14.10.2016 Views

Revista Dr Plinio 154

Janeiro de 2011

Janeiro de 2011

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>154</strong> Janeiro de 2011<br />

Amor à<br />

santidade


Verônica enxuga a face de<br />

Jesus - Igreja Sainte Anne<br />

de Beaupré, Canadá.<br />

F. Boulay<br />

Além da dor física, os sofrimentos de Nosso Senhor provocavam n’Ele<br />

uma dor moral que nenhum homem pode calcular, pois transcende todo o<br />

entendimento humano.<br />

Verônica, contemplando-O assim, teve pena. Ela teve coragem de ver a dor<br />

d’Ele, olhou de frente, e disse: “Meu Senhor e meu Deus”!<br />

Lancinada pela pena, ela foi correndo de encontro a Ele, enfrentou o risco que<br />

isso constituía, e teve o famoso gesto de enxugar o rosto de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo.<br />

(Extraído de conferência de 20/3/1982)<br />

2


Sumário<br />

Publicação Mensal Ano XIV - Nº <strong>154</strong> Janeiro de 2011<br />

Ano XIV - Nº <strong>154</strong> Janeiro de 2011<br />

Amor à<br />

santidade<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no início<br />

da década de 1990.<br />

Foto: S. Miyazaki.<br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Editorial<br />

4 A santidade: um reflexo da perfeição divina<br />

Datas na vida de um cruzado<br />

5 Janeiro de 1932<br />

Lutando pelos direitos da Igreja<br />

Dona Lucilia<br />

6 “Filhão, a você eu tenho inteiramente!”<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-010 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2236-1027<br />

E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP<br />

Tel: (11) 2606-2409<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum .............. R$ 90,00<br />

Colaborador .......... R$ 130,00<br />

Propulsor ............. R$ 260,00<br />

Grande Propulsor ...... R$ 430,00<br />

Exemplar avulso ....... R$ 12,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />

Hagiografia<br />

10 Deus é admirável nos seus santos!<br />

Eco fidelíssimo da Igreja<br />

14 Os novíssimos do homem - II<br />

“Revolução e Contra-Revolução”<br />

18 Sacralidade nas relações humanas<br />

O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

24 Cólera e misericórdia<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

28 Influência: até onde ela chega?<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

32 Heroísmo escocês:<br />

flor remanescente numa árvore cortada<br />

Última página<br />

36 Esperança dos culpados<br />

3


Editorial<br />

A santidade: um reflexo<br />

da perfeição divina<br />

“E<br />

is que breves passam os anos, caminho por uma vereda pela qual não voltarei” (Jó 16, 22).<br />

O decurso rápido e irreversível do tempo é sempre um convite à reflexão, especialmente por<br />

ocasião da passagem de ano.<br />

Com efeito, o ano que passa pode evocar o pedido de perdão, ou ainda, convidar a sentimentos<br />

de gratidão pelas graças e benefícios divinos. O ano novo, porém, conduz à esperança, estimula<br />

novos anseios, convida ao progresso não somente terreno e visível, mas, sobretudo, àquela perfeição<br />

espiritual e moral para a qual Deus chama constantemente a todos os homens: a santidade.<br />

Em conformidade com as inovações que todo início de ano convida, e com a constante convocatória<br />

de Deus e dos Papas à santidade, o leitor poderá encontrar no decorrer de 2011 o tema da santidade<br />

numa nova seção da revista Doutor <strong>Plinio</strong>: Hagiografia.<br />

A consideração da vida dos santos é ainda mais oportuna que outrora, pois o ritmo de vida<br />

moderno pode muitas vezes levar o homem ao olvido deste chamado, ou mesmo ao obscurecimento<br />

da noção de santidade, que, em última análise, é um desconhecimento da santidade absoluta de<br />

Deus.<br />

Ensina-nos São Paulo que Deus manifesta aos homens sua santidade invisível através das coisas<br />

visíveis 1 . Sendo Deus infinito, não poderia refleti-la numa só criatura, mas sim numa multiplicidade.<br />

Assim, os seres que nos fazem conceber uma ideia mais próxima da suprema santidade de Deus, são<br />

os santos.<br />

De fato, Deus é admirável em seus santos. Seu grande número demonstra o quanto quer Ele ser<br />

conhecido através do homem. Esta é a razão da existência desta rica variedade de feitios de santidade;<br />

para o homem há modelos em profusão, constituindo todos, no seu conjunto, um verdadeiro universo.<br />

A História da Salvação é um belíssimo caleidoscópio de feitios de santidade, cada um convidando<br />

ao equilíbrio e à perfeição nas relações dos homens entre si e com Deus, próprios a refrear as más<br />

tendências e corrigir os desvios de cada época histórica.<br />

A Hagiografia torna-se, portanto, um modo profícuo de, pelo exemplo daqueles que nos<br />

precederam na Fé, medirmos nossos atos a fim de aperfeiçoarmo-nos mais e mais nas sendas da<br />

santidade, pois, para Doutor <strong>Plinio</strong>, o santo é a figura completa do homem, única forma pela qual o<br />

ser humano pode se realizar inteiramente.<br />

Todavia, a santidade não é apenas a máxima realização pessoal, mas também uma graça excelente<br />

que toca o mais profundo da alma, proporcionando-lhe dons magníficos que excedem a simples<br />

natureza.<br />

1) Cf. Rm 1, 20.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Datas na vida de um cruzado<br />

Janeiro de 1932<br />

Lutando pelos<br />

direitos da Igreja<br />

Incansável lutador pelos direitos da Igreja,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, desde jovem, usou de todos os<br />

meios para fazer valê-los. Assim, em 1932,<br />

dois anos antes de sua atuação enquanto deputado<br />

na Assembleia Nacional Constituinte, denunciara<br />

ele, nas páginas do semanário “O Século”, a<br />

violação dos mais elementares direitos pela proibição<br />

do ensino religioso.<br />

A Nota da Semana 1 não poderia deixar de<br />

se ocupar do desastrado acontecimento que há<br />

dias atrás veio trazer mais um golpe profundo<br />

nos sentimentos religiosos dos paulistas.<br />

Um militar que, a título interino, ocupava a<br />

Interventoria, à qual foi elevado por uma mera<br />

casualidade, que o colocou em uma evidência<br />

com a qual nunca sonhara 2 , julga-se no direito<br />

de perturbar profundamente a paz religiosa do<br />

Estado, para impor aos católicos paulistas seus<br />

pontos de vista de acanhado sectarismo, com o<br />

rótulo de liberdade de consciência!<br />

Muito barulho levantou o célebre decreto sobre<br />

a mendicância, em que o Interventor, estribando-se<br />

em alegações absurdas, revogou o próprio<br />

Código Penal.<br />

Não lhe fica atrás seu último decreto sobre o<br />

ensino religioso, no qual os princípios mais elementares<br />

do Direito são abertamente violados. É<br />

certo que a função de regulamentar os decretos<br />

federais cabe ao Interventor. Nestas condições,<br />

poderia S. Exa. ter modificado o decreto do <strong>Dr</strong>.<br />

Lando de Camargo, como bem lhe parecesse.<br />

Nunca poderia, porém, negar toda e qualquer<br />

regulamentação ao decreto federal que institui o<br />

ensino religioso no Brasil, porquanto isto importa<br />

em negar pura e simplesmente aplicação a um<br />

decreto promulgado pelo Governo Federal, para<br />

vigorar em todo o Brasil.<br />

Exorbitou, portanto, evidentemente, o Sr.<br />

Interventor de suas funções, e com isto pôs implicitamente<br />

em cheque o próprio sistema federativo.<br />

Efetivamente, o decreto ataca a unidade do<br />

Brasil sob dois pontos de vista fundamentais: 1)<br />

visa quebrar a unidade religiosa, elo poderosíssimo<br />

que liga de norte a sul todos os nossos Estados<br />

numa admirável comunhão de ideias; 2)<br />

quebra a unidade legislativa da Nação, negando<br />

a um Estado os benefícios que a todos os outros<br />

se concedem.<br />

Contra um tal abuso da autoridade, por parte<br />

de um funcionário federal, cabia recurso ao Chefe<br />

do Governo Provisório. Usando de seus direitos<br />

de Pastor e Chefe, o Exmo. e Revmo. Sr. Arcebispo<br />

Metropolitano telegrafou ao supremo<br />

magistrado da Nação, pedindo-lhe que restabelecesse<br />

entre nós a justiça e o direito violados.<br />

Temos o direito de esperar do Governo Provisório<br />

medidas prontas e eficazes, que forçosamente<br />

se impõem como necessárias, ao “espírito jurídico”<br />

do Sr. Maurício Cardoso, Ministro da Justiça.<br />

Devemos, no entanto, confessar que tais medidas<br />

já se estão fazendo esperar há diversos dias.<br />

Trairá o Governo Provisório sua alta missão<br />

de mantenedor da unidade nacional, negando<br />

ao povo paulista a justiça que a altos brados reclama?<br />

Levará ele a preocupação política a ponto<br />

de abandonar seus mais sagrados deveres?<br />

Só o futuro o dirá. Esperemos... sem esperança.<br />

(Extraído de artigo<br />

em O Século de 3/1/1932)<br />

1) Nota da Semana: seção do semanário O Século,<br />

na qual <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> escrevia.<br />

2) Manuel Rabelo, Interventor Federal em São Paulo,<br />

de 13 de novembro de 1931 a 7 de março de<br />

1932.<br />

5


Dona Lucilia<br />

“Filhão, a<br />

você eu tenho<br />

inteiramente!”<br />

Narrando o afetuoso método por ele<br />

empregado a fim de diminuir a sensação de<br />

isolamento em Dona Lucilia, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nos<br />

