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Publicação Mensal Ano XVI - Nº <strong>179</strong> Fevereiro de 2013<br />
Unido à Cátedra de<br />
Pedro até a morte
Suplicar a<br />
cura moral<br />
N<br />
ossa Senhora de Lourdes cura tantas<br />
pessoas! O que é mais difícil: sanar<br />
o corpo ou a alma? Para a Rainha do Céu<br />
e da Terra, nem uma coisa nem outra.<br />
Tudo aquilo que Ela pedir, obtém. Se Nossa<br />
Senhora cura de tal maneira os corpos,<br />
vamos suplicar a Ela que cure também as<br />
nossas almas, e as transforme a ponto de<br />
chagas ocultas, defeitos ignorados às vezes<br />
por nós mesmos, apegos, desordens de todo<br />
tipo cessarem maravilhosamente pela ação<br />
d’Ela.<br />
Por vezes, as enfermidades narradas no<br />
Evangelho são símbolos de doenças morais.<br />
Assim como Nosso Senhor curava cegos e<br />
paralíticos físicos, há uma cegueira e uma<br />
paralisia espiritual. E, segundo certos<br />
comentadores, as curas físicas operadas por<br />
Ele atestavam seu poder de realizar curas<br />
morais.<br />
Talvez alguns dentre nós sejam “cegos”,<br />
outros “surdos”, “mudos” ou “paralíticos”.<br />
Quem sabe se há algum “leproso”... Outros<br />
serão “epilépticos” e terão convulsões. Tudo<br />
isso simbolizando estados de alma.<br />
Peçamos a Nossa Senhora de Lourdes<br />
que opere as curas morais e nos dê a graça<br />
de caminharmos para a festa d’Ela com a<br />
alma verdadeiramente renovada.<br />
(Extraído de conferência de 11/2/1967)<br />
Gruta de Massabielle<br />
onde a Santíssima Virgem<br />
apareceu - Lourdes, França.<br />
Gonzalo Raimundo<br />
2
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XVI - Nº <strong>179</strong> Fevereiro de 2013<br />
Ano XVI - Nº <strong>179</strong> Fevereiro de 2013<br />
Unido à Cátedra de<br />
Pedro até a morte<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
na década de 1980.<br />
Foto: Mário Shinoda<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
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03335-000 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2606-2409<br />
Editorial<br />
4 Unido à Cátedra de Pedro até a morte<br />
Datas na vida de um cruzado<br />
5 Sessenta e seis anos “sans peur e sans reproche”<br />
Dona Lucilia<br />
6 Modo de tratar os pequenos,<br />
os fracos e os deficientes<br />
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
10 Incondicional amor à<br />
Cátedra de Pedro<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
14 Procurar sempre o mais perfeito<br />
Perspectiva pliniana da história<br />
18 O espírito das nações<br />
analisado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> - II<br />
Calendário dos Santos<br />
24 Santos de Fevereiro<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 107,00<br />
Colaborador .......... R$ 150,00<br />
Propulsor ............. R$ 350,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 550,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 14,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Hagiografia<br />
26 Os pastorinhos de Fátima e o Segredo de Maria<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 Palácio do Vaticano<br />
Última página<br />
36 Nossa Senhora da Luz<br />
3
Editorial<br />
Unido à Cátedra de<br />
Pedro até a morte<br />
Quando de sua primeira visita a Paris na idade adulta, logo após se instalar no hotel, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
se dirigiu a Notre Dame. Era noite, a cidade luz cintilava. Aproximando-se pela rive gauche,<br />
encantou-se com a vista da face lateral da catedral junto ao Sena, e mandou parar o automóvel<br />
para ficar um tempo contemplando aquela maravilha. Desejava glorificar a Deus refletido tão belamente<br />
no célebre edifício sagrado visto desse ângulo.<br />
Essa atitude de admiração enlevada era manifestação de um amor pela Igreja que quase tocava<br />
nos limites da adoração, conforme declarou ele certa feita. Se São Francisco desposou a Dama Pobreza,<br />
aspirava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> com todo o coração fazer um desposório místico com a Santa Igreja Católica,<br />
Apostólica e Romana enquanto instituição.<br />
E, como de direito, o máximo de seu afeto filial se dirigia ao Santo Padre, o Doce Cristo na<br />
terra. Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclesia ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclesia. “Só estaremos unidos<br />
a Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante uma união sobrenaturalmente forte, união de vida e<br />
de morte, à Cátedra de São Pedro. Onde está Pedro, aí está a Igreja de Deus”, escreveu ele no Legionário<br />
(17/2/1946).<br />
Devotadíssimo filho da Santa Sé, em outro artigo para o Legionário, fazia <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> esta eloquente<br />
apologia de seu filial e entusiasmado amor pelo Papado: “De tal maneira a Igreja Católica está<br />
vincada à Cátedra de São Pedro que onde não há a aprovação do Papa não há Catolicismo. O verdadeiro<br />
fiel sabe que o Papa resume e compendia em si toda a Igreja Católica [...]. Porque tudo quanto<br />
há na Igreja de santidade, de autoridade, de virtude sobrenatural, tudo isto, mas absolutamente<br />
tudo sem exceção, nem condição, nem restrição está subordinado, condicionado, dependente da<br />
união à Cátedra de São Pedro. As instituições mais sagradas, as obras mais veneráveis, as tradições<br />
mais santas, as pessoas mais conspícuas, tudo enfim que mais genuína e altamente possa exprimir o<br />
Catolicismo e ornar a Igreja de Deus, tudo isto se torna nulo, maldito, estéril, digno do fogo eterno,<br />
e da ira de Deus, se separado do Romano Pontífice. [...] para nós, entre o Papa e Jesus Cristo não há<br />
diferença. Tudo que diga respeito ao Papa diz respeito direta, íntima, indissoluvelmente, a Jesus Cristo.”<br />
(16/4/1944).<br />
Fiel até o fim ao carisma recebido, desejou <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> morrer tendo nas mãos o crucifixo e uma vela<br />
benta pelo Papa, como derradeira e suprema manifestação desse incondicional afeto e devotamento<br />
à Cátedra de São Pedro de que sua alma transbordava.<br />
Foi <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, sem dúvida, em toda integridade um autêntico vir catholicus, totus apostolicus, plene<br />
romanus!<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Datas na vida de um cruzado<br />
Sessenta e seis anos<br />
“sans peur e sans reproche”<br />
No dia 3 de fevereiro de 1975, em uma estrada<br />
em Jundiaí (SP), sofreu <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
um grave acidente de automóvel que<br />
quase lhe custou a vida. Em consequência, além<br />
de outras limitações, ficou ele restrito à cadeira de<br />
rodas pelo resto de seus dias.<br />
Esse grave acontecimento era lembrado com<br />
frequência pelos seus discípulos, sobretudo a cada<br />
mês de fevereiro. Queriam eles conhecer melhor<br />
os movimentos de alma de seu mestre nesse momento<br />
de transcendental importância para a história<br />
do Movimento. E, diante de tão filial atitude,<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nunca deixava de fazer algumas reflexões.<br />
Em uma dessas ocasiões, assim se exprimiu:<br />
A morte é a mais augusta tabeliã que existe<br />
sobre a terra. Diante dela raramente acontece<br />
uma fraude. Ela tudo desmascara! Atrás da<br />
morte vem o Juízo, ao qual ela serve de arauto.<br />
E, ao ouvir os passos do grande Juiz chegando, é<br />
preciso ser quase satânico para não sentir medo<br />
e pedir perdão!<br />
Os senhores falaram do absoluto e da superficialidade.<br />
Quanta razão têm para abordar este tema<br />
a propósito do meu desastre! Porque, principalmente<br />
para quem se entregou a uma vocação,<br />
toda obra humana é falaciosa, irreal e inconsistente<br />
se a pessoa não procura cravar até o fundo<br />
da própria alma as convicções que tem! É preciso,<br />
portanto, ter a noção — eu quase diria a vivência<br />
— do absoluto fincada no mais íntimo do espírito.<br />
O desastre ocorreu em 1975, quando eu tinha<br />
66 anos. Com essa idade já havia transcorrido<br />
toda uma vida! E posso dizer que aos olhos dos<br />
homens — não ouso afirmar o mesmo aos olhos<br />
de Deus — tinha um passado solidamente estruturado,<br />
coerente, lógico, limpo, rumando continua<br />
e abnegadamente para um mesmo fim.<br />
Quando, ainda mocinho, li numa daquelas<br />
conferências da Université des Annales que<br />
Bayard 1 era chamado “le Chevalier sans peur<br />
et sans reproche” 2 , tive um frêmito. Eu não ousaria<br />
me aplicar essa expressão diante de Nossa<br />
Senhora, mas diante dos homens, sim! E não<br />
há quem tenha coragem de negá-lo, porque<br />
lhe perguntaria: “Quando me viram ter ‘peur’?<br />
Quando me puderam fazer um ‘reproche’?”<br />
Se, entretanto, quem lhes fala tivesse conservado<br />
durante esses anos certa superficialidade<br />
de espírito, ela teria se manifestado nos períodos<br />
de inconsciência após o acidente, e algo do<br />
impulso dado aos senhores diminuiria naquele<br />
momento. Eu sairia da convalescença com a impressão<br />
de haver cumprido o meu dever, mas na<br />
hora do julgamento, seria interpelado: “Presta<br />
as tuas contas!”<br />
A minha superficialidade seria, então, a causa<br />
do desagrado divino. O espírito não teria ido tão<br />
a fundo nem se enlevado como deveria.<br />
(Extraído de conferência de 6/2/1982)<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante sua convalescença<br />
após o desastre.<br />
1) Pierre du Terrail, senhor de Bayard (1476-1524).<br />
2) O Cavaleiro sem medo e sem reproche.<br />
5
Dona Lucilia<br />
Modo de tratar os<br />
pequenos, os fracos<br />
e os deficientes<br />
Em relação a todo mundo Dona Lucilia era afável, mas para aqueles<br />
que se encontravam num estado de debilidade ela manifestava um<br />
grau de afabilidade estudado, não no sentido acadêmico, mas calculado<br />
pelo afeto. Tal era sua bondade que ela possuía certa predileção pelas<br />
pessoas portadoras de alguma deficiência.<br />
Dona Lucilia, em vida, foi a pessoa em cuja conduta<br />
o inesperado não era habitual. Quer dizer,<br />
todo o seu comportamento era lógico,<br />
dentro de uma certa linha coerente, e nunca fazendo algo<br />
que não se pudesse prever.<br />
Predileção pelos fracos e pequenos<br />
Se algum inesperado ocorria, rumava no sentido do<br />
que se poderia presumir de uma longa trajetória anterior:<br />
um requinte de afeto e de delicadeza inimaginável,<br />
e inventado por ela no momento.<br />
Eu não diria o mesmo de sua conduta depois de morta.<br />
Toda a ação que se pode atribuir a ela, atendendo aos<br />
pedidos feitos, e tudo quanto tem sido realizado a propósito<br />
dela era-me inesperado. Um inesperado dulcíssimo,<br />
mas era inesperado.<br />
Mas há dentro disso uma nota especial, que passarei<br />
a expor.<br />
Parece-me que aquilo que, reta e ordenadamente, as<br />
pessoas possam desejar dela, plausivelmente ela concederá,<br />
ainda quando as almas um pouco “enjolráticas” 1<br />
dos que estão neste auditório queiram coisas inesperadas;<br />
nisso existe, por certo, um requinte de delicadeza.<br />
De tal maneira que já me tem acontecido de tomar como<br />
provável algumas coisas que desejam, e dar certo.<br />
Isso se prende ao seguinte: durante sua vida, ela manifestou<br />
sempre uma predileção muito especial por aqueles<br />
que eram fracos, pequenos, e uma solicitude em atendê-los.<br />
Mesmo em relação ao “filhão” 2 que ela teve, Dona Lucilia<br />
procurava ver no que esse “filhão” estava precisando<br />
de algo, querendo alguma coisa, e se dedicava a encontrar,<br />
atender, favorecer, enfim a fazer o que ela pudesse em todas<br />
as idades dele. Todos entendem bem como isso está na<br />
linha do que ela faz com os presentes nesta reunião.<br />
É compreensível, portanto, que ela tenha para uma geração<br />
tão posterior à minha uma solicitude especial; algo<br />
como eu a vi ter com a neta e depois com o bisneto dela.<br />
”A afabilidade não é apressada<br />
e a pressa não é afável”<br />
O assunto que me pediram tratar se contém, assim, um<br />
tanto sinteticamente nesta exposição. Ao contrário de Dona<br />
