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20 | | março de 2016<br />

Drama e<br />

revolta<br />

Pesquisador mergulha com rigor e profundidade<br />

em Woyzeck, drama alemão de Georg Büchner<br />

Maria Aparecida Barbosa | Florianópolis - SC<br />

No conto A janela de<br />

esquina (de 1822),<br />

E. T. A. Hoffmann<br />

atribui ao personagem<br />

“primo” algumas<br />

considerações sobre os<br />

pobres moços que viviam pelas<br />

ruas de Berlim vendendo cigarros,<br />

cujo destino não seria outro<br />

senão compor guarnições militares<br />

prussianas. E num romance<br />

do mesmo autor e da mesma<br />

época, Reflexões do gato Murr,<br />

o personagem Conde Iräneus<br />

conta que no comando do exército,<br />

“semanalmente submetia a<br />

turma de fidalgos a uma saraivada<br />

de palmatória pelas asneiras<br />

que tivessem cometido ou<br />

pudessem vir a cometer” e o tenente<br />

descontava infligindo bordoadas<br />

nos soldados.<br />

Em entrevista a Alexander<br />

Kluge sobre o filme Die andere<br />

Heimat (A outra pátria, de<br />

2014), o diretor de cinema Edgar<br />

Reitz aponta como fatores sociais<br />

desencadeadores do fluxo de<br />

emigração alemã no século 19,<br />

sobretudo rumo ao sul do Brasil,<br />

a estatização das florestas, o descaso<br />

do Estado em relação às famílias<br />

carentes em consequência<br />

dessa interdição do extrativismo,<br />

em detrimento de privilégios<br />

concedidos à aristocracia, bem<br />

como a introdução do serviço<br />

militar obrigatório desde a Sexta<br />

Coligação contra o Império de<br />

Napoleão (1814-1815).<br />

Ou seja, à pauperizada população<br />

campesina e urbana de<br />

uma Alemanha ainda em processo<br />

de consolidação como Estado<br />

poucas alternativas se descortinavam<br />

para a sobrevivência,<br />

além das fileiras do exército e da<br />

participação em guerras.<br />

Esses dados esparsos legados<br />

pela literatura e pelo cinema<br />

indiciam as circunstâncias desoladoras<br />

nas quais vivia a categoria<br />

soldadesca arrebanhada dos<br />

rincões rurais e suburbanos, e enquadram-se<br />

no arcabouço histórico<br />

do período da Restauração<br />

Alemã (1815-48). Foi nesse período<br />

que viveu o escritor Georg<br />

Büchner (1813-1837), autor de<br />

um célebre panfleto insurrecto<br />

contra a tirania e a exploração, O<br />

mensageiro de Hessen, que se inicia com a conclamação:<br />

“Paz aos casebres! Guerra aos Palácios!”. Büchner<br />

e o coautor do texto, Friedrich Ludwig Weidig,<br />

perguntam se por acaso, diferentemente do que se<br />

encontra no Gênesis, os agricultores e artesãos teriam<br />

sido criados no quinto dia e não no sexto como<br />

os nobres e ilustres, numa alusão à situação<br />

temporal da criação divina na Bíblia, segundo a<br />

qual os animais teriam vindo ao mundo no quinto<br />

dia e os homens, no sexto. O que levava esses escritores<br />

a redigir e a distribuir cerca de 1.500 exemplares<br />

do panfleto era sua convicção da necessidade<br />

de exortarem a população simples a uma revolução<br />

contra o status-quo e contra o Grão-duque, cujo<br />

poder incontestável estava implícito no próprio título<br />

nobiliárquico. Oficialmente, Ludwig II, que<br />

regeu do Estado de Hessen de 1830 a 1848, se chamava<br />

“Ludwig II, por graça de Deus Grão-Duque<br />

de Hessen e das margens do Reno”. Os revolucionários<br />

não tardaram a ser vítimas de censura, perseguição,<br />

encarceramento e de um possível assassinato.<br />

É surpreendente o número de obras marcantes<br />

que Georg Büchner escreveu em poucos anos<br />

de vida: em clave de história o drama A morte de<br />

