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Revista Dr Plinio 34

Janeiro de 2001

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No fim do milênio,<br />

uma voz profética...


São Paulo soube pôr a<br />

serviço da maior das<br />

causas, a de Cristo e da<br />

sua Igreja, um<br />

idealismo abrasador,<br />

uma energia<br />

inexaurível, uma<br />

combatividade<br />

invencível, uma<br />

audácia viril e<br />

realizadora.<br />

O Apóstolo das Gentes<br />

não concebia limites<br />

para sua atividade<br />

evangelizadora. O<br />

mundo inteiro era<br />

pequeno para a<br />

grandeza de seu ardor<br />

apostólico. Nem a<br />

distância dos lugares,<br />

nem a dificuldade dos<br />

empreendimentos, nem<br />

a diversidade dos povos,<br />

puderam conter-lhe<br />

o passo vigoroso e a<br />

palavra de fogo.


Sumário<br />

Na capa, montagem<br />

fotográfica com um<br />

instantâneo de<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em julho<br />

de 1971<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues erreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6971-1027<br />

otolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />

4<br />

5<br />

6<br />

10<br />

16<br />

20<br />

25<br />

EDITORIAL<br />

“O pior dos séculos”<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

“Réveillon”<br />

DENÚNCIA PROÉTICA<br />

Século de progresso ou de ruínas?<br />

DONA LUCILIA<br />

Anelos de elevação,<br />

gentileza e bom trato<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

Autêntica Mãe dos homens<br />

O PENSAMENTO ILOSÓICO DE DR. PLINIO<br />

O colóquio de Óstia<br />

ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Apostolado e espírito interior<br />

Preços da assinatura anual<br />

JANEIRO de 2001<br />

Comum . . . . . . . . . . . . . . R$ 60,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . R$ 90,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 180,00<br />

Grande Propulsor . . . . . . R$ 300,00<br />

Exemplar avulso . . . . . . . R$ 6,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./ax: (11) 6971-1027<br />

28<br />

32<br />

36<br />

GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Reminiscências de advogado<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

ortaleza e temperança<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

Incansável amparo materno<br />

3


“O pior dos séculos”<br />

Editorial<br />

Otítulo acima encabeça uma resenha assinada<br />

por Steve Pinker, professor de psicologia no<br />

prestigioso Massachusetts Institute of Techonology,<br />

e reproduzida pelo Mais!, suplemento literário<br />

da olha de S. Paulo, de 11 de novembro último.<br />

Comenta um livro há pouco publicado sobre as incontáveis<br />

mazelas do século recém-findo e os dilemas<br />

morais que acarretou.<br />

Até poucos anos atrás, o século XX era tratado nos<br />

círculos sociais, intelectuais e jornalísticos mais bempensantes<br />

como um ídolo intocável, um ente benfeitor<br />

da humanidade que a conduzia para uma era paradisíaca,<br />

na qual seria abolido o sofrimento e poderse-ia<br />

viver numa perpétua diversão. Ai de quem desafiasse<br />

o ídolo!<br />

Mas <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> o enfrentou. Desde os bancos do<br />

Colégio São Luís, ele rompeu esse concerto de louvores<br />

ao século XX, mostrando que se tratava de uma<br />

época monstruosa, torta, equivalente a um homem do<br />

qual um dos braços crescesse tanto que ficasse hipertrofiado<br />

— o progresso científico e material —, e o<br />

outro regredisse, atrofiando-se — a decadência espiritual.<br />

Século o qual, ao mesmo tempo em que nos ofereceu<br />

vôos intercontinentais, cirurgias a raio laser e<br />

comunicações via Internet, estimulou o abandono da<br />

religião de Nosso Senhor Jesus Cristo, o desaparecimento<br />

do respeito à dignidade humana e o rompimento<br />

de todos os freios morais.<br />

“Deus, embora não prive jamais [as almas] da graça<br />

suficiente, espera não raramente que essas almas<br />

cheguem ao mais fundo da miséria, para lhes fazer<br />

ver de uma só vez, como num fulgurante ‘flash’, a enormidade<br />

de seus erros e de seus pecados. oi quando<br />

desceu a ponto de querer se alimentar das bolotas dos<br />

porcos que o filho pródigo caiu em si e voltou à casa<br />

paterna (cfr. Lc. 15, 16-19)”, afirma <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em<br />

“Revolução e Contra-Revolução”, livro que escreveu<br />

em 1959, em pleno período de deslumbramento pelas<br />

conquistas científicas.<br />

O século XXI abre-se, felizmente, numa outra perspectiva:<br />

em meio a alguns retardatários, admiradores<br />

de um progresso sem Deus, cresce o número de “filhos<br />

pródigos”, parecendo haver chegado o momento<br />

de uma imensa volta à casa paterna. É hora, portanto,<br />

de todos os católicos pormos mãos à obra, oferecendo<br />

aos que retornam o pão da boa palavra e, sobretudo,<br />

do fervor e do bom exemplo. Precisamos atender com<br />

entusiasmo a convocação de João Paulo II para a nova<br />

evangelização, e seguir os passos do Vigário de<br />

Cristo nessa cruzada incruenta, a fim de conquistar<br />

para Jesus os corações. Dessa semente agora plantada<br />

por todos nós deverá crescer uma árvore frondosa,<br />

que ultrapasse o século entrante e dê bons frutos pelo<br />

3º milênio afora.<br />

E qual o caminho mais curto, eficaz e suave para<br />

alcançarmos essa meta? O Papa também nos responde:<br />

Maria, especialmente se for cultuada e amada segundo<br />

o método de São Luís Maria Grignon de Montfort<br />

(cfr. Osservatore Romano, 21/10/2000).<br />

Caso <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> estivesse aqui, concordaria com entusiasmo.<br />

Afinal, quando moço de 21 anos, ele viu numa<br />

livraria o então pouco conhecido “Tratado da verdadeira<br />

devoção à Santíssima Virgem”, escrito por<br />

aquele santo, e adquiriu um exemplar.<br />

“Chegando em casa”, contou ele, “abri o embrulhozinho,<br />

sentei-me e comecei a ler. Percebi logo que<br />

tinha encontrado um dos livros de minha vida.<br />

Provavelmente, o livro de minha vida! Eu o li atentamente,<br />

resumi, redigi uma ladainha com as invocações<br />

de Nossa Senhora que ele trazia. E me consagrei<br />

como escravo d’Ela. oi um acontecimento fundamental<br />

na minha existência, um acontecimento ao<br />

qual eu quero como algo que está no centro do meu<br />

coração”.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

O<br />

primeiro<br />

baile de que participei na minha vida<br />

foi no salão do Trianon.<br />

Com essas palavras, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> começou a recordar<br />

numa conversa as festas de sociedade que freqüentou<br />

na adolescência. Quando terá sido a primeira?<br />

É difícil precisar. Provavelmente, por ocasião<br />

da passagem de ano de 1923 para 1924, pouco após<br />

ele completar 15 anos. Digno de nota é que essas festas<br />

não foram para o jovem <strong>Plinio</strong> ocasiões apenas<br />

de entretenimento, mas também de exercitar o amor<br />

de Deus. Continuemos a ouvi-lo:<br />

O Trianon era um lugar muito fino e agradável,<br />

comemorando-se nele grandes réveillons da São<br />

Paulo da década de 20, e um pouco menos na de<br />

30. Os moços compareciam de smoking, os homens<br />

de mais idade iam de casaca, e as senhoras<br />

trajavam vestido de gala, com plumas, aigrettes e<br />

às vezes um discreto diadema, com duas ou três<br />

fileiras de diamantes ornando o penteado. O comportamento<br />

de todos era cerimonioso, quase como<br />

se constituíssem uma corte em torno de um rei<br />

invisível.<br />

Talvez pela presença dessas pessoas mais maduras,<br />

os jovens dançavam com maior recato, distinção<br />

e categoria do que se tornou costume anos<br />

depois. Eu participava dessas festas de ano-novo<br />

— das primeiras vezes no Trianon, posteriormente<br />

“Réveillon”<br />

no Automóvel Clube — com muito comprazimento<br />

e alegria, mas sempre vigilante para não transgredir<br />

em nada os princípios da é católica e os<br />

Mandamentos da Lei de Deus. De modo particular<br />

no que se referia à virtude da castidade, amada<br />

por mim até onde é possível, disposto a enfrentar<br />

qualquer pressão em sentido contrário.<br />

Quando soava a meia-noite, em meio às costumeiras<br />

aclamações com que as pessoas recebem<br />

o novo ano, eu rezava em voz baixa uma Salve-<br />

Rainha, agradecendo a Nossa Senhora o tempo<br />

que havia ficado para trás e implorando a proteção<br />

d’Ela para os dias vindouros.<br />

Vista do Trianon, onde o jovem <strong>Plinio</strong> participava de prestigiosos bailes de passagem de ano<br />

5


DENÚNCIA PROÉTICA<br />

Século de progresso<br />

ou de ruínas?