Lucilia, eu sou esquemático quando falo, embora não<br />
seja conciso no que escrevo, no sentido de que julgo necessário<br />
escrever coisas longas por causa da confusão que<br />
há nos espíritos. Mas sou conciso no seguinte: para dizer<br />
6
Ela não era concisa,<br />
falava longamente, com<br />
circunstâncias, com uma<br />
afabilidade sem pressa.<br />
Aliás, a afabilidade<br />
não é apressada e a<br />
pressa não é afável.<br />
Dona Lucilia em Paris, por ocasião<br />
de sua viagem em 1912.<br />
aquilo que afirmo, outros usariam muito mais papel do<br />
que utilizo. E ela não era concisa, falava longamente, com<br />
circunstâncias, com uma afabilidade sem pressa. Aliás, a<br />
afabilidade não é apressada e a pressa não é afável.<br />
Mamãe contava, entrava em pormenores, passeava com<br />
o interlocutor pelos assuntos de que ela tratava, e nesse ponto<br />
as circunstâncias — não meu temperamento nativo — me<br />
obrigaram a ser diferente dela. E hoje em dia, quando exponho<br />
alguma coisa em qualquer ambiente, por mais filial e<br />
amigo que seja esse ambiente, já falo me defendendo contra<br />
as más interpretações. E também, por causa disso, procurando<br />
dar uma concisão didática ao que estou dizendo, para<br />
me defender de uma eventual acusação de ser muito prolixo.<br />
Esse desejo de ajudar e esse modo de ser dela eu notei<br />
muito no seguinte: em relação a todo mundo Dona Lucilia<br />
era afável, mas quanto às pessoas que ela percebia estarem<br />
num estado de debilidade, qualquer que fosse esse<br />
estado, mamãe tinha um grau de afabilidade estudado,<br />
não no sentido acadêmico, científico, mas calculado pelo<br />
afeto. No que consistia isso?<br />
Ela via uma pessoa com alguma lacuna, algum defeito,<br />
e analisava de que natureza era o efeito que isso podia<br />
produzir na pessoa. Na pessoa em tese e depois in concreto<br />
naquela pessoa.<br />
7
Dona Lucilia<br />
Bondade proporcionada, adequada,<br />
estudada, adaptada para cada pessoa<br />
Então, no modo de tratar, ela animava a pessoa e dava<br />
a entender que, por afeto, por bondade, ela se punha<br />
inteiramente naquela plana e tinha até certa predileção<br />
por aquela pessoa por causa daquela debilidade.<br />
De maneira que a pessoa ficava muito à vontade,<br />
como não costuma ficar um inferior em relação a outro<br />
que é superior. Com ela era o contrário. E, de outro<br />
lado, ela fazia isso, nem um pouco com ar de quem insinua<br />
estar fazendo uma esmola ou uma bondade, mas<br />
como quem está atendendo a um apelo de sua própria<br />
sensibilidade.<br />
Por exemplo, tratar com crianças, com idosos e sofredores<br />
na vida. Há velhos que se tornam mais ou menos<br />
como certos serviços de mesa; às vezes se quebram tantas<br />
peças ao longo dos anos numa casa, que resta um prato<br />
ou dois. Alguns anciãos ficam assim na vida: o último<br />
prato de um serviço de mesa que já quebrou. O que fazer<br />
daquele prato? É um problema. E também pessoas com<br />
deficiência física; havia um primo cego e Dona Lucilia tinha<br />
um sobrinho surdo.<br />
Mamãe nasceu em Pirassununga, e a família dela morou<br />
muito tempo nessa cidade. E deixou parentes, conhecidos<br />
etc., mas gente que inserida no ambiente de<br />
uma cidade do interior, como se apresentava naquela<br />
época, naturalmente acaipirou-se. E, às vezes, um ou outro<br />
desses aparecia em nossa residência, em São Paulo,<br />
para fazer uma visita; entrava na casa e percebia que todo<br />
o ar era diferente.<br />
Como ela os tratava? Era sempre com uma bondade<br />
proporcionada, adequada, estudada, adaptada, que se<br />
tornava uma respiração, um oásis, um alívio para essas<br />
pessoas.<br />
O primo cego, que possuía um grande apetite<br />
Por exemplo, esse cego ao qual me referi era parente<br />
dela em grau relativamente longínquo. Acho que hoje<br />
em dia já não se considera primo. Era primo de terceiro<br />
ou quarto grau. E ela teria toda facilidade de se desfazer<br />
dele. Bastava num dia recebê-lo um pouco menos<br />
amavelmente que ela o empurraria de lado, e ele não teria<br />
coragem de voltar.<br />
Ela recebia o cego com muita alegria. Porque o receio<br />
dele era ser recebido assim: “Ih! Aqui está ele de novo!”<br />
Então ela fazia o contrário do que o homem podia temer.<br />
— Oh! Fulano, como vai você?<br />
Na saída:<br />
— Olha, apareça sempre, dá tanto gosto!<br />
Por bondade, Dona Lucília<br />
demonstrava predileção pela<br />
pessoa mais débil. Não fazia<br />
isso com ar de quem insinua<br />
estar dando uma esmola, mas<br />
como quem atende a um apelo<br />
de sua própria sensibilidade.<br />
Nesta página e na seguinte, fotos de<br />
Dona Lucilia com seu bisneto.<br />
8
Conforme fosse a distribuição dos lugares na mesa, se<br />
o cego estava sentado perto de mamãe, ela chamava a<br />
empregada e ela mesma completava o prato dele sem fazer<br />
nenhum barulho, de maneira a dar-lhe a impressão<br />
de que o alimento predileto ainda não havia terminado.<br />
E o prato do cego não esvaziava nunca!<br />
Ele não perguntava nada. Não sei se desconfiava, mas<br />
o fato é que ele comia valentemente e com apetite. E daí<br />
resultava toda uma atmosfera que dilatava o coração do<br />
pobre cego, deixava-o à vontade e contente.<br />
Na extrema velhice, brincando com o bisneto<br />
Esse cego era até bem inteligente, educado e muito<br />
discreto. Mas para ele era mais agradável ser recebido<br />
assim do que com a porta semicerrada. Qualquer um<br />
compreende isso.<br />
Mamãe conversava com esse homem longamente. E<br />
como ele tinha grande apetite, na hora da refeição Dona<br />
Lucilia tomava o prato dele, escolhia os melhores pedaços<br />
de carne, cortava e, dizendo-lhe o que havia como<br />
acompanhamento, perguntava-lhe qual eram os alimentos<br />
de sua preferência. Tendo ele escolhido, ela punha no<br />
prato, depois picava.<br />
Às vezes ela percebia que ele havia gostado muito<br />
mais de uma coisa do que de outra. Então mamãe chamava<br />
a empregada e lhe fazia um sinal… Esta ia, pé ante<br />
pé, e punha no prato do homem aquilo que já estava<br />
acabando.<br />
Eu a vi na extrema velhice tratando com o bisneto dela.<br />
E me perguntei a mim mesmo: “Como é que mamãe<br />
vai arranjar um jeito de ter um terreno comum — ela bisavó<br />
— com esse menininho nascido na ponta da descendência<br />
e já portador de outros impulsos, de um meio<br />
muito diferente do nosso?”<br />
Ele entrava no salão ou no quarto onde Dona Lucilia<br />
estivesse, e ela abria os braços para ele, que ia correndo e<br />
encostava a cabeça no peito dela. Ela o agradava: “Filhinho”.<br />
Eu via que ele ficava todo refrigerado.<br />
Mamãe o deixava estar um instantinho ali e dizia para<br />
ele qualquer coisa do gênero seguinte: “Vamos brincar<br />
nós dois lá fora?”, para sair do ambiente dos mais velhos,<br />
onde havia uma conversa que o bisneto não entendia; e<br />
iam os dois fazer uma conversinha à altura dele.<br />
Dirigiam-se para um quarto onde já havia uns brinquedinhos<br />
para ele. E esse entretenimento, em geral, ia<br />
até a hora em que a mãe ou a avó o levava embora. E notava-se<br />
que o menino saía porque não tinha remédio; ele<br />
queria ficar lá brincando.<br />
Ele tinha uma pronúncia ligeiramente estrangeira, diferente<br />
da portuguesa. Não a chamava de bisavó — aliás,<br />
no Brasil nenhum bisneto diz bisavó, e sim “vovó” —,<br />
mas pronunciava carregado e dizia “pizavó”. Ela achava<br />
graça, mas nem dizia nada.<br />
Ao entrar no local onde Dona Lucilia estava, ele falava:<br />
“Pizavó! pizavó! pizavó!”, e começava a conversar<br />
com ela.<br />
Através desses fatinhos pode-se ver como era a conduta<br />
dela.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 15/4/1982)<br />
1) Cf. “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>” n. 94, p. 23, nota 1.<br />
2) Modo afetuoso com que Dona Lucilia tratava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
9
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Incondicional amor à<br />
Cátedra de Pedro<br />
Ao comentar um filme documentário sobre a vida no Vaticano<br />
na época de Pio XII, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> manifestava,<br />
uma vez mais, sua fidelidade à Igreja na pessoa do Papa.<br />
Tim Ring<br />
10
Acima de qualquer poder temporal, o Papado é o<br />
mais alto poder existente na Terra. É o mais alto,<br />
pois tudo quanto diz respeito ao sobrenatural<br />
vale mais do que aquilo que se refere ao natural, e o<br />
espírito vale mais do que a matéria. Ademais, o Papa tem<br />
um poder universal sobre todos os povos, em todos os lugares,<br />
enquanto as outras soberanias existentes no mundo<br />
são limitadas. Alguém pode ser rei de um país ou presidente<br />
de outro; não há rei do mundo, nem presidente<br />
do mundo. Ora, o Papa é o Pastor do mundo inteiro, ele<br />
tem uma jurisdição sobre as almas de todo o orbe. O resultado<br />
é que, mesmo sob esse terceiro título — o menos<br />
importante de todos, mas que é tão importante — ninguém<br />
pode se comparar ao Papa.<br />
Então, a ideia é a seguinte: sendo o Papa o representante<br />
de Deus na Terra e, portanto, do mais sobrenatural<br />
dos poderes, toda a ordem da graça está na mão dele,<br />
a ele compete exercer em sumo grau as faculdades de<br />
ensinar, de guiar e de santificar, próprias à Igreja Católica.<br />
Por exercer esse ministério de uma ordem tão transcendente,<br />
ele é o maior hierarca de toda a Igreja e, por<br />
isso, também deve estar cercado das maiores manifestações<br />
de respeito que a um homem possam ser tributadas.<br />
Respeito, amor e força na monarquia papal<br />
Por causa disso, toda a vida ao redor do Papa há de ser<br />
organizada de maneira a torná-lo objeto desse respeito<br />
e desse amor. O governo papal sobre a Igreja é uma monarquia<br />
que corresponde a três ideias: a ideia do respeito,<br />
a ideia do amor e a ideia da força.<br />
A ideia do respeito, em primeiro lugar. O Papa deve<br />
ser venerado, como eu já disse.<br />
Em segundo lugar, a ideia do amor. Se o Papa é o representante<br />
de Cristo na Terra, todo o amor que os homens<br />
tributam a Nosso Senhor Jesus Cristo deve ter como<br />
seu ponto de aplicação imediata o Papa, que representa<br />
Cristo na Terra.<br />
Depois, a ideia de força. O Papa é um pastor. Os senhores<br />
não podem conceber um pastor que não tenha<br />
um papel de força a desenvolver, porque o pastor precisa<br />
defender as ovelhas contra o lobo. E, portanto, ele deve<br />
aplicar a força contra o lobo. O poder de governar as<br />
ovelhas tem como elemento intrínseco o de combater o<br />
lobo pelas armas espirituais.<br />
Então os senhores veem em torno do Pontífice uma<br />
pompa que é religiosa, ao mesmo tempo paterna, mas<br />
também é uma pompa de força. E a nota força precisa<br />
ser um pouco salientada. Os senhores veem ali as guardas<br />
pontifícias: a Guarda Suíça, a Guarda Palatina, a<br />
Guarda Nobre — composta exatamente de elementos da<br />
nobreza ro mana —, que serviam ao Papa gratuitamente<br />
e se revezavam no serviço papal. Essas três milícias guarneciam<br />
os palácios do Papa. É claro que com uma primeira<br />
preocupação imediata de garantir a integridade<br />
pessoal do Pontífice, a ordem naquele enorme movimento<br />
de pessoas e a incolumidade dos colossais tesouros de<br />
arte que ali se encontram.<br />
O Papa é um pastor e<br />
precisa defender o rebanho.<br />
Portanto, ele deve aplicar<br />
a força contra o lobo.<br />
O poder de governar as<br />
ovelhas tem como elemento<br />
intrínseco o de combater o<br />
lobo pelas armas espirituais.<br />
Gustavo Kralj<br />
Encontro do Papa São Leão<br />
Magno com Átila - Afresco<br />
da Biblioteca Vaticana<br />
11
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Uma visita que valia por<br />
um verdadeiro exercício espiritual<br />
Assim, tudo era organizado de modo a que, em torno<br />
do Papa, esses sentimentos pudessem se exprimir. De maneira<br />
a ser dada a todos os que fossem ver o Papa a oportunidade<br />
de ter os seus sentimentos de devoção, de respeito,<br />
de amor, de temor diante da força, levados ao mais alto<br />
