You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>165</strong> Dezembro de 2011<br />
Eloquente silêncio<br />
da noite de Natal
Após Dona Lucilia anunciar que a festa<br />
de Natal ia começar, todos — umas<br />
vinte crianças — dávamo-nos as mãos e<br />
começávamos a entoar o Stille Nacht. Íamos, então,<br />
levando o presépio com o Menino Jesus, desde a<br />
saleta onde estávamos até a sala dos brinquedos, na<br />
qual havia uma árvore de Natal.<br />
Ali cantávamos canções de Natal, girando em torno<br />
da árvore, mas já sentindo o cheiro do chocolate com<br />
o qual se iam enchendo as xícaras, acompanhado<br />
de creme chantilly; e o odor do pinheiro um pouco<br />
queimado por algumas velas, que deitava um<br />
perfume de resina especial.<br />
Havia uma alegria cândida, pura, eu ousaria dizer<br />
virginal, que não era perturbada por qualquer<br />
intemperança. Nenhuma criança fazia uma<br />
travessura, uma peraltagem, todas brincavam<br />
entre si com a maior calma, dentro daquela paz<br />
que parecia sair das imagens de Nossa Senhora e do<br />
Menino Jesus que estavam no presépio, e se difundia<br />
por toda a sala.<br />
Essa alegria proporcionava uma coisa que eu não sei<br />
exprimir. Mas era a ideia do Puer natus est nobis —<br />
Foi-nos dado um Menino —, e uma grande alegria<br />
tinha nascido no Céu. O Menino era Jesus. E ali se<br />
realizava algo de único, como que a repetição do<br />
Natal; parecia-nos estar vivendo as graças do Natal.<br />
(Extraído de conferência de 25/12/1976)
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>165</strong> Dezembro de 2011<br />
Eloquente silêncio<br />
da noite de Natal<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
venera o menino<br />
Jesus durante o<br />
Natal de 1991. Ao<br />
fundo, presépio<br />
exposto em Cotia,<br />
Grande São Paulo.<br />
Fotos: M. Shinoda; S. Miyazaki.<br />
Ano XIV - Nº <strong>165</strong> Dezembro de 2011<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Santo Egídio, 418<br />
02461-010 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2236-1027<br />
E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
Rua Barão do Serro Largo, 296<br />
03335-000 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2606-2409<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 101,00<br />
Colaborador .......... R$ 130,00<br />
Propulsor ............. R$ 260,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 430,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 13,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
Editorial<br />
4 O eloquente silêncio da noite de Natal<br />
Datas na vida de um cruzado<br />
5 13 de dezembro de 1908<br />
Nasce <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
6 A inebriante alegria do Natal<br />
12 A eternidade numa mudança de ano…<br />
Calendário dos Santos<br />
18 Santos de Dezembro<br />
Dona Lucilia<br />
20 Carinho extremo...<br />
“Revolução e Contra-Revolução”<br />
26 “Dize-me com quem andas…”<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
30 Um conto natalino…<br />
3
Editorial<br />
O eloquente silêncio<br />
da noite de Natal<br />
ual diamante incrustado nos Alpes, entre a Baviera e a Áustria, encontra-se a célebre cidade<br />
de Salzburg, em cujas cercanias surgiu a melodia celebrada pelo mundo inteiro como<br />
a música de Natal por excelência: o Stille Nacht.<br />
Q<br />
Em sua versão original alemã, a primeira estrofe do Stille Nacht refere-se à “noite santa e silenciosa,<br />
onde tudo dormia, com exceção do venerável e altamente santo casal”. De fato, com inspirada<br />
perfeição, sua melodia reflete o imenso e recolhido silêncio de uma noite sagrada.<br />
Nessa noite, onde parece não haver lugar senão para o silêncio, terá Nossa Senhora pronunciado<br />
alguma frase, além das manifestações, plenas de amor e afeto, com que as mães costumam se dirigir<br />
aos seus filhos recém-nascidos? E São José? Terá ele dito alguma palavra Àquele que era o seu Criador<br />
e Redentor? Ou preferiu não quebrar a sacralidade do momento nem mesmo dirigindo-se à sua<br />
Santíssima Esposa? Não consta nos Evangelhos ter havido qualquer diálogo ou palavra nessa hora:<br />
diante da manjedoura, seja da parte de Maria ou de seu Castíssimo Esposo, não havia outra atitude<br />
senão o respeitoso silêncio da adoração (Cf. Lc 2,16).<br />
É verdade que, algumas horas depois, chegaram os pastores e narraram o que lhes havia dito o<br />
Anjo do Senhor (Lc 2,17); mas, com que tom de voz eles contaram a Maria a aparição da milícia celestial?<br />
Tudo leva a crer que contiveram o jorro de sua vivacidade pastoril e que contaram baixinho o<br />
que havia acontecido, a fim de não despertar o adorável Menino ou impedir o recolhimento de sua<br />
Mãe, que “conservava todas estas palavras, meditando-as no seu coração” (Lc 2,19).<br />
Na gruta de Belém havia, sobretudo, o eloquente silêncio do Menino-Deus: seu recolhimento dizia<br />
mais do que todos os sábios e doutores diriam ao longo da História. Jesus nada falou, mas disse tudo.<br />
Em seu silêncio não havia qualquer forma de omissão, mas sim uma mensagem cujo conteúdo, dotado<br />
de potência (Mc 1,27), remediaria todas as indigências do mundo antigo: era Deus que se revelava aos<br />
homens, com atitudes de menino e grandezas de Criador.<br />
Com efeito, Jesus-Menino não necessitava falar, pois era a própria Palavra Divina, o “Verbo que<br />
se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). Poderia haver silêncio mais eloquente?<br />
Ainda hoje, como na gruta de Belém, para Ele falar às almas, basta seu divino silêncio. Ele nos fala<br />
com o palpitar de seu coraçãozinho, num tom harmônico e constante, pacífico e acolhedor que só<br />
pode ser escutado com o ouvido do coração.<br />
O silêncio eloquente de seu Natal nos convida a imergir na verdadeira alegria da noite silenciosa,<br />
nos chama para o recolhimento, para a interiorização, para perceber a voz da graça dentro de nossa<br />
alma batizada e inabitada pelo Deus que se fez menino.<br />
Que silêncio e que doçura da noite mais eloquente da História! Silêncio que transcende às leis físicas<br />
e ecoa por mais de dois mil anos, não pelas vastidões do Universo, mas de coração a coração em<br />
todas as santas e silenciosas noites de Natal.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Datas na vida de um cruzado<br />
13 de dezembro de 1908<br />
Nasce <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Após seu casamento, <strong>Dr</strong>.<br />
João Paulo alugou uma pequena<br />
casa térrea a pouca<br />
distância do palacete de seus sogros,<br />
<strong>Dr</strong>. Antônio e Dona Gabriela Ribeiro<br />
dos Santos, para que Dona Lucilia<br />
tivesse facilidade de contato com eles<br />
e seu ambiente. Nessa casinha, na manhã<br />
de 13 de dezembro de 1908, nasceria<br />
<strong>Plinio</strong>…<br />
“Eu nasci dois meses antes do<br />
previsto, enquanto mamãe ouvia tocar<br />
os sinos da Igreja de Santa Cecília,<br />
chamando para a Missa. Eu era tão<br />
pequenino e tão fraco que o médico<br />
disse não ser aconselhável colocar-me<br />
no lindo berço que mamãe preparara,<br />
pois podia afogar-me nele. Então,<br />
acabei indo parar numa cestinha de<br />
pão!”<br />
Mesmo antes de vir à luz, <strong>Plinio</strong><br />
contribuiria para o desabrochar de um<br />
dos mais sublimes aspectos da alma<br />
de Dona Lucilia: a maternalidade.<br />
“Mamãe estava em condições de<br />
saúde muito delicadas e os médicos<br />
lhe aconselharam abortar. Insistiram<br />
muito, dizendo que morreria se não o<br />
fizesse, mas ela respondeu:<br />
“— Esta não é proposta que se faça<br />
a uma mãe! O senhor não deveria<br />
sequer tê-la cogitado! Um filho meu<br />
não matarei nunca! Ainda que tenha de<br />
morrer, não matarei meu filho.” 1<br />
Desse modo, pouco tempo antes<br />
de dar à luz seu filho varão, quis a<br />
Providência pedir àquela extremosa e<br />
resoluta católica um excelente ato de<br />
virtude.<br />
1) Conferência de 13/12/1983.<br />
5
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
A inebriante<br />
alegria do Natal<br />
Com o intuito de avivar a confiança de que a<br />
atmosfera sacral dos Natais de outrora deverá<br />
reflorescer sobre a Terra, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> narra<br />
alguns fatos de sua infância.<br />
res são estreitos e altos — talvez a altura<br />
sirva para assegurar certa ventilação,<br />
pois se sente que nela circula<br />
certo vento. Mas as paredes se afunilam<br />
para cima, causando a impressão<br />
de que no alto vão se encontrar;<br />
isto ao menos para mim dava sensação<br />
de asfixia. E por todos os lados<br />
terra e sepulturas. Em certo ponto<br />
vê-se uma clareira, da qual filtra um<br />
pouco de luz, permitindo ver uma<br />
sala quadrangular com pinturas,<br />
muito antigas, feitas, por alguma técnica,<br />
diretamente sobre a terra; estas<br />
representam de modo ingênuo cenas<br />
do Evangelho. Ali se encontra um altarzinho,<br />
pois se trata de uma capela<br />
onde se celebrava a Missa, junto aos<br />
restos de novos mártires, mortos de<br />
modo cruel. O corpo do mártir ficava,<br />
muitas vezes, jogado na arena, todo<br />
estraçalhado. Terminado o martírio,<br />
o povo se retirava. Ao anoitecer,<br />
católicos heroicos, eles mesmos candidatos<br />
ao martírio, pois caso fossem<br />
pegos seriam também martirizados,<br />
em meio às trevas se arrastavam até<br />
o Circo Máximo ou até o Coliseu para<br />
pegar aqueles restos, os quais traziam<br />
em panos, embebidos em perfume,<br />
até as catacumbas onde entra-<br />
Após um ano de lutas, sofrimentos<br />
e dificuldades,<br />
aproxima-se o Natal. As<br />
festas do Santo Natal, bem como as<br />
da Páscoa, a meu ver, têm a característica<br />
de interromperem o tempo. E<br />
ainda que se esteja na situação mais<br />
aflitiva, o Natal ergue uma muralha,<br />
deixando de um lado as desgraças e<br />
as lágrimas, e, do outro, os sinos que<br />
anunciam as alegrias natalinas.<br />
Não se trata de uma alegria vulgar,<br />
mas uma alegria muito mais<br />
profunda e leve, que parece ser feita<br />
de luz. Feita da luz que é o lumen<br />
Christi, a qual passou a brilhar sobre<br />
a Terra na noite de Natal, e que a cada<br />
ano de alguma forma volta a brilhar,<br />
trazendo com ela a verdadeira<br />
alegria e a verdadeira paz de alma<br />
até para os mais atormentados.<br />
Alegria por cima<br />
das aflições<br />
Imaginemos, por exemplo, o que<br />
se dava nas catacumbas. O que deveria<br />
ser uma noite nas catacumbas?<br />
Lembro-me da Catacumba de São<br />
Calixto, em Roma, que me causou<br />
profunda impressão. Seus corredo-<br />
6
G. Kralj<br />
que vão romper os laços que o prendem<br />
à Terra, permitindo que sua alma<br />
possa voar junto a Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo.<br />
A graça pode produzir esse efeito,<br />
e não é tão raro que o faça.<br />
Em algo sentimos este efeito da<br />
graça quando, em meio a aflições,<br />
tormentos e lutas, vemos nossas almas<br />
encherem-se das santas alegrias<br />
do Natal, que vencem até as maiores<br />
angústias. Ao menos para os que não<br />
rejeitam essa graça.<br />
A noite de Natal<br />
de outrora<br />
Adoração dos Reis Magos - Madri, Espanha.<br />
vam por um orifício oculto feito no<br />
chão.<br />
Quando os que lá esperavam rezando<br />
recebem a notícia de que ali<br />
estão os restos de um de seus irmãos<br />
na Fé, imediatamente do fundo da<br />
terra ouve-se um cântico de triunfo.<br />
Pois aquele companheiro que na<br />
véspera tinham visto e com quem tinham<br />
conversado — até que devido<br />
a uma vistoria policial na catacumba<br />
fosse capturado e, cheio de aflição,<br />
levado para ser martirizado — após<br />
tantos sofrimentos ele está no Céu.<br />
Por isso todos cantavam de alegria.<br />
Quando alguém recebe graças especiais,<br />
até nessa situação ela pode<br />
sentir alegria, a tal ponto que havia<br />
mártires que apesar de triturados<br />
pelas feras morriam alegres.<br />
Inebriados pelo<br />
Sangue de Cristo<br />
Agrada-me ouvir cantar o Anima<br />
Christi, no qual há uma jaculatória<br />
que diz: Sanguis Christi, inebria<br />
me! Sangue de Cristo, inebrie-me!<br />
O que isso quer dizer? O que é esta<br />
embriaguez do preciosíssimo Sangue<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo?<br />
Um exemplo é o do mártir que tendo<br />
comungado do Corpo e do Sangue<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
embriagado da alegria, fruto da graça<br />
do Espírito Santo, procede como<br />
um ébrio, não tendo medo diante do<br />
perigo e da dor. Pelo contrário, de<br />
tal modo o inunda a alegria sobrenatural<br />
que se lhe dissessem que a fera<br />
não vem, ele era capaz de ficar desapontado,<br />
pois para ele a boca do tigre<br />
era a porta do Céu, e as presas<br />
que ele vê enquanto a fera uiva são<br />
para ele os instrumentos benfazejos<br />
Para que se sinta um pouco o que<br />
é esta graça, creio não ser descabido<br />
narrar algumas recordações, na<br />
tentativa de fazer reviver aqui aquilo<br />
que na pobre São Paulo de hoje,<br />
embora tão rica, quase não se nota<br />
mais: as alegrias e vivas impressões<br />
que outrora se sentiam nas noites de<br />
Natal.<br />
Como era um Natal no ano de<br />
1920? Portanto, Natal dos últimos<br />
anos de minha infância?<br />
Havia qualquer coisa que alguém<br />
poderia dizer tratar-se de imaginação,<br />
mas digo que tenho a convicção<br />
interna de não se tratar de imaginação,<br />
mas da graça, que era dada<br />
a mim, como a todas as crianças de<br />
As festas do Santo Natal têm a<br />
característica de interromperem o tempo.<br />
E ainda que se esteja na situação mais<br />
aflitiva, o Natal ergue uma muralha,<br />
deixando de um lado as desgraças e<br />
as lágrimas, e, do outro, os sinos que<br />
anunciam as alegrias natalinas.<br />
7
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
meu tempo, ao menos as que<br />
eu via e conhecia.<br />
Era uma graça geral. As<br />
crianças, já alguns dias antes do<br />
Natal, viam-se invadidas por uma expectativa<br />
e por uma alegria na esperança<br />
das festas que iam se realizar.<br />
A perspectiva da festa, no que ela<br />
tem de terrena, desempenhava um<br />
papel na alegria das crianças. Elas<br />
sabiam que São Nicolau, o santo<br />
Bispo afável, viria de noite enquanto<br />
todos dormiam e colocaria presentes<br />
junto a elas: nos lares abastados,<br />
grandes caixas; nos lares mais<br />
pobres, com menos condições financeiras,<br />
caixinhas de presentes pequenas,<br />
mas cheias de afeto. Mas em todo<br />
lugar onde houvesse uma mãe,<br />
digna realmente de assim ser chamada,<br />