deixa o exemplo de como deve ser o trato<br />

entre verdadeiros católicos.<br />

M<br />

amãe bem poderia fazer<br />

seu o comovedor gemido<br />

do Profeta Isaías: De<br />

gentibus non est vir mecum 1 . Pois no<br />

considerável número de pessoas que<br />

ela havia conhecido na São Paulinho<br />

de seu tempo, ela podia dizer que<br />

não havia uma pessoa que estivesse<br />

com ela.<br />

Não digo que ela não tivesse relações<br />

sociais ou amizades. Havia<br />

senhoras com as quais ela trocava<br />

visitas, mas quão pouco profundo<br />

e consistente era isso. Mesmo porque,<br />

naturalmente, a morte foi rareando<br />

muito o número de suas relações.<br />

Neste quadro pode-se perceber<br />

bem qual era meu papel: mostrar-<br />

-lhe que ao menos seu “filhão” a<br />

compreendia e queria o quanto era<br />

possível querer.<br />

Por expressões<br />

fisionômicas pode-se<br />

dizer o que a<br />

palavra não diz<br />

Como eu fazia isso?<br />

Meu trato com ela não era muito<br />

explícito. Por meias palavras, por expressões<br />

fisionômicas e por olhares,<br />

podíamos dizer muitas coisas de que<br />

a palavra humana não é capaz. E, sobretudo,<br />

dá garantias de veracidade<br />

e profundidade que a palavra somente<br />

não dá.<br />

É fácil mentir com os lábios, mas<br />

com o olhar é muito difícil.<br />

E com um conjunto de atitudes —<br />

ao menos que se trate de um ator de<br />

profissão, ou de um hipócrita por definição<br />

— é ainda muito mais difícil.<br />

Pois, mesmo que a comédia seja bem<br />

representada, num convívio de muitíssimas<br />

décadas, haverá ocasiões em<br />

que o trato pessoal desmente o que<br />

um olhar fugaz ou uma atitude passageira<br />

procurou significar. E isto<br />

ela notaria, porque eu via bem que<br />

ela notava tudo.<br />

Apesar disso, eu não lhe poupava<br />

as palavras. Conversando com<br />

ela em tom ligeiramente jocoso,<br />

nunca em tom dramático e declamatório,<br />

eu dizia tudo quanto de<br />

carinhoso e elogioso é possível dizer,<br />

inundando-a de todas as formas<br />

de carinho.<br />

6


Testemunhas da doçura,<br />

bondade e afeto no trato<br />

Certa vez, uma pessoa de minha<br />

família que estava ficando velha, dizia<br />

que estava com vontade de morrer.<br />

Eu, para ser amável, lhe disse: “Mas<br />

por quê? Você tem os seus que lhe<br />

afagam e lhe compensam muita coisa<br />

na vida.” E outras coisas sem muita<br />

profundidade, mas ditas para agradá-la.<br />

Tal pessoa deu-me a seguinte<br />

resposta: “Se eu tivesse em minha casa<br />

quem me tratasse como você trata<br />

sua mãe, eu quereria viver 400 anos.”<br />

Nisso se vê como eu a protegia<br />

contra a sensação de isolamento que<br />

poderia assaltá-la.<br />

Certo dia, num corredor de minha<br />

casa que vai do hall ao quarto dela,<br />

pelo qual eu entrava e ela saía, bem<br />

junto à porta, nos encontramos. Não<br />

sei o que ela vinha pensando, mas<br />

ela pôs as duas mãos sobre os meus<br />

ombros e disse: “Filhão, eu não tenho<br />

ninguém a não ser você. Mas você<br />

eu tenho inteiramente.”<br />

Estas palavras me ficaram no espírito.<br />

Eu não respondi, porque certas<br />

coisas não têm resposta. Eu só a<br />

beijei e abracei como de costume.<br />

Entrei para meu escritório e ela foi<br />

para dentro da casa.<br />

Essa cena, apesar de simples, diz<br />

muito.<br />

A tocante preocupação que ela,<br />

no fim da vida, teve em diminuir as<br />

manifestações de afeto para comigo,<br />

querendo desta forma amenizar<br />

as saudades que eu teria quando<br />

ela morresse, mostrava que ela sabia<br />

bem o quanto eu a queria, e o quanto<br />

este isolamento dela, pelo menos<br />

em parte, era quebrado.<br />

Dona Lucilia<br />

em 1912.<br />

O afastamento<br />

a faria sofrer mais<br />

do que a morte<br />

Por vezes, eu me perguntava se os<br />

circunstantes se davam conta disso.<br />

Numa ocasião em que eu ia de avião<br />

7


Dona Lucilia<br />

à Europa, dirigi-me com ar de conversa<br />

a uma pessoa de minha família<br />

e perguntei o seguinte:<br />

“Se o avião caísse e você tivesse<br />

que anunciar à mamãe que eu morri,<br />

de que maneira o faria?” A esposa<br />

dele que estava presente, disse<br />

rindo: “Fulano anunciar? Eu tenho<br />

certeza de que ele não o faria nunca,<br />

pois ele sabe que isto seria para<br />

ela um tal golpe, que sua afetividade<br />

não permitiria que ele anunciasse.<br />

Ele incumbiria a outro, mandaria<br />

outro fazer, se necessário viajaria,<br />

fugindo disso como uma criança foge<br />

do bicho papão; mas anunciar, ele<br />

não teria coragem.”<br />

Eu insisti: “Mas, se fosse ele que<br />

tivesse que anunciar, o que ele faria?”<br />

Ela disse: “Era mais fácil ele esconder-se<br />

atrás de mim e pedir que<br />

eu anunciasse, do que ele fazer.”<br />

Outra pessoa que lá estava, disse:<br />

“Eu saberia perfeitamente o que fazer:<br />

Não contar.”<br />

Eu disse: “Mas como esconder isso?”<br />

Ele disse: “Eu diria que você está<br />

viajando.”<br />

Eu retruquei: “Mas ela não estranharia<br />

quando acabassem as cartas?”<br />

Ele respondeu: “Eu não contaria.”<br />

Nessa hora, vários outros que estavam<br />

na conversa também disseram:<br />

“Nós também, simplesmente,<br />

não contaríamos.”<br />

E acrescentaram: “Nós iríamos levando<br />

a mentira para a frente, afirmando:<br />

Você mandou dizer, você telefonou,<br />

passou um telegrama, mas<br />

nós o perdemos.”<br />

Eu ponderei: “Mas ela ficaria<br />

muitíssimo desconfiada de que tivesse<br />

acontecido alguma coisa.”<br />

Então unânimes responderam: “É<br />

melhor ficar desconfiada do que ter<br />

certeza.”<br />

Uma pessoa ainda perguntou:<br />

“Não seria pecado, não é?”<br />

Evitei responder,<br />

mas acho que seria,<br />

pois se Nossa Senhora<br />

permitisse, ela teria<br />

forças para resistir.<br />

O que talvez se pudesse<br />

fazer seria não contar logo,<br />

e fazer piedosamente<br />

uma novena de Missas, de<br />

comunhões e de rosários,<br />

pedindo a Nossa Senhora<br />

que desse forças a ela. Mas<br />

depois, com todos os cuidados,<br />

contar.<br />

Porém, o temperamento<br />

brasileiro é pouco propenso<br />

a esse tipo de solução.<br />

Então eu disse: “Vocês estão<br />

enganados, pois ela assim<br />

sofreria mais, por achar<br />

que eu fiz minha vida à parte,<br />

esqueci‐me dela e construí toda<br />

a minha existência sem ela.<br />

Tenho certeza de que isto seria<br />

para ela pior do que a própria<br />

morte.”<br />

Com isso, a conversa tornou-se<br />

tão pesada, sendo necessário mudar<br />

de assunto.<br />

Mas era a realidade. Meu distanciamento<br />

seria para ela pior do que<br />

a morte.<br />

As lágrimas deram lugar<br />

à paz e tranquilidade<br />

Quando ela morreu, seu corpo foi<br />

exposto no salão cor-de-rosa que há<br />

em minha casa. Eu estava sentado<br />

num sofá diante do corpo dela; em<br />

certo momento uma pessoa entrou,<br />

rezou um pouquinho diante do cadáver,<br />

depois foi me abraçar.<br />

Levantei-me e a pessoa me disse<br />

em voz baixa: “Sei que a morte<br />

da própria mãe, hoje em dia, para a<br />

quase totalidade das pessoas, significa<br />

pouca coisa; mas sei bem o quanto<br />

significa para você.” Era uma senhora<br />

de minha família, com quem<br />

eu tinha grande intimidade; ela beijou-me<br />

e retirou‐se.<br />

8


No centro, aspectos do salão<br />

cor-de-rosa, na casa de Dona<br />

Lucilia. À esquerda, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

na década de 30; à direita,<br />

Dona Lucilia aos 92 anos.<br />

Nesta ocasião creio<br />

ter espantado um<br />

pouco os circunstantes,<br />

porque eu chorei<br />

muito e em altos<br />

brados. Mas,<br />

depois precisei retirar-me<br />

para meu<br />

quarto, a fim de me<br />

preparar para os<br />

funerais.<br />

Enquanto eu me<br />

aprontava, se apossou<br />

de mim uma paz,<br />

uma serenidade, uma<br />

tranquilidade da qual<br />

não posso me esquecer. As<br />

lágrimas cessaram e a ideia<br />

da distância, da catástrofe<br />

que tinha<br />

acontecido com a<br />

pessoa que eu mais<br />

queria na Terra, passou,<br />

dando lugar a<br />

uma tranquilidade<br />

e uma paz que eu tive<br />

a impressão de ter<br />

desnorteado meus<br />

circunstantes. Aquele<br />

dia terminou numa extraordinária<br />

tranquilidade.<br />

No dia seguinte, retirei-me<br />

a uma fazenda<br />

por recomendação médica<br />

e lá permaneci até<br />

o dia da Missa de sétimo<br />

dia.<br />

Neste dia, fui bem cedo<br />

para São Paulo assistir<br />

à Missa, conservando<br />

a mesma paz.<br />

Iniciou-se, então, outra<br />

forma de convívio, em<br />

que a delicadeza dela se<br />

fazia sentir indireta, calma,<br />

tranquila, discreta e parcimoniosamente.<br />

Graças a Nossa<br />

Senhora, seus últimos<br />

dias foram cercados de<br />

muita benquerença<br />

Durante o período em que eu estive<br />

acamado, devido à amputação<br />

de alguns artelhos, nas horas determinadas<br />

pelos médicos, mamãe entrava<br />

para falar comigo. Ela, muito<br />

ciosa, não perdia uma oportunidade.<br />

Geralmente, ela errava a hora para<br />

menos, nunca para mais… Algumas<br />

vezes ela passava pelo meu<br />

quarto e dizia para a empregada que<br />

a conduzia: “Chegou a hora de eu falar<br />

com <strong>Plinio</strong>.” A empregada respondia:<br />

“Não, senhora, ainda não<br />

chegou a hora.”<br />

Ela dizia: “Não. Já está na hora!”<br />

E amavelmente discutia com a mulher.<br />

Ouvindo isso, eu dizia para a empregada:<br />

“Deixe-a entrar.” Fingindo<br />

ser a hora dela, dizia: “Então<br />

meu bem, chegou a hora!”Eu desconfiava<br />

de que ela conversasse com<br />

as pessoas que me esperavam no salão,<br />

mas não imaginava que o entendimento<br />

entre eles e ela fosse tão<br />

grande. Às vezes, vendo-a entrar<br />

com a fisionomia tão animada e alegre,<br />

eu me perguntava: Por que será<br />

que ela está tão alegre?<br />

Só depois de ela falecer, em conversa<br />

com alguns, é que percebi até<br />

onde a simpatia em relação a ela tinha<br />

chegado. Dei graças a Nossa<br />

Senhora por ver que os seus últimos<br />

dias foram cercados de uma benquerença<br />

que transpõe os umbrais<br />

da morte.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

11/6/1982)<br />

1) Eu pisei sozinho o lagar, e ninguém<br />

dentre os povos me auxiliou. (Is 63,3)<br />

9


Hagiografia<br />

Deus é<br />

“A santidade torna<br />

o homem capaz de<br />

multiplicar-se por si<br />

mesmo, excedendo<br />

os limites de suas<br />

capacidades naturais.”<br />

Este princípio<br />

comentado por<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> no presente<br />

artigo está muito<br />

presente na vida de São<br />

João de Capistrano:<br />

assistido por milagres,<br />

convertia multidões;<br />

com autêntica<br />

austeridade, contundia<br />

os desvios de sua<br />

época.<br />

G. Kralj<br />

São João de Capistrano - Lima, Peru.<br />

Afigura de São João de Capistrano<br />

é simplesmente admirável.<br />

Ele representa a imagem<br />

por excelência do asceta franciscano.<br />

Comentemos alguns dados biográficos<br />

a seu respeito 1 :<br />

Pelo fervor de suas prédicas, São<br />

João de Capistrano podia ser comparado<br />

a um leão que rugisse, ou a uma<br />

trombeta celeste. E seus exemplos confirmavam<br />

suas palavras. Viajava sempre<br />

a pé, carregando aos ombros os livros<br />

que utilizava. Após longos e veementes<br />

discursos, exausto de fadiga,<br />

acreditava nada ter feito. Tomava logo<br />

seu alforje e ia mendigar seu pão<br />

de porta em porta. Suas mortificações<br />

10


admirável nos seus santos!<br />

F. Lecaros<br />

Em contato com São Francisco de Assis os leprosos são curados - Greccio, Itália.<br />

eram extremas: alimentava-se apenas<br />

uma vez ao dia.<br />

Em compensação, Deus fazia<br />

acompanhar a palavra de seu servo<br />

por milagres extraordinários. Ele<br />

não se bastava para satisfazer todas<br />

as populações que reclamavam seu<br />

ministério.<br />

Aonde chegava, auditórios imensos<br />

de até 150 mil pessoas se reuniam para<br />

ouvi-lo.<br />

Os frutos de seu apostolado foram<br />

incalculáveis: restabelecia a paz em cidades<br />

divididas e convertia os pecadores<br />

irredutíveis.<br />

Certa vez, o povo de certo lugarejo<br />

obstinava-se a não dar ouvidos aos<br />

convites do santo. Repentinamente o<br />

território da cidade foi invadido por<br />

uma multidão incrível de ratos, que<br />

devoravam os arbustos e as ervas.<br />

Noutra ocasião, pregava numa praça<br />

pública: 60 mil pessoas estavam<br />

suspensas às suas palavras e nessa<br />

multidão havia numerosos endemoninhados.<br />

Em sua fervorosa improvisação,<br />

o homem de Deus, dirigindo-se<br />

a eles gritou: “Em nome de Jesus, respondei-me<br />

e repeti comigo três vezes:<br />

Ó Nome todo-poderoso, ó Nome terrível,<br />

ó Nome todo divino!” Os pobres<br />

possessos repetiam isso. Mas o mais<br />

admirável é que todos os demônios espalhados<br />

na região, ao redor de 8 milhas,<br />

o repetiram juntamente, como se<br />

tivessem ouvido a abjuração do santo.<br />

Quando pregava contra a vaidade<br />

das mulheres, fazia-o com tanta energia<br />

que, após o sermão, elas lhe levavam<br />

suas joias e adornos, lançando-<br />

-os publicamente na fogueira.<br />

Durante os seus sermões, São João<br />

detinha a chuva nos céus e impunha<br />

silêncio aos pássaros que perturbavam<br />

sua pregação.<br />

Um historiador assim descreve um<br />

dia desse santo, quando pregava em<br />

Nuremberg:<br />

“Levantava-se antes da aurora<br />

a fim de recitar o Ofício e preparar-<br />

-se para a Santa Missa. Dirigia, então,<br />

ao povo um sermão em latim,<br />

que um intérprete traduzia no idioma<br />

do lugar. Voltava ao convento, rezava<br />

11


Hagiografia<br />

S. Miyazaki<br />

Sexta e Nona. Boa parte da tarde era<br />

consagrada à visita aos doentes. Depois<br />

concedia audiência àqueles que<br />

tinham necessidade de lhe falar. Recitava<br />

Vésperas e voltava ao serviço<br />

dos doentes até à noite. Após as Completas<br />

e a oração da noite, concedia<br />

algum repouso a seu corpo, embora<br />

roubasse ao sono vários momentos<br />

para rever a Sagrada Escritura. Tal<br />

era a eficácia de suas palavras, que<br />

ele fazia chorar mesmo aqueles que<br />

não compreendiam sua língua.”<br />

Com autêntica<br />

austeridade, São<br />

João contundia os<br />

desvios de sua época<br />

A espiritualidade de São Francisco<br />

de Assis apresenta dois aspectos<br />

diversos: de um lado, a doçura, da<br />

qual nos dá exemplo o próprio São<br />

Francisco; de outro lado, a severidade.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma<br />