grau. Portanto, toda a organização ali visava a incutir nos<br />
fiéis os sentimentos que eles deveriam possuir.<br />
Por esta razão, uma visita à Basílica de São Pedro e ao<br />
Palácio do Vaticano valia por um verdadeiro exercício espiritual<br />
do qual o fiel saía com sua alma mais aderente,<br />
mais unida ao Papa do que anteriormente.<br />
Quando apareceu o cinema, a possibilidade de realizar<br />
filmes como esse e de passá-los ao mundo inteiro levou<br />
para os que não podiam ir até lá o espetáculo magnífico<br />
e cotidiano dentro do qual a vida de um Papa se desenvolvia.<br />
É natural que, sendo o Papa a cabeça visível da Igreja,<br />
pessoas do mundo inteiro procurem ir a Roma para vê-<br />
-lo. E o número dos que viajavam para ver o Sumo Pontífice<br />
— desde São Pedro, primeiro Papa, até nossos dias<br />
— foi se multiplicando à medida que os meios de locomoção<br />
se tornavam mais fáceis. De maneira a Roma passar<br />
a ser, sobretudo nos últimos cem anos, um ponto de<br />
atração dos estrangeiros, católicos de todas as partes do<br />
mundo chegando continuamente lá.<br />
A<br />
nau de São Pedro continua a sulcar gloriosamente<br />
os mares ora pacíficos, ora revoltos da<br />
História, e seus timoneiros, (...) longe de representarem<br />
uma força espiritual decrépita e moribunda, são<br />
reconhecidos como figuras-chave na determinação<br />
dos rumos da humanidade. Radiosa e sobrenatural<br />
imortalidade do Papado! (...) Comprazemo-nos em<br />
registrar aqui, num preito de admiração e entusiasmo<br />
à invencível Cátedra de Pedro.<br />
(Excertos do artigo “...E sobre ti está edificada a<br />
minha Igreja”, “Catolicismo” n. 151, julho/1963)<br />
Os senhores viram, no filme, feridos de guerra, freiras<br />
que querem falar com o Papa. Havia de tudo. É um resumo<br />
do mundo que quer falar com o Papa. É preciso falar<br />
com o Papa!<br />
Os senhores prestem atenção nas fisionomias das pessoas<br />
quando falam com o Papa, sobretudo depois de sua<br />
passagem. É quase a fisionomia de quem acaba de comungar.<br />
Recebeu do Pontífice uma palavrinha só, mas<br />
que palavrinha! É guardada na alma para a vida inteira:<br />
o timbre de voz, o sorriso, a temperatura da mão, como<br />
a mão apertou, como não apertou, os eflúvios, os imponderáveis<br />
que o Papa traz em torno de si, tudo isso a pessoa<br />
guarda para a vida inteira, e até para a hora da morte,<br />
porque é para a hora da morte que guarda.<br />
Victor Toniolo<br />
“Sendo o Papa a cabeça visível da Igreja, é natural que pessoas do mundo inteiro procurem<br />
ir a Roma para vê-lo”. Papa Bento XVI por ocasião da Audiência de 31/5/2006.<br />
12
Sendo o Papa o representante<br />
de Deus na Terra e, portanto,<br />
do mais sobrenatural dos<br />
poderes, toda a ordem da<br />
graça está na mão dele, a ele<br />
compete exercer em sumo<br />
grau as faculdades de ensinar,<br />
de guiar e de santificar,<br />
próprias à Igreja Católica.<br />
O Papa Pio XII proclama o dogma<br />
da Assunção de Nossa Senhora,<br />
em 1 de novembro de 1950.<br />
Estar unido à Cátedra de Pedro<br />
até na hora da morte<br />
Eu tive a experiência disso. Eu levei vários objetos para<br />
serem abençoados por Pio XII, entre eles algumas velas.<br />
As velas que se levavam para o Papa benzer eram velas<br />
lindas, que se vendiam na Via de la Conciliazione, todas<br />
trabalhadas, com relevos, com figuras, etc. Ele abençoou.<br />
Eu guardei de novo na minha pasta, com muitos<br />
outros objetos.<br />
Quando cheguei ao hotel, pensei o seguinte — eu tinha<br />
a intenção de pôr uma vela dessas na sede do nosso<br />
Movimento e dar outra a minha mãe — eu pensei com<br />
meus botões: “O que é que eu vou fazer com essas velas?<br />
Uma dessas velas deve ser guardada para quando eu<br />
morrer. O agonizante católico morre com a vela na mão,<br />
e eu quero que a vela com a qual eu morra seja a vela<br />
abençoada pelo Vigário de Cristo. Assim estarei unido à<br />
Cátedra de Roma até quando eu estiver sem sentidos,<br />
até quando me encontrar entre a vida e a morte, e o meu<br />
intelecto não articular mais nenhum pensamento. Por<br />
minha recomendação, minha mão vai ser agarrada a esta<br />
vela que representa tudo aquilo que eu amo na Terra: o<br />
Papa, com o qual tudo quanto há na Terra é digno de<br />
amor e sem o qual nada é digno de amor, apenas de desprezo,<br />
porque está marcado pelo pecado original e pelo<br />
domínio do demônio.” É o movimento natural da minha<br />
alma.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 13/1/1976)<br />
U<br />
ma lenda antiga nos conta que à beira de<br />
certo lago havia um rochedo que crescia<br />
à medida que as ondas o acometiam, de sorte a<br />
nunca ser submergido, ainda nas maiores tempestades.<br />
Hoje em dia, este rochedo é a Pedra, é a<br />
Cátedra de Pedro, que tem avultado com as revoluções,<br />
zombando das heresias, crescendo em<br />
vigor à medida que seus adversários crescem em<br />
rancor. Há já vinte séculos que ela vem espargindo<br />
água benta sobre os adversários que tombam<br />
no caminho. A crise presente, que nos empolga<br />
com seus aspectos dantescos é, para ela, apenas<br />
um episódio na História desta humanidade que<br />
ela já tem visto gemer em outras ocasiões sob o<br />
fardo dos mesmos erros, esmagada pelo peso das<br />
mesmas paixões. Assistiu ao nascer de todos os<br />
países do Ocidente. Vê-los-ia morrer sem receios<br />
por seus próprios dias, que não se contam com a<br />
brevidade dos dias de uma nação.<br />
Em sua doutrina divina, tem todos os tesouros<br />
espirituais e morais necessários para solucionar<br />
todas as crises. Neste mar revolto do século XX,<br />
em que naufragam homens, ideias e fortunas, só<br />
ela continua e será via, veritas et vita, que a humanidade<br />
há de aceitar, para levantar um voo salvador<br />
sobre o próprio abismo que ameaça tragá-la.<br />
(“O Legionário” n. 130, 15/10/1933)<br />
13
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Procurar sempre<br />
o mais perfeito<br />
A alma inocente, favorecida pela graça, tem um movimento<br />
ascensional em direção a Deus, desejando sempre o<br />
maravilhoso. Entretanto, a Revolução procura perverter as<br />
pessoas desviando-as desse caminho, apresentando-lhes<br />
falsificações da verdade, do bem e do belo.<br />
No fundo, o homem encontra aquilo que procura.<br />
E, segundo uma expressão francesa muito<br />
adequada, “quem não sabe o que procura,<br />
não sabe o que encontra”. Resultado: aquele que procura<br />
uma determinada coisa a encontra; se não a procura,<br />
ele acaba não a encontrando.<br />
O princípio de todas as virtudes<br />
Em termos mais precisos, se uma alma é colocada<br />
diante de uma coisa verdadeira, ela se pergunta qual é a<br />
conclusão, qual a verdade que parte daí. Diante de uma<br />
coisa boa: pode haver ainda melhor? Diante de uma coisa<br />
bela: há um modo de embelezá-la mais? Quando a al-<br />
Colocada diante de uma coisa bela, a alma se pergunta: há um modo de embelezá-la ainda mais?<br />
À esquerda, madrepérola. À direira, tríptico, em madrepérola, representando cenas da Paixão de Jesus Cristo.<br />
14
ma tem esse movimento, ela possui em si o princípio de<br />
todas as virtudes. No fundo, a alma é feita de tal maneira<br />
que, colocada diante daquilo que é segundo Deus, ela<br />
quer ainda mais.<br />
A verdade, o bem, a beleza criados são reflexos do<br />
Bem, da Verdade, da Beleza incriados. E quando a pessoa,<br />
diante da verdade, do bem e da beleza criados quer<br />
mais e mais, ela procura Deus. Sua alma está em ascensão,<br />
buscando crescer cada vez mais e atingir o píncaro.<br />
Instintivamente, por causa dessa disposição prévia de espírito,<br />
ela procura sempre o mais perfeito. E o resultado<br />
é que encontra.<br />
Então, por exemplo, diante de um lindo copo de cristal,<br />
a pessoa pode se perguntar: com um quartzo rosa,<br />
meio lilás, elaborado, não se faria também um copo bonito?<br />
Que pena as esmeraldas serem tão pequenas, porque<br />
não é possível fazer um copo de esmeraldas... Mas<br />
como seria bonito um copo de esmeraldas! O que significa<br />
esse movimento da alma? Significa desejar mais alguma<br />
coisa, que é segundo Deus.<br />
Uma pessoa ouve falar das rodas 1 da Santa Casa de<br />
Misericórdia, da caridade daquelas freiras, e no primeiro<br />
momento imagina: Como seria bonito que, em vários<br />
lugares do mundo, freiras vestidas como Santa Catarina<br />
Labouré — que recebeu a visão da Medalha Milagrosa<br />
—, com aquele chapéu branco, hábito preto, cuidando<br />
das criancinhas dos outros, com uma pena, uma condescendência<br />
que as mães não tiveram, ensinando a Religião<br />
e aguentando as ingratidões das crianças, que às<br />
vezes são ingratas com os pais e quanto mais o serão com<br />
quem não são os pais! E carregando a cruz que o pai, ou<br />
a mãe, prevaricador não carregou! Que bonito refletir:<br />
de repente algo da graça, através da freira, incide sobre a<br />
criança e a alma desta vai se modelando!<br />
Depois de ter imaginado isso, vem uma pergunta: como<br />
seria com Santa Catarina Labouré? Poderia eu imaginá-la?<br />
E posteriormente surgiria outra indagação: e se<br />
uma criança ignota fosse parar nos braços de Nossa Senhora,<br />
como a Santíssima Virgem faria?<br />
Querer melhorar continuamente<br />
Por que a alma vai por si imaginando o mais maravilhoso?<br />
Porque ela tem esse movimento ascensional rumando<br />
para Deus, que é o dinamismo de sua própria<br />
inocência, favorecido pela graça, naturalmente. Com essas<br />
cogitações, que são naturais à alma inocente, ela procura<br />
coisas maiores e, procurando, encontra. E a alma<br />
tem a proteção do anjo da guarda, de Nossa Senhora.<br />
Representam-nos tantas vezes o anjo da guarda amparando<br />
uma criança para não tropeçar numa pedra; e é<br />
verdade. Mas quanto mais ele a ajuda para não tropeçar<br />
num sofisma, num erro, para acertar com a verdade, ter<br />
mais estímulo para querer o bem, amar a beleza! Quantas<br />
e quantas vezes movimentos bons de nossa alma foram<br />
do anjo da guarda, que cochichou ao nosso espírito,<br />
sem percebermos, tal coisa, tal outra, e caminhamos para<br />
frente! Nossa alma, angelizada, transportada por ele,<br />
voa de degrau em degrau, sob os auspícios e o bafejo dele.<br />
Isto é subir!<br />
Sergio Hollmann<br />
Representam-nos tantas<br />
vezes o anjo da guarda<br />
amparando uma criança<br />
para não tropeçar numa<br />
pedra; e é real. Mas<br />
quanto mais ele a ajuda<br />
a não tropeçar num<br />
erro, e a amar a verdade,<br />
o bem e a beleza!<br />
“Las dos madres”. A pintura de<br />
autoria de Vicente G. Novella retrata<br />
Religiosas Filhas da Caridade<br />
em seu ministério - Museu S.<br />
Pio V, Valência (Espanha).<br />
15
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
À esquerda, Naja oxiana. À direita, “A negação de São Pedro” (detalhe) - Igreja Notre Dame des Fontaines,<br />
La Brigue (França).<br />
Então, procurando se encontra, e assim se produz<br />
também formas de perfeição cada vez maiores. Começam<br />
a aparecer os artistas, os literatos, os pensadores,<br />
os filósofos, os santos, a civilização inteira floresce. É<br />
a Cristandade, a marcha para cima. Num ambiente assim,<br />
em que as pessoas são ávidas disso, cada passo numa<br />
das vias — verdade, bem ou beleza — todo mundo nota:<br />
Olha aquele lá, que vocabulário! E aquele outro, que<br />
maneiras educadas! Aquele outro, que bondade! E aquele<br />
outro, que firmeza no pensar e que coerência! E assim<br />
por diante. E todos os pequenos progressos são notados,<br />
aplaudidos por todo mundo, e tudo na sociedade trabalha<br />
para que a virtude seja fácil de praticar e atraente. É<br />
o desejo de melhorar continuamente.<br />
Às vezes a Revolução apresenta algo<br />
com ares de verum, bonum, pulchrum<br />
No meio disso, que estou apresentando quase como<br />
uma regra implacável, há, entretanto, muito de placável,<br />
que é celestialmente desconcertante. Na vida de todo<br />
mundo que vai seguindo o caminho da ascensão, de<br />
vez em quando se levanta — todos conhecem a cobra tipo<br />