um pai solícito e merecedor deste<br />
título, alguma coisa punham junto<br />
à cama do filho. O que para o filho<br />
consistia uma maravilha, que ele<br />
esperava com alguns dias de antecedência.<br />
Inundadas pelas alegrias<br />
de Natal, as crianças<br />
ficavam melhores<br />
Esta alegria se fazia sentir dois<br />
ou três dias antes do Natal. Ao andar<br />
um pouco, correr pelo jardim,<br />
brincar, tudo se fazia cheio de um<br />
bem-estar próprio à inocência da<br />
infância, à espera do Natal. Esta<br />
alegria em boa medida era motivada<br />
por alguma coisa mais alta e que<br />
já era um prenúncio da alegria estrita<br />
e definidamente religiosa do<br />
Natal que estava por vir. Algo de<br />
especial começava a nos encher as<br />
almas.<br />
Nesses dias, todas as crianças ficavam<br />
melhores: as que mentiam,<br />
passavam a mentir menos; as que<br />
não mentiam censuravam alguma<br />
que mentisse; as que eram pouco<br />
observantes dos horários de casa<br />
tornavam-se mais pontuais. Sentia-<br />
-se em todos mais limpeza de alma.<br />
São Nicolau - Catedral de Mônaco.<br />
E esta alegria de ter a alma limpa<br />
não se compara a nenhuma outra ao<br />
longo da vida. O que pode se comparar<br />
ao bem-estar, por exemplo, de<br />
alguém que se confessa e sai do confessionário<br />
com a certeza de ter sido<br />
perdoado?<br />
Quem não se lembra com saudades<br />
de alguma vez ter se aproximado<br />
do confessionário com um<br />
problema de consciência e de lá<br />
ter saído transbordante de alegria<br />
pela certeza de haver sido perdoado?<br />
Essa alegria faz em algo lembrar<br />
aquela que se sentia nos dias que antecipavam<br />
o Natal, ainda sem ter se<br />
confessado. Um princípio de pureza,<br />
de limpidez, de honestidade, de<br />
bondade e de candura parecia se fazer<br />
sentir sobre a Terra, atuando nas<br />
almas de todos os homens. As pessoas<br />
começavam a ser mais benévolas<br />
entre si, oferecendo-se favores. As<br />
crianças egoístas de bom grado emprestavam<br />
seus brinquedos, as birrentas<br />
faziam pequenos favores. E os<br />
mais velhos, por mais que não sentissem<br />
a mesma alegria que as crianças,<br />
por lembrarem-se dos Natais em suas<br />
F. Lecaros<br />
8
infâncias, esforçavam-se por causar<br />
a impressão de estarem participando<br />
do mesmo contentamento, tornando-<br />
-se especialmente solícitos e afáveis.<br />
Bem-estar natural<br />
e sobrenatural<br />
Os pais, ao menos os meus, levavam<br />
as crianças para ver os brinquedos<br />
de Natal. Em geral as melhores<br />
lojas de brinquedos eram alemãs e<br />
inglesas. Lembro-me de várias: Casa<br />
Fux, Casa Grümbach, Casa Lebre<br />
e outras. Entre elas havia uma onde<br />
minha mãe e a Fräulein costumavam<br />
levar minha irmã, uma prima que<br />
morava em nossa casa e eu. Esta ficava<br />
na Rua XV de Novembro; chamava-se<br />
Casa Mappin. Como o Natal<br />
vinha se aproximando, as crianças<br />
ao saírem de casa iam com roupa<br />
de gala, todas enfeitadas. Assim<br />
íamos também nós ver os presentes,<br />
os quais muito nos encantavam.<br />
Mamãe ficava prestando atenção para<br />
ver qual deles mais nos agradava.<br />
Por coincidência e para nossa maravilha<br />
e surpresa, São Nicolau trazia<br />
justamente aquele...<br />
Uma das partes culminantes da<br />
preparação do Natal, para mim,<br />
sensível à gastronomia desde muito<br />
cedo, era quando íamos tomar<br />
um lanche na Casa de Chá do Mappin.<br />
O fundo desta Casa dava para<br />
um barranco profundo, embai-<br />
xo do qual começava o Brás; era um<br />
descampado por onde entrava muito<br />
vento; nós ficávamos sentados lá,<br />
pois a Fräulein e eu éramos grandes<br />
apreciadores de vento. Este, mais o<br />
chá, os sanduíches, as torradas e o<br />
chocolate, me regalavam. Eu tinha<br />
a impressão de que o bem-estar de<br />
meu corpo em contato com aquele<br />
vento era análogo à alegria de minha<br />
alma em contato com as graças<br />
de Natal que se aproximavam,<br />
o que me cumulava ainda mais de<br />
desejo de que o Natal de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo chegasse o quanto<br />
antes.<br />
Notava-se esta alegria natalina<br />
até nas mães que levavam as crianças<br />
pelas ruas do Centro, o qual<br />
se enchia especialmente; as crianças,<br />
todas alegres e satisfeitas, algumas<br />
já levando presentes, dando risadas<br />
e conversando. Quando passava<br />
uma criança assim mais vistosa,<br />
mais engraçada, as mães piscavam<br />
para a mãe daquela como que<br />
a dizer: “Mas que engraçadinha...” E<br />
a mãe ficava toda satisfeita. E assim<br />
era uma alegria geral.<br />
De alegria em alegria<br />
até o ápice do Natal<br />
Voltando para casa começavam os<br />
mistérios... Numa determinada sala<br />
não se podia entrar, pois a árvore de<br />
Natal estava sendo preparada, como<br />
Nos dias que antecediam o Natal,<br />
todas as crianças ficavam melhores: as<br />
egoístas, de bom grado, emprestavam seus<br />
brinquedos; as que mentiam, passavam<br />
a mentir menos, etc. Todos sentiam a<br />
insuperável alegria de ter a alma limpa.<br />
em todo ano, com alguma novidade,<br />
uma estrela enorme, um anjo novo<br />
ou outros enfeites.<br />
Quando uma criança conseguia<br />
ver algo da surpresa, corria para<br />
contar às outras, que tomavam a notícia<br />
com ar de grande importância.<br />
Em meio a essas alegrias passava-se<br />
o tempo até a noite de Natal, hora<br />
em que se ia à Missa do Galo. Aí o<br />
ambiente era completamente diferente.<br />
Nós, morando perto da Igreja do<br />
Sagrado Coração de Jesus, para lá<br />
íamos a pé. Todas as casas estavam<br />
abertas e as luzes acesas. Andando<br />
pelas ruas percebia-se, em casas modestas<br />
como nas ótimas, que eram<br />
quase palácios, uma árvore de Natal<br />
acesa e ouvia-se lá de dentro um<br />
gramofone, dos mais antigos, tocando<br />
músicas de Natal. Percebia-se em<br />
cada família a alegria de Natal, todos<br />
estavam acabando de se aprontar<br />
para sair, deixando apenas um<br />
criado a tomar conta da casa. Logo<br />
os sinos começavam a tocar, avisando<br />
que a Missa ia começar.<br />
Chegando-se à igreja, esta se encontrava<br />
feericamente iluminada,<br />
o altar se encontrava todo cheio de<br />
flores. Numa manjedoura via-se o<br />
Menino Jesus deitado. Quando soava<br />
meia-noite, o padre entrava e começava<br />
a Missa, durante a qual se<br />
sentia algo aparentemente contraditório,<br />
um misto de recolhimento e de<br />
explosão de contentamento.<br />
Quando já se tinha idade, comungava-se.<br />
A Comunhão era o ápice!<br />
Encantava-me a ideia de que Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo, que tinha nascido<br />
em Belém, numa daquelas noites,<br />
estava realmente presente em mim;<br />
era a hora dos pedidos, mas, sobretudo,<br />
tinha-se uma indescritível sensação<br />
de intimidade. Eu tinha uma<br />
estampa do Sagrado Coração de Jesus<br />
que representava Nosso Senhor<br />
segurando um menino, de cabelos<br />
cacheados pretos, e Ele com a mão<br />
em volta de seus ombros, apertando<br />
9
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
M. Shinoda<br />
o menino para junto do peito.<br />
Em baixo desta havia uma jaculatória<br />
que dizia mais ou menos<br />
assim: “Ó Bom Jesus, tende<br />
piedade de mim!” Eu a rezava pensando:<br />
Nosso Senhor nesta hora está<br />
fazendo isso comigo...<br />
Depois da Missa, tinha-se a impressão<br />
de que as graças de Natal se<br />
difundiam por todas as casas. Quando<br />
chegávamos à nossa, parecia que<br />
esta já não era a mesma que tínhamos<br />
deixado. Havia nela algo de religioso,<br />
de sacral, de recolhido, que causava<br />
verdadeira maravilha. A par desta<br />
atmosfera recolhida, sentia-se habitar<br />
na casa uma alegria, como igual não<br />
se sentia o ano inteiro. Começavam<br />
os cumprimentos e as felicitações, ao<br />
que eu era muito sensível, sobretudo<br />
aos carinhos e felicitações vindos de<br />
mamãe, com os quais eu já vinha contando<br />
como um complemento da noite<br />
de Natal. É impossível descrever<br />
o que é o ósculo de uma mãe católica<br />
a um filho que ela deseja que seja<br />
católico também! Depois das saudações,<br />
começava a festa de Natal, a<br />
qual já tive oportunidade de descrever<br />
outras vezes.<br />
Delícias que se sentiam<br />
até dormindo<br />
Terminada a festa de Natal, chegava<br />
a hora das delícias do sono, o<br />
qual era melhor na noite de 25 para<br />
26. Porque como se sabia na noite<br />
anterior que São Nicolau viria entregar<br />
o presente, queríamos surpreendê-lo,<br />
mas sendo ele muito hábil,<br />
isto nunca acontecia. Porém, mantinha-se<br />
esta esperança. Até que, mais<br />
ou menos às quatro horas da manhã,<br />
sentia-se sobre os pés o peso da<br />
enorme caixa de presentes, e logo vinha<br />
a curiosidade de saber se São<br />
Nicolau tinha acertado, mas eu pensava:<br />
“Não posso acender o abat-jour<br />
porque meus pais, notando, me censurarão.<br />
De outro lado, como é gostoso<br />
sentir o peso desse presente, pelo<br />
qual posso avaliar o valor e o prazer<br />
que o presente me dará!” Pouco<br />
depois o sono infantil tomava domínio<br />
da situação e a criança dormia.<br />
Acordando de novo pouco depois,<br />
na sofreguidão de que o momento<br />
de se levantar tivesse chegado, para<br />
poder ver o presente, não sendo ainda<br />
hora, voltava a dormir.<br />
Até que antes da hora de acordar,<br />
a criança já estava de pé, rompendo as<br />
fitas, os laços e os barbantes, para ver<br />
o presente, o qual era sempre um muito<br />
bonito, um dos quais se tinha gostado<br />
em alguma casa de presentes.<br />
Por isso, o sono da noite de 25 para<br />
26 era um sono pesado e gostoso,<br />
pela sensação da consciência tranquila,<br />
pelas influências do Natal Sagrado,<br />
sob cujo perfume se dormia,<br />
sabendo que no dia seguinte ainda<br />
se teria a recordação do Natal. Ainda<br />
tinha um feriado, para comer os<br />
últimos doces, beber os últimos ponches,<br />
brincar mais uma vez com os<br />
brinquedos, até se familiarizar com<br />
10
eles. Não se olhava com pesar para<br />
o implacável dia 26 que vinha. A noite<br />
de Natal era, portanto, um hiato<br />
luminoso, cheio de algo que não se<br />
consegue descrever, mas que todos<br />
sentiram, cada um em sua época.<br />
Dia virá em que os<br />
verdadeiros Natais<br />
reflorescerão na Terra<br />
Até que ponto os que são mais<br />
jovens sentiram isso? Receio que,<br />
quando muito, tenham visto apenas<br />
ligeiros fins disso.<br />
Televisões ligadas o dia inteiro,<br />
rádios vociferando canções de Natal<br />
comercializadas, lâmpadas fluorescentes<br />
e laicas penduradas em torno<br />
de árvores, em jardins de prédios e<br />
em apartamentos, igrejas vazias. Eis<br />
o Natal moderno!<br />
Põe-se a pergunta: O que resta de<br />
tudo o que descrevi? Será que de tudo<br />
isto só ficou a recordação? Muito<br />
mais do que isto, resta uma esperança!<br />
E no intuito de avivar essa esperança<br />
é que narrei estes fatos. Mas,<br />
de tudo isso só resta uma esperança?<br />
Não! Temos uma certeza! graças à<br />
promessa divina: “...as portas do inferno<br />
não prevalecerão contra ela”<br />
(Mt 16-18).<br />
Esta certeza nos<br />
diz que um dia, após<br />
lutas, provações e<br />
batalhas, os verdadeiros<br />
Natais reflorescerão<br />
na Terra. E<br />
quando se assistirem<br />
a esses Natais, talvez<br />
alguém se lembre<br />
desta descrição<br />
que acabo de fazer,<br />
e tenha a convicção<br />
viva de que não é algo<br />
que está nascendo,<br />
mas é uma longa<br />
concatenação histórica<br />
que sai do fundo<br />
das águas da provação<br />
e volta à luz. Trata-se<br />
da verdadeira<br />
alegria do Santo Natal<br />
de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo.<br />
Natais mais<br />
belos do que<br />
os de outrora<br />
Apesar de toda<br />
a decadência que se nota nas festas<br />
de Natal atualmente, se comparadas<br />
com as de meu tempo, não hesito em<br />
afirmar que o Natal dos que, hoje<br />
Na noite de Natal, chegando à igreja<br />
para a Missa do Galo, esta se encontrava<br />
feericamente iluminada, o altar estava<br />
todo enfeitado com flores, e numa<br />
manjedoura via-se o Menino Jesus<br />
deitado. Depois da Missa, tinha-se a<br />
impressão de que as graças de Natal<br />
se difundiam por todas as casas.<br />
Imagem de Nossa Senhora de Fátima venerada numa<br />
das sedes do Movimento fundado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
em dia, lutam para permanecer fiéis<br />
ao verdadeiro espírito católico é ainda<br />
mais bonito do que os de outrora.<br />
E se eu, quando menino, pudesse ver<br />
como seriam os Natais que eu deveria<br />
passar nestes dias, sem dúvida exclamaria:<br />
“É para isso que eu nasci!”<br />
Devemos, pois, lembrar que essas<br />
alegrias de Natal, sob o sorriso de<br />
Nossa Senhora, descerão sobre nós,<br />
ainda que estejamos na mais terrível<br />
aflição. Também nos deve animar a<br />
confiança de ver realizada a promessa<br />
de Nossa Senhora em Fátima:<br />
“Por fim, o meu Imaculado Coração<br />
triunfará!” Quando isto se der, que<br />
suavidade, harmonia e doçura terão<br />
as festas do Santo Natal de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo! v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 21/12/1984)<br />
R. Solera<br />
11
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
A eternidade numa<br />
mudança de ano…<br />
Ao transpor os portais de um novo ano, sente-se, como que,<br />
o roçar da eternidade. De fato, é mais um período de nossas vidas<br />
que fica para trás, a respeito do qual devemos fazer um<br />
exame de consciência, pedindo a Nossa Senhora que cubra<br />
com seu manto o que nele não foi belo.<br />
Esta é a última reunião de sábado<br />
à noite de 1988, pois<br />
no próximo sábado teremos<br />
o Santo Natal. Os portais de um ano,<br />
trezentos e sessenta e cinco dias, se<br />
escoam e os portais de outro ano se<br />
abrem. O passado se encerra e fica<br />
um ano para trás; o futuro se abre e<br />
temos um ano pela frente.<br />
A eternidade é bela, mas só podemos<br />
calcular sua pulcritude por meio<br />
de algumas comparações. Fomos<br />
criados dentro do tempo e, por causa<br />
disso, só compreendemos as coisas<br />
em função do tempo.<br />
Fomos criados na matéria, temos<br />
um corpo material. Vivemos dentro<br />
deste globo. Como nós, que estamos<br />
imersos no tempo, podemos calcular<br />
o esplendor da eternidade? Os homens<br />
não se sentem tão atraídos pelo<br />
