava vaguear03 pelos ranchos de retirantes, colhendo, com apurada e firme observação, documentos da04 vida do povo, nos seus aspectos mais exóticos, ou rabiscando notas curiosas, ilustradas com05 esboços de tipos originais, cenas e paisagens – trabalhado paciente e douto, perdido no seu06 espólio de alfarrábios, de coleções de Botânica e Geologia, quando morreu, inanido pelos07 jejuns, como um santo.08 Um dia, visitando as obras da cadeia, escreveu ele, com assombro, no seu caderno de09 notas:10 “Passou por mim uma mulher extraordinária, carregando uma parede na cabeça.”11 Era Luzia, conduzindo para a obra, arruxados sobre uma tábua, cinqüenta tijolos.12 Viram-na outros levar, firme, sobre a cabeça, uma enorme jarra d’água, que valia13 três potes, de peso calculado para a força normal de um homem robusto. De outra feita,14 removera, e assentara no lugar próprio, a soleira de granito da porta principal da prisão,15 causando pasmo aos mais valentes operários, que haviam tentado, em vão, a façanha e, com16 eles, Raulino Uchoa, sertanejo hercúleo e afamado, prodigioso de destreza, que chibanteava17 em pitorescas narrativas.18 Em plena florescência de mocidade e saúde, a extraordinária mulher, que tanto19 impressionara o francês Paul, encobria os músculos de aço sob as formas esbeltas e graciosas20 das morenas moças do sertão. Trazia a cabeça sempre velada por um manto de21 algodãozinho, cujas ourelas prendia aos alvos dentes, como se, por um requinte de22 casquilhice, cuidasse com meticuloso interesse de preservar o rosto dos raios do Sol e da23 poeira corrosiva, a evolar em nuvens espessas do solo adusto, donde ao tênue borrifo de24 chuvas fecundantes, surgiam, por encanto, alfombas de relva virente e flores odorosas.25 Pouco expansiva, sempre em tímido recato, vivia só, afastada dos grupos de consortes de26 infortúnio e quase não conversava com as companheiras de trabalho, cumprindo, com27 inalterável calma, a sua tarefa diária, que excedia à vulgar, para fazer jus a dobrada ração.28 – É de uma soberbia desmarcada – diziam as moças da mesma idade, na grande maioria29 desenvoltas ou deprimidas e infamadas pela miséria.30 – A modos que despreza de falar com a gente, como se fosse uma senhora dona –31 murmuravam os rapazes remordidos pelo despeito da invencível recusa, impassível às suas32 insinuações galantes.33 – Aquilo nem parece mulher fêmea – observava uma velha alcoveta e curandeira de34 profissão. Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece bigode de35 homem...39