N<br />

a virada do milênio, a<br />

voz de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> continua<br />

a ressoar, como<br />

há 70 anos, proclamando que os<br />

alicerces de nossa civilização foram<br />

estabelecidos pela Igreja, e<br />

só sobre eles poderá reflorescer o<br />

mundo.<br />

Por toda parte onde ela se faz<br />

sentir, a ação da Igreja é<br />

eminentemente civilizadora,<br />

em suas diversas manifestações. Ao<br />

mesmo tempo que o Cristianismo invadia<br />

a Alemanha com São Bonifácio,<br />

também entrava com ele, nos matagais<br />

selvagens da Teutônia, a civilização<br />

greco-romana. E o mesmo sopro<br />

de Cristianismo que varreu da<br />

Germânia agreste os fantasmas inconsistentes<br />

de sua antiga mitologia,<br />

varreu também para longe a selvageria<br />

e a crueldade que caracterizavam<br />

as implacáveis hordas de bárbaros que<br />

assolavam constantemente as divisas<br />

do Império Romano.<br />

O que São Bonifácio fez na Alemanha,<br />

fizeram-no em todas as nações<br />

ocidentais inúmeros missionários humildes<br />

que, como pregoeiros da verdade,<br />

percorriam em toda a sua extensão<br />

a Europa bárbara e selvagem dos<br />

primeiros séculos medievais. Destes<br />

missionários, alguns foram elevados à<br />

honra dos altares. Outros jazem sepultados<br />

no esquecimento. Sua obra,<br />

porém, lhes sobreviveu. E quando o<br />

homem supercivilizado de nossos dias,<br />

orgulhoso da velocidade de suas estradas<br />

de ferro, percorre rapidamente<br />

a Espanha meridional, ou o Portugal<br />

que banha suas costas no Atlântico,<br />

em uma atmosfera límpida, cheia de<br />

vida e de luz, ou a Suécia gélida, eternamente<br />

mergulhada no seu sonolento<br />

e melancólico nevoeiro, em<br />

vez de se envaidecer com os inventos<br />

de seu século, deveria antes lembrarse<br />

de que não há traçado de estrada<br />

de ferro, não há percurso de estrada<br />

de rodagem, não há campo de aviação<br />

e não há porto de mar<br />

algum, fora dos limites do<br />

antigo Império Romano,<br />

em que, há muitos e muitos<br />

séculos atrás, não tivesse nossa<br />

civilização penetrado pela primeira<br />

vez com o bordão de um missionário<br />

anônimo e abnegado.<br />

E esta verdade não é apenas européia,<br />

desdobra-se por todo o universo.<br />

Nenhum transatlântico altivo<br />

pode singrar em demanda do Oriente,<br />

ou da América, sem que a sombra dos<br />

antigos missionários católicos lhe<br />

relembre que, antes da ganância do<br />

mercador, o ardor do apóstolo percorrera<br />

os mesmos caminhos, enfrentando<br />

as mesmas dificuldades, removendo<br />

os mesmos obstáculos e vencendo<br />

pela doçura e pela pregação as mesmas<br />

gentes que os mercadores iriam<br />

vencer pelas armas e pelo sangue.<br />

Nossa Rua XV de Novembro, em<br />

que vibra toda a civilização americana,<br />

na vida agitada dos bancos ou na<br />

futilidade das vaidades femininas, é<br />

com razão o orgulho dos paulistas.<br />

Quem, no entanto, se lembra de que<br />

essa artéria trepidante nada mais é<br />

senão o fruto abençoado do suor de<br />

um missionário humilde e fraco que,<br />

quatrocentos [anos] atrás, percorria o<br />

mesmo lugar — então ermo e perigoso<br />

— catequizando os índios e recristianizando,<br />

com o risco da própria vida,<br />

os gananciosos e cruéis exploradores<br />

portugueses? Quem se recordará<br />

de que toda esta vida, toda esta grandiosidade<br />

que se ostenta na paulicéia<br />

hodierna, nada mais é do que o fruto<br />

de uma árvore pujante que Anchieta<br />

plantou com a semente do sacrifício, e<br />

regou com o sangue das macerações e<br />

as lágrimas da penitência? Ninguém.<br />

É preciso, porém, que, a todo o custo,<br />

esta injustiça cesse. Nossa época<br />

deve ser sobretudo uma época de reparações,<br />

em que procuremos ligar novamente<br />

as coisas às suas raízes verdadeiras.<br />

E a maior das reparações, a<br />

mais urgente — a única, em última<br />

análise — é a reparação [para] com a<br />

Igreja.<br />

7


DENÚNCIA PROÉTICA<br />

Desilusões com o progresso<br />

Muito se fala de nosso progresso.<br />

O século XX, que foi na sua primeira<br />

década uma comédia, transformou-se<br />

bruscamente em tragédia longa e sangrenta,<br />

que está longe de ter chegado<br />

a seu fim.<br />

Ainda uma longa série de lances<br />

dolorosos nos separa do desenlace fatal<br />

da luta de tantos elementos que se<br />

chocam hoje em dia. E, como em todo<br />

ambiente verdadeiramente propício<br />

às tragédias, podemos distinguir<br />

em nossa época grandes vícios.<br />

Nossa civilização material é soberba.<br />

O homem conquistou os ares, e pôde<br />

perscrutar os segredos do fundo do<br />

mar. Suprimiu as distâncias. Voou...<br />

Nossas fábricas têm aparelhos que<br />

podem fazer vergar como alfinetes as<br />

mais possantes barras metálicas. No<br />

entanto, nossa mentalidade padece<br />

precisamente do mal contrário. Em<br />

vez de vergar as barras de metal como<br />

se fossem alfinetes, sente-se a alma do<br />

homem hodierno fraca em relação aos<br />

alfinetes dos menores sacrifícios morais,<br />

como se fossem barras de metal.<br />

Nossas aspirações são desencontradas.<br />

Como crianças que brincassem em<br />

uma sala de visitas, os homens quebram<br />

hoje, inconsciente e estupidamente,<br />

os últimos bibelots e jóias que<br />

nos restam da nossa verdadeira civilização.<br />

A mecânica é utilizada para a destruição<br />

e para a guerra. A química<br />

não interessa somente aos hospitais,<br />

mas às fábricas de gases asfixiantes.<br />

Os tóxicos não têm apenas uso de<br />

laboratório; alimentam também os vícios<br />

de uma geração inepta para a vida,<br />

que procura evadir-se da realidade<br />

nas regiões sempre novas do sonho<br />

e da fantasia. A máquina, depois de<br />

ter devorado as tradições do passado,<br />

devora atualmente as esperanças do<br />

futuro. A produção já não condiz com<br />

o consumo. Tudo se desajusta, tudo se<br />

desagrega. E o homem de nossos dias<br />

começa apenas a perceber que, ao lado<br />

dos frutos amenos de uma civilização<br />

material rica em confortos requintados,<br />

também brotam os frutos<br />

amargos de um sibaritismo levado ao<br />

auge pelas próprias armas que a civilização<br />

forjou.<br />

Desiludido de tudo, o homem de<br />

hoje (ao contrário do que sucedia no<br />

início do século XX) já não pinta<br />

mais o progresso, em seus quadros<br />

alegóricos, como uma mulher envolta<br />

em uma túnica grega com um facho<br />

luminoso nas mãos, a quebrar os grilhões<br />

do passado, dirigindo-se, com o<br />

olhar radioso de esperanças, para o<br />

futuro cheio de promessas. Só nas folhinhas<br />

e nas estampas de nosso princípio<br />

de século tal ingenuidade conseguiu<br />

encontrar lugar. Hoje, estas alegorias<br />

aparatosas foram relegadas ao<br />

olvido. E se alguém quisesse representar<br />

exatamente nossa época, deveria<br />

antes pintá-la como uma criança a<br />

chorar espavorida ante os pedaços de<br />

um vaso de porcelana que quebrou, e<br />

que não sabe mais consertar.<br />

A Igreja sempre trabalhou no<br />

sentido de alargar os alicerces da<br />

moralidade, sobre os quais<br />

edificou sua admirável obra de<br />

prudência e de sabedoria<br />

(Catedral de Auxerre,<br />

rança)


