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ARTIGO/POLÍTICA<br />
A Lei,<br />
O JORNALISMO E A HIDRA<br />
Célia Ladeira (*)<br />
T<br />
ornou-se um lugar comum na vida do brasileiro acordar e se inteirar<br />
da notícia do dia sobre operações da Polícia Federal. Tal como<br />
uma hidra mitológica, com um corpo de dragão e três cabeças de<br />
serpente, as operações se originam entre Curitiba, São Paulo e Brasília,<br />
onde fica o corpo do dragão, ou melhor, a sede do poder judiciário, que<br />
nem sempre controla o que as diferentes cabeças realizam.<br />
Bem diferente dos tempos gregos, quando Hércules conseguiu destruir<br />
a hidra de Lerna, tão venenosa que matava os homens apenas com<br />
o seu hálito, no Brasil dos nossos dias o veneno se espalha por emissoras<br />
de televisão, redes sociais e infindáveis artigos de jornais e revistas. Como<br />
outra hidra, a mídia se alimenta dos fatos político-policiais e os interpreta<br />
seguindo orientações das diferentes direções editoriais. O resultado é uma<br />
narrativa tão escandalosa que chega a parecer também mitológica.<br />
Como acreditar que os empréstimos pagos por aposentados aos bancos<br />
apareçam em contas do Ministério do Planejamento? Como é possível<br />
desviar dinheiro do Fundo de Garantia? Neste emaranhado de histórias<br />
do nosso cotidiano, surge outra realmente fabulosa: jogos da quarta divisão<br />
(existe isto?) de Estados como o Ceará estariam servindo para enriquecer<br />
apostadores do distante continente asiático. Fico a imaginar um jogo de<br />
quarta divisão no interior do Brasil: a bola é uma só e se for arremessada<br />
para longe, o jogo fica parado até a bola voltar. Para alguns times faltam<br />
camisas e a substituição do jogador inclui a entrega da camisa. O vestiário<br />
é um barracão improvisado onde os times se misturam. Para impor autoridade,<br />
o juiz joga com o revólver na cintura. E por aí vai. Fica difícil crer<br />
numa hidra com tamanho tentáculo.<br />
A velocidade com que as operações se realizam não nos permite<br />
refletir ou perceber os intrincados caminhos da corrupção, um veneno<br />
mais mortal do que o da hidra de Lerna e que polui os ares brasileiros<br />
segundo alguns desde Cabral. Quando começamos a compreender os<br />
descaminhos de uma quadrilha que ataca o erário público, nos vemos<br />
diante de uma fila enorme de várias outras quadrilhas, todas esperando<br />
a sua vez para virarem manchetes de jornal. Inútil fazer aqui a cronologia<br />
dos acontecimentos político-policiais. Os fatos se misturam e não<br />
há espaço para o jornalismo investigativo. Apareceu na TV, preso com<br />
ou sem algemas, levado por policiais federais, e já não é nem citado<br />
como suspeito, mas como condenado, indiciado, queimado em praça<br />
pública antes de qualquer julgamento.<br />
Não há espaço igualmente para a prática da justiça, que tem seu rito<br />
próprio, bem diferente do frenesi das coberturas midiáticas, que exigem<br />
um caso escabroso novo por dia. Como seguir as normas judiciais que impõem,<br />
por exemplo, que a condução coercitiva só se aplica se o suspeito se<br />
negar a depor? Como fazer justiça se os processos entulham as mesas dos<br />
juízes, que estão sem tempo de ler e meditar sobre os rumos a seguir? Vemos<br />
juízes que nem indiciam ou condenam e já mandam o suspeito devolver<br />
o dinheiro que teria desviado. Não há joio do trigo que se separe. Imagino<br />
um suspeito que, por acaso, é honesto. Devolver que dinheiro, seu juiz?<br />
Pior é quando alguns juízes, como os do Paraná, resolvem despir<br />
a toga da imparcialidade e saem à caça de jornalistas de um jornal de<br />
Curitiba, o Gazeta do Povo, um jornal simples, com uma sede pobre,<br />
mas que, com dignidade, ainda cumpre o ritual jornalístico de busca da<br />
verdade. E a verdade que encontram e publicam é que os juízes daquele<br />
Estado ganham fortunas com vales refeições, auxílio moradias e outras<br />
vantagens. Por isso os jornalistas foram perseguidos até que a ministra<br />
Rosa Weber os colocou sob o manto de proteção do Supremo.<br />
Esta luta hercúlea na qual o Brasil está mergulhado, em busca de cortar<br />
as cabeças venenosas da corrupção, tem provocado o desassossego dos<br />
poderes da República e da própria população, que já abriu mão de entender<br />
o que está acontecendo, com quem está acontecendo e no que vai dar no<br />
final. Uma vítima parece ser a democracia, porque o Estado de Direito se<br />
contorce a cada movimento contra direitos adquiridos desde o tempo de<br />
Getúlio e que ameaçam desabar nos descaminhos do governo interino, a<br />
passos largos em direção do retrocesso e febril na busca de apoios à direita.<br />
Quem sabe a mitologia possa nos mostrar o caminho na luta contra<br />
a hidra. Tal como na Lava Jato da atualidade, Hércules tentou esmagar as<br />
cabeças, mas a cada uma que cortava surgiam duas no lugar. Decidiu então<br />
mudar de tática e queimou-as com um tição logo após o corte, cicatrizando<br />
desta forma a ferida. Sobrou então apenas a cabeça do meio, considerada<br />
imortal. Hércules cortou e enterrou a última cabeça com uma enorme pedra.<br />
Assim, o monstro foi morto.<br />
Certamente, não mataremos a hidra da corrupção definitivamente.<br />
Mas se tivermos como foco a busca da verdade, além dos comprometimentos<br />
políticos, dos conchavos, da luta partidária, além do dinheiro<br />
lavado e ainda assim sujo, estaremos criando, com isenção jornalística,<br />
um novo caminho para que o país reencontre seu rumo. Sem venenos.<br />
(*) Célia Maria Ladeira<br />
Professora de Comunicação Pesquisadora do NEMP<br />
(Núcleo de Estudos de Mídia e Política) da UnB.<br />
12 CARTA POLIS | JULHO 2016