naja, que se ergue e se apresenta ao homem, pondo<br />
a língua e querendo morder —, a semelhança de uma<br />
naja, uma tentação. E essa tentação é algo da Revolução<br />
que procura apresentar-se com ares de verum, bonum,<br />
pulchrum, como quem diz: “Olha, eu tenho até<br />
mais do que o caminho do bem que você está trilhando;<br />
siga-me!” Isso houve em várias épocas da História, como<br />
exemplificarei.<br />
Há também o contrário, no caminho da Revolução:<br />
o verum, bonum e pulchrum às vezes atuam como Nosso<br />
Senhor fez com São Pedro. Jesus parou e olhou para<br />
ele. E alguns fazem como São Pedro: se deixam apanhar<br />
por aquele olhar, convertem-se e choram amargamente.<br />
Os que estão neste auditório, olhando para o tempo em<br />
que não pertenciam ao nosso Movimento — e andavam<br />
por esses caminhos que são descaminhos —, é impossível<br />
não se lembrarem de uma ou outra ocasião, quando<br />
de repente algo de bonum, ou de verum, ou de pulchrum<br />
lhes brilhou mais. Então vacilaram um pouco, mas não<br />
desviaram o caminho; até o momento em que Nossa Senhora<br />
lhes fez aparecer a Vocação.<br />
São as horas terríveis e, ao mesmo tempo, comovedoras<br />
da História. Há ocasiões da História em que o mal<br />
se apresenta sem máscara e diz: “Eu sou o mal! Sigam-<br />
-me!” E as pessoas o seguem. Em outras ocasiões, o mal<br />
se apresenta com aparências de verum, de bonum e de<br />
pulchrum. Olha resplandecente e declara: “Vou fazer<br />
um raciocínio e ninguém conseguirá desmontar!” Ou<br />
então: “Vou praticar um ato de virtude que ninguém<br />
conseguirá imitar!” E faz certo ato. Ou então: “Vou fazer<br />
uma coisa linda, que ninguém poderá copiar nem,<br />
16
menos ainda, exceder!” E funda uma escola artística. E<br />
diz a cada pessoa: “Você não quer verum, ou bonum, ou<br />
pulchrum? Venha comigo, eu lhe dou. Olha isso, aquilo,<br />
aquilo outro!”<br />
Há uma forma do obsessivo nesse convite, semelhante<br />
ao guizo da cascavel. Antes de a cascavel morder ela toca<br />
aquele guizo. Assim também faz o mal: “Olha aqui! Olha<br />
aqui! Olha aqui!”<br />
O princípio da tábula rasa<br />
Estou me lembrando de uma coisa assim, que é um<br />
princípio filosófico o qual se apresenta com uma clareza<br />
extraordinária, mas é uma mentira em nome da qual<br />
não sei quantos despencaram ladeira abaixo. É o princípio<br />
da tábula rasa, que diz: antes de estudar certa coisa,<br />
devo fazer abstração de todos os dados que eu tinha sobre<br />
ela. E antes de julgar, também devo fazer um estudo novo.<br />
Porque o que eu sabia antes pode deformar o meu pensamento.<br />
Vou partir de um grau zero, como uma tábua rasa,<br />
sobre a qual um carpinteiro passou a plaina; aí estou em<br />
condições para ter um pensamento límpido e verdadeiro.<br />
À primeira vista, parece a coisa mais evidente que há.<br />
O indivíduo pensa: “Eu me dispo de preconceitos e faço<br />
um raciocínio sereno”. Aparentemente é de uma verdade<br />
que tem garras, arrasta. Nosso instinto diz: há algo<br />
nisso de falso. Mas se alguém pedir: “Apresente o argumento<br />
verdadeiro contra isso!”, temos que pensar muito<br />
para arranjar um castelo de pequenos argumentos a fim<br />
de mostrar que o princípio da tábula rasa é errado.<br />
Quem é intransigente com relação aos<br />
maus está progredindo na virtude<br />
Mas, quando o mal toma ares de bonum, verum, pulchrum,<br />
é apenas por algum tempo. Pouco depois, ele deixa<br />
a máscara no chão e mostra a careta por inteiro. Mas<br />
o indivíduo já se habituou, se viciou com o mal e aí não<br />
tem mais jeito; ele cede mesmo. Quer dizer, é uma forma<br />
de desnaturar, de corromper, de deteriorar as pessoas.<br />
No fundo, quem segue o mal tem uma sensibilidade<br />
tão fina que, quando o verum, bonum, pulchrum é apresentado<br />
sob máscara, as pessoas, nas épocas de transição,<br />
se comovem e aplaudem esse verum, bonum, pulchrum<br />
falsificado. Aplaudem porque sentem que é falsificado;<br />
percebem ser uma ponte para elas mesmas, sem muito<br />
choque, chegarem ao mal.<br />
Eu termino com esta conclusão: prestem atenção, quem<br />
possui muita percepção para saber quem não presta, tem<br />
vontade de subir. Quem possui pouca percepção para saber<br />
quem não presta, tem vontade de descer. Quem tem muita<br />
moleza com aquele que não presta, é conivente e está descendo.<br />
Quem possui muita intransigência com aquele que<br />
não presta, é bom e está subindo. Essas coisas à distância se<br />
percebem, se discernem. O resto não é senão hipocrisia. v<br />
(Extraído de conferência de 4/4/1981)<br />
1) Caixas em formato cilíndrico colocadas junto às portarias de<br />
conventos e Santas Casas de Misericórdia, destinadas a receber<br />
crianças abandonadas pelos pais.<br />
O verum, bonum e<br />
pulchrum às vezes<br />
atuam como Jesus<br />
com São Pedro: parou<br />
e olhou para ele. E<br />
alguns reagem como<br />
São Pedro: se deixam<br />
apanhar por aquele<br />
olhar, convertem-se e<br />
choram amargamente.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em agosto de 1993.<br />
17
Perspectiva pliniana da história<br />
O espírito das<br />
nações analisado por<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> - II<br />
Com um senso psicológico aplicado não só aos indivíduos, mas<br />
também aos povos, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> descreve de modo vivaz e atraente o<br />
espírito português, o espanhol, o italiano e o francês, e discorre sobre<br />
algumas características do espírito germânico, acenando para a síntese<br />
austríaca que se encontra no píncaro do espírito alemão.<br />
Pelo que foi exposto 1 , compreendemos o que é<br />
uma nação e entrevemos a grandeza de Deus ao<br />
criar os homens e dividi-los em nações etc. Vejamos<br />
agora algo sobre a leveza especial do espírito latino.<br />
Vamos, em ordem geográfica, começar pela orla de<br />
Portugal e terminar na Itália. Deixo a França um pouco<br />
de lado, porque ela serve de transição para o mundo<br />
alemão. A França é um feliz encontro dos latinos com os<br />
alemães; é uma composição especial da qual falarei daqui<br />
a pouco.<br />
O suave Portugal<br />
Entre os brasileiros, não há uma ideia muito<br />
completa a respeito dos portugueses; na linguagem<br />
corrente — claro que o brasileiro mais culto<br />
sabe que não é assim!—, o português que representa<br />
Portugal é o comerciante bem sucedido,<br />
mais do que o industrial; porque os lusitanos não<br />
vão muito para a indústria e sim para o comércio, e<br />
no sistema pão, pão, queijo, queijo, do qual gostam<br />
bastante. E o comerciante português típico, bem sucedido,<br />
não é o que está num escritório, mas aquele que<br />
tem contato com o público, ou seja, o vendeiro. Esse é o<br />
português que o brasileiro conhecia.<br />
E há uns trinta anos atrás, quando esse folclore se<br />
constituiu, o português característico era forte, saudável,<br />
vendendo saúde, cor de arrebentar de vitalidade, bigode<br />
à la Rei Dom Carlos 2 , ainda formando uma voltinha<br />
para cima em ambos os lados, sobrancelhas espessas,<br />
olhos mais tendentes a castanho-escuros ou pretos, cabelo<br />
também castanho-escuro ou preto, permanecendo<br />
junto a sua máquina registradora, mais ou menos como<br />
Entardecer na Torre de Belém, Lisboa.<br />
Paulo Mikio<br />
18
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conversa na<br />
sala de visitas de sua residência.<br />
19
Perspectiva pliniana da história<br />
um ente mitológico por detrás dos acontecimentos que<br />
regem o mundo.<br />
Na parede de seu estabelecimento comercial, um letreiro:<br />
“Não se vende fiado”. Quando o português gira a<br />
máquina registradora, esta faz aquele característico barulho,<br />
projeta uma gaveta e ele preside aqueles sons com<br />
a compenetração de um chefe de orquestra; depois dá o<br />
troco, encaixa o que quer, fecha a gaveta, o freguês vai<br />
embora e ele continua tranquilo. E o dinheiro vai se acumulando...<br />
O português tem ou não essa leveza característica do<br />
espírito latino?<br />
Basta ler descrições de Eça de Queiroz, por exemplo,<br />
e ver como os mil matizes da alma portuguesa são bem<br />
expressos, em palavras rápidas; e numa página ele faz o<br />
leitor viver como se tivesse estado dez anos em Portugal.<br />
Compreendemos então que isso é o próprio do gênio<br />
latino: em poucas palavras pintar mil coisas, encher<br />
de matizes, arrancar um sorriso, um comprazimento ou<br />
uma emoção e passar para adiante, tendo deixado tudo<br />
bem posto do ponto de vista lógico; porque o latino é lógico<br />
e, no fundo de sua aparente desordem, ele quer que<br />
as coisas estejam em ordem.<br />
É o modo suave, doce — nós brasileiros pretendemos<br />
ter herdado muito disso, e creio que herdamos —, mas<br />
amistoso, benévolo, sem barulheira, com que o português<br />
faz as coisas e está presente, com sua especial nota,<br />
dentro do estilo latino em geral.<br />
Por exemplo, a Torre de Belém. Ela de fato domina<br />
o Tejo, porém mais faz sonhar do que faz fugir. Quem<br />
vê a Torre de Belém nem tanto tem medo, quanto se encanta<br />
e fica desarmado. Ela é nobre, delicada, alva, bela,<br />
digna. Quem ousará lançar um tiro de canhão contra<br />
aquilo? Ela está psy-defendida contra o canhão. É preciso<br />
ser muito mau para derrubar uma coisa daquelas.<br />
É Portugal!<br />
A Espanha heroica<br />
A Espanha é bem diversa. É a nação da movimentação,<br />
da agilidade, da penetração, do espírito engraçado<br />
que cutuca, pula para cima, esparrama, critica, caustica,<br />
brilha ao sol, combate e que conserva uma certa alegria<br />
de ser ela mesma até no momento em que oferece os<br />
maiores holocaustos.<br />
Não poderei me esquecer de uma fotografia de um espanhol<br />
sendo fuzilado. Nem me lembro por que estavam<br />
fuzilando esse homem. Não era desse tipo de europeu<br />
grandão, mas pequeno — não chegava a ser miúdo —,<br />
cabelo preto, de uns 40 anos para 50, barbicha, pele ligeiramente<br />
dada a moreno e olhando para o pelotão de execução.<br />
E acima o letreiro: Nosotros hemos hecho un pacto<br />
con la muerte! Notava-se que ele sentia a dignidade de<br />
morrer, e tinha a alegria de viver esta coisa especial que<br />
é morrer. Ele morria contente. Uma coisa especial; era<br />
preciso ter visto para se fazer uma ideia do que é.<br />
O chiste espanhol, o provérbio espanhol, a graça espanhola,<br />
a dança espanhola, tudo tem um referver que é<br />
a mesma vitalidade latina apresentada em outro ângulo.<br />
Enquanto Portugal é todo doce, embora saibamos que<br />
não vende fiado, a Espanha é toda heroica. Com uma<br />
ressalva! Eu conheci alguns espanhóis muito politiqueiros;<br />
dois ou três desses são dos melhores politiqueiros<br />
que conheci em minha vida. Heroísmo, heroísmo, e de<br />
repente sai um politiqueiro do meio; é preciso tomar cuidado!<br />
E esse faz como serpente o que os outros realizam<br />
como dançarinos ou como toureiros. Mas são poucos e<br />
constituem exceções dentro da grei heroica.<br />
Sergio Hollmann<br />
Lide de capote durante uma tourada na Praça de Touros Monumental de Barcelona (Espanha).<br />
20
G.dallorto<br />
A índole italiana, marcada<br />
a fundo pela Renascença,<br />
parece dar saltos para<br />
alcançar o ápice do que<br />
seria o Céu na Terra.<br />
Cena representando alguns típicos<br />
personagens napolitanos, entre<br />
eles, dançarinos de Tarantella.<br />
A artística Itália<br />
Agora, é a Itália que entra em cena, tocando a Tarantella!<br />
3<br />
Quão diferente, quão imaginosa, quão artística! E<br />
quão posta em duas vidas: o imaginar um mundo como<br />
poderia ser conforme os sonhos dos italianos, e a realidade<br />
concreta dentro da qual eles entram com muito senso<br />
da realidade! E levam quase que duas vidas paralelas.<br />
O senso da arte e o senso do comércio formam ali<br />
uma competição em que não se sabe bem quem é o vencedor.<br />
E o indivíduo, após ter dado uma tacada na indústria,<br />
cantarola; depois de cantarolar, ele vê se o bolso está<br />
cheio e vai fazer negócios. Nisso há um duplo movimento<br />
de vivacidade, que não é o velho estilo imperial<br />
