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42 | | março de 2016<br />

Mikhail<br />

Liérmontov<br />

O veleiro<br />

Sozinho, alveja o veleiro<br />

Na neblina azul do mar!...<br />

Que busca em chão estrangeiro?<br />

Que deixa atrás em seu lar?...<br />

Tédio e tristeza<br />

Tédio, tristeza, ninguém a quem dar a mão<br />

Quando o espírito está em desamparo...<br />

Desejos!... Para que desejar sempre e em vão?<br />

E vão-se os anos — os anos tão caros!<br />

apresentação e tradução: Pedro Augusto Pinto<br />

Como bem se sabe a<br />

respeito do romantismo<br />

brasileiro, a<br />

influência de Lorde<br />

Byron, com o íntimo<br />

entrelaçamento de sua vida e<br />

de sua obra, seria determinante<br />

para toda uma geração de poetas<br />

fascinados pelos ideais românticos<br />

da solidão, da morbidez, do<br />

orgulho titânico e da liberdade<br />

desmesurada. A figura prometeica<br />

do poeta inglês se faria sentir<br />

de maneira análoga nas letras<br />

russas, inspirando motivos, enredos<br />

e personagens que marcariam<br />

presença, em suas reelaborações<br />

e desenvolvimento ulterior, até<br />

o final do século 19. Basta lembrar<br />

do Evguénii Oniéguin, de<br />

Púchkin, cujo incorrigível spleen<br />

e o caráter sedutor são ironicamente<br />

desmascarados como um<br />

modismo literário, na cena em<br />

que uma de suas vítimas, Tatiana,<br />

associa seu comportamento à sua<br />

biblioteca, denunciando a superficialidade<br />

da moda byroniana de<br />

Childe Harold e Don Juan na<br />

exata medida em que a reelaborava<br />

criticamente.<br />

Caso distinto é o de Mikhail<br />

Liérmontov (1814-1841), enfant<br />

terrible da literatura russa do século<br />

19, morto aos 26 anos em<br />

um duelo, já então considerado<br />

o herdeiro legítimo de Púchkin.<br />

Para Liérmontov, a obra<br />

de Byron não foi apenas uma<br />

influência determinante. Foi,<br />

talvez, uma obsessão, explicada<br />

em parte por fatores biográficos<br />

de sua curta vida: órfão de mãe<br />

muito cedo, fruto de um casamento<br />

repudiado pela aristocrática<br />

avó materna, foi afastado do<br />

pai e teve uma infância tão cultivada<br />

quanto solitária, dedicada<br />

ao aprendizado de línguas, música<br />

e pintura.<br />

A ausência de convívio<br />

humano faria de Liérmontov,<br />

assim, um caráter sombrio, sarcástico<br />

e intransigente. Natural,<br />

portanto, que se identificasse<br />

com o individualismo dramático<br />

e exacerbado do autor inglês,<br />

a ponto de escrever, aos 18 anos,<br />

versos com o início Não, eu não<br />

sou Byron. A negação obstinada<br />

denuncia, paradoxalmente, a<br />

confusão entre si mesmo e o autor<br />

de sua predileção.<br />

Todavia, apesar de sua curta<br />

vida, a admiração não se limitou à<br />

imitação, e Liérmontov conseguiu<br />

desenvolver um caminho particular<br />

e atual para a constelação de temas<br />

e motivos que havia herdado<br />

do romantismo, então já agonizante.<br />

Do orgulho individualista<br />

criou uma intransigência moral<br />

titânica de enorme expressão literária,<br />

tornando-se porta-voz da<br />

indignação geral quando da morte<br />

criminosa de Púchkin em um<br />

duelo, em 1837, com seus versos<br />

A morte do poeta — O poema,<br />

circulando em manuscrito pelos<br />

meios palacianos, lhe renderia das<br />

mãos do imperador Nicolau I seu<br />

primeiro exílio no Cáucaso, paisagem<br />

permanente de sua obra,<br />

campo de guerra, naquele tempo,<br />

entre o imperialismo russo e as diversas<br />

populações nativas.<br />

Conjugando suas tendências<br />

ao sarcasmo e à morbidez,<br />

Liérmontov conseguiu objetivar<br />

suas próprias obsessões de maneira<br />

irônica e até francamente<br />

crítica, de modo a denunciar o<br />

modismo romântico ao mesmo<br />

tempo em que o usava para atacar<br />

a imoralidade frívola da sociedade<br />

russa pós-Congresso de Viena.<br />

Exemplo disso é Petchórin,<br />

herói de seu romance Um herói<br />

de nosso tempo. O título já é<br />

em si carregado de ironia, dada a<br />

absoluta negatividade da personagem,<br />

o que lhe rendeu acusações<br />

de conivência e até mesmo<br />

de ter feito um autoretrato. “Velha<br />

e estúpida piada!”, responderia<br />

Liérmontov no prefácio à<br />

segunda edição do romance. Na<br />

verdade, atrás do que se apresentava<br />

