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março de 2016 | | 9<br />

Imagine uma tragédia em três<br />

atos, em que o protagonista<br />

é um homem cujas várias falhas<br />

trágicas são castigadas,<br />

uma a uma, até que só reste<br />

a ele o amor que dedica à filha.<br />

Agora observe que os títulos dos<br />

atos (O aluguel, O sacrifício e O<br />

deserto) já indicam não um arco,<br />

mas uma queda contínua. E finalmente<br />

saiba que esse homem<br />

é seu vizinho, por quem você<br />

sempre nutriu certo desprezo,<br />

mas secretamente admirava. Ele<br />

se chama Jörgen Hofmeester, e<br />

sua filha, Tirza, personagem que<br />

dá nome ao romance de Arnon<br />

Grunberg, publicado na Holanda<br />

em 2006 (editado no Brasil<br />

pela Rádio Londres em 2015),<br />

considerado, em uma pesquisa<br />

entre críticos, acadêmicos e<br />

escritores europeus o romance<br />

mais importante do século 21,<br />

acima de As benevolentes, de<br />

Jonathan Littell, e de Sábado, de<br />

Ian McEwan, ambos vencedores<br />

dos mais prestigiosos prêmios literários<br />

no mundo.<br />

Grunberg nasceu em Amsterdã<br />

em 1971, e passou a viver<br />

em New York nos anos 90. Apesar<br />

do seu sucesso entre os americanos,<br />

mantém fortes laços com<br />

a vida literária na Europa. Esse<br />

cosmopolitismo é uma das influências<br />

— ou será uma opção?<br />

— em seus romances e ensaios.<br />

Seu espaço é o urbano, seus personagens<br />

não têm tiques regionais,<br />

utilizam tecnologia em seu<br />

dia a dia, percorrem grandes distâncias,<br />

de carro, avião, ou trem,<br />

com frequência. Grunberg escreve<br />

o que conhece bem, a partir<br />

de sua experiência pessoal e do<br />

homem do seu tempo. Começou<br />

precocemente sua carreira literária:<br />

aos 17 anos, pouco antes<br />

da formatura, foi expulso do colegial;<br />

um ano mais tarde abriu<br />

sua própria editora e foi muito<br />

bem-sucedido.<br />

O menino-prodígio logo<br />

chamou a atenção. Aos 23 anos<br />

publicou Blauwe maandagen<br />

(aqui traduzido como Amsterdã<br />

blues, Globo, 2003), premiado<br />

com o Anton Wachterprijs como<br />

autor estreante, e logo, sob<br />

um pseudônimo, recebeu o prêmio<br />

novamente, pelo romance<br />

De geschiedenis van mijn kaalheid<br />

(A história da minha calvície,<br />

ainda sem tradução). Sempre<br />

em um ritmo acelerado publicou<br />

treze romances, três livros de<br />

contos e quatro de ensaios, além<br />

de um roteiro de cinema e três<br />

peças teatrais, artigos em jornais<br />

e em blogs. Seu reconhecimento,<br />

a julgar pelos prêmios e resenhas,<br />

cresceu na mesma velocidade.<br />

Tirza, premiado também<br />

em sua versão cinematográfica, é<br />

o nome de uma adolescente que<br />

começa a desabrochar, e que, para<br />

a frustração do pai, planeja,<br />

logo após sua formatura do colegial,<br />

fazer uma longa viagem à<br />

África com seu namorado marroquino.<br />

O relato, narrado bem<br />

próximo ao ponto de vista do<br />

pai, inicia-se no dia da festa de<br />

formatura. Os preparativos, da<br />

Mais de uma década<br />

atrás, de maneira<br />

quase profética,<br />

Tirza evidenciou a<br />

fragilidade dos ideais<br />

humanitários de<br />

um europeu culto e<br />

moderno, mediante um<br />

delírio ativado por um<br />

fato real, hediondo.<br />

Apesar de todos<br />

os personagens,<br />

inclusive ele mesmo<br />

demonstrarem<br />

crueldade, Hofmeester<br />

é o único que inspira<br />

pena, através dos<br />

toques de humor.<br />

escolha e compra do peixe para<br />

o sushi até a decoração do jardim<br />

com tochas, foram meticulosmente<br />

planejados e executados<br />

por Hofmeester sozinho, já que<br />

sua esposa acaba de ressurgir<br />

inesperadamente após ter abandonado<br />

a família sem uma palavra,<br />

três anos antes.<br />

A (ex-?)esposa, capaz de<br />

uma crueldade diabólica, disputa<br />

com suas filhas a atenção dos<br />

convidados. Julga-se irresistivelmente<br />

sensual, mas está mais para<br />

vulgar e grotesca. Deixa bem<br />

claro que a maternidade é um<br />

fardo que ela transferiu, sem remorsos,<br />

para o esposo. Como<br />

seria de se esperar, as filhas não<br />

a veem como mãe, não a respeitam<br />

e nem sentem sua falta. Tudo<br />

nessa família é descalibrado.<br />

As relações entre os quatro são<br />

de ódio ou indiferença, exceto<br />

pelo amor obsessivo que Hofmeester<br />

nutre por Tirza — nome<br />

hebraico oriundo do Velho<br />

Testamento, com o significado<br />

“ela é meu deleite”. Nela vê beleza<br />

e inteligência excepcionais,<br />

e a circunda com sua compulsão<br />

por controlar. Não consegue fazer<br />