romano.<br />
A canção, a arte italiana, tem também uma forma especial,<br />
mas diferente, de leveza.<br />
Enquanto o espanhol parece dar saltos para atingir o<br />
Céu sobrenatural, a índole italiana, marcada a fundo pela<br />
Renascença, parece dar saltos para alcançar o ápice<br />
do que seria o Céu na Terra. A vida gostosa, alegre, a bonomia,<br />
a brincadeira, a fraternidade, a graça, a arte para<br />
ornar tudo, para fazer desta vida a coisa mais prazerosa<br />
possível, e realizando uma coisa realmente notável, magnífica,<br />
única no seu gênero, mas que já não é o espírito<br />
espanhol, não é o estilo português.<br />
É uma outra coisa, que fez da Itália a matriz de todas<br />
as artes do Ocidente. Tudo que veio da Renascença para<br />
cá se inspirou na Itália. A marca da Itália foi colocada<br />
no mundo inteiro, o que os italianos conseguiram sem<br />
ganhar grandes batalhas — nunca se interessaram muito<br />
pelo gênero. Sem formar um grande império como o<br />
Império Romano, a influência artística italiana foi muito<br />
mais longe do que a influência artística romana. E o<br />
império cultural italiano muito maior do que o império<br />
cultural romano. Uma grande nação, com uma expressão<br />
enorme na História do mundo. E que imensa expressão<br />
na História da Igreja! A Igreja tem sua sede fixada<br />
em Roma, que é como um chafariz de influência italiana<br />
no mundo inteiro. Percebem-se as mil diversidades tão<br />
grandes do gênio italiano, que é quase impossível conter<br />
numa exposição só.<br />
França: ponto de encontro da<br />
latinidade e do mundo germânico<br />
E para se chegar ao mundo germânico, é preciso passar<br />
pela França. A Áustria fica para depois. Mais ou menos<br />
como quando se vai subindo uma torre... O alto dela<br />
fica para depois.<br />
A França tem um pouco de tudo. Na gentileza aparece<br />
algo da bondade portuguesa; no mosqueteiro francês, algo<br />
do garbo espanhol; na arte francesa, algo do gosto italiano;<br />
na lógica especial e apertada do espírito francês,<br />
aparece algo do gênio alemão. É o ponto de encontro da<br />
latinidade e do mundo germânico, que formou um conjunto<br />
mais ou menos indefinível: a França.<br />
Como a Itália, a França possui tantos aspectos, tantas<br />
características, é tão elogiável por diversos lados, que<br />
não se sabe bem por onde começar. Falaríamos da França<br />
das catedrais e dos castelos, da França do Ancien Régime<br />
4 , da França do século XIX... E também da arquitetura,<br />
da pintura, da escultura, da literatura, da música francesa.<br />
Depois de comentarmos tudo isso, ficaríamos com<br />
a sensação de não ter falado do essencial, que é o espírito<br />
francês, a alma francesa, que se exprime melhor pe-<br />
21
Perspectiva pliniana da história<br />
Dario Sanches<br />
Lembro-me do colibri quando<br />
vem com aquele bico comprido<br />
picar uma flor. Esvoaça de<br />
modo gracioso, brilha com<br />
as penas ao sol e depois sai<br />
levando consigo o néctar que<br />
ele queria. Assim também é<br />
o dito do espírito francês.<br />
Beija-flor-roxo (Hylocharis cyanus).<br />
las migalhas do convívio cotidiano do que em todas essas<br />
coisas. É preciso vê-los agir.<br />
Victor Hugo e o espírito francês<br />
Como já falei muito desse tema e não é necessário<br />
aprofundar, eu conto um fatinho, no qual está todo o resto.<br />
Um príncipe da Casa de Napoleão mandou para Victor<br />
Hugo — grande literato francês do século XIX — um<br />
livro com poesias compostas por ele, príncipe, que escreveu:<br />
“Monsieur Hugo, estas são umas pequenas poesias<br />
que eu compus em pequenos tempos livres. Estarão tão<br />
ruins assim?” E as poesias eram péssimas!<br />
Victor Hugo não teve dúvida: dardejou a resposta em<br />
cima do príncipe. A resposta, para se analisar a frio, seria<br />
embaraçosa. Porque ele era meio chegado ao mundo<br />
do bonapartismo e não queria, portanto, esfriar as relações<br />
que tinha com esse lado. Se Victor Hugo dissesse<br />
que as poesias eram péssimas, seria um fator negativo<br />
para o estilo de relações que ele queria ter. Portanto,<br />
ele não podia afirmar isso. Mas, por outro lado, não<br />
podia dizer que eram bonitas porque o príncipe lançava<br />
uma outra edição, com o elogio do Victor Hugo; e assim<br />
o desacreditava como literato. Inimigos de Victor Hugo,<br />
e também elementos do bonapartismo, cairiam em cima<br />
dele e comentariam: “Vejam só, um príncipe fez poesias<br />
‘pé quebrado’, as quais não valem dois caracóis, e o Hugo,<br />
que é meio bonapartista, fez tais elogios! Esse livro<br />
não vale nada por causa disso, daquilo, daquilo outro.”<br />
Então Victor Hugo precisava arranjar uma saída em<br />
que pusesse o príncipe no lugar, mas não desprezasse<br />
o príncipe, para continuarem amigos. Ele deu uma resposta<br />
que reputo eminentemente francesa; e em vez de<br />
descrever o espírito francês, com isso eu apresento uma<br />
amostra do espírito francês. Não é uma obra prima! Vale<br />
porque isso é uma coisa frequente na França. Se não<br />
fosse frequente, não estava tão bem amostrado o espírito<br />
francês.<br />
Diz Victor Hugo: “Monseigneur, pergunto a Vossa Alteza<br />
o que acharia se eu quisesse ser príncipe nas minhas<br />
horas vagas.”<br />
Não vou dizer que todo o talento de Victor Hugo se<br />
manifestou aí. É frequente na França saírem coisas dessas.<br />
Tanto é que a revista na qual li esse fato publicou-<br />
-o numa seção chamada: “Ditos chistosos”. Eu reputei<br />
uma obra prima de gentileza, com uma impertinência<br />
um pouco salgada que faz sorrir. Porque ele se colocou<br />
tão abaixo de um príncipe, que deixa o príncipe à vontade.<br />
Mas deu tal estocada no príncipe que este nunca mais<br />
escreveu!<br />
Mas vejam como a frase é pensada dentro da rapidez.<br />
Das várias coisas que se desprendem do que Victor Hugo<br />
disse para o príncipe, uma delas, escrita em outros termos,<br />
é a seguinte: “Por que o senhor quer ser escritor<br />
quando é príncipe? Ser um verdadeiro príncipe toma a<br />
vida de um homem. Viva a sua que eu vivo a minha!” De<br />
fato, quando Victor Hugo diz que não se pode ser príncipe<br />
nas horas vagas, ele dá a entender que isso exige um<br />
maintien, uma atenção, um esforço da vida inteira. Portanto,<br />
ele coloca alto aos olhos do príncipe a condição<br />
principesca, e mostra como ficaria sem jeito em ser príncipe.<br />
Apesar disso, pam! na cabeça do príncipe!<br />
Tenho a impressão que poderíamos escrever várias folhas<br />
de papel com os diversos aspectos desse pequeno dito.<br />
E é pena que eu não tenha boa memória, porque coisas<br />
dessas ao longo de minha vida li ou notei às cente-<br />
22
O espírito alemão tem os<br />
lados positivos, que são<br />
magníficos. E os lados<br />
brumosos, para quem sabe<br />
vê-los no amor ao mistério,<br />
também o são. Por cima está<br />
a síntese austríaca, brilhando<br />
acima da nuvem e do monte.<br />
Böhringer böhringer friedrich<br />
Panorama nevado em Dornbirn, Áustria.<br />
nas. Elas vão enxameando charmes e graças que, a meu<br />
ver, são das ótimas distrações que o espírito humano pode<br />
ter.<br />
Para comparar a algo, lembro-me do colibri quando<br />
vem com aquele bico comprido picar uma flor. Esvoaça<br />
de modo gracioso, brilha com as penas ao sol e “tchum!”<br />
Depois sai levando consigo o néctar que ele queria. Assim<br />
também é o dito do espírito francês.<br />
Áustria: píncaro do mundo alemão<br />
Há pouco eu estava lendo um livro francês, aliás, interessante,<br />
mas o autor não tem o grande voo do espírito<br />
francês. Ele cita um dito oriental, muito bem pensado,<br />
razoável — sobre o qual farei uma apreciação minúscula<br />
—, que é o seguinte: “A mesma afirmação que<br />
um tolo leva um minuto para fazer, um homem criterioso<br />
pode levar um ano para refutar.” É bem verdade,<br />
mas a afirmação não tem a graça francesa. É conciso,<br />
mas não ficamos alegres. Não sorrimos, não temos ideia<br />
de ter comido um bombom com licor.<br />
Ele informa que é um dito oriental, mas não indica de<br />
que nação. A coisa francesa é bombom com licor. Acabou,<br />
é única! Não adianta ficarmos com raiva, achando<br />
que nossa nação está mal compreendida, porque Deus<br />
deu a quem quis, e quis dar aos franceses. Diríamos que<br />
o espírito latino, o espírito germânico e o espírito anglo-saxão<br />
— se quiserem fazer a distinção — se encontram<br />
na França, a qual é guirlanda disso; vale mais do<br />
que qualquer dos lances da guirlanda, ou qualquer das<br />
flores. A guirlanda gira tão depressa que não se percebe<br />
bem quem é o latino, quem é o germânico, quem é o anglo-saxão.<br />
É o francês! Uma coisa magnífica!<br />
A grande e respeitada, querida e nobremente brumosa<br />
Alemanha ficou de lado. Mais ou menos como<br />
certas montanhas, que são tão altas e atravessam as nuvens<br />
— vê-se a montanha, uma bela bruma e depois o<br />
píncaro —, assim eu contemplo o mundo alemão, com<br />
a Áustria.<br />
O espírito alemão tem os lados positivos, que são<br />
magníficos. E os lados brumosos, para quem sabe vê-<br />
-los no amor ao mistério, também são magníficos. Por<br />
cima está a síntese austríaca, brilhando acima da nuvem<br />
e do monte.<br />
Isto ficará para outra conferência. Falaremos do espírito<br />
germânico, do espírito sul-americano, hispano-<br />
-americano, luso-americano, fazendo as distinções; e<br />
um pouco dos eslavos. Quem sabe se trataremos até dos<br />
japoneses e dos chineses?<br />
Por enquanto, nós ficamos aqui. Não pretendo ter<br />
descrito essas nações, mas sim evocado algumas coisas<br />
que se podem sentir delas, de seus espíritos. É, portanto,<br />
mais como quem partilha recordações do que diz coisas<br />
novas, que eu fiz esse voo sobre as várias nações. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 21/2/1981)<br />
1) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n.178, Janeiro de 2013, p. 16-21.<br />
2) Dom Carlos I, Rei de Portugal (28/9/1863 – 1/2/1908).<br />
3) Dança popular típica do sul da Itália. Possui um ritmo vivaz<br />
cuja velocidade aumenta no decorrer da execução.<br />
4) Sistema social e político aristocrático em vigor na França<br />
entre os séculos XVI e XVIII.<br />
23
C<br />
alendário<br />
dos Santos – ––––––<br />
1. Bem-aventuradas Maria Ana Vaillot, Odília Baumgarten<br />
e companheiras, Mártires. († <strong>179</strong>4). Religiosas da<br />
Companhia das Filhas da Caridade. Serviam no Hospital<br />
São João, em Angers (França) quando irrompeu a Revolução<br />
Francesa. Por se terem recusado a proferir um juramento<br />
ímpio e a abandonar o estado religioso foram fuziladas<br />
com outras 45 companheiras.<br />
7. Bem-aventurada Eugênia Maria Josefina Smet (Maria<br />
da Providência), Virgem († 1871). Desde jovem caracterizou-se<br />
por sua inteira confiança na Divina Providência<br />
e pelo zelo para com as almas do Purgatório. Aconselhada<br />
pelo Santo Cura d’Ars e pelo Beato Pio IX fundou a<br />
congregação das Madres Auxiliadoras das Almas do Purgatório.<br />
2. Apresentação do Senhor.<br />
Beata Maria Domênica Mantovani, Virgem († 1934).<br />
Fundadora, com o Beato José Nascimbeni, das Irmãs da<br />
Sagrada Família.<br />
3. IV Domingo do Tempo Comum.<br />
Santo Oscar (Anscário), Bispo († 865). Monge beneditino,<br />
evangelizou a Dinamarca e a Suécia. Foi Bispo de<br />
Hamburgo e de Bremen.<br />
4. São José de Leonessa, Presbítero († 1612). Tendo ingressado<br />
na Ordem dos Capuchinhos, foi ordenado sacerdote<br />
e enviado como missionário a Constantinopla. Ali,<br />
aprisionado pelos Turcos por haver tentado pregar ao próprio<br />
Sultão, sofreu terríveis suplícios. De volta à Itália distinguiu-se<br />
por seu zelo para com os pobres.<br />
5. Santa Águeda, Virgem e Mártir († 251).<br />
São Felipe de Jesus, Religioso e Mártir († 1597). Mexicano,<br />
aos 18 anos embarcou para as Filipinas onde se fez<br />
frade franciscano. Em 1596, quando retornava ao México<br />
para ser ordenado sacerdote, as tormentas arremessaram<br />
seu barco para as costas do Japão. Levado prisioneiro com<br />
um grupo de cristãos japoneses para Nagasaki, foi torturado<br />
