21.07.2016 Views

MARCOS GARZON ALERTA

CartaPolis_JUL-2016

CartaPolis_JUL-2016

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

ARTIGO/POLÍTICA<br />

A Lei,<br />

O JORNALISMO E A HIDRA<br />

Célia Ladeira (*)<br />

T<br />

ornou-se um lugar comum na vida do brasileiro acordar e se inteirar<br />

da notícia do dia sobre operações da Polícia Federal. Tal como<br />

uma hidra mitológica, com um corpo de dragão e três cabeças de<br />

serpente, as operações se originam entre Curitiba, São Paulo e Brasília,<br />

onde fica o corpo do dragão, ou melhor, a sede do poder judiciário, que<br />

nem sempre controla o que as diferentes cabeças realizam.<br />

Bem diferente dos tempos gregos, quando Hércules conseguiu destruir<br />

a hidra de Lerna, tão venenosa que matava os homens apenas com<br />

o seu hálito, no Brasil dos nossos dias o veneno se espalha por emissoras<br />

de televisão, redes sociais e infindáveis artigos de jornais e revistas. Como<br />

outra hidra, a mídia se alimenta dos fatos político-policiais e os interpreta<br />

seguindo orientações das diferentes direções editoriais. O resultado é uma<br />

narrativa tão escandalosa que chega a parecer também mitológica.<br />

Como acreditar que os empréstimos pagos por aposentados aos bancos<br />

apareçam em contas do Ministério do Planejamento? Como é possível<br />

desviar dinheiro do Fundo de Garantia? Neste emaranhado de histórias<br />

do nosso cotidiano, surge outra realmente fabulosa: jogos da quarta divisão<br />

(existe isto?) de Estados como o Ceará estariam servindo para enriquecer<br />

apostadores do distante continente asiático. Fico a imaginar um jogo de<br />

quarta divisão no interior do Brasil: a bola é uma só e se for arremessada<br />

para longe, o jogo fica parado até a bola voltar. Para alguns times faltam<br />

camisas e a substituição do jogador inclui a entrega da camisa. O vestiário<br />

é um barracão improvisado onde os times se misturam. Para impor autoridade,<br />

o juiz joga com o revólver na cintura. E por aí vai. Fica difícil crer<br />

numa hidra com tamanho tentáculo.<br />

A velocidade com que as operações se realizam não nos permite<br />

refletir ou perceber os intrincados caminhos da corrupção, um veneno<br />

mais mortal do que o da hidra de Lerna e que polui os ares brasileiros<br />

segundo alguns desde Cabral. Quando começamos a compreender os<br />

descaminhos de uma quadrilha que ataca o erário público, nos vemos<br />

diante de uma fila enorme de várias outras quadrilhas, todas esperando<br />

a sua vez para virarem manchetes de jornal. Inútil fazer aqui a cronologia<br />

dos acontecimentos político-policiais. Os fatos se misturam e não<br />

há espaço para o jornalismo investigativo. Apareceu na TV, preso com<br />

ou sem algemas, levado por policiais federais, e já não é nem citado<br />

como suspeito, mas como condenado, indiciado, queimado em praça<br />

pública antes de qualquer julgamento.<br />

Não há espaço igualmente para a prática da justiça, que tem seu rito<br />

próprio, bem diferente do frenesi das coberturas midiáticas, que exigem<br />

um caso escabroso novo por dia. Como seguir as normas judiciais que impõem,<br />

por exemplo, que a condução coercitiva só se aplica se o suspeito se<br />

negar a depor? Como fazer justiça se os processos entulham as mesas dos<br />

juízes, que estão sem tempo de ler e meditar sobre os rumos a seguir? Vemos<br />

juízes que nem indiciam ou condenam e já mandam o suspeito devolver<br />

o dinheiro que teria desviado. Não há joio do trigo que se separe. Imagino<br />

um suspeito que, por acaso, é honesto. Devolver que dinheiro, seu juiz?<br />

Pior é quando alguns juízes, como os do Paraná, resolvem despir<br />

a toga da imparcialidade e saem à caça de jornalistas de um jornal de<br />

Curitiba, o Gazeta do Povo, um jornal simples, com uma sede pobre,<br />

mas que, com dignidade, ainda cumpre o ritual jornalístico de busca da<br />

verdade. E a verdade que encontram e publicam é que os juízes daquele<br />

Estado ganham fortunas com vales refeições, auxílio moradias e outras<br />

vantagens. Por isso os jornalistas foram perseguidos até que a ministra<br />

Rosa Weber os colocou sob o manto de proteção do Supremo.<br />

Esta luta hercúlea na qual o Brasil está mergulhado, em busca de cortar<br />

as cabeças venenosas da corrupção, tem provocado o desassossego dos<br />

poderes da República e da própria população, que já abriu mão de entender<br />

o que está acontecendo, com quem está acontecendo e no que vai dar no<br />

final. Uma vítima parece ser a democracia, porque o Estado de Direito se<br />

contorce a cada movimento contra direitos adquiridos desde o tempo de<br />

Getúlio e que ameaçam desabar nos descaminhos do governo interino, a<br />

passos largos em direção do retrocesso e febril na busca de apoios à direita.<br />

Quem sabe a mitologia possa nos mostrar o caminho na luta contra<br />

a hidra. Tal como na Lava Jato da atualidade, Hércules tentou esmagar as<br />

cabeças, mas a cada uma que cortava surgiam duas no lugar. Decidiu então<br />

mudar de tática e queimou-as com um tição logo após o corte, cicatrizando<br />

desta forma a ferida. Sobrou então apenas a cabeça do meio, considerada<br />

imortal. Hércules cortou e enterrou a última cabeça com uma enorme pedra.<br />

Assim, o monstro foi morto.<br />

Certamente, não mataremos a hidra da corrupção definitivamente.<br />

Mas se tivermos como foco a busca da verdade, além dos comprometimentos<br />

políticos, dos conchavos, da luta partidária, além do dinheiro<br />

lavado e ainda assim sujo, estaremos criando, com isenção jornalística,<br />

um novo caminho para que o país reencontre seu rumo. Sem venenos.<br />

(*) Célia Maria Ladeira<br />

Professora de Comunicação Pesquisadora do NEMP<br />

(Núcleo de Estudos de Mídia e Política) da UnB.<br />

12 CARTA POLIS | JULHO 2016

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!