conferência nos anos 90.<br />

A severidade dos capuchinhos da<br />

grande época tornou-se famosa na<br />

História da Igreja. Homens austeros,<br />

que praticavam a pobreza levada aos<br />

extremos limites, e que combatiam a<br />

infidelidade, a imoralidade, as heresias<br />

dos grandes e poderosos de um<br />

modo verdadeiramente admirável.<br />

São João de Capistrano viveu numa<br />

época em que os efeitos do Concílio<br />

de Trento ainda não se tinham<br />

feito sentir, onde o amor exagerado<br />

ao luxo tinha invadido os ambientes<br />

eclesiásticos — fato que foi aproveitado<br />

como pretexto pelos pseudo-reformadores<br />

do protestantismo.<br />

Os sacerdotes daquele tempo davam-se<br />

com o que era antigamente a<br />

classe dominante, a nobreza; por isso,<br />

tanto quanto podiam, aspiravam levar<br />

uma vida de luxo e de pompa, imitando<br />

os grandes senhores feudais.<br />

Por outro lado, muitos ingressavam<br />

no estado religioso sem possuir<br />

vocação autêntica e, com isso, degradavam<br />

o estado sacerdotal.<br />

Também os nobres daquele<br />

tempo levavam uma<br />

vida repleta de delícias, de<br />

opulências, uma vida de gozo<br />

sensual, oposto à austeridade<br />

evangélica.<br />

Contra essa forma da Revolução,<br />

os religiosos capuchinhos<br />

e franciscanos aparecem<br />

como contra-revolucionários<br />

por excelência.<br />

Por onde passava, São<br />

João de Capistrano aparecia<br />

como a personificação da<br />

austeridade.<br />

Em estradas percorridas<br />

por magníficas carruagens,<br />

atravessadas por homens a<br />

cavalo ricamente ajaezados,<br />

viajadas por burgueses em<br />

cômodas liteiras, via-se também<br />

a figura austera de um<br />

franciscano todo ele sobrenatural,<br />

num passo veloz e<br />

decidido, recolhido em oração,<br />

varonil, forte, saudável,<br />

V. Toniolo<br />

Missionário franciscano prega às<br />

multidões - Ouro Preto, Minas Gerais.<br />

carregando às costas um saco cheio<br />

de livros de oração.<br />

Isso constituía um tremendo contraste<br />

com toda aquela moleza, com<br />

toda aquela efervescência de sensualidade<br />

e de orgulho que já estava<br />

produzindo seus frutos e que os ia<br />

produzir intensamente mais adiante.<br />

Assistido por milagres,<br />

o santo austero<br />

convertia multidões<br />

Quando esses franciscanos ocupavam<br />

o púlpito faziam sermões<br />

tremendos, dizendo as verdades a<br />

todo mundo, increpando a moleza<br />

de vida, a sensualidade, o orgulho,<br />

a luxúria em que estavam se afundando.<br />

Vemos na história de São João de<br />

Capistrano auditórios de até 150 mil<br />

pessoas ouvindo-o. Podemos imaginar<br />

o que era a vontade de ouvir des-<br />

12


A graça toca a alma<br />

no que ela tem de<br />

mais profundo, de<br />

tal maneira que o<br />

homem, como que,<br />

multiplica-se por si<br />

mesmo e fica muito<br />

superior a uma pessoa<br />

comum: ele torna-se<br />

quase um Anjo; mas<br />

não somente um Anjo,<br />

ele fica uma figura<br />

do próprio Deus.<br />

São João de Capistrano -<br />

Cracóvia, Polônia.<br />

G. Kralj<br />

compostura — porque era descompostura<br />

grossa que vinha! — que<br />

aquele povo manifestava.<br />

Ele falava contra o luxo das mulheres,<br />

contra os vícios do povo.<br />

Era dito tudo e o povo acorria em<br />

grande quantidade para ouvir. Naturalmente,<br />

isso causava impressão.<br />

Mas entre causar impressão<br />

e causar conversão, a distância é<br />

grande. E São João de Capistrano<br />

muitas vezes não conseguia o resultado<br />

visado.<br />

Porém, esta era ainda uma época<br />

onde os milagres se multiplicavam.<br />

Então, quando ele falava, os ratos<br />

vinham roer as plantas; a terra que<br />

tremia; endemoninhados repetiam<br />

aquilo que ele exigia. Vemo-lo, portanto,<br />

alcançar enormes resultados<br />

no púlpito.<br />

Pequeno repouso<br />

depois do fatigante<br />

labor cotidiano<br />

Terminado o trabalho apostólico,<br />

o que fazia São João?<br />

Retirava-se calmamente<br />

para o recolhimento de sua<br />

cela.<br />

Ele — que acabava não só<br />

de abalar cidades, mas de arrancar<br />

milagres da própria misericórdia<br />

de Deus — dormia, então,<br />

no seu cantinho. Depois, enquanto<br />

a cidade ainda estava imersa no sono,<br />

ele começava longas orações.<br />

Podemos imaginar a edificação de<br />

alguém que, voltando para casa às<br />

três, quatro horas da manhã, passando<br />

perto de um convento, vê uma luzinha<br />

acesa, e comenta: “É Frei João<br />

de Capistrano, um santo, que já está<br />

acordado. Um dos primeiros na cidade<br />

a acordar, enquanto a cidade ainda<br />

dorme. A esta hora o santo varão<br />

reza, ele lê o seu livro de Horas,<br />

ele se prepara para a Missa.”<br />

Só de imaginar a oração de<br />

São João de Capistrano, um calor<br />

sobrenatural nos enche a alma.<br />

Depois disso ele vai visitar os doentes,<br />

vai atender às pessoas. Come<br />

uma única vez ao dia. No final de<br />

contas, vai se deitar exausto. Mas no<br />

momento em que se deita, ele revê<br />

um pouco a Sagrada Escritura.<br />

A santidade torna<br />

o homem capaz de<br />

multiplicar-se por<br />

si mesmo e exceder<br />

os limites de suas<br />

possibilidades naturais<br />

Vemos, em São João de Capistrano,<br />

como Deus é admirável nos seus<br />

santos! Nele vemos bem o que é a<br />

santidade.<br />

Trata-se de uma graça excelente<br />

que toca a alma no que ela tem de<br />

mais profundo, proporcionando-lhe<br />

dons magníficos que excedem a simples<br />

natureza.<br />

A graça a completa de tal maneira<br />

que o homem, como que, multiplica-<br />

-se por si mesmo e fica muito superior<br />

a uma pessoa comum: ele torna-<br />

-se quase um Anjo; mas não somente<br />

um Anjo, ele fica uma figura do<br />

próprio Deus.<br />

Christianus alter Christus. É Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo dizendo as verdades,<br />

sacrificando-se, fazendo penitência,<br />

orando continuamente, visitando<br />

os pobres e produzindo milagres.<br />

Temos, portanto, a figura de um<br />

grande contra-revolucionário em<br />

função dos aspectos da Revolução<br />

naquele tempo; um santo cuja biografia<br />

nos enche a alma.<br />

Que São João de Capistrano reze<br />

por nós.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 27/3/1967)<br />

1) Infelizmente, não possuímos a fonte<br />

da ficha utilizada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nessa<br />

ocasião.<br />

13


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

Os novíssimos<br />

do homem - II<br />

Continuando suas considerações acerca dos<br />

novíssimos do homem, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> ressalta<br />

os dois caminhos diante dos quais todo<br />

homem deve fazer a sua escolha: os horrores<br />

das penas imputadas aos réprobos, ou as<br />

maravilhas contempladas pelas almas eleitas.<br />

N<br />

o Juízo Final, quando os<br />

réprobos forem com seus<br />

corpos para o inferno, estes<br />

não estarão sujeitos à lei da gravidade.<br />

E aquelas chamas farão as pessoas<br />

rolarem, de um jeito e de outro,<br />

no meio das imprecações, das maldições<br />

e dos ódios recíprocos, porque<br />

eles se odeiam, se atracam e se maltratam<br />

entre si.<br />

É a cidade eterna do ódio e do<br />

desespero. Não haverá remédio para<br />

nada. Nunca, nunca, nunca! E os<br />

condenados ali ficarão eternamente,<br />

eternamente, eternamente!<br />

Isso causa terror, porém há mais.<br />

É o próprio Deus que<br />

determina os tormentos<br />

Eles terão no inferno — ao menos<br />

certos santos viram assim — como<br />

que vermes horríveis, corroendo-os<br />

e enchendo-os como que de<br />

doenças, as quais não os matam,<br />

não os consomem, mas os atormentam<br />

ainda mais. No meio dessa dor<br />

tremenda, os precitos sabem que<br />

Deus é o Autor de tudo isto, porque<br />

Ele é a causa primeira de todas as<br />

coisas. Se Deus é o Criador do Céu<br />

e da Terra, é também o Criador do<br />

inferno. Não houve outro ser que<br />

tenha criado o inferno. Ele é o motor<br />

primeiro de todas as coisas. Todas<br />

as coisas se movem, em última<br />

análise, pelo movimento comunicado<br />

por Deus. Portanto, Deus — talvez<br />

através dos anjos bons — está<br />

animando continuamente todos os<br />

tormentos do inferno.<br />

São João Bosco, narrando os célebres<br />

sonhos dele — que, no fundo,<br />

eram revelações privadas —,<br />

conta que Deus lhe deu ordem para<br />

descer e ver o inferno; ele foi e,<br />

chegando próximo do inferno, deparou-se<br />

com uma muralha. Então<br />

um anjo disse-lhe que pusesse<br />

a mão na muralha. O santo sentiu<br />

que a muralha estava quentíssima<br />

— era a muralha mais externa,<br />

portanto a mais fresca do inferno<br />

—, ficou com medo e não quis<br />

colocar sua mão. Mas o anjo ordenou<br />

que o fizesse e ele apenas encostou<br />

a mão na muralha. Consequência:<br />

São João Bosco passou<br />

vários dias com a mão queimada e<br />

inutilizada...<br />

Houve santos que receberam a<br />

ordem de Deus de verem o lugar que<br />

lhes estava destinado no inferno, caso<br />

não correspondessem à graça. A<br />

grande Santa Teresa de Jesus viu<br />

o local onde ela ficaria como uma<br />

prancha dobrada em dois, com pregos<br />

atravessando seu corpo; entraria<br />

numa espécie de forno, e dali somente<br />

seria tirada para padecer outros<br />

tormentos.<br />

Como é verdadeira a<br />

expressão “Medita nos<br />

teus novíssimos e não<br />

pecarás eternamente”<br />

Todos os sentidos do homem sofrem<br />

no inferno. Os cheiros são nauseabundos.<br />

Os espetáculos, hediondos.<br />

Os ruídos, o que pode haver de<br />

mais cacofônico. A música moderna,<br />

por mais medonha que seja, não<br />

dá senão uma ideia do que é o eterno<br />

ranger de dentes do inferno. As<br />

coisas mais pútridas enchem a boca.<br />

O tacto é desolado pelo fogo. Quantos<br />

outros horrores lá existem! E se<br />

pecarmos mortalmente, de um mo-<br />

14


mento para outro, poderemos ir para<br />

o inferno.<br />

Como é bom pensar nisso na hora<br />

da tentação!<br />

Se todas as pessoas fizessem de<br />

manhã, logo após se levantarem,<br />

uma meditação rápida de um ponto<br />

a respeito do inferno, e durante o<br />

dia se lembrassem, de vez em quando,<br />

desse ponto, seria ótimo. Há<br />

despertadores que soam de tantas<br />

em tantas horas; quando ele tocasse,<br />

a pessoa se recordaria: inferno!<br />

Li as revelações de Sóror Mariana<br />

de Jesus Torres — não está canonizada,<br />

mas morreu em odor de santidade<br />

—, à qual apareceu Nossa Senhora<br />

do Bom Sucesso, em Quito.<br />

Ela aceitou ficar espiritualmente<br />

no inferno durante cinco anos,<br />

padecendo, para pagar os pecados<br />

e evitar que se perdesse uma freira,<br />

a qual havia se revoltado contra<br />

ela, que era a superiora. O que<br />

ela sofreu durante esse tempo, não<br />

há palavras que possam exprimi-<br />

-lo! Nesse sentido, o inferno de vez<br />

em quando dá uma lambida e com<br />

a ponta da língua pega os que estão<br />

na Terra...<br />

Considerem os martírios mais<br />

cruéis promovidos pelos imperadores<br />

romanos. Por exemplo, São<br />

Lourenço que foi assado vivo e sentia,<br />

entre outras coisas, a gordura<br />

de seus braços suspensos cair sobre<br />

seu peito em chamas. Causa horror!<br />

Ninguém aguentaria esses tormentos<br />

se não fosse uma graça especial<br />

de Deus. Isso não é nada em comparação<br />

com o inferno!<br />

Não compensa correr<br />

o risco de esperar a<br />

misericórdia final<br />

E a todo momento estamos a um<br />

fio disso.<br />

Alguém poderia dizer: “Não é<br />

bem assim! Há tanta gente que peca<br />

e não vai para o inferno. Deus,<br />

na sua infinita misericórdia, leva a<br />

maior parte dos homens para o Céu.<br />

À última hora, vem uma graça e a<br />

pessoa se arrepende.”<br />

Conta-se a história de um santo<br />

que viu um pecador cair de uma<br />

ponte, talvez tenha cometido suicídio.<br />

Presumo que era uma ponte alta,<br />

para a história ser verossímil. Então<br />

uma pessoa perguntou-lhe se o<br />

pecador tinha ido para o inferno. O<br />

santo respondeu: “Da ponte ao rio<br />

há algum tempo. Nesse tempo, é<br />

possível que a graça de Deus interviesse.”<br />

É verdade.<br />

Mas São Luís Grignion de Montfort<br />

dá um princípio muito verdadeiro:<br />

estes são os casos excepcionais.<br />

Normalmente a alma, no estado em<br />

que vive, ela morre. E essas graças<br />

de última hora existem e são maravilhas<br />

da misericórdia de Deus; porém,<br />

são raras. Queremos correr o<br />

risco?<br />

Se, fazendo algo, pudéssemos ficar<br />

com câncer, não quereríamos<br />

correr o risco. O inferno é muito<br />

pior do que isso!<br />

A visão de Deus<br />

face a face<br />

Viremos agora a página de nossas<br />

cogitações, e passemos para um<br />

campo completamente diferente: o<br />

Céu. É o contrário.<br />

No Céu, a alma do eleito vê Deus<br />

face a face. Daqui onde estou sentado,<br />

vejo esses estandartes suspen-<br />

15


Eco fidelíssimo da Igreja<br />

sos ao teto e um escudo com o leão<br />

rompante; conheço-os, porque estou<br />

vendo-os diretamente. Aqui na<br />

Terra, não podemos ver a Deus, a<br />

não ser que, por um fenômeno místico<br />

reservado a quão poucos dos<br />

seus eleitos, Ele nos aparecesse —<br />

isso nunca me aconteceu. Ele sabe<br />

a quem aparece! Não vemos Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, que recebemos<br />