o mesmo com a outra filha e<br />

a esposa, e ainda é por elas provocado<br />

e humilhado.<br />

Sua humilhação não termina<br />

aí. Em um investimento<br />

mal feito, perdeu todas as suas<br />

economias. Devido à sua incompetência<br />

como editor, foi<br />

afastado do emprego, mas por<br />

questões trabalhistas o salário<br />

não é cortado. Incapaz de revelar<br />

a verdade à família, Hofmeester<br />

mantém as aparências: vai<br />

diariamente ao aeroporto, onde<br />

passa o dia a acenar para desconhecidos<br />

que embarcam. Nem<br />

na festa que planejou para a filha<br />

com tanto esmero consegue<br />

sucesso. Todas as suas conversas<br />

são desastrosas. Pouco a pouco,<br />

enterra-se na areia movediça que<br />

é o esforço para ser amável. A esposa,<br />

bebendo muito e seminua,<br />

parece enturmar-se melhor do<br />

que ele. Nas quase 300 páginas<br />

que Grunberg investe na festa e<br />

sua montagem, distribui sinais<br />

de que o campo é minado. Não<br />

há frase sem ação, todo diálogo<br />

é de alta voltagem — é um alívio<br />

quando a festa termina e o último<br />

convidado se retira.<br />

Artimanha<br />

Mas o alívio é artimanha<br />

para que o leitor baixe a guarda.<br />

O campo minado é mais extenso<br />

do que a casa de Hofmeester.<br />

Como de costume nos personagens<br />

de Grunberg, nesse romance<br />

eles não ficam limitados às<br />

fronteiras geográficas. Tirza vai<br />

viajar — com o namorado, para<br />

longe e por muito tempo. Hofmeester<br />

odeia o namorado da filha,<br />

que não consegue dissociar<br />

de Mohammed Atta, um dos pilotos<br />

que atacaram as torres do<br />

World Trade Center. Grunberg é<br />

antenado em seu tempo: a história<br />

passa-se em 2005, quando o<br />

11 de Setembro ainda era muito<br />

presente no imaginário mundial.<br />

Divulgação<br />

Mas isso não torna o livro datado, muito pelo contrário,<br />

considerando o que temos visto desde então.<br />

Não nos é dado esquecer.<br />

Além da paranoia com o namorado, o pai não<br />

consegue enfrentar a despedida da filha, então encontra<br />

uma forma de estar com ela — e infelizmente<br />

para ele, com o namorado também — por mais<br />

alguns dias. Quando finalmente eles se vão, passam-se<br />

semanas sem notícias. Hofmeester resolve ir<br />

à Namíbia procurá-los. É especialmente relevante a<br />

escolha geográfica feita pelo autor. Em primeiro lugar,<br />

por ser de fato destino de milhares de jovens<br />

europeus sob os mais diversos pretextos, alguns genuínos.<br />

E também por representar um perigo difuso<br />

de guerras, estupros em massa, fronteiras móveis,<br />

o cenário perfeito para uma jovem holandesa desaparecer.<br />

O pai irá enfrentar isso tudo por sua filha, e<br />

defrontar-se consigo mesmo antes de retornar.<br />

A perspectiva internacional do autor lhe confere<br />

a percepção de que as identidades nacionais ou<br />

étnicas precisam negociar com a expansão do território<br />

global para não desaparecerem. “Sou, afinal,<br />

um autor em tradução. Moro nos Estados Unidos,<br />

mas escrevo em holandês”, afirmou Grunberg em<br />

entrevista acadêmica. Mais de uma década atrás, de<br />

maneira quase profética, Tirza evidenciou a fragilidade<br />

dos ideais humanitários de um europeu culto<br />

e moderno, mediante um delírio ativado por<br />

um fato real, hediondo. O protagonista, que vê<br />

no marroquino uma grave ameaça à sua segurança,<br />

guarda na memória, para piorar, um episódio<br />

em que seu pai, holandês com evidente simpatia<br />

pelo nazismo, espancou em público um judeu até<br />

a morte. Através de uma rápida ironia, Tirza demonstra<br />

que a associação entre racismo e a cultura<br />

germânica lhe foram inculcados in natura: quando<br />

Hofmeester avisa Tirza que partirão em quinze<br />

minutos, referindo-se ao namorado, diz: “Espero<br />

que ele seja pontual, esse...” [...]“Sim, papai, muito<br />

pünktlich, para um marroquino extremamente<br />

pünktlich”. Racismo e ressentimento, o caldo perfeito<br />

para uma tragédia. O leitor sabe disso, mas<br />

ainda torce por Hofmeester.<br />

O personagem é complexo. Percebe-se a violência<br />

latente (às vezes nem tanto), a necessidade de<br />

controlar o incontrolável, a intolerância pelo outro,<br />

mas também enxerga-se a compaixão de que ele é<br />

capaz, ao chegar à Namíbia, perante uma criança<br />

que lhe oferece sexo. Nos dias em que ali fica<br />

à procura da filha, Hofmeester praticamente adota<br />

a criança, trata-a com delicadeza, com profundo<br />

respeito por seu sofrimento. Personagem de grande<br />

originalidade, Kaisa tem tamanho e voz de criança,

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