Moralidade frágil, ruína<br />

próxima<br />

Chegou o momento de indagarmos<br />

[a respeito] das verdadeiras causas de<br />

tal desastre. É chegada a ocasião de<br />

esquadrinharmos novamente a história,<br />

não como um pasto para fantasias<br />

e utopias liberais, mas como laboratório<br />

em cujos fatos e acidentes, como<br />

em retortas e alambiques, se elaborou<br />

o presente. E chegou o momento em<br />

que nós, católicos, devemos proclamar<br />

e demonstrar a grande verdade<br />

da qual nos provém, como de fonte<br />

única, a salvação: o progresso, na sua<br />

acepção moral mais elevada, e nas<br />

suas manifestações materiais legítimas,<br />

provém diretamente da Igreja. O<br />

cortejo de vícios, de erros, de torpezas<br />

que ele arrastou atrás de si, proveio<br />

de um verdadeiro retrocesso à barbárie,<br />

que se processou na Renascença.<br />

E isto porque a Renascença foi bárbara,<br />

como é bárbara a condição primitiva<br />

de vida dos hotentotes. Efetivamente,<br />

é uma tendência essencial à<br />

civilização tornar cada vez mais perfeita<br />

a vida das coletividades humanas.<br />

Bárbaro, portanto, e incivilizado, é<br />

o homem que não governa seus instintos<br />

e que se torna, assim, inapto<br />

para a vida social. Que esse desgoverno<br />

de instintos se cubra com as rendas<br />

e sedas dos sibaritas, ou que ostente<br />

somente a tanga dos polinésios ou dos<br />

havaianos, há nisto apenas uma questão<br />

de cenário. Mais civilizada seria<br />

uma nação sem rendas nem sedas,<br />

sem bondes nem telégrafos, mas na<br />

qual a moralidade reinasse, do que<br />

uma Sodoma eletrizada em todas as<br />

suas manifestações vitais, mas apodrecida<br />

em todo o vigamento de sua<br />

estrutura moral.<br />

O alicerce de toda civilização é a<br />

moralidade. E quando uma civilização<br />

se edifica sobre os alicerces de<br />

uma moralidade frágil, quanto mais<br />

ela cresce, tanto mais se aproxima da<br />

ruína. É como uma torre que, assentando-se<br />

sobre alicerces insuficientes,<br />

ruirá desde que chegue a certa altura.<br />

Quanto mais se sobrepõem uns andares<br />

a outros, tanto mais está próxima<br />

sua ruína. E quando os escombros<br />

que entulharem a terra tiverem demonstrado<br />

a fraqueza do edifício, certamente<br />

os arquitetos de torres de Babel<br />

invejarão a casa de largos alicerces<br />

e de número limitado de sobrados,<br />

que desafia as intempéries e zomba<br />

do tempo.<br />

O trabalho que a humanidade tem<br />

efetuado desde o século XIV consistiu<br />

em enfraquecer os alicerces e aumentar<br />

o número de andares. A Igreja,<br />

que pôde atuar livremente até o<br />

século XIV, trabalhou em sentido<br />

contrário: alargar os alicerces para,<br />

mais tarde, edificar sobre eles, não o<br />

monumento vão de um orgulho temerário,<br />

mas o fruto possante e admirável<br />

da prudência e da sabedoria.<br />

Os alicerces que ainda hoje suportam<br />

o peso imenso de um mundo que<br />

desmorona são obra da Igreja. Nada é<br />

realmente útil sem ser estável. E o<br />

que ainda hoje nos resta de estável e<br />

de útil — de CIVILIZAÇÃO em suma<br />

— edificou-o a Igreja. Pelo contrário,<br />

os germes que ameaçam nossa<br />

existência nasceram precisamente da<br />

inobservância das leis da Igreja. Este<br />

é o diagnóstico irrefutável da sociologia<br />

católica, que devemos denodadamente<br />

defender.<br />

(Transcrito do “Legionário”, nº 87,<br />

27/9/31. Títulos e subtítulos nossos.)


DONA LUCILIA<br />

Sempre solícita e diligente em tudo<br />

que dizia respeito à educação<br />

de seus filhos, Dª Lucilia<br />

aproveitava-se de todas as circunstâncias<br />

favoráveis para fazê-los progredir<br />

na formação de suas personalidades,<br />

bem como na aquisição de valores morais<br />

que os tornassem aptos a enfrentar<br />

as vicissitudes desta vida. Nessa preparação<br />

tinha lugar de destaque a arte<br />

de conversar, na qual Dª Lucilia era<br />

exímia.<br />

As crianças introduzidas<br />

no mundo dos adultos<br />

Anelos de<br />

Em sua residência da Alameda Barão<br />

de Limeira, costumava-se congregar<br />

grande número de parentes, sendo<br />

elevação, gentileza e bom trato<br />

10


habitual transformar-se a ampla sala<br />

de jantar em palco de prolongados entretenimentos<br />

e debates, que se estendiam<br />

após as refeições, já de si demoradas.<br />

Concluída a sobremesa, as pessoas<br />

se sentavam confortavelmente nos sofás<br />

e poltronas dispostos nos cantos da<br />

sala e, enquanto sorviam a pequenos<br />

goles um aromático cafezinho, prosseguiam<br />

a conversa. Esta, sempre animada,<br />

comportava com freqüência o<br />

trato de temas elevados, feita ao mesmo<br />

tempo com naturalidade e distinção.<br />

Naquela época, as conversas desse<br />

tipo, apesar de espontâneas, obedeciam<br />

a regras não escritas em nenhum<br />

manual e constituíam uma verdadeira<br />

arte, que o aparecimento do cinema<br />

e, mais tarde, do rádio e da televisão,<br />

extinguiu por completo.<br />

Saber manter presa a atenção dos<br />

interlocutores, conseguir interessá-los<br />

por um tema, fazê-los participar sem<br />

constrangimento do animado diálogo,<br />

eram habilidades de espírito que tinham<br />

seus campeões, cujo mérito era<br />

vivamente apreciado pelas pessoas<br />

cultas. A tal ponto que a história sempre<br />

registrou os grandes causeurs de<br />

cada época. Um deles foi um bisavô<br />

de Dª Lucilia, o <strong>Dr</strong>. Gabriel José Rodrigues<br />

dos Santos, notável parlamentar<br />

do Segundo Reinado, não lhe tendo<br />

ficado atrás alguns de seus descendentes,<br />

que cultivaram e transmitiram<br />

o elevado dom da conversação.<br />

A partir de certa idade, as crianças<br />

eram admitidas à mesa dos adultos,<br />

mas sem tomar parte na troca de idéias,<br />

a não ser quando alguma pergunta era<br />

dirigida a elas ou se lhes pedia uma<br />

opinião. Eram introduzidas desse modo<br />

ordenado no mundo das pessoas<br />

de mais idade, o que lhes ajudava a<br />

desde cedo tomar posição definida sobre<br />

as grandes questões do momento.<br />

Aprendendo a julgar os<br />

fatos com Dª Lucilia<br />

Naqueles pós-jantares, se alguém,<br />

folheando o jornal, encontrasse uma<br />

notícia interessante, lia-a em voz alta<br />

aos demais, contribuindo para alimentar<br />

a prosa. Dª Lucilia, porém, para<br />

melhor formar seus filhos, não se contentava<br />

em ouvi-la de modo passivo.<br />

Pelo contrário, procurava explicar-lhes<br />

a importância dos diversos fatos estampados<br />

nos diários. Quando ela reputava<br />

que algo tinha especial interesse,<br />

dizia em voz baixa:<br />

— Meus filhos, prestem atenção no<br />

que foi comentado agora.<br />

Habitualmente, as matérias tratadas<br />

pelos mais velhos iam variando e, ao<br />

discorrerem sobre acontecimentos relacionados<br />

com os assuntos pouco antes<br />

assinalados por Dª Lucilia, ela voltava<br />

a chamar a atenção dos pequenos,<br />

sempre em voz baixa:<br />

— Meus filhos, isto também é muito<br />

importante.<br />

E assim Dª Lucilia os educava, proporcionando-lhes<br />

de forma paulatina<br />

mais experiência e conhecimento, a fim<br />

Em torno da matriarca, Dª Gabriela, no aprazível e distinto ambiente criado<br />

por ela no palacete dos Ribeiro dos Santos, eram as crianças introduzidas de<br />