na Eucaristia.<br />

Ver Deus face a face é a maior<br />

alegria e o maior contentamento que<br />

um homem possa ter. Literalmente,<br />

inunda o homem de um gáudio, um<br />

gosto, de que não conseguimos fazer<br />

ideia, porque excede a tudo quanto<br />

seja possível imaginar.<br />

Podemos usar umas comparaçõezinhas,<br />

de certa utilidade para que<br />

nossos sentidos, nossa fantasia, nos<br />

ajudem a imaginar o Céu, mas sabemos<br />

desde logo que não há nenhuma<br />

comparação possível.<br />

Imaginemos que uma pessoa fosse<br />

colocada num astro — quem sabe<br />

se isso existe! —, o qual fosse o<br />

ponto por onde ela pudesse ver o<br />

universo com maior beleza. E ali<br />

pudesse contemplar um fulgor da<br />

pulcritude do universo, pela ordenação,<br />

pelo brilho, pela graça, força,<br />

grandeza, sabedoria que o ordena;<br />

ela ficaria pasma. Suponhamos<br />

ainda que esse astro fosse ele mesmo<br />

lindíssimo, todo feito de cristal,<br />

e de cristal transparente, através do<br />

qual passariam os raios de luz de todos<br />

os astros luminosos, de maneira<br />

que, de vez em quando, olhando para<br />

dentro dele, veria em ponto pequeno<br />

o jogo de luz que contempla<br />

em volta.<br />

Inundados por uma<br />

felicidade que não<br />

se pode imaginar<br />

Para recorrer a uma fantasmagoria<br />

de Platão, imaginemos que esse<br />

astro, girando, produzisse uma música<br />

inebriante. E dele desprendes-<br />

se um pó com um perfume magnífico,<br />

e proporcionasse um sabor extraordinário<br />

e infatigável. Suponhamos<br />

também que a pessoa pudesse<br />

sentar-se numa elevação desse astro,<br />

com uma comodidade tal como nenhum<br />

assento na Terra lhe pudesse<br />

fornecer.<br />

Durante algum tempo, ela ficaria<br />

encantadíssima, mas depois quereria<br />

uma criatura humana para conversar.<br />

Temos razões para estarmos<br />

fartos um do outro; porém, colocados<br />

num astro, porque nossa natureza<br />

é sociável, desejaríamos um ser<br />

inteligente a fim de mantermos conversação.<br />

Após o Juízo Final,<br />

quando os réprobos<br />

forem com seus corpos<br />

para o inferno,<br />

passarão a compor a<br />

cidade eterna do ódio<br />

e do desespero. Não<br />

haverá remédio para<br />

nada.<br />

Digamos que Deus misericordioso<br />

não lhe enviasse um homem para<br />

aborrecê-la, e sim um anjo que,<br />

num agitar de asas encantador, lhe<br />

aparecesse em forma humana, magnífico.<br />

A pessoa se poria em oração<br />

diante do anjo, o qual sentando-<br />

-se perto dela lhe dissesse: “Vamos<br />

conversar.”<br />

Sabemos que a natureza angélica<br />

é tal que o menor dos anjos é mais<br />

inteligente, sábio, poderoso, majestoso,<br />

afável, íntimo e grandioso do<br />

que o mais perfeito dentre os homens.<br />

A pessoa começa a conversar maravilhada<br />

e, de vez em quando, o anjo<br />

canta louvores a Deus para ela ouvir.<br />

Dá jornais falados do Céu, pois ele<br />

está também no Paraíso e narra o que<br />

vê: “Nesta hora a gloriosa falange<br />

dos serafins desfila diante de Nossa<br />

Senhora, aclamando-A. Está acontecendo<br />

isso, aquilo etc.” E ela percebe<br />

no anjo o gáudio de tudo isso.<br />

Diante dessa hipótese, pensamos:<br />

“Poderíamos passar uma eternidade<br />

conversando com esse anjo, pois<br />

sempre haveria temas para se tratar<br />

com ele.”<br />

Ilusão!<br />

Ao cabo de mil anos, nós o teríamos<br />

conhecido e lhe perguntaríamos<br />

com muito jeito: “Não tendes um<br />

companheiro?” E com jeitinho brasileiro:<br />

“Como é vosso superior?”<br />

Digamos que esse anjo, com muita<br />

bondade, nos obtivesse a vinda do<br />

superior dele. Depois de mais mil<br />

anos, o fato se repetiria. Quando toda<br />

a fileira dos anjos fosse esgotada,<br />

no final diríamos: “Como o Céu é<br />

enorme, entretanto eu vi tudo e ainda<br />

não me saciei!”<br />

Mas isso não sucede com Deus,<br />

que é absoluto, perfeito, eterno. Somente<br />

Ele nos sacia inteira e perfeitamente!<br />

E quando o beneplácito<br />

d’Ele desce sobre nós e nos chama<br />

pelo nosso nome, <strong>Plinio</strong>, Pedro, Antônio,<br />

sentimos o nexo e semelhança<br />

com Ele, bem como sua glória. O<br />

Criador nos glorifica, acaricia, ama,<br />

sem um minuto de interrupção,<br />

nem de diminuição de intensidade.<br />

Eternamente<br />

afagado por Deus<br />

Sendo infinito e absoluto, Deus<br />

é totalmente insondável para nós. E<br />

poderíamos passar — se se pudesse<br />

dizer no plural a palavra eternidade,<br />

pois ela é uma só — uma eternidade<br />

de eternidades olhando para Ele,<br />

que sempre seria para nós inteiramente<br />

novo.<br />

Não é só!<br />

Deus se mostraria a nós e nos faria<br />

saber o que a Fé nos ensina: se<br />

olharmos para os outros bem-aventurados,<br />

veremos algumas coisas<br />

16


que Ele não nos revela. Contemplando<br />

Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, teremos razões de encantamento<br />

inexcedíveis; Ele é<br />

a Segunda Pessoa da Santíssima<br />

Trindade, hipostaticamente<br />

unida à natureza humana. Em<br />

Nossa Senhora, teremos o espelho<br />

perfeito de Deus. E depois<br />

os nove coros de anjos; cada<br />

anjo, a seu modo, nos diz<br />

mais alguma coisa de Deus;<br />

eles estão continuamente se<br />

dando os jornais falados, ou<br />

melhor, cantados, de Deus. Isso<br />

para o elemento principal de<br />

nosso ser, que é a alma.<br />

Mas, haverá também, depois<br />

da ressurreição, maravilhas para<br />

o nosso corpo.<br />

O auge do deleite<br />

para todos os<br />

sentidos<br />

O grande e incomparável<br />

Cornélio ensina que, além do<br />

Céu onde se vê Deus, há um local<br />

físico no qual ficarão os corpos<br />

dos bem-aventurados unidos<br />

às suas almas. Enquanto<br />

a alma vê a Deus face a face, o<br />

corpo — o homem ressurrecto<br />

está totalmente vivo, sem doenças,<br />

sem misérias, nem sujeito à<br />

morte —, que não produz mais<br />

podridão como sucede nesta<br />

Terra, se encontra num lugar de<br />

felicidade perfeita. E para adestrar<br />

e dar alegria aos seus sentidos<br />

— uma vez que os sentidos<br />

dos condenados têm tormentos, é<br />

justo que os dos bem-aventurados tenham<br />

alegria —, neste Céu empíreo<br />

há todo um mundo material que enche<br />

o homem de encantos mil, muito<br />

superiores ao Paraíso Terrestre; é o<br />

que se chama Paraíso Celeste.<br />

O Paraíso Terrestre é tão lindo! O<br />

Paraíso Celeste é incomparavelmente<br />

mais belo! Os sentidos do homem<br />

terão uma festa constante e perfeita,<br />

Juízo Final - Museu São Pio V<br />

(Valência, Espanha).<br />

dentro da temperança mais exemplar,<br />

da satisfação mais inteira; o auge<br />

da beleza para os olhos, da harmonia<br />

para os ouvidos, da delicadeza<br />

para o tacto, o pináculo de tudo<br />

que se possa imaginar existirá inebriando<br />

o corpo, ao mesmo tempo<br />

em que o homem contempla a Deus<br />

face a face.<br />

Mais ainda, Cornélio cita autores<br />

os quais dizem que os anjos se<br />

comunicarão de maneira a serem<br />

percebidos pelos sentidos<br />

do homem. Então formarão<br />

jogos de cores, de nuvens etc.,<br />

que são mensagens deles, porque<br />

o olho humano não pode<br />

ver o puro espírito. E acrescenta<br />

ele que, assim como o músico<br />

comunica seu pensamento<br />

pelo som, os anjos, por essas figuras,<br />

comunicarão seu ser, seu<br />

amor, e estaremos continuamente<br />

inebriados de toda espécie<br />

de alegria possível.<br />

Então, meus caros, não haverá<br />

mais quem nos diga aquela<br />

frase Fugit irreparabile tempus 1 ;<br />

pelo contrário, tudo cantará<br />

uma palavra maviosa: Eternidade!<br />

Quando formos convidados<br />

para um sacrifício, um ato de<br />

virtude, devemos pensar o que<br />

eles nos vão conquistar na eternidade.<br />

Li um livro do século XIX,<br />

que tinha imprimatur — não<br />

sei o que a sã Teologia diz hoje<br />

a respeito disso, e eu me conformo<br />

com a sã Teologia —,<br />

escrito pelo Abbé de Broglie,<br />

francês, que sustentava que o<br />

homem no Paraíso Celeste<br />

tem a circulação sanguínea,<br />

respiração e se alimenta de vinhos<br />

e comidas deliciosas, que<br />

o regalam sem depois se transformar<br />

em podridão, porque o<br />

corpo do bem-aventurado está<br />

na glória e não tem misérias.<br />

Podemos, assim, imaginar o<br />

auge das delícias que um homem<br />

tem no Céu empíreo. v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 23/7/1983)<br />

1) O tempo foge irreparavelmente. Com<br />

frequência <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> terminava suas<br />

exposições para os mais jovens pronunciando<br />

essa frase.<br />

17


Revolução e Contra-Revolução<br />

Sacralidade nas<br />

relações humanas<br />

Era nota característica de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> fazer aplicações concretas aos<br />

princípios por ele defendidos. Assim, após a publicação de seu livro<br />

“Revolução e Contra-Revolução”, desenvolveu ele suas explicitações<br />

em diversas conferências proferidas aos seus seguidores. Analisemos<br />

na presente exposição o modo contrarrevolucionário de tratar os<br />

empregados domésticos e outros subalternos.<br />

Oprimeiro dever de quem<br />

manda é deixar sentir o caráter<br />

sacral 1 . Toda autoridade,<br />

por pequena que seja, é exercida<br />

em nome de Deus. Sem essa nota, a<br />

autoridade sai completamente dos<br />

rumos, perde sua razão de ser.<br />

Passarei a explicar no que consiste<br />

a nota sacral da autoridade.<br />

Não existe atividade<br />

humana que seja<br />

inteiramente profana<br />

Todo mundo sabe que a autoridade<br />

existe por desígnio da Providência,<br />

e quem obedece à autoridade<br />

obedece ao próprio Deus. Não é<br />

disso que se trata, mas de uma coisa<br />

diferente: cada atividade do homem<br />

pode e deve ser vista dentro de uma<br />

perspectiva em que ela se sacraliza.<br />

Não existe nenhuma atividade humana<br />

que seja completamente profana.<br />

Porque Deus, criador de todo homem,<br />

é implícita e indiretamente,<br />

criador de todas as ações humanas.<br />

18<br />

E todas as ações honestas dos homens,<br />

quando bem exercidas, refletem<br />

de algum modo uma perfeição<br />

de Deus. Por mais modesta que seja<br />

essa atuação, ela é no fundo um<br />

reflexo do agir de Deus e, portanto,<br />

tem algo de sagrado.<br />

O agir de Deus é, por sua vez, um<br />

reflexo do ser de Deus. Devemos,<br />

portanto, compreender o caráter sagrado<br />

de toda ação, para depois nos<br />

colocarmos na perspectiva da autoridade.<br />

A ação de Deus refletida<br />

nas ações mais comuns<br />

Consideremos a menor das coisas,<br />

por exemplo, limpar uma sineta.<br />

Trata-se de uma ação pela qual esta<br />

criatura — que tem seu estado de integridade,<br />

de beleza em determinadas<br />

condições — é separada dos elementos<br />

que podem toldar a sua pulcritude<br />

ou comprometer a sua integridade.<br />

E já de uma vez damos um salto,<br />

pois esta atividade é um reflexo da<br />

Peculiar cena de uma refeição<br />

em família - Museu Hermitage,<br />

São Petersburgo (Rússia).