Céu quanto deveriam, porque têm<br />
dificuldade em imaginar como será a<br />
eternidade.<br />
Sentir o roçar da<br />
eternidade<br />
Se dissermos para uma pessoa:<br />
“Você vai para a eternidade, deixará<br />
as aflições do tempo e gozará as<br />
glórias da eternidade” — há o Purgatório;<br />
quem sabe o que lá sucederá,<br />
e por quanto tempo? —, ela poderá<br />
se perguntar: “Mas como é essa<br />
eternidade? Fica tudo parado? O<br />
que lá acontece?”<br />
Para se ter ideia do que é a eternidade<br />
e da sua beleza, deve-se considerar<br />
o seguinte: o tempo vale muito<br />
menos do que a eternidade, porque<br />
aquele é próprio para nós mortais<br />
e a eternidade é própria para os<br />
imortais, que nunca perecerão. Então,<br />
basta estarmos ligados à morte<br />
para entendermos que o tempo seja<br />
muito menos belo do que a eternidade.<br />
Porque a morte, a qual não deixa<br />
de ter sua beleza, é muito menos<br />
bela do que a vida. Então, para compreendermos<br />
a eternidade, temos<br />
que entender a beleza do tempo.<br />
Esta mudança de ano, na qual estamos,<br />
é uma dessas situações em<br />
que se sente o roçar da eternidade,<br />
pois um ano de nossas vidas se encerra.<br />
Se um homem, por exemplo, que<br />
viveu muito tempo numa cidade,<br />
muda-se para uma localidade noutro<br />
extremo do país, adota outra profissão,<br />
tem outras relações, ele passa<br />
para um mundo diferente; uma<br />
etapa de sua existência se encerra e<br />
outra se abre. Para esse homem isto<br />
tem muita significação, porque tudo<br />
o que se passou fica como um bloco<br />
na vida dele, o qual, no interior de<br />
sua alma, só ele mesmo conhece. Os<br />
fatos externos de sua existência os<br />
outros poderão conhecer. Se for um<br />
personagem célebre, os historiadores<br />
escreverão sobre o que ele disse<br />
ou fez, o que fizeram contra e a favor<br />
dele. Quem poderá escrever o que se<br />
passou em sua mente? Ora, a essência<br />
da vida de um homem é o que se<br />
passa em sua alma, a qual é fechada<br />
para todo mundo. E ninguém conhece<br />
essas coisas, a não ser Deus e<br />
aqueles a quem Ele resolver revelar.<br />
No dia do Juízo Final<br />
tudo será revelado de<br />
forma estupenda<br />
Isto será revelado aos olhos de todos<br />
os homens, no dia do Juízo Final,<br />
quando tudo o que se passou em<br />
nós de interno e externo, referente<br />
à nossa santificação, aos nossos pecados,<br />
Deus vai revelar e julgar. Todos<br />
os homens que houve, há e haverá<br />
até o fim do mundo, salvos ou<br />
precitos, assistirão a isso. Uns já garantiram<br />
o Céu e terão ressuscitado<br />
pouco antes de o Filho de Deus<br />
vir para julgar os vivos e os mortos.<br />
Outros foram condenados ao Infer-<br />
12
S. Hollmann<br />
No dia do Juízo<br />
Final, tudo quanto<br />
se passou em nós<br />
será revelado aos<br />
olhos de todos os<br />
homens. Sejam eles<br />
santos ou precitos,<br />
todos assistirão.<br />
Pórtico do Juízo Final - Catedral de Notre Dame, Paris (França).<br />
no. O Purgatório estará vazio, porque<br />
todos que nele estiverem irão<br />
para o Céu e não para o Inferno. Os<br />
que já estão no Inferno ressuscitaram<br />
num corpo que vai aumentar o<br />
tormento deles. E não só a História<br />
dos homens, mas das nações, das civilizações,<br />
das culturas, das instituições,<br />
tudo vai ser revelado de forma<br />
estupenda.<br />
E o Juízo não será demorado, como<br />
se poderia pensar, porque para<br />
as pessoas que estão nesse estado o<br />
tempo não conta. Podemos ter ideia<br />
do que será sua rapidez pelo seguinte:<br />
há vários depoimentos de pessoas<br />
que passaram por risco de morte<br />
e contam que, em determinado<br />
momento,<br />
toda a sua vida lhes<br />
passou diante do espírito.<br />
Ora, se toda a<br />
existência se mostra<br />
em minutos, compreendemos<br />
como as coisas<br />
podem ser comprimidas<br />
sem tirar nada.<br />
Nesse lance estupendo,<br />
sem sentirmos<br />
cansaço — nem<br />
sei se se pode falar de<br />
tempo, nesse momento<br />
em que todos estão<br />
entrando para a eternidade<br />
—, veremos<br />
tudo e cada um será<br />
mandado para o seu<br />
lugar, para onde a justiça<br />
divina o encaminhou.<br />
Nas épocas e nas situações<br />
em que vemos<br />
o tempo passar, percebemos<br />
também a beleza<br />
do tempo. Quer dizer,<br />
quando uma coisa<br />
existe, está funcionando,<br />
nota-se sua beleza<br />
ou feiura. E quando,<br />
por exemplo, uma<br />
instituição deixa de<br />
funcionar e cai no passado,<br />
a partir deste ela é vista numa<br />
perspectiva especial, e podem-se notar<br />
belezas e aspectos que quando<br />
ela estava viva não se percebiam.<br />
Uma almofadazinha<br />
para prender alfinetes<br />
Estou me lembrando de um caso<br />
que minha mãe me contou uns vinte<br />
anos antes de morrer. Ela já estava<br />
idosa, e, certa vez, foi sozinha visitar<br />
uma amiga que se tinha mudado<br />
havia pouco para perto de sua casa.<br />
A amiga, que a recebeu muito bem,<br />
tinha móveis bastante bons e na sala<br />
de visita de sua residência havia uma<br />
vitrine com objetos<br />
curiosos, antigos. Ela<br />
disse a minha mãe:<br />
— Lucilia, você<br />
quer ver uns objetos<br />
interessantes que eu<br />
tenho na vitrine?<br />
Minha mãe olhou<br />
os objetos, achou tudo<br />
muito interessante.<br />
Havia grande liberdade<br />
entre ambas e mamãe<br />
perguntou-lhe:<br />
— Tudo que está na<br />
sua vitrine é tão fino,<br />
tão bonito, mas eu não<br />
compreendo por que<br />
você guarda entre esses<br />
objetos uma almofadazinha.<br />
No fim do Império<br />
e no começo da República,<br />
as senhoras,<br />
além de outros trabalhos<br />
domésticos, costuravam<br />
e usavam<br />
uma almofadazinha<br />
para prender alfinetes.<br />
A amiga respondeu:<br />
— Isso é uma verdadeira<br />
raridade histórica,<br />
e eu vou lhe<br />
contar.<br />
13
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Então, ela narrou o seguinte fato:<br />
Um passado que aparece<br />
com toda a sua beleza<br />
Essa senhora era muito monarquista<br />
e tinha uma amiga que era<br />
esposa de Campos Sales, ex-presidente<br />
da República do Brasil, a<br />
qual lhe contou que, devido à proclamação<br />
da República, a família<br />
do Imperador foi exilada, tendo levado<br />
consigo os objetos que puderam,<br />
mas deixando muita coisa no<br />
palácio imperial. Logo depois, algumas<br />
senhoras tiveram curiosidade<br />
em visitar tal palácio, que estava<br />
sendo dirigido por autoridades da<br />
República. Obtiveram licença facilmente,<br />
porque eram casadas com<br />
líderes republicanos que exerciam<br />
o poder.<br />
O palácio estava fechado, silencioso,<br />
ainda ornado com flores já<br />
murchas. Ninguém tinha lá entrado,<br />
ninguém havia movido nada. Sobre<br />
uma mesa, um chapéu atirado por<br />
alguém que entrara no palácio pouco<br />
antes da proclamação da República<br />
e ali o deixara… Era um sinal de<br />
coisa ainda viva.<br />
Elas foram olhando tudo aquilo, e<br />
a esposa de Campos Sales, bem como<br />
as outras que lá estavam, começaram<br />
a ter uma espécie de sentimento<br />
de tristeza, que provocava um<br />
aperto na garganta. E, quando chegaram<br />
ao quarto de dormir da Imperatriz,<br />
viram objetos de uma mãe<br />
de família que não pudera mexer<br />
em nada, por ter saído correndo. Foi<br />
uma tristeza tão pungente que não<br />
conversavam mais entre elas; apenas<br />
olhavam…<br />
Esta senhora viu aquele passado<br />
num todo, cujas portas eram fechadas<br />
pelo presente. Tudo aquilo estava<br />
afundado no passado, deixou de<br />
ser, como que empurrado para o não<br />
ser. Ela observou tudo o que se perdia,<br />
se desfazia. E, considerando o<br />
desastre daquela família, mandada<br />
embora depois de governar durante<br />
tanto tempo o Brasil, ficou com tanta<br />
tristeza e pena que quis guardar<br />
uma recordação daquilo.<br />
Mas todos os objetos eram de valor,<br />
e ela não poderia levar nenhum<br />
deles. Como havia sido encontrado<br />
aquele travesseirinho que a Imperatriz<br />
usava, e era uma coisa sem nenhum<br />
valor monetário, a esposa de<br />
Campos Sales jeitosamente o apanhou<br />
e o levou para sua casa, para<br />
nunca mais se esquecer da Imperatriz.<br />
O curioso foi que essa senhora<br />
continuou republicana, porém via<br />
agora o Império perdido nas brumas<br />
e na grandeza de todo um passado<br />
que formava um bloco, saído de dentro<br />
das escórias do presente e aparecia<br />
com toda a sua beleza. Assim, o<br />
passado surgia iluminado por uma<br />
luz nova e, por causa disso, ela tomava<br />
aquele objetozinho e o levava como<br />
uma espécie de relíquia.<br />
Quando estava para morrer, ela<br />
chamou essa amiga monarquista,<br />
contou-lhe o fato e disse-lhe:<br />
— Vou dar-lhe este objeto de presente,<br />
porque das minhas amigas você<br />
é a única capaz de compreender<br />
o que isto significa. Guarde consigo,<br />
porque é uma grande recordação.<br />
Pelo eco, vejo que todos os que<br />
se encontram neste auditório entendem<br />
perfeitamente o que isto quer<br />
dizer.<br />
No Museu Histórico do Rio de<br />
Janeiro eu vi um quadro que simbolizava<br />
bem isso.<br />
O baile da Ilha Fiscal<br />
Alguns dias antes da proclamação<br />
da República no Brasil, uma esquadra<br />
de guerra chilena, que estava<br />
fazendo um percurso mundial, ancorou<br />
no Rio de Janeiro, e a Marinha<br />
brasileira lhe ofereceu um baile.<br />
Estava sendo inaugurado nessa<br />
ocasião, numa ilha junto à cidade<br />
do Rio, chamada Ilha Fiscal, um prediozinho<br />
neogótico, e nesse local o<br />
baile seria realizado.<br />
Mas para se chegar até lá era preciso<br />
tomar um barco. O Imperador,<br />
já velho, foi de barco até a ilha, e no<br />
momento de passar para a terra firme,<br />
devido à flutuação do mar, perdeu<br />
um pouco o equilíbrio e quase<br />
caiu. Seguraram-no, e ele então disse:<br />
— A Monarquia escorrega, mas<br />
não cai.<br />
Falou como gracejo, e entrou para<br />
o baile. Durante este, começaram<br />
a chegar denúncias de que estava<br />
sendo tramada uma rebelião<br />
republicana. Contaram-me — não<br />
li isso em nenhum livro — que o<br />
comandante da esquadra chilena<br />
mandou oferecer suas forças ao Imperador<br />
a fim de mantê-lo no trono;<br />
se este quisesse, a esquadra bombardearia<br />
o Rio de Janeiro. Mas o<br />
Imperador declarou que não queria<br />
que a capital dele fosse bombardeada<br />
por estrangeiros, para ele permanecer<br />
no trono. E foi proclamada<br />
a República.<br />
O quadro existente no Museu<br />
Histórico do Rio de Janeiro, de um<br />
bom pintor nacional — se não me<br />
engano, Benedito Calixto —, apresenta<br />
o baile da Ilha Fiscal, com o<br />
prédio reluzente, cheio de pessoas.<br />
No céu, um duplo movimento.<br />
Numas nuvens brancas vem, representando<br />
a República que entra,<br />
uma mulher com uma túnica, barrete<br />
vermelho na cabeça, acompanhada<br />
de umas figuras mitológicas.<br />
De outro lado – é para isso que eu<br />
queria chamar a atenção dos presentes<br />
– o céu se abre e, se não me<br />
equivoco, anjos vão levando a coroa,<br />
o cetro e outras insígnias: é a<br />
Monarquia que se vai embora...<br />
Então, a República baixa para a<br />
terra, e a Monarquia é um passado<br />
que se encerra como um bloco<br />
e vai sendo conduzido para o céu.<br />
Quer dizer, o passado aparece embelezado,<br />
visto no seu conjunto co-<br />
14
mo uma coisa digna de penetrar na<br />
eternidade.<br />
É bonito o movimento pelo qual<br />
uma coisa se encerra, forma um<br />
bloco e sobe para o julgamento de<br />
Deus. Também é bonito o movimento<br />
de algo novo que entra e inicia na<br />
História outra caminhada. Como se<br />
deve saborear a vida, o tempo, conhecendo<br />
nas etapas da vida de cada<br />
um aquilo que acabou, subiu para<br />
um julgamento, e o que vai começar!<br />
Fazer uma ideia de conjunto desse<br />
tempo que foi e deitar um olhar para<br />
o tempo que vem.<br />
Então, se é bonito o tempo, como<br />
será bonita a eternidade!<br />
O rochedo que<br />
divide as águas<br />
Fecha-se um ano para a nossa vida.<br />
Todo ano é uma etapa. Pergunta-<br />
-se: que ideia de conjunto fazer dessa<br />
etapa?<br />
As reuniões de sábado à noite<br />
constituem uma parte dentro dessa<br />
etapa; com exceção do período em<br />
que eu estive na Europa, tive a alegria<br />
de encontrá-los aqui todos os<br />
sábados. Farei uma reflexão rápida a<br />
respeito disso.<br />
Todos nós tivemos luta. E a luta<br />
foi a nossa grande característica. Por<br />
quê?<br />
Imaginemos um rochedo num<br />
curso de água; ele recebe a investida<br />
contínua das águas e permanece<br />
de pé. O que foi esse ano para<br />
o rochedo? Foi luta! O curso<br />
das águas sempre lhe foi contrário,<br />
mas o rochedo continuamente<br />
as dividiu e meteu em reboliço<br />
a camada de água que passava<br />
perto dele. Assustou os peixes que<br />
passavam; algum peixe esmagou-<br />
-se contra a mole insensível e fria<br />
dele, e foi depois seguindo morto,<br />
água abaixo.<br />
O que se passa na massa líquida<br />
de um rio ninguém sabe. Mas uma<br />
coisa é certa: a água que bateu no rochedo<br />
não fica como era antes.<br />
A existência do rochedo foi luta.<br />
Assim fomos nós, graças a Deus, em<br />
1988. E foram, portanto, os que estão<br />
neste auditório, que formam comigo<br />
um só todo; foram na jovem e<br />
na juveníssima idade de alguns dos<br />
presentes.<br />
Ter-se-ia a ilusão: “Não! Na juventude<br />
só há saúde e não há luta!”<br />
Abrir o caminho<br />
nas águas revoltas<br />
da Revolução<br />
Que bobagem! Já fui jovem e cheguei<br />
a ter lutas tão árduas, que eu tinha<br />
inveja dos velhos. Eu pensava:<br />
“Estou vendo diante de mim um velho<br />
que não faz nada, oscilando na<br />
sua cadeira de balanço. Como eu daria<br />
de presente a minha juventude<br />
para acabar com a minha luta, poder<br />
refestelar-me e balançar! Mas abrir<br />
o meu caminho nas águas revoltas<br />
da Revolução que vêm em sentido<br />
oposto; deitar o meu peso num ponto,<br />
ficar nele, criar condições para<br />
que outros se agarrem a mim e não<br />
se deixem levar pelas águas, que luta,<br />
que batalha!”<br />
Porque todo homem tem, entre<br />
outros, um instinto chamado de sociabilidade,<br />
que nos leva a querer<br />
conviver com os outros. Deus disse<br />
no Paraíso Terrestre que não era<br />
bom para o homem que este ficasse<br />
só; por isso Ele criou Eva. Devi-<br />