e morto.<br />
6. Santos Paulo Miki e companheiros, Mártires (†<br />
1597). Leigos japoneses terceiros franciscanos crucificados<br />
em Nagasaki após muitas torturas e humilhações.<br />
8. Santa Josefina Bakhita, Virgem († 1947). Durante<br />
anos padeceu os sofrimentos físicos e morais de uma dura<br />
escravidão. Batizada em 9 de janeiro de 1890, encontrou<br />
a “liberdade dos filhos de Deus” consagrando-se, seis<br />
anos depois, ao serviço do mesmo Deus no Instituto de<br />
Santa Madalena de Canossa. Foi a primeira sudanesa canonizada.<br />
9. Bem-aventurada Ana Catarina Emmerich, Virgem<br />
(† 1824). Religiosa agostiniana e mística alemã.<br />
10. V Domingo do Tempo Comum.<br />
Santa Escolástica, Virgem († 543). Fundadora do ramo<br />
feminino da Ordem de São Bento, de quem era irmã<br />
e discípula.<br />
São Guilherme de Malavale, Eremita († 1157). Teve<br />
uma juventude dedicada às artes militares e ao mundanismo.<br />
Atribui-se sua conversão a São Bernardo, sob cuja<br />
inspiração retirou-se a um bosque. Terminado este retiro<br />
espiritual, Guilherme procurou o Papa Urbano II, pediu<br />
perdão de seus pecados e seguiu em peregrinação a<br />
Jerusalém. Retornando à Itália, entregou-se à vida eremítica<br />
na floresta de Malavale, na Toscana. Seu exemplo<br />
inspirou, após sua morte, a fundação da Ordem dos Guilhermitas.<br />
11. Nossa Senhora de Lourdes.<br />
São Gregório II, Papa († 731). Durante seu pontificado,<br />
enviou São Bonifácio à Alemanha e apoiou sua<br />
missão evangelizadora. Combateu a heresia dos iconoclastas.<br />
12. Santa Eulália, Virgem e Mártir († 304). Foi supliciada<br />
por meio de tochas incandescentes durante a perseguição<br />
promovida por Maximiano.<br />
Martírio<br />
de São<br />
Paulo Miki e<br />
companheiros.<br />
13. Quarta-feira de Cinzas.<br />
São Jordão da Saxônia, Presbítero († 1237). Dominicano,<br />
contemporâneo de São Domingos de Gusmão, deu<br />
grande impulso à Ordem dos Pregadores após a morte de<br />
seu Fundador.<br />
24
––––––––––––––– * Fevereiro * ––––<br />
14. Beato Vicente Vilar David, Mártir († 1937). Leigo<br />
casado, fiel adorador do Santíssimo Sacramento. Acolhia<br />
em sua casa sacerdotes e religiosos perseguidos durante a<br />
guerra civil espanhola. Foi julgado sumariamente por um<br />
tribunal popular e assassinado por se negar a renunciar a<br />
sua Fé.<br />
15. Santos Faustino e Jovita, Mártires († séc. II). Irmãos<br />
de sangue que pregaram ardorosamente a Fé cristã<br />
na Lombardia durante a perseguição decretada pelos imperadores<br />
Trajano e Adriano. Após atrozes torturas, foram<br />
decapitados.<br />
16. Santos Elias, Jeremias, Isaías, Samuel e Daniel,<br />
Mártires († 309). Jovens cristãos egípcios que, sob o imperador<br />
Galério Maximiano, foram aprisionados pelo prefeito<br />
Firmiliano por prestarem auxílio aos confessores condenados<br />
às minas. Foram decapitados após terem padecido<br />
terríveis tormentos.<br />
17. I Domingo da Quaresma.<br />
São Pedro Yu Chǒng-nyul, Mártir († 1839). Jovem leigo,<br />
martirizado na Coreia aos 13 anos de idade. Exortava<br />
seus companheiros de prisão a suportarem com valentia<br />
os sofrimentos. Depois de receber cem acoites, foi estrangulado.<br />
18. Santa Gertrudes (Catarina) Comensoli, Virgem (†<br />
1903). Fundou em Bergamo, Itália, uma congregação de<br />
religiosas adoradoras do Santíssimo Sacramento e dedicadas<br />
à educação da juventude.<br />
19. São Mansueto, Bispo († c. 680). Lutou firmemente<br />
contra a heresia monotelista. Neste sentido interveio no<br />
Concílio de Roma, realizado em março de 680.<br />
20. Bem-aventurados Francisco Marto († 1919) e Jacinta<br />
Marto († 1920). Videntes de Fátima. Ver página 26.<br />
21. Bem-aventurado Tomás Portmort, Presbítero e<br />
Mártir († 1592). Durante o reinado de Isabel I da Inglaterra,<br />
foi encarcerado por ser sacerdote e, depois, enforcado<br />
perto da Catedral de St. Paul, em Londres.<br />
22. Cátedra de São Pedro. Ver página 10.<br />
Beata Maria de Jesus (Emília) d’Outremont, Viúva<br />
e Religiosa († 1878). Mãe de quatro filhos, ao ficar viúva<br />
fundou e dirigiu a Sociedade das Irmãs de Maria Reparadora,<br />
sem descuidar dos deveres maternos e superando várias<br />
enfermidades, sempre<br />
confiando no auxílio<br />
divino.<br />
23. São Policarpo,<br />
Bispo e Mártir († c. 155).<br />
São Sireno (Sinério),<br />
Mártir († c. 307). Exercia<br />
o ofício de hortelão.<br />
Denunciado por uma<br />
mulher a quem havia reprovado<br />
a lascívia, foi<br />
decapitado por declarar<br />
sua Fé cristã e ter-se negado<br />
a sacrificar aos ídolos.<br />
Imagem de Santa<br />
Escolástica. Mosteiro de<br />
Monte Cassino, Itália.<br />
24. II Domingo da<br />
Quaresma.<br />
Beata Josefa Naval<br />
Girbés, Virgem (†<br />
1893). Nasceu em Algemesí,<br />
região de Valência,<br />
em 1820. Vivendo no século, consagrou-se a Deus e<br />
dedicou-se à catequese de crianças.<br />
25. Santos Luís Versiglia, Bispo, e Calixto Caravario,<br />
Presbitero, Mártires († 1930). Aos 12 anos, Luís conheceu<br />
São João Bosco com quem conviveu por dois anos e meio.<br />
Missionários salesianos na China, São Luís e São Calixto<br />
sofreram o martírio devido a sua ação pastoral junto às almas<br />
a eles confiadas.<br />
26. São Leandro de Sevilla, Bispo († c. 600). Irmão de<br />
Santo Isidoro, São Fulgêncio e Santa Florentina, São Leandro<br />
converteu os visigodos da heresia ariana para a Fé<br />
católica, com o auxílio do Rei Recaredo.<br />
27. Santa Ana Line, Viúva e Mártir († 1601). Tendo seu<br />
marido falecido no desterro por ser católico, Santa Ana<br />
ofereceu sua casa, em Londres, para acolher sacerdotes.<br />
Por isso foi enforcada em Tyburn, sob o reinado de Isabel<br />
I.<br />
28. Beato Timóteo (Stanislaw Tymoteusz) Trojanowski,<br />
Presbítero e Mártir († 1942). Sacerdote franciscano, Beato<br />
Timóteo consumou seu martírio no campo de concentração<br />
de Auschwitz (Polônia), dilacerado pelos suplícios por<br />
haver confessado a Fé cristã.<br />
25
Hagiografia<br />
Os pastorinhos de Fátima<br />
Que maravilhas da graça se operaram nos corações de Jacinta e<br />
Francisco por ocasião de seus encontros com a Santíssima Virgem? Que<br />
virtudes a ação da celeste Senhora fez desabrochar naquelas humildes<br />
crianças? No presente artigo <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nos dá a resposta desvendando<br />
algo do Segredo de Maria ao constatar a vitória do Imaculado Coração<br />
de Maria nas almas dos dois videntes de Fátima.<br />
Há uma ficha para nós comentarmos aqui: “Última<br />
aparição de Nossa Senhora em Fátima”,<br />
do Pe. João M. de Marchi, IMC, no livro: “Era<br />
uma Senhora mais brilhante que o sol” 1 .<br />
A verdadeira diretora espiritual das crianças foi, todavia,<br />
essencialmente Nossa Senhora. Falo das crianças: Jacinta,<br />
Francisco e Lúcia.<br />
A bondosa Senhora da Cova da Iria tomou à sua conta<br />
a realização desta obra-prima. E como não podia deixar<br />
de ser, levou a cabo com pleno êxito. Das suas mãos prodigiosas<br />
saíram três anjos revestidos de carne, mas que ao<br />
mesmo tempo eram três autênticos heróis. A matéria-prima<br />
era de uma plasticidade admirável. E da Artista, que<br />
mais dizer?<br />
Na sua escola, os três serranitos deram, em breve tempo,<br />
passadas de gigante no caminho da perfeição. Neles se<br />
verificou, à letra, as palavras de um grande devoto de Maria,<br />
o Beato Grignion de Montfort: “Na escola da Virgem<br />
a alma progride mais numa semana do que em um ano fora<br />
dela”. A pedagogia da Mãe de Deus não sofre confrontos.<br />
Em dois anos, a Virgem Santíssima conseguiu erguer<br />
os dois irmãozitos, Francisco e Jacinta, até os cumes mais<br />
elevados da santidade cristã.<br />
O retrato que a mão segura de Lúcia nos traça sobre Jacinta<br />
é revelador: “A Jacinta tinha um porte sempre sério,<br />
modesto e amável que parecia traduzir a presença de Deus<br />
em todos os seus atos. Próprio das pessoas já avançadas<br />
em idade e de grande virtude. Não lhe vi nunca aquela demasiada<br />
leviandade e o entusiasmo próprio das crianças<br />
pelos enfeites e brincadeiras isto depois das aparições).<br />
Não posso dizer, que as outras crianças corressem para<br />
junto dela, como faziam para junto de mim. E isto talvez<br />
porque ela não sabia tanta cantiga e historieta para lhes<br />
ensinar e as entreter, ou então porque a seriedade de seu<br />
porte era demasiado superior à sua idade. Se na sua presença<br />
alguma criança, ou mesmo pessoas grandes, diziam<br />
alguma coisa ou faziam qualquer ação menos conveniente,<br />
repreendia-as dizendo: “Não façam isso, que ofendem a<br />
Deus Nosso Senhor. E Ele já está tão ofendido!” (...)<br />
Francisco sentia-se atraído por uma vida de asceta e de<br />
contemplativo. Frequentemente desaparecia da vista das<br />
duas meninas, mantendo-se em lugares ermos e ficava a<br />
pensar.<br />
— Que estavas aqui a fazer há tanto tempo? Perguntou-<br />
-lhe Lúcia.<br />
— Estava a pensar em Deus que está tão triste por causa<br />
dos muitos pecados! Se eu pudesse O consolar! Jesus<br />
está tão triste e eu quero confortá-lo com oração e penitência.<br />
Em outra ocasião dizia: “Gosto muito de Deus. Mas<br />
Ele está tão triste por causa de tantos pecados. Nós não devemos<br />
fazer nem o mais pequeno pecado!”<br />
Um dia em que a Lúcia cedeu às instâncias das amiguinhas<br />
para tomar parte em divertimentos próprios da idade,<br />
Francisco chamou-a de lado e disse-lhe muito sério:<br />
— Então tu voltas a essas brincadeiras depois de Nossa<br />
Senhora nos ter aparecido?<br />
— Então, pediram-me tanto!... — escusava-se a Lúcia.<br />
Mas o Francisco lógico e severo lhe retorquia:<br />
— Toda a gente sabe que Nossa Senhora te apareceu,<br />
então não devem estranhar que tu já não queiras bailar!...<br />
Trata-se aqui daquele bailado português em que as<br />
pessoas se tocam com as mãos. São aquelas figuras de<br />
bailado camponês.<br />
26
e o Segredo de Maria<br />
Se a obra de Nossa Senhora<br />
com essas duas crianças<br />
chamadas para o Céu foi<br />
assim, nós podemos nos<br />
perguntar se isto não<br />
indica qual vai ser a ação<br />
de Nossa Senhora sobre<br />
toda a Humanidade quando<br />
Ela cumprir as promessas<br />
feitas em Fátima.<br />
Santuário de Fátima, Portugal.<br />
V. Domingues<br />
27
Hagiografia<br />
Nós temos aqui algo de<br />
parecido com o Segredo de<br />
Maria. Uma dessas ações<br />
profundas da graça na alma<br />
que se desenvolvem sem a<br />
pessoa dar-se conta. Ela<br />
cresce em amor de Deus e em<br />
oposição ao pecado, mas tudo<br />
isso se dá maravilhosamente<br />
dentro da alma.<br />
J. P. Rodrigues<br />
Imagem representando Nossa<br />
Senhora de Fátima em uma de suas<br />
aparições, quando mostrou aos<br />
videntes seu Imaculado Coração.<br />
As crianças aproveitavam as entradas e as saídas das<br />
escolas para irem visitar Nosso Senhor, passando longas<br />
horas ao pé do Tabernáculo.<br />
A Jacinta e o Francisco, sobretudo, que tinham a promessa<br />
da Virgem de os vir buscar, em breve, para o Céu<br />
e que, portanto, se julgavam dispensados das lições, recolhiam-se<br />
mais vezes na igreja a falar a sós com “o Jesus escondido”.<br />
Jesus escondido é o nome com o que chamavam a Eucaristia.<br />
Jacinta dizia a Lúcia:<br />
— Já fizestes hoje muitos sacrifícios? Eu fiz muitos. Rezei<br />
também muitas jaculatórias. Gosto tanto de Nosso Senhor<br />
e de Nossa Senhora que nunca me canso de Lhes dizer<br />
que Os amo. Quando eu Lhes o digo muitas vezes, parece<br />
que tenho lume no peito, mas não me queima.<br />
Outras vezes:<br />
— Olha Lúcia, Nossa Senhora veio nos ver esses dias.<br />
E veio dizer que vem buscar o Francisco muito breve para<br />
o Céu. E a mim, perguntou-me se ainda queria converter<br />
mais pecadores. Disse-lhe que sim. Ela disse-me então<br />
que quer que eu vá para dois hospitais, mas não é para<br />
me curar. É para sofrer mais por amor de Deus, pela conversão<br />
dos pecadores, em desagravo das ofensas cometidas<br />
contra o Coração Imaculado de Maria. Disse-me que<br />
tu não irias, que iria lá minha mãe levar-me e que depois<br />