ação de Deus enquanto a Providência<br />

conserva todas as coisas boas que<br />

existem no universo, reprime o mal,<br />

ou lhe põe limites; quer dizer, a ação<br />

de Deus, enquanto purificador de<br />

tudo, tem o seu reflexo na atividade<br />

de uma pessoa que limpa essa sineta;<br />

portanto, esse ato pode e deve ser<br />

praticado numa perspectiva sacral.<br />

Uma empregada católica, que faz<br />

a limpeza numa residência, realiza<br />

seu trabalho com o desejo de obter<br />

a integridade e a formosura das coisas<br />

nessa casa. Ela limpa, portanto,<br />

com amor, porque ama a boa ordem,<br />

a integridade e a beleza das coisas. E<br />

a sua ação praticada com esse espírito<br />

é sacral.<br />

A patroa que queira mandar nela,<br />

para exercer convenientemente<br />

o seu ofício, deve ter, mais ainda do<br />

que a criada, este amor à boa ordem<br />

pela boa ordem, à limpeza pela limpeza,<br />

à integridade pela integridade,<br />

e deve realizar com um respeito religioso<br />

a sua função; não respeito para<br />

a coisa, porque esta em si não merece<br />

respeito, é um ser inanimado,<br />

não tem direitos; mas, por respeito a<br />

Por mais modesta<br />

que possa ser, toda<br />

reta ação humana, de<br />

algum modo, reflete<br />

uma perfeição de<br />

Deus, e representa,<br />

no fundo, um reflexo<br />

do agir de Deus e,<br />

portanto, tem algo de<br />

sagrado.<br />

Deus, o qual quer que cada coisa esteja<br />

na sua devida ordem.<br />

União de ideais e<br />

vontades na relação<br />

patrão-empregado<br />

Então, a patroa que manda na sua<br />

criada precisa dar-lhe uma alta ideia<br />

do valor sacral das coisas que ela deve<br />

fazer, e conformar a vontade da<br />

empregada nesse espírito.<br />

E a primeira relação entre a criada<br />

e a patroa é de caráter religioso,<br />

na qual elas se fundem no ideal e<br />

trabalham no mesmo ritmo, na mesma<br />

direção. Apenas a patroa exerce<br />

um poder, a seu modo sacral, de dirigir<br />

a criada nesse ponto. E a criada<br />

ama esse poder, porque a ajuda a realizar<br />

um serviço de Deus, de que ela<br />

está incumbida.<br />

A patroa, dando a entender o caráter<br />

sacral desse trabalho, faz com<br />

que ele perca o seu caráter vil, porque<br />

o serviço manual tem qualquer<br />

coisa que envilece; ele é trivial, corriqueiro<br />

e pode até rebaixar a alma<br />

se a pessoa que o exerce não tem em<br />

vista o caráter sacral de sua atividade.<br />

Em segundo lugar, é preciso levar<br />

em consideração o trabalho da<br />

criada, não mais enquanto limpando<br />

a casa, mas servindo a patroa e<br />

admirando-a. Tudo isso adquire outro<br />

significado porque é da glória de<br />

Deus que o gênero humano produza<br />

toda forma de perfeição, dignidade,<br />

distinção, elevação de que é capaz;<br />

portanto, glorifica a Deus haver<br />

uns poucos que tenham mais esplendor<br />

de personalidade do que os outros,<br />

porque, não podendo ser dado<br />

esse esplendor a todos os seres humanos,<br />

ele se realiza pelo menos em<br />

alguns.<br />

E a criada, estimando uma sineta,<br />

quer que esta seja bonita e limpa,<br />

deve amar mais ainda a sua patroa.<br />

A criada deve, portanto, ter um gosto<br />

sacral de admirar a patroa, e esta<br />

19


Revolução e Contra-Revolução<br />

precisa ter um gosto sacral de ser admirada,<br />

não por esnobismo, por pretensões<br />

de vaidade e muito menos<br />

por coisas sensuais, mas pela alegria<br />

de ver transluzir no seu exterior uma<br />

beleza interior que Deus lhe deu, está<br />

de acordo com a ordem das coisas,<br />

e é bom, nobre, digno, conveniente<br />

que transluza.<br />

A patroa que assim se considera<br />

presta um serviço a Deus. Dessa forma,<br />

quer a criada que admira, quer a<br />

patroa que é admirada o fazem<br />

religiosamente.<br />

Então, não existe<br />

a sensação desagradável<br />

de uma<br />

que não tem roupas<br />

bonitas e que<br />

adorna quem as possui; mas é uma<br />

espécie de consórcio, de conjugação,<br />

pela qual aquela que está debaixo<br />

serve a Deus em união com aquela<br />

que está de cima. Há, portanto, uma<br />

união de ideais e de vontades nesta<br />

relação patrão-empregado.<br />

Eu poderia apresentar inúmeros<br />

outros exemplos, para mostrar que<br />

as atividades puramente humanas<br />

têm fundamento, em última análise,<br />

metafísico, em Deus.<br />

Deus ampara os<br />

grandes concedendo-lhes<br />

pequenos para servi-los<br />

A Providência Divina se exerce<br />

de superior para inferior e de inferior<br />

para superior. Quer dizer,<br />

Deus protege os pequenos dando-<br />

-lhes os grandes para dirigi-los; e<br />

ampara os grandes concedendo-<br />

-lhes os pequenos para servi-los.<br />

Por incrível que pareça, aquele que<br />

serve é de algum modo o reflexo de<br />

Deus enquanto velando por aquela<br />

criatura. Então, aquele que faz esta<br />

função com respeito e distinção,<br />

executa algo que está dentro da linha<br />

da Providência.<br />

Alguém objetará: Deus não pode<br />

respeitar a sua criatura; Ele é tão<br />

grande e a criatura tão pequena...<br />

Não é verdade, Ele trata cada alma<br />

com um respeito, uma consideração,<br />

uma distinção, que o<br />

servidor deve imitar.<br />

Assim, compreendemos melhor<br />

a atitude de Nosso Senhor<br />

querendo lavar os pés dos seus<br />

próprios Apóstolos. É uma<br />

santificação e uma glorificação<br />

do trabalho dos que servem.<br />

O empregado é<br />

servidor do amor<br />

que seu patrão<br />

tem a Deus<br />

Todas essas relações patrão-empregado,<br />

num escritório<br />

ou qualquer outro setor,<br />

devem ser antes de tudo sacrais.<br />

O empregado precisa sentir<br />

no patrão uma compenetra-<br />

20<br />

Jesus lavando os<br />

pés dos apóstolos<br />

- Catedral de Notre<br />

Dame, Paris.


ção da sacralidade do ofício que ele<br />

faz; ele não é um servidor do egoísmo<br />

do patrão, mas do amor que este<br />

tem a Deus.<br />

É claro que entra também um<br />

amor que o patrão tem a si mesmo,<br />

que é uma coisa legítima. O amor de<br />

si mesmo tem um fundamento metafísico<br />

e também imita a Deus, porque<br />

Ele se ama infinitamente a Si<br />

mesmo. De maneira que atender a<br />

alguém, que por amor de Deus ama<br />

a si mesmo, é também fazer uma coisa<br />

sacral.<br />

Dessa forma, o empregado que<br />

ajuda o patrão a velar legitimamente<br />

pelos seus interesses, não é o servo<br />

de um interesse vil, mas está na ordem<br />

posta por Deus. Porque Deus se<br />

O servidor deve<br />

imitar o respeito,<br />

a consideração<br />

e a distinção<br />

demonstrados por<br />

Nosso Senhor lavando<br />

os pés dos apóstolos.<br />

ama infinitamente a Si mesmo, todo<br />

ser ama o seu próprio ser. Trata-se<br />

de um reflexo na criatura do amor<br />

infinito que Deus tem a Si mesmo,<br />

da coesão interna e necessária que<br />

Ele possui no seu próprio ser.<br />

Essas considerações explicam<br />

qual é a relação existente entre a<br />

autoridade e o súdito, quanto ao<br />

mando. A autoridade tem, ao mandar,<br />

uma participação mais intensa<br />

na dignidade de uma ação, do que<br />

aquele que obedece. Porque, em<br />

si mesmo, quando algum homem<br />

manda outro fazer alguma coisa,<br />

ele dirige e o subordinado executa.<br />

Como a função diretiva é maior<br />

do que a executiva, quem dirige faz<br />

mais intensamente aquilo do que<br />

quem executa. Por isso, quem di-<br />

rige deve ter uma compenetração<br />

maior da sacralidade do que ele faz,<br />

do que quem opera. Consequentemente,<br />

aquele que dirige precisa —<br />

com mais respeito, amor de Deus e<br />

sacralidade — dar o impulso diretivo<br />

da coisa.<br />

O patrão deve<br />

representar para o<br />

empregado algo de<br />

novo, desconcertante<br />

e sempre atraente<br />

Por causa disso, a relação entre<br />

patrão e empregado de algum modo<br />

— entendam bem o que estou dizendo!<br />

— se inspira na relação sacerdote-leigo,<br />

quer dizer, do mais sacral<br />

para o menos sacral; neste caso, trata-se<br />

de uma superioridade religiosa<br />

que, antes de tudo, deve existir. Ora,<br />

toda relação sacerdote-leigo exige<br />

em primeiro lugar que o sacerdote<br />

não deixe demasiadamente transparecer<br />

em si o homem. Há certa<br />

compostura sacerdotal, pela qual<br />

o padre sente muito o sacerdote e<br />

pouco o homem.<br />

Quando o sumo pontífice da Antiga<br />

Lei ia fazer o sacrifício no Templo,<br />

ele subia os degraus do santuário<br />

coberto até aos pés. E a Escritura<br />

diz que devia ser desse modo para<br />

que não se vissem os seus pés e,<br />

portanto, as pessoas não contemplassem<br />

a sua vergonha. Ou seja, para<br />

dar a impressão que o pontífice<br />

estava como que deslizando,<br />

e não se notasse onde ele tocava<br />

no chão.<br />

O padre perfeito é aquele<br />

que se apresenta pouco como<br />

homem: não fala muito dos<br />

seus gostos, de suas opiniões puramente<br />

pessoais, suas meras preferências,<br />

suas comodidades, nem de<br />

sua pessoa; mas faz esquecer a sua<br />

pessoa a fim de pôr em evidência<br />

o seu sacerdócio; ele se apaga por<br />

detrás do seu sacerdócio.<br />

Na fotografia, que tanto apreciamos,<br />

do Cardeal Merry del Val, isso<br />

é notável: ele não pensa em si, mas<br />

apenas na dignidade cardinalícia de<br />

que está revestido; sua pessoa está<br />

apagada.<br />

De algum modo, em relação aos<br />

seus empregados, também o patrão<br />

precisa ser assim. O empregado não<br />

deve ver o patrão nos seus prosaísmos,<br />

a não ser no indispensável que<br />

o serviço exige; mas, tanto quanto<br />

possível, o patrão precisa estar composto<br />

diante do empregado, e o homem<br />

apagar-se atrás da autoridade.<br />

Deve aparecer o patrão e pouco o<br />

indivíduo, nas menores coisas.<br />

Por exemplo, o empregado traz o<br />

chá da manhã para o patrão. Este não<br />

deve deixar o empregado ir entrando<br />

no quarto, sem antes bater à porta,<br />

porque pode estar dormindo.<br />

E quando ele<br />

bate, o amo precisa razoavelmente,<br />

sem exage-<br />

Sumo Sacerdote do Templo<br />

de Jerusalém - Valeggio sul<br />

Mincio (Verona, Itália).<br />

21


Revolução e Contra-Revolução<br />

ro, compor as cobertas para não estar<br />

de um modo ridículo. Somente depois,<br />

faz entrar o empregado. Age assim para<br />

o homem se apagar — porque o homem<br />

é sempre cheio de misérias — e<br />

aparecer o patrão, que tem a sua dignidade<br />

própria.<br />

Assim também, em torno do verdadeiro<br />

sacerdote, e sobretudo do<br />

verdadeiro bispo, deve haver certo<br />

isolamento e um pouco de mistério.<br />

Prestando atenção na fotografia<br />

do Cardeal Merry del Val, percebemos<br />

que ele tem certo mistério, ninguém<br />

penetra no fundo daquela alma;<br />

há uma zona de segredo entre ele e<br />

Deus que gostamos de ver que existe,<br />

mas não queremos aprofundar, porque<br />

entendemos que foi feita apenas<br />

para Deus e ele. Assemelha-se às florestas<br />

e aos mares, que devemos olhar<br />

da orla e não penetrar neles. Assim é o<br />

mistério da relação do Altíssimo com<br />

o sacerdote, sua vida espiritual etc.<br />

Sentiríamos mal-estar em receber<br />

confidências sobre a vida espiritual de<br />

um sacerdote. Parecer-nos-ia estar colocando<br />

a mão dentro do tabernáculo,<br />

onde a mão de um leigo não deve<br />

entrar. De um amigo as receberíamos<br />

com naturalidade; de um sacerdote,<br />

não. O que dizer a respeito do receber<br />

as confidências da vida espiritual<br />

de um Papa... Ele é tão sagrado que,<br />

mais do que ninguém, precisa ser envolto<br />

num certo mistério, que nos encanta<br />

contemplar, atrai, seduz, fixa a<br />

atenção, mas no qual não penetramos,<br />

deixa-nos a uma respeitosa distância.<br />

Também o patrão para o empregado<br />

deve ter certo mistério. O empregado<br />

não deve entender inteiramente<br />

o seu patrão, o qual deve ser<br />

para ele algo de novo, desconcertante<br />

e sempre atraente. Sem isso não<br />

existe o verdadeiro patrão.<br />

O isolamento<br />

da superioridade…<br />

Por outro lado, o patrão, quando<br />

manda, deve normalmente fazer com<br />

que o empregado possa sentir o quanto<br />

há de razoável no que ele executa.<br />

Mas, às vezes, ele precisa mandar alguma<br />

coisa que o empregado não entenda,<br />

para habituá-lo a obedecer.<br />

Esse é o modo do exercício verdadeiro<br />

da autoridade. O superior não<br />

pode agir como um indivíduo que<br />

manda no outro por sua força própria,<br />

mas sim com sacralidade, em<br />

nome de um princípio religioso, de<br />

uma autoridade religiosa.<br />

A sacralidade requer<br />

certo isolamento,<br />

o qual não se pode<br />

transpor de qualquer<br />

maneira, mas sim<br />

passo ante passo, como<br />

quem entra num<br />

santuário.<br />

Em razão de tudo isso, o patrão<br />

deve ter uma forma de bondade com<br />

o empregado, concedendo-lhe carinho,<br />

mas não lhe dando a possibilidade<br />

de retribuir esse carinho horizontalmente.<br />

O reflexo natural do<br />

empregado verdadeiro, quando recebe<br />

uma prova de afeto do seu patrão,<br />

é de lhe beijar a mão, não de<br />

lhe dar um abraço.<br />

Uma linda representação desse<br />

afeto do empregado pelo dono da<br />

casa eu vi num quadro de um pintor<br />

norte-americano, que era perfeitamente<br />

fotográfico e representava<br />

esta cena: uma caixa de escada,<br />

uma árvore de natal toda enfeitada<br />

e uma velha sozinha. A velha<br />

tinha perdido os seus filhos ou fora<br />

abandonada por todos e comemorava<br />

o Natal na solidão. Do lado de<br />

fora da porta, uma mulher olhando<br />

e chorando; quer dizer, ela tinha<br />

pena da velha, mas não ousava<br />

entrar para consolá-la. Analisada<br />

com tato, esta cena é uma verdadeira<br />

beleza.<br />

Todo o poema de delicadeza e<br />

compreensão das relações patrão-<br />

-empregado, que pode se manifestar<br />

quando se vê isso na perspectiva católica,<br />

está insinuado nesse quadro.<br />

A patroa estava só e padecendo<br />

uma dor que a empregada não ousava<br />

transpor, por causa da sacralidade;<br />

mais ou menos como quem, sem<br />

licença, não ousaria se aproximar de<br />

um Papa, um rei, um bispo, um príncipe<br />

que estivesse sofrendo sozinho.<br />

Há um isolamento da superioridade,<br />

que é sacral e não se pode transpor<br />

de qualquer maneira, mas sim passo<br />

ante passo, como quem entra num<br />

santuário; há certas ocasiões em que<br />

até se deve transpor, e outras nas<br />

quais não se pode transpor.<br />

Posta a focalização religiosa, as<br />

relações patrão-empregado não têm<br />

o caráter meramente funcional, mas<br />

são de alma a alma.<br />

Certos isolamentos<br />

ninguém transpõe<br />

No Horto das Oliveiras, Nosso<br />

Senhor também teve um isolamento.<br />

Ele estabeleceu até três distâncias:<br />

os discípulos ficaram longe, nem estavam<br />

no Horto; todos os Apóstolos<br />

ali entraram, mas Jesus chamou alguns<br />

para mais perto; assim mesmo<br />

Ele estava distante deles.<br />

Há certos isolamentos que ninguém<br />

transpõe. Certos pintores representam<br />

a Cruz quase da altura<br />

de um homem e as pessoas passando<br />

diante dela, injuriando Nosso Senhor,<br />

olhando à vontade para o mistério<br />

da dor d’Ele.<br />

É possível que tenha sido assim,<br />

indicando um tormento a mais infligido<br />

a Jesus pelo Pai, pela justiça<br />

divina. Mas a nós nos compraz<br />

imaginar a Cruz alta. Porque sofrendo<br />

uma dor tão sublime, causa-<br />

-nos horror a ideia de alguém que tenha<br />

penetrado no âmbito dessa dor,<br />

a não ser alguém que estava embaixo,<br />

mas tão perto e tão dentro como<br />

22


mais não poderia ser; Alguém com<br />

A maiúsculo que todos os presentes<br />

neste auditório já sabem quem é.<br />

Fora d’Ela, ninguém.<br />

De longe, Maria Madalena, enlevada,<br />

chorando; as santas mulheres<br />

etc. Mas ninguém com o rosto junto<br />

à Face d’Ele. Essa intimidade havia<br />

sido dada a pouquíssimos, para os<br />

mais queridos, talvez para São João<br />

Evangelista.<br />

Ponto de partida<br />

das relações patrãoempregado:<br />

Deus está<br />

sempre presente<br />

Compreendemos assim, por analogia,<br />

a posição da autoridade diante<br />

do súdito; tudo quanto é sucção<br />

pessoal, quer dizer, tirar um<br />

mero proveito pessoal,<br />

mandar pelo gosto de dobrar alguém<br />

ao próprio capricho, tudo isso<br />

passa à margem. O que entra é essa<br />

consideração religiosa de que tudo<br />

se desenrola numa esfera sacral,<br />

em que o amor de Deus está sempre<br />

presente. Esse seria o ponto de partida<br />

para se imaginar as perfeitas relações<br />

entre patrão e empregado doméstico.<br />

É claro que essas considerações<br />

se aplicam também às relações entre<br />

oficial e soldado, chefe de escritório<br />

com seus empregados, e daí<br />

por diante. Mas isso exige da parte<br />

de quem exerce a autoridade muita<br />

humildade, para de tal maneira empurrar<br />

o homem para trás e colocar<br />

no centro exclusivamente Deus. Esse<br />

é verdadeiramente um ponto fundamental<br />

da humildade.<br />

Um rei, um bispo, um Papa que,<br />

por exemplo, está sendo carregado<br />

sobre um andor aos olhos de todo<br />

o povo. Havia em uma de nossas<br />

sedes um quadro de São Pio X,<br />

o qual toma uma atitude sacral.<br />

O Sumo Pontífice não<br />

está pensando no efeito que a pessoa<br />

dele está produzindo, mas apenas<br />

na suprema dignidade do Papado<br />

de que ele está revestido. Está<br />

compenetrado do respeito pelo<br />

Papado e pelo Papa, talvez mais do<br />

que todo mundo na Basílica inteira.<br />

Ainda que ele fosse dotado de<br />

dons que, no plano humano, pudessem<br />

talvez justificar alguma coisa<br />

de parecido com isso, o acento<br />

está na sacralidade da situação, da<br />

função.<br />

Quer dizer, há uma verdadeira<br />

ascese do patrão para fazer aparecer<br />

a função na sua sacralidade e<br />

comprimir o homem. O próprio homem<br />

é sacralizado até certo ponto<br />

pela função, mas seus prosaísmos,<br />

limitações e contingências devem<br />

desaparecer.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

14/11/1969)<br />

1) Cfr. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nº44, p. 20 a 25.<br />