maneira ordenada no mundo e nas idéias dos adultos<br />

11


DONA LUCILIA<br />

Dª Lucilia costumava<br />

apresentar a seus filhos<br />

alguns personagens<br />

históricos que fossem<br />

dignos modelos a serem<br />

imitados. Por exemplo, o<br />

Rei Alberto da Bélgica,<br />

herói da Iª Guerra Mundial<br />

(ao lado). Abaixo, o<br />

soberano belga e sua<br />

esposa, a Rainha<br />

Elizabeth.<br />

do estiveram em visita a São Paulo o<br />

rei Alberto da Bélgica e sua consorte,<br />

a rainha Elizabeth, Dª Lucilia não<br />

perdeu a oportunidade de mostrá-los<br />

aos pequenos. Na ocasião, quando a<br />

comitiva dos soberanos passava pela<br />

Alameda Barão de Limeira, ela ressaltou<br />

aos olhos dos filhos a categoria,<br />

a distinção e o heroísmo daquele rei<br />

que, na Primeira Guerra Mundial,<br />

soubera defender com intrépida coragem<br />

seu país contra o invasor alemão.<br />

ez notar também a postura<br />

correta da dama de honra da Soberana<br />

e comentou: “É assim que se deve<br />

ser!”<br />

Era, portanto, explícita a intenção<br />

de apresentar aos filhos tais personagens<br />

históricos como modelos<br />

a imitar.<br />

de poderem relacionar os temas entre<br />

si e hierarquizá-los. Não tardou <strong>Plinio</strong><br />

em perceber que os assuntos que Dª<br />

Lucilia mais comentava nem sempre<br />

eram os que saíam em manchete. Pelo<br />

contrário, não raras eram as notícias à<br />

primeira vista secundárias às quais ela<br />

dava mais importância. Isto despertou-lhe<br />

a curiosidade e o desejo de conhecer<br />

as razões desse modo de proceder.<br />

Sem muita dificuldade, concluiria<br />

ele: “Mamãe dá mais importância<br />

aos fatos que se relacionam com a<br />

Religião...”<br />

Personagens históricos,<br />

modelos a imitar<br />

Ao lado da arte de conversar, do<br />

interesse por narrações de histórias e<br />

de acontecimentos grandiosos do passado,<br />

bem como do senso do maravilhoso<br />

que Dª Lucilia procurava despertar<br />

nas crianças, ela se preocupava<br />

igualmente em lhes apresentar modelos<br />

que lhes pudessem orientar os<br />

passos. oi assim que, em 1920, quan-<br />

Última fantasia<br />

Nesses seus preciosos desígnios<br />

de formação, Dª Lucilia<br />

idealizava para seus filhos<br />

(por ocasião dos inocentes<br />

festejos de carnaval<br />

daqueles tempos) fantasias<br />

que correspondiam aos modelos<br />

a eles propostos por<br />

ela.<br />

<strong>Plinio</strong> e Rosée, entretanto, no início<br />

da década de 20, já iam abandonando<br />

a meninice. As tragédias e desilusões<br />

da vida estavam cada vez mais<br />

presentes aos olhos dos jovenzinhos,<br />

não lhes cabendo mais algo que não<br />

condissesse com a realidade, como<br />

eram tais disfarces.<br />

Todavia, estando a família em Águas<br />

da Prata na época do carnaval, houve<br />

uma festa no hotel em que se hospedavam,<br />

e se tornava um tanto pesado<br />

e desgracioso, ante parentes e conhecidos,<br />

não participarem da alegria geral.<br />

Dª Lucilia então, habilidosamente,<br />

improvisou para seus filhos trajes<br />

típicos espanhóis. Seria a última vez<br />

12


que <strong>Plinio</strong> vestiria uma fantasia. Como<br />

nas ocasiões anteriores, ela soube<br />

dar-lhes um caráter muito mais real<br />

que ilusório.<br />

Em consonância com aquela formação<br />

que lhes proporcionava, em ordem<br />

a admirar a tradição, ela procurava<br />

sempre, nessas circunstâncias, exprimir<br />

em trajes os valores de uma nação<br />

ou de um tipo humano determinado.<br />

No caso concreto, o que ela procurava<br />

incutir nos filhos de forma bem<br />

autêntica era a Espanha católica, das<br />

épicas touradas, dos grandes santuários<br />

e dos guerreiros cristãos.<br />

“Ah! Agora o mundo<br />

entrou em seu verdadeiro<br />

eixo...”<br />

É por essa época, em que os trens<br />

se mostravam ainda vagarosos e pouco<br />

estáveis, que um susto, seguido de<br />

aflição, não só marcará a pré-adolescência<br />

de <strong>Plinio</strong>, como deixará novamente<br />

transparecer o entranhado amor<br />

dele por sua querida mãe.<br />

Dª Lucilia se encontrava em Águas<br />

da Prata. Iam ter com ela <strong>Dr</strong>. João<br />

Paulo, o filho e a governante deste.<br />

Ora, durante o percurso de trem, como<br />

acontecia por vezes, <strong>Plinio</strong> sentiu<br />

enjôo. Assim, quando de uma parada<br />

na estação de Campo Limpo, antes de<br />

Campinas, pediu licença ao pai para<br />

sair e tomar ar. Desceu à plataforma e<br />

pôs-se a percorrê-la tranqüilamente<br />

de uma ponta a outra.<br />

De repente ouviu um apito e notou<br />

que o trem se punha em movimento.<br />

Correu e, quando ia saltar, sentiu que<br />

decididas mãos o seguravam vigorosamente<br />

por trás, impedindo-o de realizar<br />

seu intento. Tratava-se da räulein<br />

que, muito perspicaz, também<br />

descera para não perdê-lo de vista.<br />

— E agora, o que vamos fazer? —<br />

perguntou ele.<br />

— Não tem nada. Vamos nos encontrar<br />

com seu pai em Campinas.<br />

— Mas, como papai vai tomar contato<br />

conosco?<br />

— Isto é muito simples. Vou falar<br />

com o chefe da estação. Ele passará<br />

um telegrama para a estação de Campinas,<br />

pedindo que avisem “o senhor<br />

que procura um filho, que o menino<br />

está em Campo Limpo e partirá para<br />

lá no próximo trem de tantas horas”.<br />

<strong>Plinio</strong> pensou: “Há o risco de papai<br />

adormecer e não perceber o trem passar<br />

por Campinas”. Mas isto não se<br />

deu. Ao chegarem a Campinas, encontraram<br />

<strong>Dr</strong>. João Paulo tão satisfeito<br />

por ver resolvido o problema, que não<br />

continha seu afável e generoso riso<br />

pernambucano.<br />

Passaram a noite num hotel daquela<br />

cidade e no dia seguinte <strong>Plinio</strong> se<br />

encontrava entre os braços de sua<br />

mãe. De forma instantânea configurou-se<br />

em seu interior a idéia: “Ah!<br />

Agora o mundo entrou em seu verdadeiro<br />

eixo...”<br />

“Ah! Agora o mundo<br />

entrou em seu verdadeiro<br />

eixo...”, exclamou o<br />

jovem <strong>Plinio</strong> ao se<br />

encontrar novamente<br />

com sua extremosa mãe,<br />

em Águas da Prata.<br />

Ao lado, o hotel em que<br />

eles se hospedavam<br />

durante as estadas nessa<br />

cidade; acima, da direta<br />

para a esquerda, <strong>Plinio</strong>,<br />

Dª Lucilia, a irmã desta,<br />

Dª Zili, e Rosée, naquela<br />

estância termal<br />

13


DONA LUCILIA<br />

Pêsames pela morte da<br />

Princesa Isabel<br />

Ao longo dos anos, desde 1912,<br />

quando se conheceram em Paris, a<br />

mãe de Dª Lucilia manteve assíduo<br />

contato epistolar com a Princesa Isabel<br />

e com a dama de honra desta, a<br />

baronesa de Muritiba. Evocativas de<br />

outras eras, algumas dessas missivas<br />

foram cuidadosamente conservadas<br />

pela filha, possibilitando-nos degustar<br />

agora um pouco daquele elevado relacionamento.<br />

As cartas endereçadas à matriarca<br />

dos Ribeiro dos Santos, em geral lhe<br />

chegavam às mãos no final do almoço.<br />

Era a hora em que Luís, o copeiro,<br />

como de estilo, as apresentava a Dona<br />

Gabriela numa salva de prata.<br />

Nessas ocasiões era comum estarem<br />

à mesa vários membros da família,<br />

que com indisfarçável interesse<br />

ouviam, por exemplo, Dona Gabriela<br />

anunciar: “Acaba de chegar uma carta<br />

da Princesa Isabel...”, e ler em voz alta<br />

as palavras da imperial signatária.<br />

Por vezes, como no caso a seguir, tratava-se<br />

de um simples postal:<br />

Minha querida Dª Gabriela<br />

Muitíssimo lhe agradeço seu telegrama<br />

por ocasião de nosso grande dia 13<br />

de Maio. A baronesa de Muritiba lhe<br />

dará noticias de nós todos.<br />

Sua muito afeiçoada<br />

Isabel Condessa d’Eu<br />

Boulogne-sur-Seine, 4 de junho de<br />

1917<br />

Nesses momentos todos prestavam<br />

atenção, e era patente que seus espíritos<br />

ficavam tomados de um passageiro<br />

enlevo, do qual brotavam comentários<br />

elogiosos.<br />

Próximo ao fim daquele ano, chegou<br />

a notícia do falecimento da<br />

Princesa Isabel, que encheu de tristeza<br />

os corações, em especial o<br />

de Dª Lucilia. Sua mãe redigiu<br />

um telegrama de pêsames para<br />

o Conde d’Eu e demais membros<br />

da amília Imperial: Queira<br />

Vossa Alteza aceitar...<br />

<strong>Plinio</strong>, que fazia sozinho, havia<br />

já algum tempo, suas incursões<br />

ao centro da cidade, foi<br />

incumbido de passar esse telegrama.<br />

Décadas depois, ele ainda<br />

se lembraria da reação da<br />

funcionária ao ler as primeiras<br />

palavras da mensagem. Ela se<br />

voltou para uma colega e disse:<br />

— ulana, venha aqui depressa<br />

ver que beleza!... Veja<br />

que coisa linda!<br />

Tratava-se presumivelmente de uma<br />

pessoa em dia com as modas e costumes<br />

mais avançados, e que, naquele<br />

instante, fora tocada por uma brisa de<br />

tradição. Aquelas simples palavras de<br />

pêsames dirigidas a um Príncipe constituíam<br />

um símbolo dos tempos passados,<br />

que naqueles já tão modificados<br />

anos ainda exerciam sua benéfica<br />

influência.<br />

Não nos é difícil imaginar o apreço<br />

com que Dª Lucilia deve ter acompanhado<br />

tal correspondência, tão adequada<br />

a seus anelos de um mundo onde<br />

só reinassem benquerença, gentileza,<br />

elevação e bom trato...<br />

(Transcrito e adaptado da obra<br />

“Dona Lucilia”, de João S. Clá Dias)<br />

rente e verso do<br />

cartão postal acima<br />

transcrito, exemplo<br />

da assídua correspondência<br />

que trocaram<br />

Dª Gabriela,<br />

a Princesa Isabel<br />

e a dama de<br />

honra desta, a<br />

baronesa de<br />

Muritiba (no alto)<br />

14


<strong>Plinio</strong> e Rosée com trajes típicos espanhóis<br />

— a última fantasia que Dª Lucilia lhes<br />

confeccionou...