ficaria sozinha.<br />
Tempos depois, Francisco para Lúcia:<br />
— Estou muito mal, falta-me pouco para ir para o Céu.<br />
Lúcia:<br />
— Então vê lá, não te esqueças de lá pedir muito pelos<br />
pecadores, pelo Santo Padre, por mim, e pela Jacinta.<br />
Francisco:<br />
— Sim, eu peço. Mas que essas coisas peças antes à Jacinta,<br />
que eu tenho medo de me esquecer, quando vir a<br />
Nosso Senhor. E depois, antes O quero consolar.<br />
Na obra de Nossa Senhora com os videntes<br />
de Fátima, um começo do triunfo do<br />
Imaculado Coração de Maria nas almas<br />
Esta ficha tem uma graça marcante, porque ela nos<br />
indica uma porção de aspectos grandes e pequenos da<br />
obra de Nossa Senhora com estas três crianças.<br />
Mas nós devemos, antes de tudo, considerar o valor<br />
simbólico da obra de Nossa Senhora nas crianças. Enganam-se<br />
aqueles que imaginam ser apenas uma obra sobre<br />
três crianças. É uma obra que transformou suavemente<br />
essas crianças de um momento para outro, pelo<br />
simples fato das reiteradas aparições de Nossa Senhora.<br />
28
Com uma dessas crianças até, Nossa Senhora disse<br />
estar aborrecida. E esta criança era o Francisco, que não<br />
ouviu Nossa Senhora por causa disso. E, portanto, pode<br />
ser considerado um convertido. As três mudaram extraordinariamente<br />
em consequência das revelações.<br />
Nós temos aqui algo de parecido com o Segredo de<br />
Maria. Quer dizer, uma dessas ações profundas da graça<br />
na alma, ações que se desenvolvem sem a pessoa dar-se<br />
conta. Ela vai sentindo-se cada vez mais livre, cada vez<br />
mais desembaraçada para praticar o bem, e os defeitos<br />
que a tolhem e a prendem no mal vão se dissolvendo. E a<br />
pessoa cresce em amor de Deus, cresce em vontade de se<br />
dedicar, cresce em oposição ao pecado, mas tudo isso se<br />
dá maravilhosamente dentro da alma.<br />
De maneira que a alma não trava as grandes e metódicas<br />
batalhas da ascensão admirável ao Céu, à virtude,<br />
à santidade, daqueles que lutam de acordo com o sistema<br />
clássico da vida espiritual; mas Nossa Senhora as<br />
transforma de um momento para o outro. E se a obra<br />
de Nossa Senhora em Fátima — especialmente com essas<br />
duas crianças chamadas para o Céu — foi assim, nós<br />
podemos bem nos perguntar se isto não tem um valor<br />
simbólico, e se não indica qual vai ser a ação de Nossa<br />
Senhora sobre toda a Humanidade quando Ela cumprir<br />
as promessas feitas em Fátima, e se não é lícito prever o<br />
cumprimento das promessas de Fátima executado à maneira<br />
do ocorrido com Jacinta e Francisco, mais notadamente,<br />
como cogita esta nossa ficha.<br />
E, portanto, se nós não devemos ver aí um começo,<br />
podemos ver um dos múltiplos começos — porque as<br />
coisas enormes têm muitos começos — do Reino de Maria,<br />
enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre<br />
duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa<br />
Senhora; as quais, pelos seus sacrifícios e orações na<br />
Terra e, depois, as orações no Céu, ajudaram e ainda<br />
ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem<br />
de Fátima.<br />
Quer dizer, nós devemos ver nessa transformação,<br />
creio eu, ao menos de um modo muito provável, um símbolo<br />
dessas transformações profundas que marcarão o<br />
Reino de Maria.<br />
É interessante notar o efeito<br />
do Segredo de Maria sobre<br />
essas crianças: grande<br />
seriedade, espírito de oração,<br />
espírito de sacrifício e uma<br />
convicção muito grande da<br />
missão deles, e o desejo de<br />
viver para essa missão.<br />
Dois dos videntes de Fátima, Jacinta<br />
e Francisco, em outubro de 1917.<br />
Jacinta e Francisco: intercessores<br />
apropriados para obter de Nossa Senhora<br />
o início de seu Reino em nossos corações<br />
Esta primeira observação me parece conduzir diretamente<br />
ao seguinte: se isto é assim, então Francisco e Jacinta<br />
são os intercessores naturais para se pedir e obter<br />
de Nossa Senhora que comece o Reino de Maria em nós<br />
desde logo, por essa transformação misteriosa que é o<br />
Segredo de Maria.<br />
29
Hagiografia<br />
E, então, nós devemos suplicar instantemente, tanto<br />
à menina quanto a ele, que comecem a nos transformar,<br />
comecem a nos dar os dons que eles receberam. E que<br />
eles velem especialmente sobre aqueles cuja missão é a<br />
de pregar a mensagem de Fátima, viver da mensagem de<br />
Fátima, como acontece conosco.<br />
Isto é uma razão a mais para nós termos uma marcante<br />
devoção a eles.<br />
Efeitos da ação de Maria sobre os videntes<br />
É interessante notar, também, o efeito do Segredo<br />
de Maria sobre essas crianças. Elas mudaram, está bem.<br />
Mas quais os sintomas externos dessa mudança? Quais<br />
foram as manifestações externas dessa transformação?<br />
São apontadas aqui três coisas: grande seriedade, espírito<br />
de oração e espírito de sacrifício. Por cima de tudo isso,<br />
uma convicção muito grande da missão deles e o desejo<br />
de viver para essa missão, de onde vinham essas três<br />
consequências.<br />
Espírito de seriedade<br />
Espírito de seriedade. Os senhores viram o Francisco<br />
censurar a Lúcia por esta não ser bastante séria e aceitar<br />
de bailar, ou seja, fazer aquela dançazinha portuguesa<br />
com crianças. E a razão dada por Francisco para repreender<br />
a Lúcia foi essa:<br />
— Você, que viu Nossa Senhora aparecer, não deveria<br />
participar desses brinquedos.<br />
A Lúcia respondeu:<br />
— Mas, afinal de contas, pediram tanto!<br />
Disse o Francisco:<br />
— Mas como eles sabem que a você Nossa Senhora<br />
apareceu, a você eles não deviam pedir.<br />
Como quem diz: “Eles compreenderão a sua recusa<br />
ou, ao menos, têm todos os dados para compreender. Se<br />
eles não compreendessem, seria por culpa deles, mas você<br />
deveria ter recusado.”<br />
É a ideia de que para agradar Nossa Senhora precisa<br />
ser muito sério. Não se agrada Nossa Senhora sem ser<br />
muito sério.<br />
E de Francisco, a ficha diz que ele era lógico, raciocinava<br />
muito, com muita firmeza no tocante a seus deveres.<br />
O autor emprega até uma palavra muitas vezes utilizada<br />
hoje em sentido pejorativo: que ele era “severo”.<br />
Ele possuía uma lógica completa e deduzia de sua missão<br />
que era preciso ser daquele jeito: sério, não dizer nada<br />
inconveniente, agir corretamente. Por isso ele não perdia<br />
ocasião de dar o exemplo e de proceder segundo a lógica.<br />
Mais ainda, esta seriedade, nas condições insignificantes<br />
de crianças, levava-as à combatividade. A Jacinta não<br />
via uma pessoa dizer ou fazer algo errado, sem que ela a<br />
repreendesse: “Isto aqui não está bom!” E dava a razão<br />
religiosa: “Deus não deve ser ofendido! Já está tão ofendido<br />
em nossa época, você ainda quer ofendê-lo mais?<br />
Quer acrescentar algo a esta montanha de pecados que<br />
se cometem?”<br />
Então, os senhores percebem como a seriedade e a lógica<br />
são o fruto do Segredo de Maria. E se nós quisermos<br />
corresponder às graças de Nossa Senhora, devemos<br />
agir de maneira a sermos sérios e lógicos. E, pelo menos,<br />
quando virmos pessoas sérias e lógicas, tratarmos de admirá-las,<br />
de nos acercarmos delas, conversar com elas, e<br />
nos deixarmos penetrar pelo espírito delas.<br />
Espírito de sacrifício<br />
De outro lado, o espírito de sacrifício. As duas crianças<br />
recebem de Nossa Senhora a notícia de que morrerão<br />
theimmaculateheart.com<br />
Os pastorinhos de Fátima rezavam<br />
para Deus não ser ofendido, Deus<br />
ser glorificado, o que é a própria<br />
essência da causa católica. Mas a<br />
fonte que ininterruptamente estava<br />
dando-lhes este alimento espiritual era<br />
a crença em que se cumpriria sobre<br />
eles a palavra de Nossa Senhora.<br />
Os três videntes de Fátima. Da esquerda<br />
para a direita: Jacinta, Lúcia e Francisco.<br />
30
dentro de um breve prazo. E a Francisco<br />
a notícia podia apavorar porque estava<br />
dito que ele morreria logo. Ora, a morte é<br />
um castigo imposto ao homem, e sua proximidade,<br />
em geral, apavora. Quando a<br />
pessoa não tem uma graça especial, diante<br />
da proximidade da morte fica aterrorizada.<br />
Francisco viu, alegre, a morte aproximar-se.<br />
Ele ia fazer o sacrifício pedido<br />
por Nossa Senhora. Não tinha saudades<br />
de nenhum dos bens deste mundo. Queria<br />
ir para o Céu e deixar esta Terra com<br />
a imolação de sua vida para a vitória da<br />
causa católica.<br />
De Jacinta Nossa Senhora pediu algo<br />
que, por um aspecto, apavorava menos.<br />
Pediu que ela vivesse por mais algum<br />
tempo. É o espectro colocado um pouco<br />
mais longe. Entretanto, disse-lhe que<br />
viveria mais para sofrer. Quem não tem<br />
medo de uma vida de sofrimentos? E revelou-lhe<br />
um dos sofrimentos que mais<br />
apavoram as crianças: ficar doente e longe dos pais. Nossa<br />
Senhora disse: “Tu serás levada a Lisboa e tua mãe vai<br />
deixar-te.” Portanto, “tu adoecerás e morrerás sem a assistência<br />
dos teus”. E ela morreu, de fato, sem o socorro<br />
materno. Ela aceitou também. Eu creio ser o mais pesado<br />
sacrifício que se pode pedir a uma criança. O Segredo<br />
de Maria levou-a a esse sacrifício.<br />
Espírito de oração<br />
Depois, espírito de oração. Rezavam continuamente.<br />
E para que rezavam? Pela causa católica. Porque rezavam<br />
para Deus não ser ofendido, Deus ser glorificado, o<br />
que é a própria essência da causa católica. Tudo, em última<br />
análise, consiste nisso: que Deus seja glorificado e<br />
não seja ofendido. E isto eles tinham em mente sempre e<br />
rezavam muito.<br />
Mas qual era a fonte que ininterruptamente estava<br />
dando-lhes este alimento espiritual? Era a crença na própria<br />
missão. A crença em que se cumpriria sobre eles a<br />
palavra de Nossa Senhora.<br />
Virtudes a serem pedidas a Nossa Senhora<br />
por intercessão dos videntes de Fátima<br />
Cama de Jacinta, na residência da família Marto, onde a vidente padeceu<br />
da enfermidade antes de ser transferida para o hospital em Lisboa.<br />
com as disposições normais experimenta desde logo várias<br />
melhoras em sua alma. E depois tem de passar pelo<br />
embate das provas que todos nós, infelizmente, conhecemos.<br />
Mas, de si, há algo de parecido — parecido não<br />
quer dizer idêntico — com o Segredo de Maria. E todo<br />
novato tem um grande impulso para a frente que consiste<br />
numa certa transformação. Essa transformação opera<br />
com o caráter rápido, célere, fácil, atraente com que age<br />
a graça do Segredo de Maria. Além disso, nossa vocação<br />
é ordenada aos fatos anunciados por Nossa Senhora em<br />
Fátima. Isto estabelece mais uma relação entre nossa vocação<br />
e a deles.<br />
E eu creio que quem peça a Nossa Senhora de Fátima,<br />
por intercessão deles, auxílio para sermos fiéis a essa<br />
nossa vocação, fará a Ela uma oração especialmente grata.<br />
E poderá receber favores enormes para ser fiel à vocação,<br />
mesmo em circunstâncias dificílimas, graças precisamente<br />
ao Segredo de Maria.<br />
E nossa vocação necessita das quatro virtudes que eles<br />
praticaram: a virtude básica, crermos em nossa vocação<br />
como eles creram na deles; e, em consequência: seriedade,<br />
espírito de sacrifício e espírito de oração. v<br />
(Extraído de conferência de 13/10/1971)<br />
J. P. Rodrigues<br />
Nós podemos fazer dessas considerações uma aplicação<br />
para nós? Eu creio que facilmente. Porque essas são<br />
as virtudes às quais nossa vocação nos convida. A nossa<br />
vocação contém uma espécie de raiz do Segredo de<br />
Maria. Sem dúvida, quem entra para nosso Movimento<br />
1) Cf. DE MARCHI, I. M. C., Pe. João. Era uma Senhora mais<br />
brilhante do que o Sol... Fátima: Edições Consolata. Na 7 a<br />
edição (1978) o trecho resumido para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> encontra-<br />
-se nas páginas 251-267.<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Palácio do Vaticano<br />
Pervadido de admiração, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> descreve o panorama<br />
descortinado ao subir a rampa que conduz ao Pátio de São<br />