como um simples retrato de<br />

pessoas de seu convívio se escondia<br />

uma colossal crítica a toda a<br />

sua geração, apresentada como<br />

cínica, covarde e sem qualquer<br />

propósito sobre a terra.<br />

Evidentemente, tanto ran ­<br />

cor e revolta não poderiam passar<br />

impunes, e a própria personalidade<br />

de Liérmontov se esforçava,<br />

em seu orgulho titânico, em<br />

atrair desafetos. Foi assim que,<br />

por causa de alguns epigramas<br />

cáusticos sobre seu colega oficial<br />

Martýnov, acabou sendo finalmente<br />

convocado a um duelo e<br />

sendo morto, aos 26 anos de idade.<br />

Como bom byroniano, mesmo<br />

sua morte não poderia deixar<br />

de se associar à literatura: além<br />

de morrer como Púchkin, morreria<br />

na cidade de Piatigorsk, no<br />

Cáucaso, cenário de seu romance,<br />

num duelo análogo ao descrito<br />

no próprio livro.<br />

Dom profético ou farsa<br />

deslavada, a morte trágica, anunciada<br />

e precoce do poeta é fruto<br />

de uma espantosa coerência moral<br />

entre obra e vida, tida como<br />

fundamental para todos os contaminados<br />

pelo spleen byroniano.<br />

Ainda assim, seus 26 anos lhe<br />

bastaram para tornar-se um dos<br />

pilares da literatura russa moderna,<br />

tanto na prosa quanto na poesia,<br />

figurando ao lado de Púchkin<br />

e de Gógol no que se convencionou<br />

chamar a “primeira plêiade”<br />

da literatura russa do século 19.<br />

Dança a onda, o vento chia,<br />

E o mastro balança e estrala...<br />

Ele, ah!, não busca a alegria<br />

Nem parte para deixá-la!<br />

Abaixo, a água azul, violenta,<br />

Acima, o astro ouro e lilás...<br />

Mas, louco, ele quer tormentas,<br />

Qual nelas houvesse paz!<br />

Pensamento<br />

Com tristeza eu contemplo a nossa geração!<br />

Seu futuro? — Obscuro, ou vão, ou vazio...<br />

E enquanto se farta em sabença e indecisão,<br />

Inerte, mofa por anos a fio.<br />

Mal saídos do berço já estamos cheios<br />

De enganos paternos, de sua mente atrasada,<br />

E a vida já entedia, qual banquete alheio,<br />

Monótona e inútil estrada.<br />

Indiferentes ao bem e ao mal,<br />

Nem começa a labuta e, sem luta, murchamos;<br />

Ante o perigo, vergonhosos, sem moral,<br />

E ante o poder — escravos vis de qualquer amo.<br />

Qual o fruto seco, vindo antes da hora,<br />

Cujo gosto não agrada, cuja cor não atrai:<br />

Pende ele entre as flores, órfão vindo de fora,<br />

E seu instante mais belo — é só o instante em que cai!<br />

Esgotamos a mente com infértil ciência,<br />

Escondendo, invejosos, de amigos e irmãos<br />

A esperança mais pura e a mais nobre consciência<br />

Por receio da surrada paixão.<br />

Mal tocamos a taça da felicidade<br />

Mas não mantivemos nosso vigor;<br />

De cada prazer, por temor da saciedade,<br />

Tragamos de vez o melhor sabor.<br />

Os sonhos da poesia, a imaginação da arte<br />

Não nos levam ao êxtase em sua beleza;<br />

Da emoção que nos resta, aferrolhamos parte —<br />

Um tesouro inútil e enterrado com avareza.<br />

Nós odiamos à toa, e amamos por nada,<br />

Sem qualquer sacrifício à maldade ou ao amor,<br />

E se impõe em nossa alma uma névoa gelada,<br />

Porém, no sangue, há calor.<br />

E entediam-nos as luxuosas travessuras,<br />

A escrupulosa perversão dos nossos pais;<br />

E corremos p’ra cova sem glória ou ventura,<br />

Olhando, esnobes, p’ra trás.<br />

Logo esquecidos pela multidão obscura<br />

Passaremos pela terra sem rastro ou ruído,<br />

Sem ideias férteis para as eras futuras,<br />

Nem trabalho de gênio a ser concluído.<br />

E nosso herdeiro, cidadão e magistrado,<br />

Maldirá nosso pó com versos de chacota,<br />

Com o amargo sarcasmo de um filho enganado<br />

Ante o pai em bancarrota.<br />

Amar... mas quem? Por um tempo, não vale a pena,<br />

E amar eternamente é impossível.<br />

Vês dentro de ti? Do passado há o pó apenas:<br />

Dores, prazeres, lá é tudo risível...<br />

Paixões, que são? Cedo ou tarde sua doce doença<br />

Some ante a razão e sua voz fria;<br />

E a vida, vista com atenção e indiferença,<br />

É só uma piada estúpida e vazia.<br />

Leia mais<br />

www.rascunho.com.br<br />

o tradutor<br />

Pedro Augusto Pinto<br />

É graduando em História pela FFLCH<br />

(USP) e aluno do Curso Formativo de<br />

Tradução Literária da Casa Guilherme<br />

de Almeida. Vive em São Paulo (SP).

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