S. Miyazaki<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência, em outubro de 1992.<br />
É bonito o movimento<br />
pelo qual algo se<br />
encerra, forma um<br />
bloco e sobe para o<br />
julgamento de Deus.<br />
Também é bonito o<br />
movimento de algo<br />
novo que entra e<br />
inicia na História<br />
outra caminhada.<br />
15
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
do ao instinto de sociabilidade, o homem<br />
tem necessidade de estar com<br />
outros. E quanto mais amplo o convívio,<br />
maior o bem-estar, a satisfação<br />
que tem o homem.<br />
Esse convívio, para corresponder<br />
ao instinto de sociabilidade, não<br />
se satisfaz só porque é um convívio,<br />
mas porque nele se encontra uma<br />
harmonia de alma. Se há desarmonia,<br />
antes só que mal-acompanhado<br />
— diz um provérbio.<br />
Suponhamos que um homem esteja<br />
navegando sozinho num barco<br />
e pense várias vezes: “Como seria<br />
bom que eu tivesse um companheiro.”<br />
Aproxima-se outro barco e lhe<br />
dizem:<br />
— Você quer ter um companheiro<br />
muito cacete que só diz bobagens ou<br />
blasfêmias?<br />
— Não! Fico sozinho! Por mais<br />
terrível que seja a solidão, antes só<br />
que mal- acompanhado.<br />
Para quem tem a Fé católica,<br />
apostólica, romana, como nós temos,<br />
a vida é uma solidão em todos<br />
os ambientes em que encontramos a<br />
heterogeneidade, o desacordo, a incompreensão,<br />
a fricção, às vezes descortesias,<br />
esquivamentos e até agressões,<br />
não físicas, mas pelo menos<br />
agressões morais. E para a pessoa<br />
suportar isto, a vida é terrível.<br />
Viver isolado é<br />
grande sofrimento<br />
Lembro-me de que certa ocasião<br />
li o resumo de um romance, escrito<br />
por um francês que fazia previsão<br />
do fim da Igreja Católica. Então,<br />
descrevia o último católico da Terra.<br />
Era um homem que vivia num isolamento<br />
completo, porque ninguém o<br />
entendia, ninguém queria saber nada<br />
dele. Esse homem tinha os meios<br />
com que satisfazer materialmente as<br />
suas necessidades, vivia no meio dos<br />
outros, mas era um estranho para<br />
todo mundo. No momento em que<br />
exalou o último suspiro, morreu com<br />
ele o último membro da Igreja Católica.<br />
A hipótese é uma blasfêmia, porque<br />
Nosso Senhor prometeu que<br />
as portas do inferno não prevaleceriam<br />
contra a Igreja. Mas, a história<br />
faz sentir bem o isolamento tremendo<br />
de um de nós, se vivesse sozinho,<br />
mantendo-se fiel.<br />
Imaginemos que um de nós receba<br />
a ordem de ir morar na Birmânia<br />
para lá fundar uma sede de nosso<br />
Movimento. Vai para aquele país e<br />
trabalha para a fundação, dizendo às<br />
pessoas que se trata de uma enorme<br />
organização também existente noutros<br />
lugares.<br />
De repente, ele recebe um telegrama<br />
afirmando que as sedes de<br />
nosso Movimento foram fechadas<br />
em todos os lugares do mundo. A<br />
pessoa não terá mais contato com<br />
ninguém de nossa Associação, mas<br />
apenas com birmaneses; não há dinheiro<br />
para voltar a seu país de origem.<br />
A Birmânia é pagã. Ele precisa<br />
morar sozinho e escolhe o único<br />
lugar onde se pode viver só: à beira-<br />
-mar… Pelo menos, o mar conversa<br />
com ele.<br />
De noite, após o jantar, as ocupações<br />
do dia terminaram, ele vai para<br />
o terraço da casa, que fica perto das<br />
ondas, e ouve o som do mar. As ondas<br />
vão e voltam. Tudo sempre diferente,<br />
porém, no fundo, tudo sempre<br />
repetido. Olha para aquilo e pensa:<br />
“Esse murmúrio perpétuo das ondas<br />
é o murmúrio da minha solidão; estou<br />
isolado, que coisa terrível!”<br />
Os que estão neste auditório são<br />
salvos disso exatamente pelo nosso<br />
Movimento, porque ele constitui em<br />
torno de nós um ambiente onde encontramos<br />
concórdia, simpatia, consonância,<br />
a sociabilidade. Pondo o<br />
pé fora do portão desta sede, encontramos<br />
o contrário.<br />
Mas daqui de dentro sentimos a<br />
nossa solidão coletiva. Nosso Movimento<br />
é como a pedra colocada dentro<br />
do rio: as águas passam e a pedra<br />
fica; e vai marcando a história das<br />
águas do rio.<br />
O Sol sempre está<br />
iluminando alguma<br />
das sedes de nosso<br />
Movimento<br />
Apesar da hostilidade dos ambientes<br />
de fora, nós lutamos de tal<br />
maneira que trazemos gente de dentro<br />
da multidão para vir participar<br />
do nosso isolamento.<br />
E ingressam em nosso Movimento<br />
pessoas das mais diversas nações.<br />
A respeito de Carlos V, Imperador<br />
do Sacro Império Romano Alemão<br />
e Rei da Espanha, foi dito: o Sol não<br />
se punha nos seus domínios. Ele era<br />
senhor de um império tão vasto que<br />
abrangia as nações de língua alemã,<br />
uma parte da Itália, Países Baixos, a<br />
Espanha, e depois todo o mundo ibero-americano.<br />
De maneira que quando<br />
numa parte do império dele o Sol<br />
estava se pondo, do outro lado do seu<br />
império o Sol começava a renascer.<br />
Assim, também, com nosso Movimento.<br />
Hoje há alguma coisa mudada na<br />
história do Sol: nunca deixa de iluminar<br />
uma sede nossa. Se se pudesse<br />
dizer, afirmar-se-ia que há algo novo<br />
na história do Céu: ele nunca mais<br />
deixará de contemplar — pelo menos<br />
enquanto nossa Associação existir<br />
— um filho dele que está lutando<br />
e rezando nesta Terra.<br />
E um pensamento que os aqui presentes<br />
poderiam cultivar na hora de<br />
dormir seria este: na outra parte da<br />
Terra há um membro de nosso Movimento<br />
que está acordando. Como seria<br />
bonito se, antes de conciliar o sono,<br />
rezassem a Nossa Senhora uma<br />
rápida jaculatória por esse irmão distante<br />
e, às vezes, desconhecido!<br />
A jaculatória poderia ser “Regina<br />
Apostolorum, ora pro nobis.” Somos<br />
apóstolos, vamos rezar por aquele<br />
que está acordando, para que seu<br />
16
despertar seja tonificante; por<br />
aquele que está dormindo, a<br />
fim de que seu sono seja bom;<br />
pelo que já está agindo, para<br />
que sua ação seja reta, trabalhando<br />
a fim de trazer gente<br />
para nosso Movimento.<br />
Pedir a Nossa<br />
Senhora, antes de<br />
tudo, a perseverança<br />
F. Lecaros<br />
Durante este ano, os que estão<br />
aqui fizeram um esforço<br />
ativo e excelente de recrutamento,<br />
arrancaram muitos jovens<br />
ao mundo, introduzindo-<br />
-os no jardim santo de nossa<br />
Associação. Mas o mundo continuou<br />
a bombardear esse jardim<br />
com suas seduções, atrações,<br />
mentiras, promessas. E<br />
não foram poucos os que passaram<br />
um tempo limitado nesse<br />
jardim, e depois saíram.<br />
Há este fato preponderante<br />
na história individual de cada<br />
um dos presentes e na história<br />
do querido conjunto dos<br />
enjolras 1 de nosso Movimento: atraíram<br />
muitos, vários saíram, mas os<br />
que ficaram permaneceram porque<br />
trabalharam na fixação deles.<br />
Mais ainda, os que estão aqui também<br />
foram bombardeados. Pela graça<br />
de Nossa Senhora, não saíram. Que<br />
coisa bonita! Os anos passam e estão<br />
no solo sagrado de nossa Associação.<br />
Na minha velha idade, o que peço<br />
a Nossa Senhora? Antes de tudo,<br />
perseverança, perseverança, perseverança!<br />
Tudo quanto fiz de bom e<br />
merece continuar, que continue e se<br />
desenvolva.<br />
Poder-se-ia fazer nessa ocasião<br />
uma prece muito bonita que está no<br />
“Te Deum”: “Dignare, Domine, die<br />
isto sine peccato nos custodire — Dignai-vos,<br />
Senhor, guardar-nos sem<br />
pecado neste dia.” Nós poderíamos<br />
dizer: “Dignare, Domina, anno isto<br />
sine peccato nos custodire.” Nossa Se-<br />
A Virgem e o Menino - Catedral de Santo<br />
Domingo de la Calzada, La Rioja (Espanha).<br />
nhora, Nossa Mãe, levai-nos até a<br />
outra ponta do ano sem a menor poeira<br />
de um pecado.<br />
Exame de consciência<br />
compungido e alegre<br />
Neste ano que se encerra, que<br />
tentações cada um dos aqui presentes<br />
enfrentou? Que provações internas<br />
teve? Quantas vezes venceu essas<br />
provações internas, ou não as venceu?<br />
O que foi a vida interior de cada<br />
um? A resposta cada um saberá dar.<br />
Se Deus quiser, todos transporão<br />
este ano rezando, com as mãos postas.<br />
E o coração está posto tão alto<br />
quanto no ano passado? Ou menos<br />
alto? Não o sei… Cada um dos presentes<br />
o pode saber.<br />
Que bela pergunta ao encerrar o<br />
ano: “Meu Deus, como estou?” Devemos<br />
fazer um exame de consciência<br />
ao mesmo tempo compungido<br />
e festivo. Porque quando<br />
um homem faz um exame<br />
de saúde e vê que está são, ele<br />
se alegra. Mas quando percebe<br />
que está doente, fica apreensivo;<br />
porém, se ao mesmo<br />
tempo lhe informam: “Fulano,<br />
aqui nesta cidade há um<br />
médico que cura essa doença,<br />
porque tem um remédio ótimo”,<br />
ele se alegra. Não é a alegria<br />
da saúde, mas a alegria da<br />
saúde que ele vai recuperar. E<br />
se lhe dizem: “Não é o médico<br />
que vai curá-lo, mas a melhor<br />
das mães, com o melhor<br />
dos remédios, e com o sorriso<br />
d’Ela”, ele quase dirá: “Valeu a<br />
pena ter estado doente.” Essa<br />
mãe é Nossa Senhora.<br />
E se o balanço do ponto de<br />
vista interior não foi positivo<br />
para nós, tenhamos ânimo e<br />
ânimo redobrado, porque Maria<br />
Santíssima é Mãe de Misericórdia.<br />
Digamos a Nossa Senhora:<br />
“Minha Mãe, está passando<br />
o ano. Uma etapa se encerrou.<br />
Pousai vosso manto sobre<br />
aquilo que não é belo em minha alma.<br />
Olhai para o que é belo, olhai para<br />
o vosso Coração. E dai-me de vosso<br />
Coração novas belezas de alma para<br />
o ano que vem.” Assim, transporemos<br />
com ânimo este ano, e abriremos<br />
1989 com a chave de ouro, chave com<br />
duas voltas, cujos nomes são: Confiança<br />
e Devoção a Maria. É o que de<br />
todo o coração lhes desejo. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 17/12/1988)<br />
1) Palavra afetuosa utilizada por <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> para designar seus jovens discípulos,<br />
surgidos aproximadamente<br />
a partir de 1970. Havia neles acentuado<br />
grau de debilidade, se comparados<br />
com aqueles que os antecederam,<br />
os da “geração nova” (cf. “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>”<br />
número 81, p. 17).<br />
17
Calendário dos Santos –––––––––<br />
1. Santo Elói, Bispo e Confessor<br />
(†França, 659). Afamado mestre de<br />
ourivesaria, Elói apresentou-se para<br />
confeccionar um trono de ouro<br />
para o Rei Clotário II. Sendo honestíssimo,<br />
com o ouro recebido ele<br />
fez não somente um, mas dois tronos,<br />
e os entregou ao rei. Admirado<br />
com a honestidade do artista, Clotário<br />
o nomeou guardião e administrador<br />
do tesouro real. Depois de<br />
muitos anos de bons serviços ao rei<br />
e ao reino, o antigo ourives foi feito<br />
Bispo de Noyon.<br />
2. Santa Bibiana, Virgem e Mártir<br />
(†Roma, 363). Seu pai, Flaviano,<br />
antigo prefeito de Roma, e sua mãe,<br />
Dafrosa, foram martirizados durante<br />
o curto e ímpio reinado de Juliano<br />
o Apóstata. Também ela foi chicoteada<br />
até à morte.<br />
3. São Francisco Xavier, Confessor<br />
(†Costa da China, 1552). Converteu<br />
e batizou milhares de pagãos<br />
na Índia, no Japão e em outras<br />
nações do Oriente. Faleceu aos 46<br />
anos de idade, no momento em que<br />
se aproximava da China. É o patrono<br />
dos missionários católicos.<br />
4. II Domingo do Advento.<br />
5. São Sabas, Confessor. Pela<br />
sua virtude eminente, foi chamado<br />
“a pérola do Oriente”. Fundou,<br />
perto de Jerusalém, o mosteiro em<br />
que dois séculos depois viveria São<br />
João Damasceno. É considerado<br />
um dos principais organizadores do<br />
monaquismo palestino.<br />
Fotos: F. Lecaros.<br />
Santo Elói - Museu Nacional da<br />
Arte, Barcelona (Espanha).<br />
6. São Nicolau, Bispo e Confessor<br />
(†Ásia Menor, 324). Participou<br />
do Concílio de Niceia, no qual<br />
foi condenada a heresia ariana. Na<br />
abertura desse concílio, o Imperador<br />
Constantino ajoelhou-se diante<br />
de São Nicolau e de outros santos<br />
varões que haviam padecido durante<br />
a perseguição de Diocleciano,<br />
e beijou com respeito suas gloriosas<br />
cicatrizes.<br />
7. Santo Ambrósio, Bispo, Confessor<br />
e Doutor da Igreja (†Milão,<br />
397). Os fiéis da Diocese de Milão,<br />
inspirados por Deus, o aclamaram<br />
seu bispo. Àquela altura, Ambrósio<br />
era apenas catecúmeno e ainda não<br />
havia recebido o Batismo. Mas foram<br />
tão claros os sinais de que era a<br />
voz de Deus que naquele momento<br />
falava pela boca dos populares que,<br />
depois de alguma hesitação, Ambrósio<br />
aceitou. Foi batizado, ordenado<br />
sacerdote e sagrado bispo.<br />
8. Imaculada Conceição da Santíssima<br />
Virgem (séc. XIX).<br />
9. Santa Leocádia, Virgem e<br />
Mártir (†Toledo, 304). Cristã fervorosa,<br />
foi presa durante a perseguição<br />
de Diocleciano. Confessou com<br />
firmeza sua Fé em Jesus Cristo, foi<br />
torturada atrozmente e recebeu a<br />
palma do martírio.<br />
10. Santa Joana Francisca de<br />
Chantal, Religiosa (†França, 1641).<br />
Foi mãe de seis filhos, os quais educou<br />
na piedade. Após a morte do<br />
marido, levou uma admirável vida<br />
de perfeição, sob a direção de São<br />
Francisco de Sales.<br />
11. III Domingo do Advento.<br />
12. Nossa Senhora de Guadalupe,<br />
Padroeira Principal da América<br />
Latina (séc. XVI).<br />
13. Santa Luzia, Virgem e Mártir<br />
(†Sicília, séc. IV). Vivia em Siracusa,<br />
na Sicília, e tinha consagrado<br />
a Deus sua virgindade. Chamada<br />
pelo prefeito de Siracusa, confessou<br />
a crença em Jesus Cristo e foi<br />
por isso decapitada.<br />
14. São João da Cruz, Confessor<br />
e Doutor da Igreja (†Ubeda, Espanha,<br />
1591). Foi colaborador de Santa<br />
Teresa d’Ávila na reforma da Ordem<br />
carmelita. Dele diz o Martirológio<br />
Romano-Monástico: “seu zelo e<br />
o sucesso de seus esforços causaram-<br />
-lhe provações humilhantes, que lhe<br />
ensinaram a subir, dentro da noite<br />
escura, até à experiência mística do<br />
nada do homem diante da Majestade<br />
Divina”.<br />
15. São Mesmino, Confessor<br />
(†França, séc. VI). Fundou o mosteiro<br />
de Micy, perto de Orléans, numa<br />
propriedade que o Rei Clóvis<br />
lhe dera. Foi o primeiro abade desse<br />
mosteiro e teve como discípulos<br />
São Calázio e Santo Avito.<br />
16. Santa Adelaide, Imperatriz<br />
e Viúva (†Sehl, Alemanha, 999).<br />
18
–––––––––––––– * Dezembro * ––––<br />