DR. PLINIO COMENTA...<br />

Autêntica Mãe<br />

dos homens<br />

E<br />

m 13 de outubro passado,<br />

João Paulo II recebeu os<br />

participantes do VIII<br />

Colóquio Internacional de Mariologia<br />

que tratava da espiritualidade de São<br />

Luís Grignion de Montfort. Ao saudálos,<br />

o Sumo Pontífice recordou a<br />

época em que, jovem seminarista, leu<br />

e meditou diversas vezes o “Tratado<br />

da verdadeira devoção à Santíssima<br />

Virgem”, de autoria desse Santo.<br />

“Desde então — disse o Papa — esse<br />

livro constitui para mim uma significativa<br />

figura de referência, que me<br />

iluminou em momentos importantes<br />

da vida. Montfort ajudou-me a entender<br />

que a Virgem pertence ao plano<br />

da salvação por vontade do Pai, como<br />

Mãe do Verbo encarnado, por Ela concebido<br />

por obra do Espírito Santo.<br />

[...] Compreendi, então, que não podia<br />

excluir da minha vida a Mãe do<br />

Senhor, sem desatender a vontade de<br />

Deus-Trindade”.<br />

Ardoroso devoto de Nossa Senhora,<br />

também <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> conheceu<br />

em sua mocidade esse Tratado.<br />

Aderindo de toda a alma à espiritualidade<br />

montfortiana, procurou aprofundar<br />

e explicitar suas implicações<br />

até o fim de seus dias. Seus comentários<br />

nestas páginas foram redigidos<br />

poucos anos depois de conhecer<br />

aquela preciosa obra.<br />

Virgen de las Cuevas (Espanha)<br />

16


Hoje pretendo dizer algo sobre a doutrina que<br />

[São Luís Grignion de Montfort] expõe no seu<br />

Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima<br />

Virgem.<br />

Penso não errar, afirmando que, em essência, o Tratado<br />

não é senão a exposição de duas grandes verdades ensinadas<br />

pela Igreja, das quais ele extrai todas as conseqüências<br />

necessárias, e a cuja luz examina toda a vida espiritual.<br />

Estas duas verdades são a maternidade espiritual de<br />

Nossa Senhora em relação ao gênero humano, e a mediação<br />

universal de Maria Santíssima.<br />

Dada a espessa ignorância religiosa que reina entre nós,<br />

não falta quem suponha que a Igreja dá a Nossa Senhora o<br />

título de Mãe do gênero humano, simplesmente para descrever<br />

de certo modo os sentimentos afetuosos e protetores<br />

que Ela experimenta em relação aos homens. Como estes<br />

sentimentos são próprios às mães, por analogia, Nossa Senhora<br />

seria também a nossa Mãe. E nós seríamos, em relação<br />

a Ela, pobres mendigos que, na sua generosidade,<br />

Ela protege como se fossem filhos.<br />

A realidade, entretanto, é muito outra. Não somos filhos<br />

de Nossa Senhora simplesmente por uma adoção afetiva.<br />

Ela não é nossa Mãe apenas no terreno fictício ou na ordem<br />

sentimental, mas com toda a objetividade, na ordem<br />

verídica da vida sobrenatural.<br />

O pecado original e a Redenção<br />

Antes do pecado original, nossos primeiros Pais, vivendo<br />

no Paraíso, foram criados por Deus para a glória celeste,<br />

que eles poderiam atingir transpondo os umbrais<br />

desta vida em um trânsito que não teria a tristeza tétrica<br />

da morte, mas o esplendor de uma glorificação.<br />

O pecado original, entretanto, rompendo a amizade em<br />

que o gênero humano vivia com Deus, fechou aos homens<br />

a porta do Céu, e obstruiu o livre curso da graça de Deus<br />

para [nós]. Em outros termos, com a punição do pecado<br />

original, os homens perderam qualquer direito ao Céu e à<br />

vida sobrenatural da graça.<br />

Se bem que não fosse extinto, isto é, que perdesse a vida<br />

terrena, o gênero humano perdeu, pois, o direito à vida sobrenatural.<br />

E ele só poderia readquirir tal vida se apresentasse<br />

à Justiça divina uma expiação proporcionada à enormidade<br />

de seu pecado. (...) Ora, Deus é infinitamente grande.<br />

Por aí não é difícil avaliar a gravidade do pecado original.<br />

Uma ofensa feita ao Infinito só poderia ser convenientemente<br />

resgatada por meio de uma expiação infinitamente<br />

grande. E não está no poder do homem, ser contingente<br />

por natureza, e envilecido pelo pecado, oferecer ao Criador<br />

um tão valioso desagravo. Os pontos que nos ligavam a<br />

Deus pareciam, pois, definitivamente cortados, e irremediável<br />

a decadência a que se atirara loucamente o gênero<br />

humano com o pecado.<br />

oi para remediar tão insolúvel situação, que a Segunda<br />

Pessoa da Santíssima Trindade, encarnando-se no seio pu-<br />

Consentindo na Encarnação do Verbo<br />

em seu seio puríssimo, Nossa Senhora<br />

cooperou de modo eminente na Redenção do<br />

gênero humano...<br />

17


DR. PLINIO COMENTA...<br />

ríssimo de Maria Virgem, assumiu a natureza humana sem<br />

nada perder de sua Divindade, e o Homem-Deus assim constituído<br />

se pôde apresentar à Justiça do Pai, como cordeiro<br />

expiatório do gênero humano.<br />

Efetivamente, como Homem, Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

podia oferecer uma expiação que fosse realmente humana.<br />

Mas em virtude da dualidade das naturezas n’Ele existentes,<br />

essa expiação, se bem que humana, tinha um valor<br />

infinito, pois que consistia na efusão generosa e superabundante<br />

do Sangue infinitamente precioso do Homem-<br />

Deus. Assim, no Sacrifício do Calvário, Nosso Senhor aplacou<br />

a justiça divina, e fez renascer para o Céu e a vida sobrenatural<br />

da graça a humanidade que estava absolutamente<br />

morta em tudo quanto se referisse ao sobrenatural. Se<br />

Deus, Uno e Trino, é nosso Criador, a Segunda Pessoa da<br />

Santíssima Trindade, encarnando-Se, se tornou nosso Pai<br />

por um título muito especial, que é o da Redenção. Jesus,<br />

morrendo, deu-nos a vida sobrenatural. E quem dá a vida<br />

é verdadeiramente Pai, no sentido mais amplo da palavra.<br />

Maria é autenticamente nossa Mãe<br />

Se o gênero humano pôde beneficiar-se da Redenção, é<br />

porque a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade se fez<br />

homem, pois que o pecado dos homens deveria ser resgatado.<br />

Ora, se Jesus Cristo assumiu natureza humana, fê-lo em<br />

Maria Virgem, e assim esta cooperou de modo eminente<br />

na obra da Redenção, transmitindo ao Salvador a natureza<br />

humana que nos desígnios de Deus era condição essencial<br />

da Redenção. De mais a mais, Maria Santíssima ofereceu<br />

de modo inteiro, e sumamente generoso, o seu ilho como<br />

vítima expiatória, e aceitou de sofrer com Ele, e por causa<br />

d’Ele, o oceano de dores que a Paixão fez brotar em seu<br />

Coração Imaculado.<br />

Assim, pois, a Redenção nos veio por Maria Virgem, e<br />

sua participação nessa obra de ressurreição sobrenatural<br />

do gênero humano foi tão essencial e tão profunda, que se<br />

pode afirmar que Maria cooperou para nos fazer nascer<br />

para a vida da graça. Pelo que, Ela é, autenticamente, nossa<br />

Mãe. Autenticamente, acentuo, pois que não se trata aí<br />

de divagações sentimentais ou literárias, mas de realidades<br />

objetivas, que, se bem que sobrenaturais, não deixam de<br />

ser absolutamente verdadeiras por isso mesmo que são sobrenaturais.<br />

(...)<br />

Nossa Senhora, ápice da<br />

Criação<br />

... consumada no Calvário com o holocausto<br />

infinitamente precioso do Homem-Deus<br />

De acordo com toda a doutrina católica, o santo Grignion<br />

de Montfort mostra, então, as grandezas de Maria<br />

Santíssima. Demonstrando que Ela é Mãe, o que há de<br />

mais conveniente e de mais necessário até, do que o conhecimento<br />

da suprema dignidade e da inexcedível misericórdia<br />

que Ela possui?<br />

São Tomás de Aquino diz que Nossa Senhora recebeu<br />

de Deus todas as qualidades com que seria possível a Ele<br />

cumular uma criatura. De sorte que Ela se encontra no<br />

ápice da criação, firmando seu trono acima dos mais altos<br />

coros angélicos, e sendo inferior apenas ao próprio Deus,<br />

que, sendo só Ele infinito, está infinitamente acima de todos<br />

os seres, inclusive de Nossa Senhora.<br />

Costuma-se dizer que Nossa Senhora brilha mais do<br />

que o sol, tem a suavidade da lua, a beleza da aurora, a pureza<br />

dos lírios, e a majestade do firmamento inteiro. Muita<br />

18


Quanto mais próximos estivermos de Nossa Senhora, ápice da Criação e canal de todas as graças,<br />