Jesus reza sozinho no Horto<br />

das Oliveiras, enquanto os<br />

apóstolos permanecem à distância<br />

- Museu do Louvre, Paris.<br />

23


O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Cólera e misericórdia<br />

Quando analisamos a História, vemos que a cólera e a<br />

misericórdia divinas se alternam segundo características que,<br />

muitas vezes, não compreendemos bem. De fato, há certos<br />

momentos em que a misericórdia reluz com uma candura que<br />

nos encanta; mas, existem outros em que a cólera dardeja com<br />

uma majestade que nos entusiasma…<br />

24<br />

Adão e Eva sendo expulsos<br />

do Paraíso - Museu do<br />

Prado (Madri, Espanha).<br />

Otema que vós<br />

levantastes para<br />

a reunião de<br />

hoje é ao mesmo tempo<br />

admirável e misterioso.<br />

Parece haver entre<br />

os dois adjetivos<br />

certa contradição. Pela<br />

etimologia, admirar<br />

provém de admirare;<br />

mirare significa olhar,<br />

e admirare, olhar para.<br />

Admirável é aquilo<br />

que merece ser olhado.<br />

Como aquilo que<br />

merece ser olhado pode<br />

ter mistérios? Pois o<br />

próprio do olhar é tender<br />

a resolver o mistério.<br />

Não se diria que o<br />

misterioso não é admirável<br />

e que o admirável<br />

não é misterioso?<br />

De fato, o homem é<br />

constituído de tal modo<br />

que, quando ele admira<br />

muito, há na ponta<br />

do que admira algo<br />

que não entende. Não<br />

é alguma coisa que seja<br />

contraditória, na qual<br />

se disfarce de tocaia<br />

um absurdo. Mas é algo<br />

que o homem percebe<br />

ter uma explicação<br />

possível, mas ele<br />

não atina com a mesma. E não atina<br />

porque sente que a explicação é mais<br />

alta do que ele; então olha admirativo:<br />

“Se na ponta do que eu olho há<br />

algo tão alto, o que haverá na ponta<br />

daquilo que não vejo?”<br />

Nesse sentido podemos dizer que<br />

o céu — o céu físico, sideral — é admirável,<br />

quer durante o dia, quer durante<br />

a noite. Mas não ousamos fitar<br />

o Sol, que conserva para nós algo de<br />

misterioso na comunicação esplêndida<br />

de suas luzes. Naquilo mesmo em<br />

que é admirável e luminoso, ele impede<br />

de ser visto.<br />

Vemos o céu noturno, os milhões<br />

de estrelas; porém o sentido conjunto<br />

daquela estética nos escapa, embora<br />

entendamos que deve ter uma<br />

estética. E, sobretudo, sabemos, discernimos<br />

que há uma série de estrelas<br />

luminosas que não vemos — por<br />

serem muito pequenas ou muito distantes<br />

— e assim se perdem no mistério.<br />

Mas o céu fica ainda mais bonito<br />

quando compreendemos que,<br />

além do que vemos, há aquilo que<br />

não vemos.<br />

Alternância do castigo<br />

e da bondade: tema<br />

admirável e misterioso<br />

Assim, o admirável e o misterioso<br />

se conjugam. Iremos desenvolver<br />

a doutrina a propósito do tema: a al-


ternação do castigo e da bondade; da<br />

misericórdia, da complacência, da<br />

meiguice, da ternura, de um lado; e<br />

do furor em todos os seus graus, diapasões,<br />

todas as suas modalidades,<br />

de outro.<br />

Veremos como se compaginam<br />

— no sentido mais exato da palavra<br />

compaginar, quer dizer, como uma<br />

página segue a outra para formar um<br />

livro sobre o tema.<br />

A alternação da justiça<br />

e da misericórdia<br />

na História<br />

mos nos aproximando da cólera ou<br />

da misericórdia?<br />

No vértice da misericórdia, neste<br />

vale de lágrimas, pode surgir uma indagação<br />

às vezes assombrosa: quanto<br />

tempo ela durará? Até quando esta<br />

bondade acompanhará os meus<br />

passos, tolerando as minhas infidelidades?<br />

E no vértice da provação, uma<br />

pergunta cheia de esperança: Até<br />

quando irá esta provação? Não virá<br />

logo o dia da misericórdia? Quem<br />

sabe se ao voltar de uma esquina, no<br />

virar uma página de livro, no rezar a<br />

próxima conta do terço, no receber a<br />

Comunhão de hoje, chegará a hora<br />

da misericórdia... Às vezes, a misericórdia<br />

vem sem hora marcada, não<br />

se percebe e de repente se está inundado<br />

por ela. E tudo fica suave em<br />

torno de nós.<br />

Como pegar o fio da meada de<br />

maneira a estarmos fora da meada<br />

da justiça e dentro da meada da misericórdia?<br />

Como decifrar isto para<br />

nossos pobres olhos de homem aqui<br />

na Terra?<br />

A chave do enigma está em uma<br />

coisa mais profunda, que é a seguinte:<br />

Figuremos todas as belezas que<br />

Deus pôs no paraíso terrestre, bem<br />

como a Lua, as estrelas. Podemos<br />

imaginar o que a natureza paradisíaca<br />

tem de inebriante, reto, próprio a<br />

pôr de pé e a elevar ao auge todas as<br />

inocências.<br />

E havia o paraíso interno do homem.<br />

Sua alma inocente entrava em<br />

comunicação com aquilo que é santo,<br />

bom, verdadeiro, belo, passeando<br />

pelo Éden. Ficamos impressionados<br />

pensando no paraíso. Que maravilha!<br />

À tarde sopra uma brisa, e vem<br />

Deus conversar com Adão.<br />

Tanto quanto nossa inteligência limitada<br />

pelo pecado original — e pela<br />

nossa condição de homem — pode<br />

entrever, Deus ou se manifestava<br />

a Adão diretamente, mas socorrendo-o<br />

para ele não desfalecer ou se<br />

Podemos fazer a seguinte comparação:<br />

quando, num dia bonito, entra-se<br />

em certas matas, florestas,<br />

cuja vegetação não é muito copada,<br />

olhando para o chão, veem-se sombras<br />

e luzes. Em certo momento há<br />

um jorro de luz, que conseguiu abrir<br />

caminho no meio da folhagem, iluminando<br />

intensamente uma pedra,<br />

um bichinho, uma folha seca, que<br />

ficam lindos porque cai sobre eles<br />

aquele raio de luz.<br />

No meio de um arquipélago de luzes,<br />

há um rendilhado de sombras às<br />

vezes tão profundas que se vê ainda<br />

algo do limo da noite, em pleno<br />

meio-dia. O Sol está a pique, mas as<br />

folhas impedem a entrada da luz.<br />

Assim também é a História.<br />

Quem não conhece a ramagem no<br />

alto, não sabe explicar aqueles desenhos<br />

embaixo.<br />

No solo da floresta há um colorido<br />

e percebe-se que existe alguma<br />

ordenação, algum sentido, alguma<br />

razão para aquilo. Mas sem olhar<br />

para cima não se percebe qual seja.<br />

Analisando a História, notamos<br />

que há alternações de misericórdia e<br />

de santa cólera, magníficas, e ambas<br />

as coisas nos encantam. Qual é o fio<br />

da meada? Qual é o sentido dessa alternação?<br />

Podemos apanhar o ponto de vista<br />

pelo qual se distribuem a cólera e<br />

a indignação? E saber quando estadesfazer,<br />

mísera criatura nas mãos<br />

do Criador; ou Deus, pelo contrário,<br />

fazia com Adão “Ambientes e<br />

Costumes” do Paraíso 1 , sem Se mostrar,<br />

mas ajudando-o a olhar as coisas.<br />

Algum pobre rubi espalhado pelo<br />

chão, um pássaro de ouro, uma<br />

águia que parecia feita de esmaltes,<br />

um beija-flor mais delicado e mais<br />

doce do que todos os beija-flores da<br />

Terra.<br />

Adão olha para tudo aquilo encantado,<br />

e o Criador lhe sopra ao<br />

ouvido: “Isso Me explica de tal maneira,<br />

aquilo de tal outra.” E Deus,<br />

cuja ciência é infinita, penetrando<br />

até o fundo da alma de Adão, vendo<br />

as reações dele, amando-as; e<br />

produzindo-as uma depois da outra,<br />

com afago, contentamento, comprazimento<br />

com que um artista lapida<br />

uma pedra e vai compondo uma<br />

joia: Deus vai formando a mentalidade<br />

de Adão, o primeiro homem<br />

no qual estão contidos todos os homens<br />

e o sexo feminino que será tirado,<br />

numa hora de sono, de uma de<br />

suas costelas.<br />

O momento misterioso<br />

em que Deus se afasta<br />

de Adão e o deixa<br />

sozinho com a serpente<br />

Podemos bem imaginar qual é<br />

a ternura de Deus para com Adão.<br />

Há, entretanto, um momento — momento<br />

arcano, misterioso — em que<br />

o admirável muda de cor e passa de<br />

luminoso para misterioso. E, caso se<br />

pudesse dizer isto de Deus — não se<br />

pode —, Ele Se afasta de sua obra-<br />

-prima, ganha distância e deixa Adão<br />

sozinho.<br />

Em determinado momento, entra<br />

a serpente que Deus criou, e incubada<br />

nela está o demônio que se revoltou<br />

contra Ele. Deus permite que o ente<br />

imundo, leproso, execrável, infame,<br />

penetre no paraíso embuçado como<br />

uma serpente e vá tentar Adão e Eva.<br />

25


O elevado olhar teológico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

E no momento da tentação, é certo<br />

que Deus continua a ajudar, e dá<br />

a Adão e Eva uma proteção até generosa,<br />

mas não tão grande por onde<br />

eles não possam pecar. Ele lhes<br />

concede — se quiserem usar uma expressão<br />

própria a esta Terra — todas<br />

as antitoxinas, mas permite que<br />

o animal tóxico os morda.<br />

Nesse instante, dir-se-ia que o<br />

afago cessou e o Juiz está contemplando.<br />

E de repente uma distância<br />

infinita se faz sentir entre Deus e<br />

Adão e Eva; e o drama começa a se<br />

desenrolar.<br />

Na véspera, na hora da brisa, Ele<br />

tomava a alma de Adão, a osculava,<br />

estimulava; naquele dia o Criador<br />

olha para a alma de Adão com o<br />

mesmo sentido de investigação, mas<br />

sem manifestar comprazimento, Ele<br />

está julgando: “Quem é este, e como<br />

agirá contra Mim? Chegou o momento<br />

em que vou pedir contas de<br />

tudo quanto lhe dei.”<br />

Nesta hora a misericórdia, sem<br />

desaparecer da cena e continuando a<br />

atuar, ficou de um lado. Mas, do outro<br />

lado o furor começa a se armar<br />

sob a forma de uma simples expectativa,<br />

no começo: “Que dará esse homem?”<br />

À medida que o homem vai cedendo<br />

às inflexões da voz divina,<br />

o Criador é todo misericórdia. Se<br />

Adão não a escuta, essa voz clama<br />

por justiça: “Eu dei, fiz, ensinei, expliquei,<br />

afaguei, acariciei, em tal dia,<br />

tal outro. Agora, quero saber que<br />

proveito tiras disso. Entra na minha<br />

presença e age. Chegou o momento<br />

de tu pagares aquilo que recebeste.<br />

Mais ainda, pelo muito que te dei,<br />

cobro-te pouco, mas o pouco que te<br />

cobro tem esse corolário: Eu quero<br />

tudo que estou cobrando!”<br />

A misericórdia se<br />

condensa em justiça<br />

Em determinado momento a misericórdia<br />

se conecta com a justiça<br />

Sagrado Coração de Jesus -<br />

São Paulo, Brasil.<br />

ou, por assim dizer, se condensa em<br />

justiça, no mesmo Deus. E Ele, porque<br />

foi misericordioso além da justiça,<br />

passa a exercer sua justiça: “Vou<br />

agora sentenciar!”<br />

A cólera acumulada se despenca<br />

na hora em que Adão consuma o pecado.<br />

Ele, como que louco, de fato é<br />

plenamente responsável.<br />

Adão, que conversava com Deus,<br />

foi tentado e deu atenção ao demônio...<br />

Vem o julgamento!<br />

A cólera naquele dia<br />

do pecado no Paraíso<br />

Consumado o pecado, a justiça<br />

não demora um instante! Poder-se-ia<br />

quase dizer que à medida que o pecado<br />

vai enchendo Adão, a justiça vai<br />

entrando nele.<br />

E ele começa a ter a perturbação,<br />

a insegurança, o mal-estar. Eva também.<br />

Ambos estão quebrados, rotos!<br />

E o pecado se estende como uma<br />

sombra sobre todos os que deles descenderão,<br />

ou seja, o gênero humano<br />

até o fim dos séculos!<br />

Tudo fica atingido por uma cólera<br />

tão terrível que Deus Pai — cujo plano<br />

era que o Verbo se encarnasse, se<br />

fizesse Homem, para alegria da natureza<br />

humana e glória da Criação,<br />

independente do pecado — submete,<br />

naquela hora, o próprio Filho<br />

d’Ele ao tormento da Paixão e Morte<br />

de cruz, para resgatar aquele pecado.<br />

O resgate operado<br />

por Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo<br />

Houve depois milênios e milênios<br />

de misericórdia, entremeados de justiça.<br />

Oh! esses grandes atos de justiça:<br />

a expulsão do Paraíso e a exigência<br />

do Sangue de Cristo para redimir<br />

o gênero humano! Como que não<br />

contente com o infinito, Deus quer<br />

os borbotões do infinito! Cada gota<br />

do Sangue infinitamente precioso de<br />

Nosso Senhor daria para resgatar o<br />

gênero humano.<br />

Deus quer que Jesus derrame todo<br />

o seu Sangue, de maneira que<br />

quando Ele não tem mais nada, a<br />

não ser uma espécie de linfa — um<br />

misto de água com sangue, um resto<br />

— no precioso Corpo d’Ele, vem<br />

o centurião Longinus e O transpassa<br />

com uma lança, atingindo logo o<br />

Coração, que é o símbolo do amor:<br />

vai até lá o golpe desferido pelos homens!<br />

E ainda sai uma linfa, que é a<br />

última gota redentora.<br />

Dir-se-ia: “Afinal está tudo pago!”<br />

Poderia estar, tem mérito para estar;<br />

a circuncisão já teria bastado. Se<br />

o Menino Jesus se ferisse numa roseira,<br />

com uma gota de seu Sangue precioso<br />

o gênero humano estaria resgatado.<br />

Com isto daria para aplacar a<br />

cólera de Deus, mas Ele quis mais.<br />

Apesar de a Redenção de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo ter mérito infinito,<br />