Foi regente do Sacro Império Romano-Alemão<br />
durante a menoridade<br />
de seu filho Oto II e, mais tarde,<br />
durante a menoridade de seu neto<br />
Oto III. Colaborou ativamente com<br />
Santo Odilon, abade de Cluny, na<br />
expansão da reforma cluniacense<br />
pelo mundo germânico.<br />
17. Santa Olímpia, Viúva (†Bitínia,<br />
Ásia Menor, 408). Enviuvando<br />
aos 20 anos de idade, não quis<br />
contrair novo casamento, mas resolveu<br />
consagrar-se inteiramente a<br />
Deus, e utilizou sua imensa riqueza<br />
na fundação de um hospital e um<br />
orfanato, servidos por religiosas das<br />
quais ela era superiora.<br />
18. IV Domingo do Advento.<br />
19. Beato Urbano V, Papa e Confessor<br />
(†Avignon, 1370). Subiu ao<br />
sólio pontifício em 1362 e se esforçou<br />
para fazer retornar a Sé Apostólica<br />
a Roma, mas não foi bem sucedido<br />
e precisou regressar a Avignon.<br />
20. São Domingos de Silos, Confessor<br />
(†Castela, 1073). Nasceu no<br />
reino de Navarra, onde ingressou<br />
na Ordem beneditina, mas precisou<br />
transferir-se para o reino de Castela<br />
porque injustamente perseguido<br />
pelas autoridades locais. Em Castela<br />
coube-lhe restaurar a velha abadia<br />
de Silos, que se encontrava decadente<br />
e moribunda.<br />
21. São Pedro Canísio, Confessor<br />
e Doutor da Igreja (†Friburgo,<br />
1597). Pelos seus escritos e pela<br />
sua palavra inflamada, esse filho de<br />
Santo Inácio de Loyola conseguiu<br />
opor uma barreira sólida aos avanços<br />
da heresia luterana. Os católicos<br />
alemães e suíços o veneram, a<br />
justo título, como o segundo Apóstolo<br />
de suas pátrias.<br />
São Domingos de Silos - Museu de<br />
Belas Artes, Bilbao (Espanha).<br />
22. Santa Francisca Xavier Cabrini,<br />
Virgem (†Illinois, 1917).<br />
Fundou a Congregação das Irmãs<br />
Missionárias do Sagrado Coração<br />
de Jesus, destinada a dar assistência<br />
aos emigrantes. Estendeu sua<br />
obra a numerosos países, cruzando<br />
o Atlântico trinta vezes.<br />
23. São João Câncio, Confessor<br />
(†Cracóvia, 1473). Foi preceptor<br />
de príncipes da Casa real polonesa.<br />
Faleceu aos 83 anos de idade, depois<br />
de se ter santificado na prática<br />
virtuosa do estudo e do ensino, assim<br />
como no exercício das funções<br />
de vigário numa paróquia.<br />
24. São Charbel Makhlouf, Confessor<br />
(†Líbano, 1898). Passou a<br />
maior parte da vida como monge<br />
contemplativo e solitário, praticando<br />
jejuns e penitências, em contínua<br />
oração.<br />
25. Natal de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo.<br />
26. Santo Estevão, Protomártir<br />
(†Jerusalém, séc. I). Pregava admiravelmente<br />
e obtinha numerosas<br />
conversões para o Cristianismo, razão<br />
pela qual incorreu no ódio dos<br />
judeus inimigos da Igreja nascente.<br />
Preso e condenado como blasfemador,<br />
foi apedrejado.<br />
27. São João, Apóstolo e Evangelista<br />
(†Éfeso, séc. I). Foi discípulo<br />
de São João Batista antes de ser<br />
o Discípulo amado de Nosso Senhor.<br />
No alto do Calvário, representou<br />
a Humanidade quando recebeu<br />
como Mãe a Maria Santíssima,<br />
e foi a Ela entregue como filho.<br />
28. Santos Inocentes, Mártires<br />
(séc. I). Embora não tivessem uso<br />
da razão, morreram por Cristo Jesus,<br />
e por isso a Igreja os honra com<br />
o título de mártires.<br />
29. São Tomás Becket, Bispo<br />
e Mártir (†Cantuária, 1170).<br />
Em consequência dos choques cada<br />
vez mais violentos com Henrique<br />
III, São Tomás precisou fugir<br />
para a França, onde esteve exilado<br />
por seis anos. Mais tarde retornou<br />
a sua diocese, mas recomeçaram<br />
os conflitos e o Santo acabou<br />
assassinado brutalmente por partidários<br />
do rei.<br />
30. Sagrada Família.<br />
31. São Silvestre I, Papa e Confessor<br />
(†Roma, 335). Coube-lhe a<br />
tarefa de iniciar a organização da<br />
vida da Igreja em condições de normalidade,<br />
às quais ela não estava<br />
habituada, depois de 250 anos de<br />
clandestinidade. Foi sob São Silvestre<br />
que começaram a ser estabelecidas,<br />
como locais de culto, as grandes<br />
basílicas romanas.<br />
19
Dona Lucilia<br />
Carinho extremo...<br />
À primeira vista, dir-se-ia que veneração e ternura são<br />
incompatíveis, mas, na realidade, tais sentimentos se<br />
confundem a propósito do carinho: sentindo-se objeto<br />
do carinho materno, o filho deseja retribuí-lo.<br />
Aveneração é a manifestação<br />
do grande respeito que um<br />
ser inferior presta a um superior.<br />
Em princípio, o superior tem o<br />
direito de julgar e punir o inferior.<br />
A mãe, embora anciã e sem forças,<br />
continua tendo o poder e o direito<br />
de castigar seu filho maior de idade.<br />
Para um filho que sabe o que é<br />
uma mãe, e uma mãe que entende<br />
o significado deste título — portanto<br />
é mãe no sentido próprio, direto<br />
e pleno da palavra —, uma censura,<br />
um conselho, um elogio feito pela<br />
mãe tem o peso que poucas coisas<br />
humanas possuem. Só um elogio,<br />
um conselho ou uma censura da<br />
Santa Igreja podem pesar mais sobre<br />
um homem.<br />
Essa veneração envolve certo<br />
elemento que a Igreja, empregando<br />
muito bonita expressão, define<br />
como temor reverencial; ou seja,<br />
o temor que se tem a uma pessoa<br />
não tanto devido à força de que<br />
ela dispõe, quanto ao respeito que<br />
impõe.<br />
Então, o temor reverencial que<br />
o filho tem para com a mãe parece<br />
ser o contrário do carinho. Porque<br />
o carinho é de modo especial o afeto<br />
que o mais velho, mais poderoso,<br />
mais pleno dá àquele que é mais fraco,<br />
mais débil.<br />
Veneração, ternura<br />
e carinho<br />
Pode-se falar, por exemplo, do carinho<br />
de uma mãe para com seu filho.<br />
É mais difícil falar do carinho de<br />
um filho para com sua mãe. O próprio<br />
“inho” da palavra “carinho”<br />
tem qualquer coisa que soa aos nossos<br />
ouvidos como se fosse um diminutivo,<br />
o qual vai bem para quem é<br />
mais em relação a quem é menos; e<br />
não tão bem para aquele que é menos<br />
relativamente a quem é mais.<br />
Na realidade, porém, a veneração<br />
e a ternura se confundem completamente,<br />
a propósito do carinho. Quer<br />
dizer, o filho, sentindo-se objeto do<br />
carinho da mãe, tem um desejo de<br />
retribuí-lo; o carinho da mãe desperta<br />
o carinho no coração do filho.<br />
De maneira tal que um homem poderá<br />
ser durante toda a sua vida particularmente<br />
bom, misericordioso,<br />
condescendente — no bom sentido da<br />
palavra — se ele teve uma mãe muito<br />
carinhosa. Porque nasce no coração<br />
dele o carinho e, portanto, todas as<br />
formas de bondade. Ele gosta até de<br />
se sacrificar, de fazer alguma coisa difícil<br />
por quem merece seu carinho.<br />
Então, o carinho materno jorrando<br />
sobre o filho é como a água que<br />
cai de grande altura sobre uma pedra.<br />
Quanto maior a altura, mais a<br />
água sobe de novo ao bater na pedra.<br />
Assim é o carinho materno: verte-se<br />
sobre o filho e deste como que<br />
respingam gotas de água, as quais se<br />
pudessem voltariam ao alto.<br />
O equilíbrio dessas duas coisas<br />
faz propriamente o equilíbrio do homem,<br />
porque quando ele só quer impor<br />
o respeito dos outros, mas não<br />
sabe ser afetuoso, fica faltando algo;<br />
e quando apenas é afetuoso, porém<br />
não sabe impor respeito, ele não é<br />
<strong>Plinio</strong>, numa praia em Santos.<br />
20
A veneração e a<br />
ternura se confundem<br />
completamente, a<br />
propósito do carinho.<br />
O filho, sentindo-se<br />
objeto do carinho da<br />
mãe, tem um desejo de<br />
retribuí-lo; o carinho da<br />
mãe desperta o carinho<br />
no coração do filho.<br />
um homem autêntico, porque o próprio<br />
do homem é saber se impor.<br />
Equilíbrio semelhante ao<br />
do pêndulo de um relógio<br />
Dona Lucilia em Paris,<br />
no ano de 1912.<br />
Quando o homem impõe respeito<br />
e tem carinho, ele possui um equilíbrio<br />
semelhante ao do pêndulo de<br />
um relógio, que chega a um extremo,<br />
vai ao outro extremo, e deste volta<br />
para o primeiro, fazendo os ponteiros<br />
marcarem a hora certa.<br />
Debaixo de certo ponto de vista,<br />
o carinho e a veneração também se<br />
equilibram dessa forma: quem chega<br />
ao extremo do carinho fica desejoso<br />
de venerar; quem atinge o extremo<br />
da veneração quer acariciar. Essas<br />
duas coisas se completam.<br />
Compreende-se assim que em<br />
presença de uma mãe como foi Dona<br />
Lucilia, a tendência para a veneração<br />
e para o carinho eram enormes.<br />
Para falar da veneração, lembro-<br />
-me dos pitos que recebi dela e de<br />
como eu queria bem a esses pitos.<br />
Ela passava o pito de modo tão<br />
respeitável, mas ao mesmo tempo<br />
era tão carinhosa que depois da repreensão<br />
eu saía meio ofegante de<br />
admiração.<br />
Qual é a criança que não merece<br />
um pito de vez em quando? Tenho<br />
visto muitos filhos receberem<br />
21
Dona Lucilia<br />
pitos de suas mães e saírem furiosos,<br />
e também as mães ficarem furiosas<br />
quando repreendem os filhos.<br />
Furiosa comigo mamãe nunca esteve;<br />
ela passava pitos, mas eram pitos<br />
bondosos, firmes, e também lógicos,<br />
bem raciocinados; às vezes, ela empregava<br />
umas fórmulas quase duras,<br />
mas ditas com muito carinho.<br />
Lembro-me de uma fórmula usada<br />
por ela a propósito de meus boletins.<br />
Boletins do Colégio<br />
São Luís<br />
No Colégio São Luís, dos padres<br />
jesuítas, as notas dos alunos eram<br />
dadas todos os meses. Havia uma caderneta<br />
com doze páginas, equivalente<br />
aos meses do ano. Em cada página<br />
estavam impressas, numa coluna,<br />
os nomes das matérias, a primeira<br />
das quais era Religião.<br />
Ao lado dessa coluna existia outra<br />
na qual se consignavam as notas<br />
relativas ao estudo e ao comportamento<br />
em sala de aula. Em geral,<br />
quem estudava era bem comportado<br />
na aula; e quem era bem comportado<br />
estudava.<br />
Mas havia alguns alunos de péssimo<br />
comportamento; cheguei a ver<br />
um padre chorar por causa das atitudes<br />
de um aluno.<br />
Às vezes, o padre dizia para algum<br />
aluno que estava conversando<br />
no fundo da sala de aula:<br />
— Fulano, venha cá e fique de pé,<br />
olhando para a parede.<br />
O menino ficava, então, até ao<br />
fim da aula nessa posição, o que era<br />
uma coisa muito desagradável.<br />
Havia um aluno que possuía um<br />
hábito horrível. Ele pegava as pálpebras<br />
e as virava pelo avesso; ficavam<br />
então aqueles olhões saltados e, como<br />
a pálpebra do lado de dentro é<br />
vermelha, aquela vermelhidão.<br />
O padre o chamava para ir até a<br />
frente. Ele ia e ficava olhando para<br />
o lado, enquanto o sacerdote continuava<br />
dando aula. De repente o padre<br />
percebia uma gargalhada e procurava<br />
saber o que havia: era aquele<br />
aluno que tinha virado as pálpebras<br />
e estava olhando para os colegas<br />
de classe. O sacerdote não percebia<br />
logo porque, quando parava<br />
de falar, o aluno desvirava as pálpebras.<br />
O padre olhava para ele e o<br />
aluno fitava o padre com uma cara<br />
muito natural. Era só o padre recomeçar<br />
a aula, que ele novamente virava<br />
as pálpebras.<br />
Alunos como esse são verdadeiro<br />
tormento para o professor.<br />
Então, havia notas de comportamento<br />
e de aproveitamento, para cada<br />
matéria.<br />
Dona Lucilia costumava me dizer<br />
o seguinte: “Eu faço questão que<br />
você tenha notas boas em tudo, mas<br />
quero sobretudo em comportamento.<br />
Porque se no aproveitamento tiver<br />
notas baixas, é sinal de que você<br />
é burro. Fico com muita pena de<br />
ter um filho burro, mas não se nega<br />
alimento nem para os burros, de maneira<br />
que você pode ficar vivendo e<br />
comendo aqui como burro da casa.”<br />
Naturalmente ela falava isso para<br />
me dar brio.<br />
Depois continuava: “Em comportamento,<br />
não. O aluno recebe<br />
nota má de comportamento porque<br />
é ruim, e filho ruim eu não tolero.<br />
Ninguém tem culpa de ter nascido<br />
burro, e se eu pus no mundo um<br />
filho burro, chamado <strong>Plinio</strong>, paciência.<br />
Mas se eu pus no mundo um fi-<br />
E. Petitclerc<br />
Colégio São Luís, em São Paulo.<br />
22
lho, ele tem que ser bom; não posso<br />
tolerar que seja ruim.”<br />
Eu olhava para mamãe e pensava:<br />
“Será que ela acha que eu sou burro?<br />
De repente sou mesmo, hein!<br />
Que coisa desagradável, mas, afinal,<br />
o que posso fazer?”<br />
Em Geografia: nota seis<br />
de comportamento<br />
No Colégio São Luís, no final de<br />
cada mês entrava o bedel na sala de<br />
aula com uma pilha de cadernetas e<br />
as entregava para cada aluno; chegando<br />
a suas casas, os alunos deveriam<br />
mostrá-las para os pais.<br />
Os padres, para terem certeza que<br />
os pais tinham visto as cadernetas,<br />
pediam que eles as assinassem. Todo<br />
mês o bedel examinava cada caderneta<br />
e, se em alguma não constava a assinatura<br />
do pai, mandava-a de volta, pedindo<br />
ao progenitor que a assinasse. E<br />
se o aluno não a trouxesse, telefonava<br />
para o pai. Isso era feito para que o pai<br />
exigisse do filho o estudo. Tudo muito<br />
bem pensado e muito direito.<br />
Certo dia, quando recebi do bedel<br />
minha caderneta, verifiquei que as notas<br />
de aproveitamento eram bastante<br />
boas. E nota dez de comportamento<br />
em todas as disciplinas, exceto em Geografia,<br />
cuja nota era seis. Eu fiquei<br />
pasmo, pois não fizera nada de errado.<br />
Dona Lucilia tolerava até nove, mas<br />
nota seis ela não toleraria nunca.<br />
Quanto às aulas de Geografia, eu<br />
achava cacete ficar aprendendo os<br />
nomes de todos os países. E naquele<br />
tempo o estudo era muito severo. O<br />
Brasil possuía então vinte e um Estados;<br />
hoje tem mais. O aluno precisava<br />
saber de cor os limites de cada<br />
Estado com outro. Era ponto de<br />
exame, por exemplo, saber quais os<br />
limites de Goiás com Mato Grosso,<br />
dois Estados que naquela época quase<br />
não eram habitados.<br />
Então se devia saber de cor: partindo<br />
de tal serra, encontra-se um<br />
rio, que dá num lago, no qual tem<br />
origem tal outro rio, que encontra<br />
determinada montanha etc.<br />
Além de achar cacetíssimo isto,<br />
eu tinha muita dificuldade de decorar,<br />
pois não possuía boa memória.<br />
Mas nunca, na aula, eu deixava de<br />
me comportar bem. Então como foi<br />
possível receber nota seis? E quando<br />
eu chegar a minha casa...<br />
Pensei: “Foi uma injustiça que me<br />