tanto mais suave e perfeita será nossa vida espiritual<br />

gente supõe que tudo isto não passa de hipérboles, [mas]<br />

estas comparações pecam por sua irremediável deficiência.<br />

O sol, a lua, a aurora, e todo o firmamento são seres<br />

inanimados, e estão, portanto, colocados na última escala<br />

da criação. Não é admissível que Deus os fizesse tão formosos,<br />

dando ao homem dons menores. E, por isto mesmo,<br />

a mais apagada das almas mortas em paz com Deus,<br />

tem uma formosura que excede incomparavelmente a de<br />

todas as criaturas materiais. Que dizer-se, então, de Nossa<br />

Senhora, colocada incalculavelmente acima, não só dos<br />

maiores Santos, mais ainda dos Anjos mais elevados em<br />

dignidade junto ao trono de Deus?<br />

Um caipira que fosse assistir à solenidade da coroação<br />

do Rei da Inglaterra, voltando aos seus pagos natais, possivelmente<br />

não encontrasse outros termos para explicar a<br />

magnificência daquilo que viu, senão afirmando que foi<br />

mais belo do que as festas em casa do Nhô Tonico, o homem<br />

menos pobre da região. Se o Rei da Inglaterra ouvisse<br />

isto, que outra coisa poderia fazer, senão sorrir?<br />

Pois nós, quando procuramos descrever a formosura de<br />

Nossa Senhora com os termos escassos da linguagem humana,<br />

fazemos o mesmo papel... e Ela também sorri.<br />

Não recorrer a Maria é “querer voar<br />

sem asas”<br />

Não espanta, pois, que seja verdade de é que Deus se<br />

compraz tanto em Nossa Senhora, que um pedido feito<br />

por meio d’Ela é sempre atendido, ainda que não conte senão<br />

com o apoio d’Ela. E que se todos os Santos pedissem<br />

alguma coisa sem ser por meio d’Ela nada conseguiriam.<br />

Porque, como diz Dante, querer rezar sem Ela é o mesmo<br />

que querer voar sem asas...<br />

Assim, pois, todas as graças nos vêm de Nossa Senhora,<br />

e é Ela a medianeira universal de todos os homens, junto a<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas, se todas as graças nos<br />

vêm d’Ela, e se nossa vida espiritual não é senão uma longa<br />

sucessão de graças a que correspondemos, ou renunciamos<br />

a ter vida espiritual, ou devemos compreender que<br />

esta será tanto mais suave, mais intensa e mais perfeita,<br />

quanto mais próximos estivermos junto daquele único canal<br />

de graça, que é Nossa Senhora. Deus é a fonte da graça,<br />

Nossa Senhora o único canal necessário, e os Santos<br />

meras ramificações, aliás veneráveis e dignas de grande<br />

amor, do grande canal que é Nossa Senhora.<br />

Queremos ter a graça inestimável do senso católico? Queremos<br />

ter a virtude inapreciável da pureza? Queremos ter<br />

o tesouro sem preço, que é o dom da ortaleza, queremos<br />

ser ao mesmo tempo mansos e enérgicos, humildes e dignos,<br />

piedosos e ativos, meticulosos em nossos deveres e<br />

inimigos do escrúpulo, pobres de espírito se bem que jungidos<br />

às riquezas do mundo, em uma palavra, fiéis e devotos<br />

servidores de Nosso Senhor Jesus Cristo?<br />

Dirijamo-nos ao trono que Deus deu a Nossa Senhora,<br />

e, no recesso amoroso da Igreja Católica, nossa Mãe, peçamos<br />

a Nossa Senhora, também nossa Mãe, que nos faça<br />

semelhantes a seu Divino ilho.<br />

(Extraído do “Legionário” de 10/12/39.<br />

Títulos e subtítulos nossos.)<br />

19


O PENSAMENTO ILOSÓICO DE DR. PLINIO<br />

O colóquio de<br />

C omo, no decorrer dos séculos, a maneira de raciocinar dos vários<br />

povos vai enriquecendo com traços peculiares a fisionomia da<br />

Igreja — eis a tese exposta por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na conferência que vimos<br />

reproduzindo em partes nesta seção. Para encerrá-la, comenta ele um<br />

texto célebre, repassado de beleza sobrenatural e literária, que bem exemplifica<br />