Deus quis que houvesse uma<br />

confiança-redentora: Nossa Senhora.<br />

Ela, que era Imaculada, sofreu<br />

com confiança todas as dores, todos<br />

os tormentos, para ajudar a redimir<br />

o gênero humano.<br />

26


O sacrifício da Cruz vai se renovando,<br />

para a humanidade já<br />

redimida, até o fim do mundo.<br />

As Missas vão se multiplicando,<br />

renovando o sacrifício do Calvário,<br />

naquela continuidade, até o<br />

mundo acabar.<br />

Qual o tamanho dessa cólera!<br />

Por assim dizer, perdemos a<br />

fala... E poderíamos acrescentar:<br />

Qual o tamanho dessa misericórdia!<br />

Deus mantém seu desígnio.<br />

Sujeita todos os homens ao pecado<br />

original, isentando não só<br />

a Humanidade Santíssima de<br />

seu Filho, evidentemente, mas<br />

sua própria Mãe. Apesar de fazer<br />

uma lei severíssima a respeito<br />

do pecado original, Ele<br />

isenta Nossa Senhora para poder<br />

salvar todos os homens. Vemos<br />

como a misericórdia se espraia<br />

a perder de vista, e também a justiça.<br />

Nosso entendimento fica abismado<br />

quando olha para a misericórdia,<br />

o mesmo acontecendo quando<br />

considera a justiça. Exclamamos:<br />

“Mas Senhor, tanta misericórdia!”<br />

E logo depois: “Mas Senhor, tanta<br />

justiça!” É porque somos muito pequenos.<br />

Deveríamos, na verdade, dizer:<br />

“Senhor, como Vós sois infinito na<br />

vossa misericórdia e infinito na vossa<br />

justiça!”<br />

A misericórdia de<br />

Deus com Adão e Eva,<br />

levando-os para o Céu<br />

Adão e Eva vêm para a Terra e começa,<br />

então, a história dos homens.<br />

Há o caso de Caim e Abel e todo o<br />

resto. Eva vê o filho dela morto por<br />

outro filho. Ela não conhecia a morte,<br />

e passou a conhecê-la na face de<br />

seu filho predileto.<br />

Depois, a misericórdia estonteante!<br />

Eles morrem em estado de santidade,<br />

com virtude heroica. Podem<br />

ser chamados Santo Adão e Santa<br />

Jesus expulsa os vendilhões do Templo -<br />

Paróquia Saint Germain L’Auxerrois (Paris).<br />

Eva! Mas, vão esperar no limbo cerca<br />

de cinco mil anos, até que venha o<br />

Salvador.<br />

Esperar cinco dias... Que horrível!<br />

Às vezes, esperar cinco minutos é<br />

um horror. Podemos imaginar o que<br />

significam cinco mil anos de espera<br />

do Salvador?<br />

Afinal, o limbo é percorrido por<br />

um frêmito, todos sentem que o Salvador<br />

virá. Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

antes da Ressurreição, entra. É a<br />

alma de um morto. E mais uma vez,<br />

eles, que são almas, contemplam a<br />

morte. Então o Salvador está sujeito<br />

à lei da morte... Ele aparece radioso,<br />

mas alma. E explica: “Eu tive que<br />

morrer para salvá-los.”<br />

Percebemos assim os vagalhões<br />

de justiça e os vagalhões de misericórdia,<br />

no mar alto dos desígnios<br />

de Deus. Não se tem ideia, por assim<br />

dizer, da violência dessas alternativas.<br />

Podemos imaginar Adão e Eva, os<br />

quais se sabiam perdoados, exclamarem<br />

de modo pungente: “Até lá! Até<br />

lá! Que coisa! Que coisa!”<br />

Jesus ressuscita! Eles O acompanham<br />

na alegria. Quando o Redentor<br />

sobe ao Céu, Ele os leva consigo.<br />

E, entrando no Céu para<br />

gozar a felicidade por toda<br />

eternidade, Adão e Eva são venerados<br />

até pelos anjos: “Esses<br />

são os pais do gênero humano,<br />

os antepassados de Nosso Senhor!”<br />

Tudo isso começou no Paraíso<br />

terrestre, com a entrada da<br />

serpente. Percebemos, assim, a<br />

vastidão do panorama. E como<br />

Deus é maior do que nós.<br />

Na hora do castigo,<br />

basta não rompermos<br />

com Nossa Senhora<br />

E Nossa Senhora?<br />

Com Ela vem para nós o lumen<br />

da esperança. O amor materno<br />

é o símbolo mais sensível<br />

do amor de Deus. Mais do que o<br />

próprio amor paterno.<br />

Ora, enquanto o filho não rompe<br />

inteiramente com a mãe, não efetua<br />

uma dessas rupturas que tiram toda<br />

esperança, a mãe tem toda forma de<br />

parti pris pelo filho. Embora tenhamos<br />

— helás! — infidelidades, graças<br />

a Nossa Senhora não praticamos<br />

uma ruptura com Ela. Maria Santíssima<br />

tem por nós toda espécie de<br />

partidos tomados, de parti pris, de arranjos,<br />

de bondades e de jeitinhos.<br />

Assim, podemos esperar.<br />

Ai daqueles que romperem com<br />

Ela! Porque o castigo será pior do<br />

que o merecido pelo rompimento<br />

com o Pai. Diz a Escritura: “A bênção<br />

do pai consolida a casa dos filhos,<br />

mas a maldição da mãe destrói<br />

até os alicerces” 2 .<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

23/5/1981)<br />

1) <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> fez inúmeras exposições<br />

mostrando a importância dos ambientes<br />

e costumes para a formação ou<br />

deformação das almas.<br />

2) Eclo 3, 11.<br />

27


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Influência: até<br />

onde ela chega?<br />

Cada homem é responsável por desempenhar<br />

algum desígnio especial de Deus; e, por assim<br />

dizer, representa uma peça insubstituível no<br />

“jogo de xadrez” da Providência.<br />

Respondendo à pergunta de um jovem<br />

discípulo, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, além de analisar o papel<br />

dos governantes na formação das nações,<br />

analisa a mútua influência dos povos no<br />

cumprimento de seus respectivos chamados.<br />

São Luís Rei - Catedral de<br />

Notre Dame, Paris.<br />

S. Hollmann<br />

Em geral, quando o povo não<br />

merece os dirigentes que<br />

tem, Deus por punição lhe dá<br />

os governantes que ele merece. Pode<br />

acontecer que um rei muito bom<br />

governe na indiferença e no ensabugamento<br />

1 geral da população. O monarca<br />

se sacrifica, ganha batalhas,<br />

funda universidades, hospitais, e o<br />

povo não se importa.<br />

A santidade não é fator<br />

automático de vitória<br />

Não se deve pensar que um rei,<br />

sendo santo, quaisquer que sejam<br />

as circunstâncias, ele santifica o povo.<br />

Nisso existe uma espécie de automatismo<br />

que as coisas sobrenaturais<br />

não comportam.<br />

Um exemplo característico foi<br />

São Luís IX, rei de França.<br />

Ele foi avô de um rei péssimo: Filipe,<br />

o Belo. Segundo muitos visos<br />

históricos, ele esteve implicado no<br />

crime de Guillaume de Plaisance e<br />

de Louis Nogaré, os quais, em Agnani,<br />

atentaram contra o Papa para<br />

obterem do Soberano Pontífice uma<br />

capitulação diante do rei da França,<br />

Filipe, o Belo. Consta que um deles<br />

esbofeteou o Papa, que continuou<br />

olhando para o Crucifixo que estava<br />

diante de sua mesa; não mudou<br />

de posição. É o que ele tinha<br />

de fazer.<br />

28


E o reino de Filipe, o Belo, iniciou<br />

o absolutismo na França, com o predomínio<br />

dos legistas e tudo o que se<br />

lhe seguiu. Quer dizer, uma das causas<br />

da Revolução Francesa foi o neto<br />

do rei santo!<br />

O caso é mais frisante com São<br />

Fernando de Castela, o rei vitorioso<br />

contra os mouros.<br />

São Fernando de Castela teve<br />

um filho, Afonso X, o<br />

Sábio, que representou<br />

o começo do Humanismo<br />

e de toda a<br />

penetração pré-renascentista<br />

na Espanha.<br />

Contaram-me que o santo, antes de<br />

morrer, chamou o filho e disse-lhe:<br />

“Se você não fizer tudo<br />

quanto deve em favor<br />

da Igreja, desde já eu o<br />

amaldiçoo.”<br />

Quer dizer, não se deve julgar<br />

que o santo é uma espécie de coringa,<br />

que vence sempre. O Santo dos<br />

santos não venceu sempre. Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, na sua vida terrena,<br />

foi esmagado; depois de ressurrecto,<br />

houve a imensa vitória<br />

d’Ele.<br />

Em destaque, São Fernando<br />

de Castela (Catedral de<br />

Sevilha, Espanha); ao fundo,<br />

Colunata de Bernini (Vaticano).<br />

Fotos: S. Hollmann / V. Toniolo<br />

29


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

O mesmo se dá com o Papa. São<br />

Gregório VII, para mim talvez o<br />

maior dos Papas, obrigou Henrique<br />

IV, Imperador do Sacro Império, a<br />

ficar durante três dias na neve, sem<br />

comer e pedindo perdão, em Canossa.<br />

Ao morrer, São Gregório VII disse<br />

aquelas palavras famosas: “Dilexi<br />

iustitiam, odivi iniquitatem, propterea<br />

morior in exilio — Amei a justiça,<br />

odiei a iniquidade; por isso morro<br />

no exílio.” Quer dizer, não morreu<br />

vitorioso!<br />

Portanto, precisamos dizer que a<br />

santidade é uma importante condição<br />

para a vitória, mas não um fator<br />

automático para obtê-la.<br />

Qual é o papel de<br />

um rei bom diante<br />

de um povo ruim?<br />

rigi-lo. E pode acontecer que ele não<br />

seja bem sucedido.<br />

Qual é o papel de um rei nesse caso?<br />

Não vejo outra solução senão esta:<br />

o monarca, conhecendo as coisas<br />

como são, compenetrar-se de que a<br />

Igreja Católica é o fundamento de todo<br />

bem que há na Terra. E que, se determinado<br />

país não tem como fundamento<br />

o bem que se irradia da Igreja<br />

Católica, esse país está liquidado.<br />

Perdeu a Fé, perdeu tudo. Isso poderá<br />

levar tempo e, quanto mais ele ficar<br />

grande, ou poderoso, ou rico, tanto<br />

mais ele se torna pecador. E quan-<br />

A santidade<br />

é uma importante<br />

condição para<br />

a vitória,<br />

mas não um fator<br />

automático<br />

para obtê-la.<br />

Imaginemos que apareça um rei<br />

santo para governar um povo ruim.<br />

Se o mau estado do povo provém<br />

mais de um antecessor, ou de alguns<br />

antecessores do santo, do que propriamente<br />

da população, o rei pode<br />

navegar num rumo oposto aos de<br />

seus antecessores, dar o exemplo de<br />

todas as virtudes, trabalhar, lutar, sacrificar-se<br />

e até oferecer-se como vítima<br />

expiatória, por amor a Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, a Nossa Senhora,<br />

à Santa Igreja.<br />

Tendo estancado o mal na sua<br />

causa, que é o mau exemplo da dinastia<br />

real, o monarca santo poderá<br />

vencer, porque cessada a causa, cessa<br />

o efeito.<br />

O povo estava se deixando arrastar<br />

mais ou menos perigosamente<br />

pela dinastia, mas não tomava a<br />

dianteira do pecado.<br />

Mas se um povo está muito corrupto<br />

e arrasta a dinastia para o mal,<br />

então é muito mais difícil um rei corto<br />

mais se tornar pecador, mais aceleradamente<br />

caminha para a ruína.<br />

Um povo influencia<br />

outros…<br />

Suponhamos um povo não muito<br />

rico, nem poderoso militarmente,<br />

mas que se torne ilustre pela cultura,<br />

pela civilização. Para ele se voltam<br />

as atenções do mundo inteiro.<br />

Porque ficou ilustre, ele tem a possibilidade<br />

de levar muitos outros povos<br />

para o Céu ou para o inferno. Se<br />

ele se tornar ruim, levará outras nações<br />

para o mal. E, ao decair, Deus<br />

vai lhe pedir contas de todo mal que<br />

30


Em destaque, São Pedro -<br />

Basílica Vaticana; abaixo,<br />

à esquerda, Praça de São<br />

Pedro repleta de fiéis.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma conferência na década de 1990.<br />