fez esse professor de Geografia, o qual<br />
naturalmente observa que eu acho as<br />
<strong>Plinio</strong>.<br />
aulas dele desagradáveis; ficou indignado<br />
comigo e mandou pôr nota seis.<br />
Mas já sei como vou me arranjar.”<br />
Peguei uma caneta e escrevi dez<br />
em cima do seis. Notando que ficava<br />
evidente o seis embaixo do dez, pensei:<br />
“Agora piorou a situação, porque<br />
mamãe verá que escrevi dez com<br />
minha letra grandona, pesadona, e<br />
me pedirá explicações.”<br />
Eu ainda estava no colégio e chovia.<br />
Disse para comigo: “Vou sair<br />
da sala, abrir o boletim e deixar cair<br />
água da chuva sobre ele. Com certeza<br />
uma gota de água cairá em cima<br />
desse dez; e direi à mamãe que a chuva<br />
borrou o boletim. Verei se tapeio<br />
mamãe de qualquer jeito.” Fui para<br />
fora; caía chuva em todo o boletim,<br />
mas a nota dez continuava seca...<br />
O Colégio do Caraça era<br />
considerado uma prisão<br />
Cheguei a minha casa e encontrei<br />
mamãe no quarto de toilette dela<br />
— era uma espécie de sala de estar<br />
que as senhoras tinham antigamente<br />
—, sentada numa cadeira de balanço<br />
perto da escrivaninha. Lembro-me<br />
perfeitamente da cena. Ela com certeza<br />
havia escrito alguma coisa e estava<br />
descansando um pouco.<br />
Entrei e disse-lhe:<br />
— Meu bem, aqui está o meu boletim.<br />
Muito afetuosa, ela o abriu e seus<br />
olhos caíram imediatamente naquele<br />
empastelado.<br />
Perguntou-me, então:<br />
— O que é isto aqui? O que aconteceu?<br />
— Mamãe, recebi esse boletim e,<br />
mesmo debaixo da chuva, eu quis ver<br />
quais eram as minhas notas e caiu<br />
água sobre ele.<br />
— Mas aqui em cima dessa nota<br />
seis o que você escreveu? A letra é<br />
sua. Por que você anotou uma coisa<br />
em cima daquilo que o padre escreveu?<br />
Você quer me explicar isso? Vamos,<br />
explique!<br />
23
Dona Lucilia<br />
Não havia explicação, eu estava<br />
encostado na parede.<br />
— Mamãe, eu falsifiquei a nota.<br />
— Ah! Você falsificou a nota? Então<br />
eu sou mãe de um falsário? Meu<br />
filho falsifica a letra dos outros?<br />
Passou-me então um pito, dizendo<br />
que todo falsário é ordinário,<br />
sem-vergonha, e quem falsifica a letra<br />
de outro vai para a cadeia.<br />
— Você merecia ir para a prisão.<br />
Sabe de uma coisa? Eu vou mandá-<br />
-lo para uma cadeia.<br />
Havia em Minas Gerais um colégio,<br />
o qual, em São Paulo, tinha a fama<br />
de ser severíssimo, verdadeiramente<br />
a cadeia de meninos insuportáveis.<br />
Toda criança da capital paulista<br />
tinha horror a ir para esse colégio.<br />
Era uma calúnia que espalharam<br />
em São Paulo, porque está provado<br />
que tal colégio era muito bom,<br />
muito direito. De maneira que eu estava<br />
certo de que se tratava de uma<br />
cadeia. É o Colégio do Caraça, em<br />
Minas Gerais, situado num lugar<br />
muito bonito, com montanhas etc.<br />
Mamãe continuou:<br />
— Você irá para o Colégio do Caraça.<br />
Eu vou esperar seu pai chegar<br />
do escritório — meu pai era advogado<br />
e voltava para casa na hora do jantar.<br />
Quando ele chegar, vou mostrar-<br />
-lhe o que você fez, e amanhã ele, levando<br />
esse boletim, irá falar com o<br />
padre, para perguntar o que você fez.<br />
Conforme o que você praticou, eu<br />
vou mandá-lo para o Caraça.<br />
Fiquei horrorizado e ela acrescentou:<br />
— Eu vou passar um ano sem vê-lo,<br />
e você também vai passar um ano sem<br />
me ver. Sofrerei muito mais do que você,<br />
porque eu quero mais bem a você<br />
do que você quer a mim. Mas, se é para<br />
seu bem, eu o mando para lá. Estando<br />
no Caraça, lembre-se de que sua mãe<br />
está chorando infeliz porque você está<br />
na prisão. Mas você vai para a cadeia.<br />
Entrei numa grande depressão,<br />
mas não disse nada a ela. Não pedi<br />
perdão — o que era malfeito, pois<br />
T. Ring<br />
Nossa Senhora Auxiliadora - Igreja do Sagrado<br />
Coração de Jesus, São Paulo (Brasil).<br />
devia ter pedido. Ela não se aproximou<br />
de mim para que eu a beijasse;<br />
todos os dias, quando eu chegava<br />
do colégio eu a beijava várias vezes,<br />
e ela me beijava também. Entendi<br />
que eu não podia nem me aproximar,<br />
porque era um falsário! Como<br />
é que um falsário vai se aproximar<br />
de uma senhora digna de tal veneração<br />
e pela qual eu tinha tanta ternura?<br />
Saí e fiquei muito abatido.<br />
Se não me engano, era um sábado<br />
e o Colégio São Luís já estava fechado.<br />
Então, papai iria ao colégio somente<br />
na segunda-feira. Fiquei esperando,<br />
portanto, o resto de sábado,<br />
domingo e parte da segunda-feira.<br />
Mas eu nem ousei perguntar a<br />
meu pai a que horas ele iria; fiquei<br />
quieto, colocando-me de lado como<br />
uma espécie de bicho doente e repugnante.<br />
Imagem de Nossa<br />
Senhora Auxiliadora<br />
No domingo de manhã, fui à Missa.<br />
A minha casa, naquele tempo, fi-<br />
24
cava muito próxima da Igreja Coração<br />
de Jesus, umas três ou quatro<br />
quadras num terreno quase inteiramente<br />
plano. Para um menino<br />
de onze, doze anos isso não é nada.<br />
Chegando à igreja, vi que haveria<br />
Missa para os alunos do Colégio<br />
Coração de Jesus. Os meninos entravam<br />
cantando e iam ocupando os lugares<br />
da nave central, enquanto que<br />
as pessoas do povo ficavam nas naves<br />
laterais. Eu estava na nave direita<br />
de quem olha para o altar-mor.<br />
Eu via também à minha frente a<br />
linda imagem, em mármore absolutamente<br />
branco, de Nossa Senhora<br />
Auxiliadora, tendo sobre sua cabeça<br />
uma coroa não fechada e com o<br />
Menino nos braços.<br />
Há coroas fechadas, quer dizer,<br />
têm como que gomos os quais se<br />
unem no alto, onde há uma esfera e<br />
uma cruz. Significam domínio completo,<br />
soberania, e são usadas pelos<br />
reis. As abertas, como um círculo<br />
em torno da cabeça, tendo alguns<br />
ornatos, são para os simples nobres.<br />
A coroa de Maria Santíssima é<br />
aberta porque, em comparação com<br />
Nosso Senhor, Ela é uma súdita. Jesus<br />
é o Homem-Deus, portanto não<br />
há ninguém que se iguale a Ele.<br />
A simbologia é muito bonita.<br />
Nossa Senhora tem o Menino no<br />
braço esquerdo, e no direito Ela segura<br />
um cetro, para dar a entender<br />
que o mando é d’Ela. O Menino está<br />
risonho, como quem está contente<br />
de ter dado o cetro para a Mãe, e<br />
Ela está olhando para os fiéis.<br />
Salvai-me Rainha…<br />
Em determinado momento, tive<br />
uma impressão singular, que não foi<br />
nenhum milagre: a imagem não se<br />
moveu absolutamente nada, mas pareceu-me<br />
que a Santíssima Virgem<br />
me olhava com certa pena. E instintivamente<br />
comecei a rezar a Salve<br />
Rainha, que era a oração da qual me<br />
lembrava.<br />
Essa prece começa com “salve”,<br />
que é uma palavra latina. Salve Maria,<br />
por exemplo, quer dizer “saudada<br />
sejas, Maria!”. Para a saudação — como<br />
hoje dizemos bom-dia, boa-tarde<br />
—, antigamente se dizia “salve”.<br />
Então Salve Regina, Mater misericordiae,<br />
quer dizer “Eu Vos saúdo<br />
Rainha, Mãe de misericórdia.”<br />
Mas eu não entendi isso; achei que<br />
“salve” significava “salvai-me”. Pensei:<br />
“Preciso de alguém que me salve<br />
desse embrulho, e vou pedir para<br />
Nossa Senhora, a Qual está como<br />
que sorrindo para mim.”<br />
Anteriormente, eu já havia rezado<br />
algumas “Salve Rainhas”, mas<br />
nunca tinha fixado muita atenção<br />
nas palavras. Naquele apuro em<br />
que me encontrava, prestei uma<br />
atenção profunda nos termos. Então:<br />
“Salve Rainha, Mãe de misericórdia,<br />
vida, doçura, esperança nossa,<br />
salve...”<br />
À medida que eu ia rezando,<br />
pensava: “Estou precisando de Maria<br />
Santíssima, porque mamãe me<br />
abandonou, merecidamente. Ela é<br />
Mãe de misericórdia, mais ainda do<br />
que mamãe, porque é Mãe do Menino<br />
Jesus. Então Ela é indizivelmente<br />
mais perfeita do que mamãe,<br />
e onde nem mamãe tem pena — e<br />
possui razão para isso — Nossa Senhora<br />
tem compaixão. Então vou<br />
pedir para Ela.” E assim fui meditando<br />
nas palavras dessa prece.<br />
Salve Rainha: “Compreende-se, é<br />
Mãe do Menino Jesus.”<br />
Mãe de misericórdia: “Bem pensado,<br />
Mãe toda feita de misericórdia.<br />
Um falsário como eu precisa de<br />
misericórdia, porque se não obtiver<br />
misericórdia estou perdido, liquidado.”<br />
Vida doçura, esperança nossa,<br />
salve: “Está vendo? Nossa Senhora<br />
é nossa vida, nossa doçura, nossa<br />
esperança. Que oração bem feita!”Assim<br />
eu rezei toda a Salve Rainha<br />
com uma emoção interior muito<br />
forte. Depois de ter rezado várias vezes,<br />
cheguei à conclusão: “Nossa Senhora<br />
vai me tirar dessa bagunça.”<br />
Assim “começou a<br />
minha devoção a<br />
Nossa Senhora”<br />
Na segunda-feira, ao chegar a minha<br />
casa, perguntei para o copeiro:<br />
— <strong>Dr</strong>. João Paulo já voltou do<br />
São Luís?<br />
Tinha ele uma voz cantante:<br />
— Já, sim, senhor.<br />
— Onde ele está?<br />
— Com Dona Lucilia.<br />
Estavam no apartamento deles,<br />
que era um prolongamento da casa.<br />
Fui para lá e encontrei os dois conversando,<br />
mas não tinham fisionomia<br />
carrancuda. Mamãe muito calma<br />
me olhou e disse:<br />
— Filhão, venha cá e dê um abraço<br />
e um beijo em sua mãe.<br />
Eu corri em direção a ela.<br />
Mamãe continuou:<br />
— Você está inocente. Seu pai<br />
foi falar com o padre, o qual mandou<br />
chamar o funcionário que passa<br />
a limpo as notas. O próprio funcionário<br />
reconheceu que a sua nota<br />
era dez e por engano ele anotou seis.<br />
Agora, você não faça mais essa bobagem<br />
de estar alterando notas; isso é<br />
muito feio.<br />
E não falou mais em me mandar<br />
para o Caraça.<br />
Na saída, ela me disse:<br />
— Então, mais um beijo para<br />
mamãe.<br />
Tirei várias vantagens desse fato.<br />
Primeira: aprendi a ter temor reverencial<br />
a mamãe. É sempre bom ter<br />
medo dos superiores. Segunda vantagem:<br />
aprendi a querê-la ainda<br />
mais, por causa da perfeição moral<br />
que eu notava nela. Terceira, a qual<br />
vale todas as vantagens da Terra e<br />
mais algumas do Céu: começou aí a<br />
minha devoção a Nossa Senhora. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 9/7/1994)<br />
25
Revolução e Contra-Revolução<br />
“Dize-me com quem<br />
andas…”<br />
Há pessoas ruins que adquirem uma espécie de agudeza de vistas<br />
com a qual conseguem reconhecer seus congêneres à distância. Esta<br />
união entre os maus acentua suas características, e tal acentuação,<br />
por sua vez, engendra o ódio aos bons. Este ódio concita à luta, ao<br />
proselitismo e à combinação de esforços que, articulados, resultam<br />
numa organização. Estas são observações feitas por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
com base em alguns escritos de São João Bosco.<br />
“C<br />
ruzado Español” honra-me<br />
reproduzindo em suas colunas<br />
boa parte de meu estudo<br />
sobre Revolução e Contra-Revolução.<br />
Tal publicação fez-me ver que<br />
o assunto interessa aos leitores da citada<br />
revista. Assim é que me proponho,<br />
na presente colaboração, tratar<br />
— embora ligeiramente — duma<br />
questão intimamente relacionada<br />
com o tema de meu estudo, mas que,<br />
pelo amor à brevidade, não desenvolvi<br />
tanto quanto seria meu desejo.<br />
Entrarei na matéria de um modo<br />
talvez um tanto inesperado.<br />
Folheando escritos de São João<br />
Bosco 1 , encontrei a seguinte curiosa<br />
observação:<br />
Primeiramente, no que se refere aos<br />
maus, direi apenas uma coisa, que talvez<br />
pareça inverossímil, mas que é verdade<br />
certa, tal qual a digo: suponhamos<br />
que entre 500 alunos de um colégio<br />
haja um de vida depravada; chega<br />
depois um novo aluno, também pervertido;<br />
são de regiões e lugares diferentes,<br />
até de nacionalidades diversas,<br />
estão em cursos e lugares diferentes,<br />
nunca se viram nem se conheceram;<br />
apesar de tudo isto, no segundo dia de<br />
estadia no colégio, e talvez após algumas<br />
horas, vê-los-eis juntos durante o<br />
recreio. Parece que um espírito mau os<br />
faz adivinhar quem está manchado de<br />
seu mesmo negrume, ou então é como<br />
se um ímã demoníaco os atraísse para<br />
travar íntima amizade. O “dize-me<br />
com quem andas e te direi quem és” é<br />
um meio facílimo de dar com as ovelhas<br />
sarnentas, antes que se transformem<br />
em lobos rapaces.<br />
Testemunho de observador tão<br />
veraz, experimentado e competente<br />
em assuntos pedagógicos, não pode<br />
ser posto em dúvida.<br />
No entanto este testemunho põe-<br />
-nos em presença de um fato que<br />
não é difícil observar mesmo entre<br />
adultos, tanto nos episódios rotineiros<br />
da vida quotidiana, quanto nos<br />
grandes acontecimentos históricos.<br />
Quando o mal chega a certo nível<br />
de profundidade nas almas, estas ficam<br />
dotadas de uma agudeza de vistas<br />
que lhes permite, através de indícios<br />
que a outros poderiam parecer<br />
insignificantes, chegar a reconhecer<br />
de longe a seus congêneres.<br />
A tal agudeza de vistas junta-se uma<br />
outra peculiaridade: uma recíproca<br />
atração que os une rapidamente, em<br />
íntima convivência, apesar das muitas<br />
circunstâncias que os possam separar:<br />
diferença de origem, de idade,<br />
etc. É fácil verificar como da conjunção<br />
de elementos de tal índole origina-se,<br />
naturalmente, um grupo e até<br />
uma corrente que funciona como um<br />
tumor que destila veneno.<br />
Revolução: fruto da<br />
união entre os maus<br />
Na intimidade do grupo forma-<br />
-se, pela recíproca emulação, um ambiente<br />
diametralmente oposto ao<br />
ambiente geral em que se encontram.<br />
Tal diversidade engendra, necessariamente,<br />
antipatias, fricções, ódio<br />
contra a maioria. Tal ódio poderá<br />
conservar-se encoberto, por motivos<br />
de convivência, mas, em alguns casos<br />
a própria necessidade de calar aumentará<br />
sua virulência.<br />
Quem se sente mal num ambiente,<br />
pugna por modificá-lo. E, ao defrontar-se<br />
com obstáculos, pugna pa-<br />
26
V. Toniolo<br />
ra eliminá-los — é uma consequência<br />
forçosa. Se estes<br />
obstáculos não se deixam eliminar<br />
passivamente, dão lugar<br />
à luta.<br />
É natural que um núcleo<br />
de maus não somente atraia a<br />
seus congêneres pela força de<br />
imantação tão acertadamente<br />
descrita por São João Bosco,<br />
senão que, também, pela tendência<br />
à expansão, inerente a<br />