o pensamento latino: é o colóquio de Óstia, entre Santa Mônica e<br />

Santo Agostinho.<br />

D<br />

Durante a extraordinária<br />

conversa que manteve<br />

com seu filho, Santa Mônica<br />

externou seu desejo de partir o<br />

quanto antes para o Céu, pois já não<br />

via razão para permanecer por mais<br />

tempo nesta Terra. A Providência Divina<br />

não demorou em atender aos<br />

santos anseios dela, e pouco depois a<br />

levou para a eterna bem-aventurança.<br />

O próprio Santo Agostinho narra de<br />

modo esplêndido a morte e os funerais<br />

de sua mãe, e como continuou a<br />

existência dele, após o último adeus<br />

àquela que lhe alcançara a conversão.<br />

Numa janela, junto ao porto<br />

de Óstia<br />

Hoje, porém, gostaria de comentar<br />

apenas o trecho em que Santo Agostinho<br />

descreve o seu diálogo com Santa<br />

Mônica, em Óstia. Ao lê-lo, tem-se<br />

a impressão de que em certos momentos<br />

o texto se transforma em fita magnética,<br />

e como que se percebe a voz<br />

de Santo Agostinho ecoando através<br />

dessas páginas, de tal maneira são eloqüentes<br />

os movimentos de alma dele<br />

expressos nessas palavras que ele dirige<br />

a Deus. Vejamos.<br />

“Próximo já o dia em que ela ia sair<br />

desta vida — dia que Vós conhecíeis e<br />

nós ignorávamos — sucedeu, segundo<br />

creio, por disposição de vossos secretos<br />

desígnios, que nos encontrássemos sozinhos,<br />

ela e eu, apoiados a uma janela<br />

cuja vista dava para o jardim interior<br />

da casa onde morávamos. Era em Óstia,<br />

na foz do Tibre, onde, apartados da<br />

multidão, após o cansaço duma longa<br />

viagem, retemperávamos as forças para<br />

embarcarmos.”<br />

Creio não ser difícil sentir a cadência<br />

e a força de evocação extraordinária<br />

do texto. Temos a impressão de ver<br />

20


óstia<br />

o pequeno jardim para o qual dava a<br />

janela dessa casa, que devia ser uma<br />

hospedaria, e de ver Santo Agostinho<br />

e Santa Mônica olhando meio maquinalmente<br />

para as plantas e flores, sem<br />

prestar maior atenção nelas nem em<br />

outras coisas. E eles que começam a<br />

dialogar, numa conversa que logo se<br />

eleva a altos píncaros. Mas, já aqui vemos<br />

que ele não registra nenhum pormenor<br />

inútil. Nessa narração tudo está<br />

calculado como num mosaico ou<br />

num “puzzle”. Não há palavra supérflua.<br />

Ao mesmo tempo, porém, notase<br />

uma vida e um calor intensos na<br />

descrição dele. Por exemplo, este som:<br />

“Próximo já o dia em que ela ia sair<br />

desta vida”... É um modo fenomenal<br />

de iniciar o relato.<br />

Cumpre dizer que a ótima tradução<br />

portuguesa contribui para se aquilatar<br />

a beleza do texto. Veja-se o cantante<br />

da formulação, que não fala da tristeza<br />

da morte, mas toma antes o lado<br />

bonito da existência que findou: “sair<br />

desta vida”. É o aspecto luminoso da<br />

morte. Em seguida ele se volta para<br />

Deus e diz: “Dia que Vós conhecíeis e<br />

nós ignorávamos”. Esse dirigir-se ao<br />

Senhor parece uma oração, e que Deus<br />

está perto dele. Então, de repente nós<br />

sentimos a proximidade de Deus com<br />

ele e da nossa alma com Deus, através<br />

das palavras de Santo Agostinho.<br />

Ele termina o parêntese e continua:<br />

“Sucedeu, segundo creio, por disposição<br />

de vossos secretos desígnios...”<br />

Santo Agostinho já está se perguntando<br />

por que aconteceu de ele estar<br />

junto com a mãe, na janela. E dá a resposta:<br />

provavelmente foi Deus quem<br />

quis. Percebe-se o raciocínio latino<br />

nesse modo de conjecturar, indagando<br />

e estabelecendo os motivos para o<br />

que ocorreu. Continua: “... que nos en-<br />

21


O PENSAMENTO ILOSÓICO DE DR. PLINIO<br />

compreender a intimidade<br />

da cena. Mais uma<br />

vez, tudo tem sua razão<br />

de ser, nada é supérfluo.<br />

“Era em Óstia, na foz<br />

do Tibre”..., ou seja, o<br />

lugar augusto em que o<br />

Tibre evanesce dentro<br />

do mar, outro aspecto<br />

muito bonito da narrativa.<br />

“...onde, apartados<br />

da multidão” — sempre<br />

a idéia dos dois inteiramente<br />

sós, na intimidade<br />

— após o cansaço duma<br />

longa viagem, retemperávamos<br />

as forças para<br />

embarcarmos”. Quer dizer,<br />

a mãe e o filho estão<br />

propriamente na vida<br />

comesinha, na hospedaria,<br />

sem ter o que fazer<br />

e repousando. Mas o<br />

espírito, em altos vôos.<br />

Apóiam-se a uma janela<br />

e, nessa intimidade, para<br />

onde sobem as almas?<br />

Um diálogo filosóficoteológico<br />

à maneira latina<br />

“alávamos a sós”. Repare-se na insistência<br />

dele a respeito do isolamento<br />

em que se encontravam. O que ele<br />

faz de maneira literária, e não como<br />

um registro policial: “Estávamos sozinhos<br />

e ponto. Tome nota disso”. Não.<br />

Ele insiste várias vezes e aquilo vai<br />

penetrando no espírito de quem o lê.<br />

“alávamos a sós, muito docemente,<br />

esquecendo o passado e ocupando-nos<br />

do futuro. Na presença da Verdade, que<br />

sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida<br />

eterna dos santos, que nunca os olhos<br />

viram, nunca o ouvido ouviu, nem o<br />

coração do homem imaginou.”<br />

Eles, de fato, estão fazendo filosofia<br />

e teologia. Mãe e filho tratavam do<br />

futuro e se perguntavam como seria a<br />

vida dos santos na eternidade, na presença<br />

do Altíssimo, a Quem os olhos<br />

nunca viram, nunca os ouvidos ouviram<br />

e nunca o coração do homem imaginou<br />

como é. Eles se põem, então,<br />

um problema teológico-filosófico.<br />

Santa Mônica<br />

contrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados<br />

a uma janela”. A situação é linda,<br />

porque as janelas romanas não eram<br />

muito grandes, e naquela onde os<br />

dois se encontravam, não havia lugar<br />

para um terceiro. A moldura da janela<br />

quase que os isola do resto do mundo,<br />

e não cabe ninguém perto.<br />

“...cuja vista dava para o jardim interior<br />

da casa onde estávamos”. Devia<br />

ser uma casa romana antiga, com pátio<br />

interno, ajardinado, e onde não<br />

havia quase movimento. Esse detalhe<br />

indica como estavam sós, e nos faz<br />

Santo<br />

Agostinho<br />

22


“Sim, os lábios do nosso coração<br />

abriam-se ansiosos para a corrente celeste<br />

da vossa fonte, a fonte da Vida,<br />

que está em Vós, para que (ajudados)<br />

segundo a nossa capacidade, pudéssemos<br />

de algum modo pensar num assunto<br />

tão transcendente.”<br />

aço notar a beleza da expressão:<br />

“os lábios do nosso coração”, para indicar<br />

a vontade afetuosa do homem.<br />

Nesse diálogo, eles vão raciocinar e se<br />

elevar a subidas considerações, com<br />

verdadeiros vôos de Anjo. Eles percebem<br />

que o assunto é alto e mobilizam<br />

a capacidade de raciocínio deles, enfrentando<br />

juntos o tema. É a mãe, na<br />

despedida da vida, e o filho, num colóquio<br />

ultra-íntimo e amoroso. O que<br />

eles estão fazendo? ilosofia.<br />

“Encaminhamos a conversa até à<br />

conclusão de que as delícias dos sentidos<br />

do corpo, por maiores que sejam e<br />

por mais brilhante que seja o resplendor<br />

sensível que as cerca, não são dignas<br />

de comparar-se à felicidade daquela<br />

vida, nem merecem que delas se faça<br />

menção.”<br />

Quer dizer, tudo que existe neste<br />

mundo não é nada. E ele, na sua descrição,<br />

já deixou a Terra aqui embaixo<br />

e está pensando pura e exclusivamente<br />

no Céu. Santo Agostinho agora<br />

começa a voar. aço notar como isto é<br />

um tratado: mãe e filho estão na janela,<br />

da qual o espírito deles se eleva<br />

a um píncaro acima de tudo quanto é<br />

terreno, considerando como as coisas<br />

temporais não têm nenhum valor em<br />

comparação com as da beatitude eterna.<br />

Iniciam, então, a outra parte de sua<br />

viagem filosófico-teológica. É um itinerário<br />

racionalmente calculado. Mas,<br />

com que sabor! Ele continua:<br />

“Elevando-nos em afetos mais ardentes<br />

por essa felicidade, divagamos gradualmente<br />

por todas as coisas corporais,<br />

até ao próprio céu, donde o sol, a<br />

lua e as estrelas iluminam a terra. Subimos<br />

ainda mais em espírito, meditando,<br />

falando e admirando as vossas obras.”<br />

Podemos imaginar a cena em que<br />

os dois faziam juntos essa contemplação:<br />

“Olha como o sol, a lua e as estrelas<br />

são bonitos, porém não nos satisfazem”.<br />

É propriamente uma meditação<br />

escolástica a respeito das criaturas<br />

que refletem a Deus, mas de modo<br />

insuficiente, sem darem inteira satisfação<br />

à alma. Esse é um discurso filosófico-teológico,<br />

feito de mãe para<br />

filho e de filho para mãe, numa janela<br />

de um albergue, diante de um acanhado<br />

jardim, no momento em que os<br />

dias dela já estavam contados e muito<br />

próxima a sua partida para o Céu. É<br />

maravilhoso!<br />

“Chegamos às nossas almas e passamos<br />

por elas para atingir essa região<br />

de inesgotável abundância, onde apascentais<br />

eternamente Israel com o nutrimento<br />

da verdade. Ali a vida é a própria<br />

Sabedoria, por quem tudo foi criado,<br />

tudo o que existiu e o que há de existir,<br />

sem que Ela própria se crie a si mesma,<br />

pois existe como sempre foi e sempre<br />

será.”<br />

Eles analisaram todas as criaturas<br />

terrenas e concluíram: não nos bastam.<br />

Depois analisaram a alma humana<br />

e disseram: também não basta. A<br />

partir daí ascenderam até o lugar que<br />

eles não conheciam, mas que era a<br />

pradaria onde as almas imortais —<br />

“Israel” simboliza isso — as eleitas, as<br />

preferidas são apascentadas pelo Eterno<br />

Pastor. Então eles ficaram contentes.<br />

Uma vez mais, importa considerar<br />

como é metódico esse itinerário de raciocínio,<br />

um autêntico curso de filosofia<br />

pré-São Tomás de Aquino, no vôo<br />

das doçuras e da genialidade. Tudo é<br />

bem ordenado, numa atmosfera diferente<br />

daquela de São Charbel Makhlouf,<br />

do catolicismo, dos ritos litúrgicos<br />

e da hieraticidade dos santos do<br />

Oriente. É um outro estilo, outra forma<br />

de beleza da Igreja luzindo através<br />

dos vitrais da alma do povo latino.<br />

Mãe e filho vivem seu<br />

primeiro instante de Céu<br />

O colóquio de Óstia chega ao seu<br />

termo, e Santo Agostinho, mais à frente,<br />

prossegue sua narrativa:<br />

“Enquanto assim falávamos, anelantes<br />

pela Sabedoria, atingimo-la momentaneamente<br />

num ímpeto completo do<br />

nosso coração.”<br />

É um modo discreto de dizer que<br />

Deus apareceu a eles. No momento<br />

em que conversavam e subiam de indagação<br />

em indagação, naquele instante<br />

em que eles estavam com a meditação<br />

racional inteiramente feita,<br />

cai sobre a flor ordenada, perfumada<br />

e aberta da alma de cada um deles a<br />

gota de orvalho do Céu: é Deus que<br />

se mostra a eles. Percebe-se como Nosso<br />

Senhor se comprouve com o raciocínio<br />

deles, auxiliou-os a atingir esse<br />

auge de meditação e, quando aí chegaram,<br />

mostrou-Se a eles. Compreende-se,<br />

por outro lado, como Deus ama<br />

a quem raciocina de maneira virtuosa<br />

e a quem procura metodicamente a<br />

verdade.<br />

“Suspiramos e deixamos lá agarradas<br />

as primícias de nosso espírito.”<br />

Quer dizer, eram os primeiros frutos<br />

de suas almas e de suas inocências,<br />

um primeiro presente que recebiam<br />

de Deus, e um primeiro instante<br />

de Céu que viveram juntos, e ali deixaram<br />

presos seus espíritos. Mãe e filho<br />

nunca mais se esqueceriam daquela<br />

hora, sendo que Santa Mônica<br />

em breve passaria a desfrutar eternamente<br />

das maravilhas que anteviram.<br />

“Voltamos ao vão ruído dos nossos<br />

lábios, onde a palavra começa e acaba.<br />

Como poderá esta, meu Deus, comparar-se<br />

ao vosso Verbo que subsiste por si<br />

mesmo, nunca envelhece e tudo renova?”<br />

É uma referência a Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, Verbo de Deus Encarnado.<br />