Danton, de cunho insurgente O mensageiro de<br />

Hessen, de trágico o fragmento Lenz, sobre os tormentos<br />

do dramaturgo homônimo (traduzido ao<br />

português por Guinsburg e Koudella; encenado no<br />

palco paulistano em 2015: Lenz, um outro) ou até<br />

mesmo no diapasão da comédia romântica Leonce e<br />

Lena. Nessa produção criativa que à primeira vista<br />

se apresenta eclética e dispersa, Anatol Rosenfeld<br />

chama a atenção no ensaio A comédia do niilismo<br />

para a afinidade íntima comum a toda essa literatura,<br />

qual seja um viés epicurista decorrente de uma<br />

“raiz amarga”, que resulta da desilusão ante “valores<br />

mais substanciais que os meramente hedonísticos”.<br />

A manifestação desse desengano é o tédio, o<br />

vazio, o niilismo portanto, que Rosenfeld assinala<br />

numa tradição que associa Baudelaire, Chekhov, A<br />

montanha mágica, de Thomas Mann, A náusea,<br />

de Sartre, e O desprezo (La Noia), de Moravia.<br />

Embora a análise se refira às personagens que em<br />

sua ação e caracterização contaminam os demais<br />

elementos dentro dessa literatura, Rosenfeld não<br />

duvida que o estilo se explique ademais, numa dimensão<br />

exterior à diegese, pela experiência traumática<br />

do jovem Büchner confrontado com a falência<br />

do idealismo e o arroubo materialista das ciências<br />

naturais daquela época.<br />

Os estudos de anatomia e medicina, aos quais<br />

Büchner se dedicara na cidade de Darmstadt sob a<br />

tutela do pai médico, e sua atividade política num<br />

quadro social onde o soldado equivalia a reles categoria<br />

em contraposição à burguesia são fundamentais<br />

para a criação de Woyzeck.<br />

O comentário<br />

E é justamente essa peça dramática o centro<br />

do livro do professor de literatura e médico Tercio<br />

Redondo: Woyzeck: comentário e tradução da<br />

tragédia de Georg Büchner.<br />

A fim de completar o parco<br />

soldo, o soldado Woyzeck se submete<br />

a experimentos científicos<br />

em troca de lentilhas e de algum<br />

trocado. Cabe-lhe viver dessa<br />

dieta restrita em grave estado de<br />

desnutrição e sujeito, por conseguinte,<br />

aos sintomáticos obscurecimento<br />

da visão e falta de<br />

vitalidade. Fica exposto durante<br />

as preleções médicas às apalpadelas<br />

e investigações degradantes<br />

dos cientistas, e as suas reações<br />

são comparadas às de asininos<br />

e felinos. À medicina, na figura<br />

do fisiologista, importa o triunfo<br />

da pesquisa; na escala da dignidade<br />

aquela cobaia é inferior<br />

às espécies anfíbias subterrâneas<br />

aparentadas com a salamandra,<br />

ao Proteus anguinus: “Se ao menos<br />

fosse um proteu que estivesse<br />

morrendo à minha frente!”.<br />

Tampouco na relação com<br />

seu superior, o capitão, o soldado<br />

raso faz jus a qualquer distinção<br />

moral, ele constantemente recebe<br />

censuras pelo tempo célere<br />

que imprime a cada gesto e a cada<br />

passo, plenos da urgência que<br />

expressa antes de tudo a condição<br />

de estresse e decorre do extenuante<br />

esforço desprendido para<br />

cumprir tantas tarefas, de modo<br />

a garantir a sobrevivência mísera<br />

da família; afinal tem um filho<br />

a quem chama “verme”. Vez ou<br />

outra o capitão lhe insinua a infidelidade<br />

da concubina Marie.<br />

Não somente o filho bastardo e<br />

o concubinato, mas também o<br />

comportamento rude do moço<br />

que mija pelos cantos motivam o<br />

desprezo do superior militar em<br />

eminente ascensão na sociedade,<br />

porque para a classe burguesa as<br />

atitudes do trabalhador Woyzeck<br />

projetam o respectivo espelhamento<br />