tudo quanto é intensamente<br />
vivo, assim como pela necessidade<br />
de recrutar soldados para<br />
a luta, procure aumentar o<br />
número de seus adeptos.<br />
A conjugação de esforços<br />
resulta de um imperativo natural,<br />
que não requer nenhuma<br />
exemplificação.<br />
Elementos ligados entre si<br />
permanentemente, por afinidade<br />
profunda de mentalidades,<br />
identidade de objetivos e<br />
íntima conexão de esforços,<br />
não tardarão em elaborar um<br />
sistema ideológico, um programa<br />
e uma técnica de ação comuns,<br />
e a constituir um órgão diretivo.<br />
Neste momento estará traçado<br />
o itinerário que vai do simples fato<br />
da existência de alguns “maus” que<br />
se intuem reciprocamente e se põem<br />
em contato, até à formação de uma<br />
associação. Oculta, semioculta ou<br />
declarada, esta associação se propõe<br />
ao combate em todos os terrenos —<br />
ideológico, artístico, político, social,<br />
econômico, etc. — para a conquista<br />
de seus objetivos. Numa palavra, faz<br />
Revolução.<br />
União que poderá<br />
ocasionar o fim de<br />
uma era histórica<br />
A causa motriz de toda esta sucessão<br />
de fenômenos é o ódio ao bem,<br />
engendrado pela perversão, quando<br />
esta atinge certo nível de profundidade.<br />
São João Bosco - Basílica de São Pedro, Roma.<br />
Entre 500 alunos<br />
de um colégio, dois<br />
que sejam de vida<br />
depravada, embora<br />
oriundos de regiões<br />
e lugares diferentes,<br />
vê-los-eis juntos<br />
durante o recreio.<br />
É como se um ímã<br />
demoníaco os atraísse<br />
para travar íntima<br />
amizade.<br />
Insisto em tal asserção. E sei que,<br />
quando a perversão alcança tal nível<br />
de profundidade desperta essa<br />
misteriosa capacidade de detecção e<br />
atração mútuas que São João Bosco<br />
descreve e que constituem o pon-<br />
to de partida inicial de toda<br />
Revolução organizada. Um<br />
grande número de pessoas<br />
simpatiza com os bons e, se<br />
cometem algum pecado, fazem-no<br />
com vergonha e tristeza.<br />
De gente assim, enquanto<br />
não caia muito moralmente,<br />
não há de se recear<br />
uma conjuração. Noutros<br />
a perversão chega a atacar<br />
profundamente a humildade,<br />
até o ponto de ocasionar<br />
uma cínica indiferença ante<br />
o pecado e até uma rebelião<br />
contra os bons e o bem.<br />
E não se diga que o ser racional<br />
é incapaz de odiar o bem.<br />
Convém recordar aqui<br />
os “distingos” que o assunto<br />
comporta. Recordemos,<br />
de passagem, que, se isto fosse<br />
pura e simplesmente assim,<br />
os anjos maus não teriam<br />
odiado a Deus, que é o Sumo<br />
Bem. Além disso, tal aversão<br />
pode consistir simplesmente<br />
numa antipatia. Pode esta,<br />
pois, engendrar incompreensões, fricções,<br />
incidentes, sem por isso dar origem<br />
a uma conjuração ou a uma luta,<br />
mas casos há que demonstram um estado<br />
de espírito muito mais agressivo.<br />
Em tal sentido, o ódio de Caim<br />
contra Abel parece-me característico,<br />
mais ainda o do Sinédrio contra<br />
Nosso Senhor.<br />
Passando deste fato excelso para<br />
um fato contemporâneo, lembro-<br />
-me de uma notícia que li recentemente.<br />
Nos Estados Unidos um grupo<br />
de moças agrediu uma jovem colega,<br />
reduzindo-a a um estado físico deplorável.<br />
Interrogadas pela polícia, as<br />
delinquentes declararam que não tinham<br />
nenhuma queixa pessoal contra<br />
a vítima. A única razão de sua atitude<br />
agressiva foi que aquela colega era<br />
tão exemplar em seus estudos, em seu<br />
comportamento e em sua indumentária,<br />
que o mero fato de sua existência<br />
tornava-se insuportável às agressoras.<br />
27
Revolução e Contra-Revolução<br />
Se imaginamos tal estado de ânimo,<br />
observado não em fúrias sem inteligência<br />
nem serenidade, mas em<br />
pessoas equilibradas, ponderadas e<br />
tenazes, teremos chegado à descoberta<br />
daquilo que origina uma pujante<br />
e perigosa associação, que poderá<br />
ocasionar o fim de uma era histórica.<br />
O mal mais sutil fica<br />
atraído, hipnotizado<br />
e dominado pelo<br />
mais intenso<br />
Quase todas estas considerações<br />
são bastante conhecidas, pelo menos<br />
quando consideradas individualmente.<br />
Mas, em geral, elas se apresentam<br />
ao espírito confusas e isoladas.<br />
Postas a nu e reunidas dentro<br />
de um corpo de doutrinas e observações,<br />
sob a forma de rasgos correntes<br />
e unidos, entrevemos algo de novo.<br />
Demonstrarei, em poucas palavras,<br />
no que consiste este algo.<br />
Pelo que vimos até agora, dois aspectos<br />
do mal foram postos em evidência.<br />
Um engendra a Revolução. E<br />
o outro, diante da presença do fenômeno<br />
Revolução, a que atitude induz?<br />
Pelo mesmo princípio de atração<br />
do mal pelo mal — similis simili gaudet<br />
—, que é a explicação profunda<br />
do fenômeno tão agudamente observado<br />
por São João Bosco, se depreende<br />
que o mal mais sutil fica atraído,<br />
hipnotizado e dominado pelo<br />
mais intenso. Assim se explica que as<br />
correntes moderadas da Revolução<br />
nunca lutam séria e duradouramente<br />
contra as correntes extremas. Os<br />
girondinos, no século XVIII, os partidários<br />
da monarquia parlamentar<br />
inglesa no século XIX, os partidários<br />
de Kerensky no século XX, situados<br />
frente à Revolução, acabaram<br />
cedendo sempre, ainda quando lutaram<br />
com as armas na mão contra ela<br />
e a venceram temporariamente.<br />
Assim, a burguesia francesa venceu<br />
a Comuna de Paris, e segundo<br />
as aparências opôs um dique à Revolução.<br />
Mas, assumindo o poder, essa<br />
mesma burguesia favoreceu o desenvolvimento<br />
do processo revolucionário.<br />
Mais ainda: postos entre a<br />
Revolução e a Contra-Revolução, os<br />
revolucionários moderados flutuam,<br />
em geral, tratando de pleitear conciliações<br />
absurdas. Mas, por fim, favorecem<br />
sistematicamente a primeira<br />
contra a segunda.<br />
As elites decadentes<br />
adoecem deste mal…<br />
No entanto, como se explica isto,<br />
quando tantas vezes os mais altos<br />
e mais patentes interesses econômicos,<br />
as distinções mais honrosas, a<br />
formação tradicional mais profunda,<br />
os motivos de parentesco e amizade<br />
mais imediatos e ternos, deveriam<br />
induzir os “moderados” a aliar-se<br />
com a Contra-Revolução? Quantos<br />
foram, nas fileiras dos “moderados”,<br />
os homens de talento que dispuseram<br />
de todos os recursos intelectuais<br />
para ver que suas perpétuas capitulações<br />
os iam arrastando ao abismo,<br />
e com eles toda a sua descendência<br />
e, não obstante, foram cedendo, sistematicamente,<br />
como se esse mesmo<br />
abismo fatalmente os fascinasse?<br />
Responder a esta pergunta é explicar<br />
a causa mais essencial das vitórias<br />
sistemáticas dos extremistas<br />
nos processos revolucionários, pois<br />
estes foram sempre, ou quase sempre,<br />
pouco numerosos, pouco brilhantes<br />
ou de parcos recursos financeiros.<br />
Suas vitórias, na maior parte<br />
dos casos, foram devidas à timidez,<br />
à cegueira, à resignação dos “moderados”,<br />
geralmente ricos, influentes,<br />
numerosos e, invariavelmente, à<br />
disposição deles, preferindo tudo a<br />
apoiar seriamente as hostes da Contra-Revolução,<br />
em geral também<br />
pouco numerosas, pobres, etc.<br />
Sem dúvida alguma, a inércia e o<br />
medo são características das classes<br />
ricas e explicam, em parte, este fenômeno.<br />
Para nós, porém, não explicam<br />
tudo. Pois, de um lado, nem todas<br />
as classes ricas são vacilantes e<br />
medrosas. Por exemplo, não adoeceu<br />
deste defeito a nobreza europeia<br />
na época das Cruzadas e da Reconquista.<br />
São, pois, as elites decadentes<br />
que adoecem deste mal.<br />
Mas, o medo das elites decadentes<br />
não explica tudo. É notório que,<br />
se de um lado revelam ter medo do<br />
extremismo revolucionário, de outro<br />
é também de modo manifesto que<br />
emitem ideias passageiras e involuntárias<br />
de simpatia em relação ao citado<br />
extremismo. Por outro lado, em<br />
relação ao radicalismo contrarrevolucionário<br />
não manifestam medo,<br />
mas sim uma antipatia sistemática e<br />
mal velada.<br />
Além disso, esta simpatia e antipatia,<br />
tão estáveis e impulsivas, têm<br />
de desempenhar forçosamente um<br />
papel que seria um erro subestimar,<br />
ao se levar em conta a atitude dos<br />
revolucionários “moderados”. Isto<br />
posto, como se explica essa simpatia?<br />
A que obedece? Os “moderados”,<br />
aparentemente tão apegados<br />
ao dinheiro, à saúde e aos prazeres<br />
do espírito revolucionário, somente<br />
temem alguns poucos contágios.<br />
Será que eles, neste caso, são idealistas<br />
abnegados (no mau sentido da<br />
palavra, é claro)? As aparências diriam<br />
que não. Mas os fatos, bem observados,<br />
demonstram que de certo<br />
modo o são e que esse “idealismo”<br />
desempenha um profundo papel na<br />
S. Miyazaki<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1992.<br />
28
sua psicologia e nas suas atitudes.<br />
De que modo?<br />
Simpatia subconsciente<br />
pelo mal<br />
O espírito revolucionário comporta<br />
uma grande deformação doutrinária<br />
e moral. E isto apesar de coexistir,<br />
em muitos casos, com costumes<br />
incontaminados e uma indiscutível<br />
probidade nos negócios. São<br />
Pio X, na Encíclica Pascendi, fez notar<br />
este ponto no que se refere aos<br />
modernistas. Quem tiver este espírito,<br />
ainda que seja por participação,<br />
incorpora-se à misteriosa dinâmica<br />
do mal, descrita por São João<br />
Bosco. O espírito revolucionário, em<br />
sua forma moderada, se não suscita<br />
aquela capacidade de mútuo conhecimento<br />
e de articulação dinâmica,<br />
produz um fenômeno análogo, mas<br />
mais franco. Este fenômeno é uma<br />
antipatia profunda, ainda que discreta<br />
e sutil, contra tudo aquilo que<br />
se opõe à Revolução.<br />
Tal antipatia tem de particular o<br />
fato de que quase nunca se engana e<br />
que qualquer manifestação do espírito<br />
contrarrevolucionário, ainda que<br />
sutil e velada, é por ela discernida, rechaçada<br />
e até hostilizada. É por isto<br />
que, sem chegar a tomar a iniciativa<br />
de sacrificar seus interesses em prol<br />
da Revolução, aceita sem protestos<br />
este sacrifício, e talvez se console com<br />
ele, pelo simples fato de que sua profunda<br />
antipatia para com a Contra-<br />
-Revolução fica satisfeita com os progressos<br />
da Revolução.<br />
O fato é espantoso. E seria até para<br />
não se acreditar se não fosse patente<br />
no mundo inteiro. Quantas estirpes<br />
aristocráticas ou burguesas há,<br />
destruídas e expulsas pela Revolução,<br />
que renunciam a qualquer luta e vivem<br />
resignadas e quase alegres, numa<br />
situação obscura e quase proletária,<br />
perfeitamente integradas no mundo<br />
revolucionário do qual são vítimas!<br />
Escrevendo isto penso em numerosos<br />
exilados russos, e mais particularmente<br />
em tantos clérigos cismáticos<br />
que não se preocupam com outra<br />
coisa que não seja algum acordo com<br />
O fenômeno simpatia<br />
e antipatia, tão<br />
estáveis e impulsivas,<br />
desempenha um<br />
papel que seria um<br />
erro subestimar,<br />
ao se levar em<br />
conta a atitude dos<br />
revolucionários.<br />
o comunismo. Desalento? Em parte,<br />
sim. Mas desalento sem rancor, quase<br />
alegre, no qual se vê claramente o<br />
sorriso de uma secreta simpatia, talvez<br />
até subconsciente. De onde se vê<br />
bem que não é o interesse que dirige<br />
a História, e que esta não é primordialmente<br />
um conflito de interesses<br />
senão de princípios, uma luta entre<br />
a Verdade e o Erro, entre o Bem e o<br />
Mal, entre a Luz e as Trevas.<br />
* * *<br />
Qual é o papel do demônio nesta<br />
luta? Ou, ao menos, qual sua ação<br />
no fenômeno descrito por São João<br />
Bosco?<br />
No texto citado, o Santo admite<br />
claramente como plausível a ação<br />
preternatural. De nossa parte, estamos<br />
persuadidos de que esta é imensa.<br />
Mas esse aspecto do problema<br />
não faz parte do tema deste artigo,<br />
no qual quisemos esboçar brevemente<br />
os contornos psicológicos de ordem<br />
natural, que operam por si próprios,<br />
mas sobre os quais o demônio<br />
pode ter influência e atuar com frequência<br />
e com terrível eficácia, para<br />
fazer dos homens instrumentos e vítimas<br />
da Revolução, da qual ele foi o<br />
primeiro fautor e continua sendo o<br />
fator principal.<br />
v<br />
(Extraído da revista “Cruzado<br />
Espanhol” de 15/4/1966)<br />
1) Biografia SDB, B.A.C.,<br />
Madrid, 1955. pp. 457 e 458.<br />
29
Luzes da Civilização Cristã<br />
Um conto natalino…<br />
Fruto da Civilização Cristã, o Ancien Régime ainda exalava o perfume<br />
da perfeita harmonia social, onde os maiores tinham gosto em<br />
proteger os menores; e os menores, por sua vez, alegria em servi-los.<br />
Um característico exemplo disso é o pitoresco conto natalino<br />
a seguir, narrado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>…<br />
Há um pitoresco livro de<br />
Georges Lenôtre — a<br />
meu ver, o mais saboroso<br />
historiador da Revolução Francesa<br />
—, composto de contos referentes<br />
a essa época. 1<br />
Poder-se-ia perguntar: que valor<br />
têm esses contos? Não seria melhor<br />
um fato histórico?<br />
Quando se dá um acontecimento<br />
muito importante, como a Revolução<br />
Francesa, ao lado dos fatos que<br />
deixaram recordação nos arquivos,<br />
existiram outros que se contavam<br />
de boca em boca e se tornaram célebres.<br />
Esses últimos um literato pode<br />
registrar a fim de conservar para<br />
a História. Foi o que fez Lenôtre.<br />
Depoimento coletivo<br />
sobre a Revolução<br />
Francesa<br />
Um fato fica célebre quando se<br />
propaga entre muitos, que veem nele<br />
algo de típico. Quer dizer, muitos<br />
que viveram a Revolução, participaram<br />
dela, ouvindo o fato contaram-<br />
-no para outros, porque acharam<br />
que era característico. É uma espécie<br />
de depoimento geral sobre o ambiente<br />
da Revolução Francesa.<br />
Alguém poderia dizer: “Mas <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>, cuidado! Quem conta um<br />
conto aumenta um ponto. Será que<br />
esses fatos não contêm inverdades?”<br />
Aí está o mais saboroso. Esses fatos<br />
passam de boca em boca e vão sendo<br />
modelados, porque cada um coloca<br />
algo de mais característico. E fica<br />
uma contribuição anônima de muitos<br />
sobre como eles viram a Revolução<br />
Francesa. Quer dizer, tais fatos<br />