Fotos: G. Krajl / Anonimo<br />

fez nos países que ele influenciou. É<br />

uma coisa tremenda!<br />

A mesma coisa se dá com um povo<br />

guerreiro. O poder militar, queiram<br />

ou não queiram, confere um prestígio<br />

extraordinário, quando se trata<br />

de exércitos que precisam enfrentar<br />

a guerra de fato, e em cujas fileiras<br />

há habitualmente combatentes que<br />

derramam sangue — a mancha de<br />

sangue impressiona mais os homens<br />

do que qualquer dourado ou azul de<br />

uma condecoração. É inteiramente<br />

natural! Então, um exército, no qual<br />

muitos soldados morreram cantando<br />

enquanto escalavam uma posição, é<br />

uma coisa extraordinária!<br />

Por causa disso, os povos que vencem<br />

uma guerra, em geral irradiam<br />

a sua cultura, sua civilização e sua<br />

mentalidade numa área de povos<br />

muito grande. Resultado evidente:<br />

se esse povo anda nas vias do bem,<br />

presta a Deus serviços enormes; mas<br />

se caminha nas trilhas do mal, perde<br />

outros povos.<br />

Então, o povo quanto mais cresce,<br />

se anda nas vias do pecado, mais<br />

ele precipita a sua ruína. Portanto,<br />

se um bom rei vê que o seu povo está<br />

vivendo no pecado e decaindo, ele<br />

pode dizer: “Meu povo está se perdendo!<br />

Eu amo esse povo não só,<br />

nem principalmente, por ser meu,<br />

mas porque ele é de Deus. Aliás, eu<br />

mesmo, o que sou? Apenas uma propriedade<br />

de Deus. Mas esse povo está<br />

se afastando d’Ele, e isso eu não<br />

posso tolerar.”<br />

Ora, um povo que tenha um bom<br />

rei e não corresponda, é punido por<br />

Deus! Porque os povos são punidos<br />

neste mundo, pelos pecados que cometeram;<br />

os homens podem ser punidos<br />

no outro. Os países morrem<br />

nesta Terra, e diz Santo Agostinho<br />

que são punidos neste mundo pelos<br />

seus crimes.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 17/2/1989)<br />

1) Metáfora empregada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

para exprimir o estado de espírito de<br />

quem, tendo aderido com certo ardor<br />

a um ideal, deixa-se depois arrastar<br />

pelo desânimo, a languidez e a inação.<br />

Esse perdeu o fervor com que realizava<br />

as boas obras e o entusiasmo<br />

que tinha em cumprir a vocação, assim<br />

como a espiga de milho que perde<br />

seus grãos e se transforma em sabugo.<br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

Heroísmo escocês:<br />

flor remanescente numa<br />

árvore cortada<br />

Descrevendo a fotografia de um soldado escocês, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

aponta-nos a verdadeira fonte de todo heroísmo, e nos ensina<br />

como através das tradições, mesmo quando laicas, pode-se chegar à<br />

melhor compreensão do verdadeiro espírito católico.<br />

32


Em certa ocasião apresentaram-me<br />

a fotografia de um<br />

soldado da guarda escocesa.<br />

Ele trazia consigo uma gaita de fole<br />

e vários outros objetos, todos de formas<br />

e cores muito diferentes. Aquela<br />

figura causou-me tanta impressão<br />

que gostaria de descrevê-la, a fim de<br />

podermos analisá-la.<br />

O curioso traje de<br />

um soldado da<br />

guarda escocesa<br />

O soldado portava uma gaita de<br />

fole que, para meus olhos pouco<br />

especializados, parecia uma bolsa<br />

de ar, a qual se deve estar constantemente<br />

enchendo e pressionando<br />

com o braço a fim de emitir som.<br />

Da parte inferior desprendia-se um<br />

caninho com vários orifícios nos<br />

quais se dedilhavam as notas musicais;<br />

na parte de cima havia vários<br />

tubos por onde saía propriamente o<br />

som.<br />

O personagem tinha também uma<br />

faixa que, passando sobre o ombro<br />

esquerdo, cruzava das costas para<br />

o peito, deixando pender uma longa<br />

borla. O desenho de sua faixa<br />

era análogo ao do tecido de seu kilt 1 .<br />

Além do saiote, seu traje era composto<br />

por meias compridas, sapatos,<br />

e por um paletó escuro com galões<br />

prateados. Na fronte trazia um quepe<br />

alto que parecia ser de pele; ao lado<br />

deste pendia uma aigrette 2<br />

vermelha. Na parte inferior<br />

do quepe havia uma borda<br />

também vermelha,<br />

formando um jogo de<br />

cores muito interessante.<br />

Na cintura ele trazia,<br />

pendurada por<br />

uma corrente de prata,<br />

uma espécie de<br />

bolsa que creio ser feita de pele de<br />

cabra.<br />

Assim era o traje daquele soldado.<br />

Talvez ele pareça estranho para<br />

alguns, mas veremos como tem muita<br />

razão de ser.<br />

Fora de seu contexto<br />

próprio, o traje escocês<br />

pode parecer estranho<br />

O soldado era um homem a quem<br />

se atribuiriam uns 50 anos. Tratava-se<br />

de um homem com bochechas<br />

grandes e coradas,<br />

que pelo modo alegre e<br />

otimista de seu sorriso<br />

aparentava muita satisfação.<br />

O jeito travesso,<br />

alegre e saudável<br />

daquele homem,<br />

dava-lhe a aparência<br />

de ser quase um meninão.<br />

“Aquele personagem é<br />

um comentário vivo do<br />

heroísmo; a lição que ele<br />

nos dá, em poucos livros<br />

se encontra. Diante de<br />

sua figura nos sentiríamos<br />

mais estimulados a abraçar<br />

o heroísmo do que lendo<br />

centenas de livros.”<br />

Desfile de bandas de gaita<br />

de fole, em homenagem<br />

à Sua Santidade Bento<br />

XVI por ocasião de sua<br />

visita ao Reino Unido.<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

Para se compreender bem o seu<br />

uniforme, deve-se considerar que se<br />

trata de um traje profundamente regional,<br />

nascido de circunstâncias regionais.<br />

À primeira vista, ele parece<br />

ter certa nota de extravagância, própria<br />

às coisas caracteristicamente regionais;<br />

em determinadas circunstâncias<br />

e lugares ele se encaixa muito<br />

bem, mas em outras parece estar<br />

fora de seu lugar.<br />

Se imaginarmos, por exemplo, esse<br />

homem marchando na Escócia montanhosa,<br />

ele fica muito bem, pois ele<br />

parece feito para galgar montanhas.<br />

Mas se imaginarem-no tocando gaita<br />

de fole na pampa lisa e rasa da Argentina,<br />

ele se torna completamente inexplicável.<br />

Pois ele é feito para ser visto<br />

em seu quadro e em seu ambiente: a<br />

Escócia brumosa e montanhosa, terra<br />

do gim e do uísque, dos belos lagos e<br />

das tradições regionais.<br />

O soldado escocês,<br />

modelo para todo o povo<br />

Nesta região ainda se nota um<br />

ambiente de guerra feita de proezas<br />

e façanhas. Não de guerra cerrada,<br />

em linhas e fileiras. Aquele traje<br />

representa o tempo em que a coragem<br />

valia mais do que a arma de fogo.<br />

Neste ambiente, tocando valentemente<br />

sua gaita de fole, aquele homem<br />

estimulava os outros a irem para<br />

a frente, incutindo heroísmo pelo<br />

toque de seu instrumento, soprando<br />

com vigor, expondo-se às intempéries,<br />

arriscando-se às balas.<br />

A figura magnífica daquele soldado<br />

é o padrão de um verdadeiro escocês,<br />

bem como uma amostra do<br />

que este povo pode dar quando exposto<br />

a determinadas condições.<br />

Por que ele é padrão para o povo?<br />

Aquele homem é um guerreiro,<br />

um combatente, um autêntico militar.<br />

A tal ponto que os escoceses<br />

combateram assim durante a Segunda<br />

Guerra Mundial, com esses trajes<br />

e essas gaitas de fole.<br />

No entanto, na figura dele notava-se<br />

um otimismo, um modo de<br />

marchar alegre, como se estivesse<br />

caminhando para a vitória. Não<br />

se trata de um otimismo bobo, mas<br />

de uma atitude vivencial proveniente<br />

da Fé. Sua figura expressava o seguinte:<br />

combater é uma grande coisa;<br />

é sendo herói, expondo a vida,<br />

que se alcança a plenitude. “Mesmo<br />

que seja para ser ferido de modo a<br />

ficar inválido, ou até para morrer, se<br />

eu lutar e for corajoso terei me realizado.”<br />

Isto para ele é mais importante<br />

do que a alegria de levar uma vida<br />

cômoda, tendo um bom automóvel<br />

ou uma boa saúde.<br />

O que é o heroísmo<br />

sem Fé? O que é a<br />

vida sem heroísmo?<br />

Infelizmente, a mentalidade daquele<br />

homem, devido ao protestantismo,<br />

acabou ficando muito laicizada.<br />

Mas, seu equilíbrio mental e<br />

emocional é ainda uma reminiscência<br />

da época em que se tinha Fé, onde<br />

essa virtude explicava sua posição<br />

de alma e lhe dava fundamento.<br />

Sem a Fé, não existe base para isso.<br />

Bastaria perguntar-lhe o<br />

seguinte: Caso não existisse<br />

a vida eterna, você<br />

estaria disposto a sacrificar-se<br />

dessa maneira?<br />

Lembro-me que certa<br />

vez entrei num restaurante<br />

da Avenue<br />

Champs-Élysées, em<br />

Paris, e encontrei<br />

um mutilado de<br />

guerra. Tratava-se<br />

de um cego conduzido<br />

por sua<br />

esposa. Vinha<br />

ele às escuras,<br />

cambaleando,<br />

e a<br />

mulher com<br />

ar exausto o<br />

guiava; os dois arrastavam os pés por<br />

aquela avenida que ela não admirava<br />

e ele nem sequer via. Ela o conduziu<br />

para dentro do restaurante, sentaram-se,<br />

e o homem começou a tomar<br />

cerveja. Esse era o único prazer<br />

que ele podia ter. Enquanto tomava<br />

cerveja, a mulher expressava uma fisionomia<br />

exausta, como que dizendo:<br />

34


“Quem é que foi dependurar este cego<br />

nas minhas costas?” Ele parecia<br />

dar graças a Deus por, ao menos, ter<br />

uma cerveja para tomar. Para quem<br />

não tem Fé, aquilo constituía um espetáculo<br />

trágico, pois de que valeria<br />

renunciar a juventude florescente e<br />

ficar cego? Não seria melhor fugir ou<br />

esconder-se?<br />

A única coisa razoável para um<br />

espírito laico posto nesta situação é<br />

fugir a fim de conservar a vida. No<br />

entanto, sem Fé de que serve viver?<br />

O que é a vida sem heroísmo? Será<br />

mais do que uma sucção de cerveja?<br />

O que é a vida sem ideal?<br />

Mas, na medida em que se<br />

aceita o absurdo, segue-se tudo...<br />

Admitindo que Deus<br />

não exista, e que a Religião Católica<br />

não seja verdadeira, as atitudes<br />

mais díspares e sem sentido passam<br />

pelas mais razoáveis.<br />

Herança de uma<br />

era católica<br />

No entanto, na atitude daquele<br />

soldado percebia-se haver algo de<br />

razoável e equilibrado. Isso não é senão<br />

uma herança da era católica que<br />

ele ainda conserva.<br />

A posição daquele homem só se<br />

torna razoável em função da doutrina<br />

católica. Pois, admitindo-se que<br />

Deus exista, por amor a Ele, por<br />

amor à Santa Igreja, e até mesmo ao<br />

seu próprio país — visto que defender<br />

o país é também uma virtude católica<br />

— enfrenta-se tudo.<br />

Considerados assim, quaisquer<br />

infortúnios enchem-se de beleza e<br />

se tornam uma magnífica realização<br />

da vida.<br />

Tal estado de<br />

alma só se compreende<br />

em função<br />

das raízes católicas.<br />

Se bem que<br />

nestes povos as raízes<br />

católicas desapareceram<br />

quase totalmente, este<br />

estado de alma ainda continuou nas<br />

vivências, à semelhança de uma trepadeira<br />

que tendo sua base cortada<br />

continua ainda durante certo tempo<br />

fazendo desabrochar alguns botões.<br />

Pela atitude daquele soldado nota-se<br />

que as flores da Fé católica nestes povos<br />

ainda não secaram.<br />

Se fôssemos analisar um verdadeiro<br />

católico indo de encontro<br />

ao adversário, ele teria certamente<br />

uma cara menos divertida e, portanto,<br />

mais séria do que aquele homem;<br />

porém, ostentaria ainda mais<br />

alegria, paz e coragem.<br />

Desta forma compreende-se como<br />

devemos utilizar as tradições para<br />

formar uma verdadeira ideia do<br />

que é a Igreja. Pois, embora o homem<br />

que descrevi não seja católico,<br />

sua atitude é filha da Igreja, e foi gerada<br />

pelos séculos de civilização católica.<br />

Aquele personagem é um comentário<br />

vivo do heroísmo; a lição que<br />

ele nos dá, em poucos livros se encontra.<br />

Diante de sua figura nos sentiríamos<br />

mais estimulados a abraçar<br />

o heroísmo do que lendo centenas<br />

de livros.<br />

Assim como esta figura que acabo<br />

de comentar, há muitas outras coisas<br />

da tradição que já não são vistas com<br />

espírito católico, mas que, interpretadas<br />

com este espírito, tornam-se<br />

um magnífico comentário das próprias<br />

coisas católicas. Assim vista, a<br />

tradição pode nos ensinar a sermos<br />

verdadeiramente filhos da Santa<br />

Igreja Católica.<br />

v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 5/2/1969)<br />

1) Saiote pregueado e trespassado, de lã<br />

xadrez, que faz parte do traje típico<br />

da Escócia.<br />

2) Enfeite confeccionado com compridas<br />

penas.<br />

35


Nossa Senhora<br />

com o Menino<br />

Jesus - Museu<br />

Amadeo Lia (La<br />

Spezia, Itália).<br />

Anônimo<br />

Esperança dos culpados<br />

E<br />

rraria quem fizesse o seguinte raciocínio:<br />

“Eu tenho determinada culpa, mas<br />

também possuo algo de bom, e tomando isto em<br />

consideração, Nossa Senhora terá pena de mim.”<br />

O certo seria pensar: “Nossa Senhora é o Refúgio,<br />

a Esperança de todos os culpados, por mais<br />

miserável e mais culpado que se possa ser.”<br />

A principal razão pela qual Nossa Senhora nos<br />

socorre não é haver em nós algo de bom, mas sim<br />

pela bondade que existe n’Ela. É por isso que Maria<br />

Santíssima tem pena de nós e se digna atender<br />

nossos pedidos.<br />

(Extraído de conferência de 11/9/1969)

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!