abjeto.<br />

Esse fuzileiro ordinário —<br />

segundo informação do livro o<br />

primeiro personagem proletário<br />

dentro da dramaturgia alemã —<br />

contrasta na disputa por Marie<br />

deploravelmente com o representante<br />

da pequena burguesia<br />

tambor-mor “distinto suboficial,<br />

comandante da simpática banda<br />

militar: ao passar defronte à janela<br />

de Marie, o militar faz-lhe uma<br />

vênia; no domingo costuma receber<br />

o elogio do príncipe”.<br />

E é dessa argumentação<br />

pelo viés da dialética entre as<br />

classes sociais, ad extremum entre<br />

as espécies animais, que Tercio<br />

defende que o elemento dramatúrgico<br />

“ação” em Woyzeck<br />

não se conforma ao drama clássico<br />

do palco mágico (Guckkastenbühne),<br />

na medida em que<br />

o protagonista e a personagem<br />

Marie em falas que não constituem<br />

interação ou diálogo desafiam<br />

a compreensão com a<br />

exigência de leitura paradigmática<br />

a cada nova intervenção.<br />

Semelhantemente à urgência<br />

no tempo, as marcações<br />

espaciais do drama adquirem<br />

autonomia e correspondem implicitamente<br />

a atributos da personagem.<br />

E cada objeto cênico<br />

assume extensões simbólicas<br />

funcionando no sentido de distinguir<br />

outros elementos. Assim,<br />

Woyzeck: Comentário<br />

e tradução da tragédia<br />

de Georg Büchner<br />

Tercio Redondo<br />

Nanquim<br />

224 págs.<br />

quando Woyzeck barbeia o capitão<br />

com uma navalha, o deslizamento<br />

da lâmina cortante<br />

acentua a sensação prazerosa do<br />

personagem sentado na cadeira,<br />

remete à afobação do protagonista<br />

atabalhoado pelos afazeres<br />

e, finalmente, prenuncia a ação<br />

trágica do desfecho dramático.<br />

Um estudo minucioso da<br />

peça precede o capítulo central<br />

do livro, 7 Woyzeck: tradução e<br />

notas, se a opção for a leitura linear.<br />

Revelam acuidade tradutória<br />

as referências às notas do<br />

original, a diferenciação da grafia<br />

antiga/atual, a remissão ao histórico<br />

inquérito, as referências<br />

às expressões de linguagem, aos<br />

dialetos, regionalismos e estrangeirismos,<br />

a escolha dos pronomes<br />

de tratamento, a justificativa<br />

de certa elisão terminológica relevante<br />

no texto dramatúrgico.<br />

A menção dos manuscritos<br />

redunda em ambígua compreensão<br />

entre o acesso direto<br />

aos manuscritos ou a obtenção<br />

das informações através de comentário<br />

da edição alemã. Ressente-se<br />

da menção de edições<br />

anteriores de Woyzeck no Brasil,<br />

como por exemplo a edição<br />

esgotada da Clássicos de Bolso<br />

Ediouro que contém a tradução<br />

de João Marschner e no prefácio<br />

o ensaio de Anatol Rosenfeld,<br />

que citei anteriormente.<br />

O livro é resultado de uma<br />

pesquisa de doutorado que já foi<br />

publicada anteriormente pela<br />

Editora Hedra. Através da configuração<br />

atual, em sua complexa<br />

capilaridade temática — a micro-história,<br />

os manuscritos de<br />

Woyzeck, o médico Büchner, a<br />

contestação formal e ideológica<br />

configurada em drama, a tradução<br />

e as notas, o recurso ao gênero<br />

épico no drama — atesta<br />

o rigor e a profundidade da pesquisa<br />

na matéria. Esses itens que<br />

enumero não correspondem aos<br />

títulos dos capítulos do livro mas<br />

propiciam um panorama das<br />

questões tratadas nas 222 páginas<br />

que engendram questões de<br />

história, literatura, dramaturgia,<br />

enfim, uma densa sincronia da<br />

atualidade com o drama Woyzeck,<br />

de Büchner.

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