se tornam uma espécie de depoimento<br />
coletivo de como aquelas pessoas<br />
sentiram a Revolução Francesa,<br />
embora determinado fato tenha, às<br />
vezes, apenas um núcleo verdadeiro<br />
e sua periferia seja historicamente<br />
discutível.<br />
Além disso, através desses fatos<br />
se conhece o ambiente dos acontecimentos.<br />
Mais ou menos como,<br />
por meio dos fatos semimitológicos<br />
da Grécia Antiga, se toma conhecimento<br />
do ambiente da Grécia Antiga,<br />
embora muitos deles sejam falsos<br />
e outros discutíveis.<br />
Preso na Conciergerie...<br />
Eu gostaria de comentar um desses<br />
fatos que nos reproduz a mitologia<br />
da Revolução Francesa. 2 Como<br />
eu me julgo inferior a Lenôtre, vou<br />
repetir o que ele narrou.<br />
Imaginemos a Conciergerie — a<br />
lúgubre prisão na qual eram detidos<br />
os nobres que eram processados<br />
—, nas vésperas da noite de Natal<br />
do ano de 1792, onde está preso um<br />
conde francês. Preso por ser nobre,<br />
de uma família que prestou grandes<br />
serviços no tempo das Cruzadas, nas<br />
lutas contra os adversários da Igreja<br />
etc., por representar um elemento<br />
Fotos: P. Mikio; D. Lizacano; F. Lecaros; G. Zanella; S. Hollmann<br />
30
que se destacava dos outros por sua<br />
cultura, elegância, distinção. E condenado<br />
à morte, esperando que na<br />
manhã seguinte se repetisse a cena<br />
de todos os dias.<br />
A Conciergerie ficava cheia de<br />
presos e todas as manhãs ali chegava<br />
uma carretinha em que cabiam<br />
dez, doze, quinze pessoas — às vezes<br />
eram duas ou três carretinhas,<br />
naquele tempo puxadas por cavalo<br />
ou burro —; um homem descia e todos<br />
os prisioneiros se juntavam. Lia-<br />
-se então a lista dos que naquela manhã<br />
deveriam morrer, quinze, vinte,<br />
trinta presos, que eram levados para<br />
o suplício; os outros ficavam aguardando<br />
o dia seguinte...<br />
O indivíduo que não era chamado<br />
tinha um pouco de respiração depois<br />
da partida da carretinha, mas à<br />
medida que ia entardecendo ele sentia<br />
que talvez fosse o crepúsculo de<br />
sua vida que ia chegando. E à noite,<br />
quando conseguia dormir, acordava<br />
agoniado, achando que poderia<br />
morrer no dia seguinte. Era uma<br />
guerra de nervos.<br />
...um conde recorda<br />
as festas de Natal<br />
Suponhamos aquele conde sozinho<br />
olhando pelas grades de sua<br />
masmorra, e se relembrando de fatos<br />
passados, do Natal que, na sua<br />
mansão de Paris, era de tal modo.<br />
Ele era viúvo e possuía apenas um<br />
filho ainda menino. E todas as noi-<br />
Imaginemos a<br />
Conciergerie — a<br />
lúgubre prisão onde<br />
eram detidos os nobres<br />
durante a Revolução<br />
Francesa —, nas<br />
vésperas da noite de<br />
Natal, no ano de 1792...<br />
Vista exterior da Conciergerie.<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Numa noite de Natal,<br />
o conde, de repente,<br />
ouve um barulho, e na<br />
lareira, ainda não acesa,<br />
cai uma criança que ele<br />
pagara para fazer a<br />
limpeza da chaminé.<br />
A primeira reação da<br />
criança foi olhar, cheio<br />
de vontade, para as<br />
coisas que estavam na<br />
mesa, destinadas para<br />
o outro menino...<br />
tes de Natal o conde preparava para<br />
seu filho uma ceiazinha, acordando-o<br />
quando chegava meia-noite. O<br />
menino levantava-se e encontrava<br />
na sala uma pequena árvore de Natal<br />
brilhantemente enfeitada, coisas<br />
para comer e depois via nos sapatos,<br />
que estavam colocados próximo à lareira,<br />
os presentes que o Papai Noel<br />
teria trazido para ele. O pequeno<br />
era órfão de mãe e o conde procurava<br />
ser para com ele o mais afetuoso<br />
possível, a fim de substituir sua progenitora.<br />
Numa noite de Natal, esperando<br />
sozinho chegar a hora para acordar<br />
o filho, o conde de repente ouve na<br />
chaminé uma barulheira e, na lareira<br />
ainda não acesa, cai uma criança.<br />
Era propriamente o meninote que<br />
ele pagara para fazer a limpeza, desobstruir<br />
de fuligem a chaminé, a<br />
fim de que as chamas pudessem subir<br />
bonitas. Tratava-se de um menino<br />
pobre, o qual tinha a incumbência<br />
de subir pelo teto e limpar a chaminé;<br />
era uma profissão.<br />
O menino todo sujinho se ergue<br />
espantado e vê diante de si a sala bonita,<br />
na qual se encontra aquele homem<br />
sozinho. Podemos imaginar a<br />
cena: o conde — com sapatos de verniz<br />
com salto vermelho, como usavam<br />
os nobres, fivelas de prata, ou<br />
de ouro, com brilhantes e outras pedras<br />
preciosas, meia de seda até o jo-<br />
32
elho, vestido todo de seda, cabeleira<br />
branca empoada — contando as<br />
horas e que se espanta quando cai<br />
aquele meninote.<br />
Ele o vê levantar-se e percebe que<br />
sua primeira reação foi um olhar<br />
cheio de vontade de comer as coisas<br />
que estavam na mesa, destinadas<br />
para o outro menino. Fica com pena<br />
dele, mas não pode desfalcar a festa<br />
de seu filho; ajuda-o a remover a<br />
sujeira e manda-o lavar-se. Depois<br />
o menino vem agradecer ao conde<br />
que, ao despedi-lo, lhe dá um presente<br />
de Natal.<br />
E era um presente régio: uma moeda<br />
de ouro chamada luís, porque tinha<br />
a efígie do Rei Luís. Havia luíses<br />
do tempo de Luís XV e Luís XVI.<br />
Essa moeda seria mais ou menos como<br />
a libra esterlina de hoje, e com<br />
ela se poderia fazer uma festa de Natal<br />
régia. O menino se retira muito<br />
agradecido; e nos anos seguintes,<br />
quando se aproxima a festa de Natal,<br />
volta à casa do conde para limpar a<br />
chaminé.<br />
O conde acha graça e resolve dar<br />
a cada Natal uma moeda de ouro para<br />
o menino. E começa durante o<br />
ano a ajudá-lo e também à sua família;<br />
formam-se, então, como que, relações<br />
semifeudais, de vassalagem,<br />
simpatia e proteção, entre o conde e<br />
o menino.<br />
Encontro do filho do<br />
conde com o limpador<br />
de chaminés<br />
Passam-se os anos; o limpador de<br />
chaminés e o filho do conde ficam<br />
mocinhos. Arrebenta a Revolução<br />
Francesa e o conde é perseguido,<br />
preso; seu filho foge de casa, a qual<br />
fica abandonada.<br />
São vésperas de Natal. Enquanto<br />
o conde está na prisão, lembrando-<br />
-se dessas e de outras cenas familiares,<br />
seu filho, pobre, vagueia à noite<br />
pelo bairro onde antigamente fora<br />
sua mansão e encontra o limpador<br />
Interior da Conciergerie,<br />
no seu estado atual.<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
de chaminés, do qual ficara amigo,<br />
que lhe pergunta como está o conde.<br />
— Você não sabe? Meu pai foi<br />
preso.<br />
— Mas como? Então o conde foi<br />
preso? Como foi isto?<br />
E o filho do conde conta-lhe que<br />
os nobres estavam sendo presos. Então<br />
o rapaz diz para o limpador de<br />
chaminés:<br />
— Este ano, meu caro, não tem<br />
luís de ouro, nem para você, nem para<br />
mim. Só tenho aqui um maço de<br />
moedas para eu subsistir e arranjar<br />
um jeito de libertar meu pai. Mas<br />
não sei como libertá-lo.<br />
O limpador de chaminés pergunta-lhe:<br />
— Onde está seu pai?<br />
— Na Conciergerie, em tal local.<br />
— Se me der o maço de moedas<br />
para eu libertar seu pai, o senhor<br />
confia em mim que de fato o conseguirei?<br />
— Tome as moedas.<br />
O conde é libertado<br />
Dia de Natal na Conciergerie. O<br />
conde está pensando e em sua cela<br />
há uma lareira miserável, raquítica,<br />
acesa.<br />
O jovem limpador arranja um jeito<br />
de descer pela chaminé, não se<br />
queima com as brasas que estão ali<br />
vegetando e, trazendo nos braços um<br />
pacote, aparece para o conde, que fica<br />
muito surpreso e lhe indaga:<br />
— Mas, você aqui? Entrando por<br />
esse local?<br />
Diz o limpador de chaminés:<br />
— Olhe, nós não temos um minuto<br />
a perder. O senhor execute o plano<br />
que vou lhe propor e sairemos<br />
bem. Estou trazendo uma roupa toda<br />
suja, de limpador de chaminés,<br />
para o senhor vesti-la.<br />
E o conde faz o que nunca imaginou<br />
na vida: mete-se numa roupa de<br />
limpador de chaminés. O mocinho<br />
apanha fuligem, arranja a cara do<br />
conde e lhe diz:<br />
— Agora, nós vamos sair pela<br />
portaria, dizendo que somos os limpadores<br />
de chaminé e já fizemos o<br />
serviço. É a hora da troca de guarda,<br />
e o que assume não sabe quem<br />
entrou para limpar a chaminé e não<br />
controla quem vai sair. Se formos já,<br />
existe uma possibilidade de nós dois<br />
escaparmos. Se não der certo, ficamos<br />
presos aqui, mas eu arrisco minha<br />
vida pelo senhor. E não adianta<br />
perder tempo em me agradecer.<br />
Agora é preciso sair.<br />
O conde entende a situação, e os<br />
dois se dirigem à portaria. Lá chegando,<br />
o rapaz se apresenta ao porteiro,<br />
que estava dormitando, pisca<br />
para o conde e lhe recomenda: “Vá<br />
andando.”<br />
E disse para o porteiro:<br />
— Nós somos os limpadores das<br />
chaminés…<br />
— Ah! Chama aquele lá que vai<br />
andando!<br />
— Ele é meu colega; eu queria dizer<br />
a você o seguinte: tenho aqui um<br />
pacote de moedas que mandam para<br />
seu chefe. Agora, não sei bem se ele<br />
e eu esperamos seu chefe acordar,<br />
ou se nós saímos e deixamos as moedas<br />
para você guardar.<br />
Nesse momento, a situação de<br />
ambos ficou entre a vida e a morte.<br />
O homem pensou um pouco e disse:<br />
— Pode deixar aqui que eu entrego,<br />
e vocês vão andando.<br />
Os dois saem devagar, entram pela<br />
Paris deserta e vão até próximo à<br />
casa do conde, onde o limpador de<br />
chaminés tinha marcado encontro<br />
com o filho do conde. Ali se encontram,<br />
tomam os cavalos e fogem; os<br />
três estavam salvos da fúria revolucionária.<br />
Harmonia entre as<br />
classes sociais<br />
Esse é um conto que representa<br />
um Natal contrarrevolucionário<br />
dentro da Paris revolucionária, e dá<br />
uma versão real das relações entre as<br />
classes sociais antes da Revolução<br />
Francesa. É a imagem<br />
inteiramente oposta à que esses<br />
livrinhos que falsificam a<br />
História apresentam por aí.<br />
A figura que normalmente<br />
se teria de um conde, em cuja<br />
casa cai, através da chaminé,<br />
um menino, seria:<br />
— Pst! Fique aí na lareira!<br />
Além de estragar a chaminé, você<br />
quer sujar a casa? Você vai<br />
apanhar!<br />
Manda chamar um homem e<br />
lhe ordena:<br />
— Embrulhe esse sujeito com<br />
papel ou num pano para não me<br />
sujar a casa. Leve-o para fora e, lá<br />
na rua, dê-lhe umas chicotadas e<br />
um pontapé.<br />
E voltando-se para o menino<br />
lhe diz:<br />
— Ainda bem que você não tem<br />
nada dessa comida, que está aí na<br />
mesa para meu filho. Vagabundo!<br />
Plebeu! Essa comida é para nobre,<br />
não para plebeu. Vá embora!<br />
Essa é a imagem que esses livrinhos<br />
de História insinuariam a respeito<br />
desse episódio.<br />
Vimos, entretanto, que a realidade<br />
é inteiramente diferente. Havia<br />
harmonia, afabilidade, bom relacionamento<br />
entre as classes sociais, baseado<br />
num princípio profundamente<br />
católico, que é o seguinte:<br />
Deve haver uma hierarquia de<br />
classes sociais; mas essa hierarquia<br />
não pode ser levada tão longe, que<br />
aquele que está em cima negue a<br />
elevada condição de homem ao que<br />
está embaixo, e, sobretudo, a alta<br />
condição de pessoa batizada que é<br />
membro do Corpo Místico de Cristo.<br />
Portanto, o superior deve tratar<br />
o inferior com bondade, afabilidade,<br />
protegê-lo, ajudá-lo nas suas necessidades,<br />
e até além de suas necessidades.<br />
O cumprimento desse dever, por<br />
parte dos que estão acima, traz um<br />
dever dos que se encontram embai-<br />
34
Passam-se os anos;<br />
arrebenta a Revolução<br />
Francesa e o conde é<br />
perseguido e preso.<br />
Enquanto ele está na<br />
prisão, seu filho vagueia<br />
à noite pelo bairro e<br />
encontra o limpador<br />
de chaminés...<br />
Cenas da Revolução Francesa.<br />
xo: a gratidão. Quando aquele que<br />
foi benfeitor está em apuros, os beneficiados<br />
retribuem. Aí está o vínculo<br />
que reúne as classes sociais diversas<br />
numa unidade.<br />
Esse pequeno episódio ilustra<br />
uma realidade histórica e dá um<br />
exemplo concreto de um princípio<br />
profundo da Doutrina Católica.<br />
Mostra como a desigualdade das<br />
classes sociais pode ser aproveitada<br />
como elemento para a união dos homens,<br />
e não para sua desunião.<br />
São Tomás de Aquino diz formalmente<br />
que há nobres e plebeus,<br />
grandes e pequenos, ricos e pobres,<br />
inteligentes e menos inteligentes,<br />
para o benefício não só dos que são<br />
mais, mas também dos que são menos;<br />
porque aquele que é menos, recebendo<br />
um benefício de quem é<br />
mais, vê neste como que uma imagem<br />
de Deus e pode amar melhor o<br />
Criador.<br />
No fato narrado percebemos como<br />
o limpador de chaminés viu, na<br />
bondade do conde, uma imagem da<br />
bondade de Deus; depois ele se dedicou<br />
ao conde, num ato que tem qualquer<br />
coisa de dedicação ao próprio<br />
Deus. De um modo fácil de guardar,<br />
atraente, interessante, está ilustrado<br />
um princípio doutrinário profundo.<br />
(Extraído de conferência<br />
de 10/8/1974)<br />
1) Lenôtre, G. Légendes de Noël, contes<br />
historiques. Paris: J. M. Dent et<br />
Fils, 1916.<br />
2) Idem. pp. 161-176.<br />
35
Maria, Rainha dos Anjos,<br />
por Enrique de Estencop<br />
- Museu Nacional da Arte,<br />
Barcelona (Espanha).<br />
F. Lecaros<br />
C<br />
onforme a parábola do filho pródigo, este<br />
fez um longo percurso durante o qual<br />
não consta que o pai tenha resolvido agir<br />
sobre ele. Mas quando o filho se aproximou,<br />
sua ação foi intensa: envolveu-o com seu afeto,<br />
mandou realizar uma festa tão grande que o<br />
filho fiel fez uma reclamação: “Como é isso?”<br />
Na realidade, o mesmo se dá com o pecador.<br />
Ele se afasta de Nossa Senhora, e habitualmente<br />
— há exceções — vai se distanciando cada<br />
vez mais. Maria Santíssima não age, mas<br />
fica esperando certo momento de sua crise, no<br />
qual ele de certo modo cai do cavalo, como São<br />
Paulo no caminho de Damasco. Antes disso<br />
há remotas preparações no interior da alma<br />
dele, que Nossa Senhora vai dispondo e que<br />
somente conheceremos no dia do Juízo. Em<br />
determinada hora, notamos que sua alma<br />
se torna sequiosa do maravilhoso, que traz<br />
consigo o desejo da admiração. E se aproxima<br />
um início de deslumbramento das coisas da<br />
nossa vocação.<br />
(Extraído de conferência de 15/3/1989)