Dâmaso, as cenas presenciadas nesse local e as salas, com<br />
suas grandiosas ornamentações, do Palácio onde vive o Sumo<br />
Pontífice. Indica também os significados da “Sedia Gestatoria”,<br />
dos “flabelli” e dos dosséis existentes na Sala do Conclave,<br />
mostrando como tudo ali é prático e sublime.<br />
C<br />
omo era a vida de um Papa?<br />
Ela transcorria em um Palácio ou na Basílica de<br />
São Pedro, a maior igreja da Terra, magnífica pela<br />
sua riqueza, pelo seu valor artístico,<br />
pelo fato de estar construída<br />
sobre a sepultura de São<br />
Pedro, Príncipe dos Apóstolos,<br />
pelo grande número<br />
de relíquias de toda<br />
ordem ali reunidas, pelos<br />
acontecimentos históricos<br />
que ali se passaram. E,<br />
ao lado da Basílica, o Palácio<br />
do Vaticano, residência para onde<br />
o Papa se recolheu depois que<br />
os Estados Pontifícios, que constituíam<br />
dentro da Itália um verdadeiro reino, foram tomados<br />
por Garibaldi.<br />
Do Portão Santa Marta até<br />
o Pátio São Dâmaso<br />
Em virtude do Tratado de Latrão 1 , a própria Itália reconheceu<br />
que a Basílica de São Pedro, o Palácio do Vaticano,<br />
jardins anexos e alguns outros edifícios do Vaticano<br />
existentes em Roma constituíam um reino próprio,<br />
distinto do governo da Itália, com todos os poderes de<br />
uma soberania temporal, perfeita e acabada,<br />
inclusive com sua alfândega e seus correios<br />
e telégrafos. Dentro do Vaticano havia<br />
uma estação de estrada de ferro. E o<br />
Papa era o rei deste Estado, o monarca<br />
da Igreja que ali vivia cercado de todo<br />
o protocolo de uma corte; proto-<br />
32
Chegada de uma princesa dos antigos tempos<br />
e do embaixador dos Estados Unidos<br />
colo voltado a estimular sentimentos de veneração e de<br />
amor para com o Soberano Pontífice, e a organizar convenientemente<br />
sua vida.<br />
Lembro-me da impressão que eu tive — numa das vezes<br />
em que fui ao Vaticano — quando subi pelo Portão<br />
Santa Marta, situado à esquerda de quem entra na Basílica<br />
de São Pedro. Caminha-se por uma rampa muito bonita,<br />
onde se passa perto de um pequeno palácio no qual<br />
morou o Cardeal Merry del Val 2 , de um pequeno cemitério<br />
— chamado dei Tedeschi, porque ali alguns alemães<br />
estão sepultados; depois se passa pelo governatorato de<br />
Roma. Roça-se no fundo, na abside da Basílica de São<br />
Pedro e se chega ao pátio mais alto, o cume de uma verdadeira<br />
montanha, chamado Pátio de São Dâmaso, que<br />
é o pátio interno do Palácio do Vaticano, donde partem<br />
os elevadores que levam os visi- tantes para os vários<br />
andares, nos quais estão Monsenhores,<br />
Cardeais e finalmente o Papa.<br />
Quando chego ao alto da rampa, vejo uma cena bonita:<br />
de um automóvel saem dois camareiros, vestidos com<br />
damasco roxo e meias compridas, com jeito de nobres,<br />
e ajudam uma princesa dos antigos tempos, trajada como<br />
se vestia para visitar o Papa — toda de preto, com<br />
véu, tule, uma coroazinha etc. —, a qual foi caminhando<br />
em passo cadenciado, com um pequeno séquito, no meio<br />
do pátio; mas ninguém prestava atenção especial porque<br />
passava de tudo por lá.<br />
Em seguida, ouço uma buzina prestigiosa, que toca<br />
com delicadeza para afastar um pouco as pessoas, e vejo<br />
um automóvel enorme e reluzente que chega. Era o representante<br />
do presidente dos Estados Unidos junto ao<br />
Papa, que entrava para ser recebido pelo Sumo Pontífice.<br />
Então essa conjunção da princesa dos antigos tempos,<br />
já sem poder temporal, com pouco dinheiro, hospedada<br />
com certeza num hotelzinho médio de Roma, que descia<br />
de um automovelzinho tremblotant 3 , como se diz em francês<br />
— em que os paralamas e todas as outras partes do veículo<br />
pareciam ter uma espécie de dificuldade de se manter<br />
unidos —, mas ela descia no esplendor de sua tradição,<br />
da verdadeira tradição que não morre nunca e que<br />
não se incomoda nem sequer com sua própria pobreza,<br />
recebida por dois guardas de honra também tradicionais,<br />
e caminhando com a serenidade e o alheamento a todas<br />
as coisas. E, ao lado, o embaixador do país rico, magnífico,<br />
pomposo, a maior potência temporal da Terra, que também<br />
vai ouvir uma palavra do mesmo sucessor de São Pedro.<br />
Mais acima passa um Cardeal armênio, com sua barba;<br />
é toda a velha História da Igreja nos países do Oriente<br />
próximo. E tudo isso afluindo para cumprimentar o Papa.<br />
Os Papas não recebiam só as pessoas grandiosas, mas<br />
todas as pessoas, porque ele é pai de todo mundo, e é<br />
preciso que todos sintam que têm acesso<br />
junto ao Soberano Pontífice. E era preciso<br />
organizar essa vida de maneira<br />
que toda essa gente visse o Papa.<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
Ornatos grandiosos fazem com que<br />
o homem se sinta pequenino<br />
A residência papal precisa ter vários salões sucessivos.<br />
Nenhum salão repleto, nem abarrotado ou cheio<br />
de gente como num cinema moderno. Fileiras de duas<br />
ou três pessoas ao longo dos muros, um longo espaço<br />
vazio entre elas, objetos ornamentais magníficos, quadros,<br />
afrescos esplêndidos, tapetes, tetos esculturais.<br />
O Papa entra vestido de branco, diferente de todo<br />
mundo, solidéu branco, discreto. Ele se aproxima de cada<br />
um no recolhimento da sala. Uma palavrinha com esse,<br />
aquele e aquele outro, e vai para outra sala. Como as<br />
pessoas que estão numa sala sabem que há várias outras<br />
depois, cada um entende que o Sumo Pontífice diga uma<br />
palavrinha e passe.<br />
Poderíamos examinar como as menores coisas convivem<br />
com isso. Os ornatos das salas são grandiosos! Nada<br />
de pinturazinhas, com figurinhas, florezinhas. São<br />
cenas enormes, em geral de tamanho maior do que o<br />
homem. Por quê? Isso faz com que o homem se<br />
sinta pequenino e compreenda o respeito<br />
que deve ter. Depois, todos sabem<br />
que são afrescos de pintores famosos;<br />
cada uma daquelas salas valeria<br />
uma fábula, não têm preço<br />
aquelas pinturas que ornam<br />
a mais alta autoridade da Terra.<br />
Tudo isso incute respeito.<br />
Há também a sala preparada<br />
para o Conclave que elege<br />
o Papa, onde se notam as<br />
cadeiras colocadas uma ao lado<br />
da outra, e em cima de cada<br />
cadeira um dossel. Quando o<br />
Soberano Pontífice é eleito, funcionários<br />
baixam os dosséis, e o único dossel que fica elevado<br />
sobre a cadeira é o do trono do novo Papa.<br />
O que quer dizer isso? Quando o Sumo Pontífice morre,<br />
o governo da Igreja passa a pertencer ao Sacro Colégio,<br />
o qual exerce temporariamente uma parte da soberania<br />
do Papa. Como o que caracterizava o soberano<br />
antigamente era sentar-se sob um dossel, há dosséis para<br />
todos os Cardeais que constituem no seu conjunto o Sacro<br />
Colégio. Quando o Papa é eleito, o Sacro Colégio que<br />
o aclamou ou escolheu deixa de ser soberano. Assim, os<br />
Cardeais, ato contínuo, vão fazer seu ato de obediência<br />
ao novo Papa. Baixam-se os outros dosséis, pois a soberania<br />
pertence apenas ao Papa. É uma coisa bonita!<br />
A ”Sedia Gestatoria” e os ”flabelli”<br />
A Sedia Gestatoria é um trono ambulante.<br />
Quanto eu saiba, esta é a única monarquia de velhos. A<br />
Igreja verdadeira nunca teve a fobia da velhice; pelo contrário,<br />
teve a admiração e a veneração por ela.<br />
Reporto-me à teoria da soma das idades. À medida<br />
que a pessoa envelhece, ela vai somando<br />
a vantagem de todas as idades; e, se<br />
é católica, vai se tornando mais plena<br />
de tudo aquilo que a velhice pode<br />
dar. A velhice não é considerada<br />
uma catástrofe, mas um êxito.<br />
Lembro-me de uma anedota:<br />
dois franceses velhos encontraram-se<br />
e ficaram conversando<br />
numa ponte sobre<br />
o Sena. Um deles disse: “Como<br />
é desagradável envelhecer!”,<br />
e o outro respondeu:<br />
“Eu não acho, é o único jeito<br />
de viver muito.”<br />
34
É tão evidente…<br />
Todos os Papas, com raras exceções, eram mais do<br />
que sexagenários. Para percorrer aquelas distâncias<br />
enormes no interior do palácio deles, deviam usar um<br />
veículo de transporte à mão, porque muitas vezes eram<br />
septuagenários ou octogenários. Daí então essa espécie<br />
de liteira descoberta, que era a Sedia Gestatoria, carregada<br />
por portadores que se revezavam ao longo do trajeto,<br />
todos com trajes tradicionais. E o Sumo Pontífice<br />
ia sentado ali com aqueles leques em forma de semicírculos,<br />
com plumas, chamados flabelli, que eram na aparência<br />
para afugentar as moscas. É possível que a velha<br />
Roma pontifícia tenha tido muito mosquito, e que os<br />
flabelli foram feitos com essa intenção. Mas com o tempo<br />
os famosos pântanos romanos foram sendo secos, e<br />
os mosquitos desaparecendo de Roma. Mas os flabelli<br />
ficaram. Porque aquele objeto, destinado primeiramente<br />
a espantar mosquitos, foi de tal maneira modelado<br />
pela arte que se transformou numa obra-prima, colocada<br />
sempre perto do Papa e movendo-se discretamente;<br />
passou a ser um símbolo da suavidade, da graça e da<br />
Tudo se passava sem correcorre.<br />
Sublime e prático ao<br />
mesmo tempo. Coisas que o<br />
espírito moderno não compreende<br />
bem que estejam unidas.<br />
Embaixo, jardins do Vaticano com o Palácio<br />
do Governatorato em primeiro plano. À<br />
esquerda, Pio VIII na “Sedia Gestatoria”.<br />
glória, adornando a fronte venerável do ancião que é<br />
o Vigário de Cristo na Terra. Então os flabelli, movendo-se<br />
lentamente em torno do Papa, passaram a ser o<br />
complemento cênico — e digo cênico com o maior respeito<br />
à palavra — necessário do Romano Pontífice levado<br />
na sua Sedia Gestatoria.<br />
Então, tudo está preparado ali. É só o novo Papa ser<br />
eleito que se desencadeia um mundo de tradições que o<br />
cercam e o vão levando dentro da linha dos seus antecessores.<br />
Isso tudo é tão prático, corre depressa, porém sem<br />
correria; não como a pressa moderna, filha da aflição e<br />
da torcida, mas uma pressa filha da reflexão, do recolhimento,<br />
da meditação, e por causa disso particularmente<br />
eficiente. Tudo se passava sem corre-corre, com um mínimo<br />
de dispêndio de tempo possível. Sublime e prático<br />
ao mesmo tempo. Coisas que o espírito moderno não<br />
compreende bem que estejam unidas.<br />
Para concluir, desejo que lhes seja dado o seguinte: a<br />
alegria, a graça e a glória de presenciarem o começo do<br />
Reino de Maria. E que possam assistir a toda a pompa<br />
vaticana como ela deve ser.<br />
v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 13/1/1976)<br />
1) Tratado assinado em 11 de fevereiro de 1929 e ratificado a 7<br />
de julho do mesmo ano. Por ele, o Vaticano ficava reconhecido<br />
oficialmente como Estado soberano, neutro e inviolável,<br />
sob a autoridade do Papa, incluindo o palácio de Castelgandolfo<br />
e as basílicas de São João de Latrão, Santa Maria<br />
Maior e São Paulo Extramuros. Por sua vez, a Santa Sé renunciava<br />
aos territórios que lhe pertenciam desde a Idade<br />
Média e reconhecia Roma como capital da Itália.<br />
2) Secretário de Estado de São Pio X.<br />
3) Trêmulo.<br />
35
Nossa Senhora da Luz - Convento<br />
da Luz - São Paulo, Brasil<br />
Nossa Senhora<br />
da Luz<br />
Timothy Ring<br />
N<br />
ossa Senhora da Luz,<br />
invocação lindíssima<br />
porque é Nossa Senhora<br />
enquanto suscitando toda<br />
espécie de luzes interiores<br />
— tão frequentes em nossas<br />
almas — que não podemos<br />
considerar nem fantasia, nem<br />
imaginação. São luzes que de<br />
fato nos iluminam por dentro<br />
e nos levam à prática da<br />
virtude.<br />
Que Nossa Senhora da<br />
Luz, nossa Auxiliadora nos<br />
momentos de trevas interiores,<br />
faça raiar em nossas almas<br />
esta luz de uma confiança<br />
invencível na realização<br />
de nossa vocação, de nossa<br />
missão, que é a vitória da<br />
Causa Católica por meio dos<br />
auxílios que Ela nos dá em<br />
todas as circunstâncias.<br />
(Extraído de conferência de<br />
24/5/1971)