Ele é a a palavra eterna que Deus<br />

diz a respeito de si próprio. Enquanto<br />

a palavra do homem é “um ruído<br />

vão”, porque começa e acaba, sai do<br />

silêncio e volta ao silêncio, o Verbo de<br />

Deus existe e existirá por toda a eternidade.<br />

Que diferença entre essa palavra<br />

de Deus que eles perceberam<br />

num êxtase e essas palavras vazias que<br />

nós pronunciamos! As nossas passam,<br />

a de Deus permanece. É eterna e renova<br />

tudo quanto existe. Santo Agostinho<br />

e Santa Mônica o compreenderam,<br />

numa visão.<br />

“Ainda que isso dizíamos, não pelo<br />

mesmo modo e por essas palavras, contudo<br />

bem sabeis, Senhor, quanto o mun-<br />

23


O PENSAMENTO ILOSÓICO DE DR. PLINIO<br />

do e seus prazeres nos pareciam vis naquele<br />

dia, quando assim conversávamos.”<br />

Os desejos de Santa Mônica<br />

postos na eternidade<br />

Em seguida, Santa Mônica faz entender<br />

que ela vai morrer:<br />

“Minha mãe então me disse: Meu filho,<br />

quanto a mim, já nenhuma coisa me<br />

dá gosto nesta vida. Não sei o que faço<br />

ainda aqui, nem por que cá esteja, evanescidas<br />

já as esperanças deste mundo.”<br />

Depois do que ela contemplou,<br />

não tinha mais razão nenhuma para<br />

estar no mundo. Nem Santo Agostinho.<br />

Ou seja, ela viu tão alto em Deus<br />

que nem a companhia do filho, santo,<br />

por cuja conversão ela tinha chorado<br />

trinta anos, não a retinha mais nesta<br />

Terra. E ela queria ir para o Céu.<br />

Alguém poderia indagar: “Não é<br />

um pouco duro esse desejo de partir?”<br />

Não me parece, uma vez que ela,<br />

no Céu, estaria mais próxima de Santo<br />

Agostinho do que na Terra, porque<br />

se acharia perto de Deus, que é, por<br />

assim dizer, a “raiz” de Santo Agostinho.<br />

De fato, todos os que vão para a<br />

eterna bem-aventurança se encontram<br />

mais próximos dos que estão neste<br />

mundo do que se aqui ainda vivessem.<br />

Esta é uma verdade lindíssima, da qual<br />

não podemos nos esquecer. Santa<br />

Mônica continua:<br />

“Por um só motivo desejava prolongar<br />

um pouco mais a vida: para ver-te<br />

católico antes de morrer. Deus concedeu-me<br />

esta graça superabundantemente,<br />

pois vejo que já desprezas a felicidade<br />

terrena para servirdes ao Senhor.<br />

Que faço eu, pois, aqui?”<br />

Note-se como ela punha a fé católica<br />

acima de tudo. O pensamento dela<br />

era este: “Meu filho se converteu<br />

e tornou-se um bom católico. Portanto,<br />

posso morrer em paz. O resto não<br />

me interessa”. Dias depois ela morreu...<br />

E aqui também termina a nossa exposição.<br />

v<br />

“Já nenhuma coisa me dá gosto nesta vida; não sei o que faço ainda aqui...” (A morte de Santa Mônica, por Gozzoli)<br />

24


ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Apostolado<br />

e espírito interior


ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

M<br />

estre de noviços da Ordem Terceira do Carmo, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> buscava estimular seus<br />

dirigidos a procurar as riquezas de alma obtidas pela meditação, a contemplação<br />

e a vida interior, apanágio dos filhos de Santo Elias. Ei-lo tratando deste<br />

tema numa conferência em 1952.<br />

No que consiste propriamente esta meditação,<br />

este espírito interior?<br />

A civilização contemporânea, por força da vida<br />

trepidante que impõe, dos meios de diversão excitantes<br />

que criou — como a imprensa sensacionalista, o rádio, a<br />

televisão — mantém o homem numa perpétua agitação e<br />

fixa constantemente sua atenção sobre fatos novos, não<br />

raras vezes sensacionais, de uma atualidade candente, logo<br />

depois substituídos por outros fatos, e ainda por outros,<br />

numa sucessão atordoadora.<br />

Habituado a ocupar-se por esta forma, o homem contemporâneo<br />

sofre freqüentemente de uma superexcitação dos<br />

sentidos e da imaginação, e de uma atrofia da razão. Molesta-o<br />

fixar longamente a atenção sobre um mesmo objeto.<br />

A reflexão calma, lúcida, prolongada, parece-lhe fastidiosa.<br />

É que fixar a atenção, refletir, são operações que implicam<br />

na primazia da inteligência sobre os sentidos. E nós<br />

vivemos do contrário: do domínio dos sentidos sobre a inteligência.<br />

Por dissipação, entendem os autores espirituais precisamente<br />

este defeito. A alma considera constantemente o<br />

mundo, e nunca entra em si mesma, nunca analisa seu próprio<br />

interior. Considerando o mundo exterior, ela o faz de<br />

modo superficial, contentando-se apenas com as aparências,<br />

e não penetrando jamais na realidade profunda das coisas,<br />

e nem remontando delas para um plano de cogitações<br />

mais elevado.<br />

O espírito interior, o hábito da meditação consiste exatamente<br />

no contrário. O homem é capaz de isolar-se, de<br />

privar seus sentidos da embriaguez contínua das impressões,<br />

das sensações, das vibrações, de desviar, enfim, sua<br />

atenção do que é externo, passageiro, superficial, para isolar-se<br />

na calma de algum recanto e pensar. Pensar para<br />

analisar, para aprofundar, para conhecer melhor a realidade<br />

que se lhe apresenta aos olhos na vida corrente. Pensar<br />

para analisar o que ocorre no interior de si mesmo.<br />

Pensar, sobretudo, para se elevar do plano do contingente,<br />

do transitório, do sensível, para as esferas mais altas do estudo<br />

da natureza e das causas dos seres.<br />

Esta operação, sem dúvida, é penosa. Pois ela significa<br />

muitas vezes uma verdadeira violência contra os hábitos<br />

que o mundo atual cria em nós. Mas, se é verdade que o<br />

homem é uma criatura racional, não se pode negar que é<br />

por meio desta operação que nos tornamos plenamente<br />

homens, no sentido mais nobre da palavra, pois por ela<br />

desenvolvemos e firmamos o domínio do mais digno, isto<br />

é, da razão.<br />

Até aqui, a meditação foi considerada do ponto de vista<br />

preponderantemente natural. Meditações como esta, fazem-na<br />

todos os que na vida, a qualquer título, se tornaram<br />

grandes. Pois sem pensar o homem nada pode produzir<br />

que tenha valor.<br />

Mas cumpre falar da meditação especificamente<br />

religiosa, como no-la apresenta a Santa Igreja. Esta meditação<br />

tem um fim bem definido: considerar as verdades<br />

cujo conjunto constitui a doutrina católica, e ver todas as<br />

coisas, isto é, a si mesmo e ao mundo exterior com ordem<br />

a essas verdades.<br />

Esta meditação, o homem a faz para conhecer, amar,<br />

louvar e servir a Deus, e salvar sua própria alma. É um ato<br />

de amor sobrenatural a Deus Nosso Senhor e, por isso,<br />

não pode ser feita sem a graça divina.<br />

Sabemos que, sem auxílio sobrenatural de Deus, não<br />

somos sequer capazes de proferir piedosamente o nome<br />

de Jesus. Toda a vida espiritual depende da graça de Deus<br />

e da colaboração da vontade humana. Ora, na meditação<br />

é Deus que, pela graça, vai esclarecendo a inteligência e<br />

dando vigor à vontade para o conhecimento e a prática do<br />

bem. É, pois, um ato de intimidade da alma com o Divino<br />

26


O homem<br />

moderno padece<br />

freqüentemente de<br />

uma superexcitação<br />

que o distancia da<br />

reflexão, da<br />

meditação e da vida<br />

interior,de que<br />

transbordam as almas<br />

cheias de virtude e de<br />

amor a Deus, como<br />

Santa Teresinha do<br />

Menino Jesus<br />

Espírito Santo. É algo que transcende em toda a linha a<br />

simples meditação natural, e eleva a meditação sobrenatural<br />

à categoria de um dos atos mais augustos da vida humana.<br />

Esta meditação — di-lo expressamente Nosso Senhor<br />

— não é privativa dos homens de ciência. Cada qual pode<br />

e deve fazê-la na medida de suas forças. E a história dos<br />

Santos prova que muitas vezes as meditações mais profundas<br />

foram feitas por pessoas muito ignorantes no sentido<br />

humano da palavra, mas cheias de virtude e de amor de<br />

Deus.<br />

De outro lado, é a esta meditação que Nosso<br />

Senhor fez a mais magnífica das promessas:<br />

“Medita nos teus novíssimos e não pecarás<br />

eternamente”. A salvação eterna está, para<br />

nós, condicionada à meditação.<br />

Não basta, porém, meditar diariamente,<br />

em hora certa. É preciso ter o espírito<br />

de meditação. Ou seja, é necessário<br />

que durante o dia, rapidamente, e<br />

sobretudo freqüentemente, saibamos<br />

dar um lance de olhos nas verdades que<br />

meditamos, e um ato de amor ao bem<br />

que estas verdades encerram. Em sua<br />

perfeição, o espírito de meditação deve<br />

levar o homem a ter como que uma segunda<br />

atenção voltada para os assuntos<br />

que constituem o tema de suas meditações,<br />

de sorte que, entregando-se embora<br />

corretamente a todos os afazeres da vida<br />

corrente, possa entretanto, a todo momento,<br />

julgar os fatos segundo a doutrina da Igreja, e<br />

proceder em conformidade com a Lei de Deus.<br />

Quando isto se transforma no homem em uma segunda<br />

natureza, pode-se dizer que tem verdadeiramente<br />

espírito de meditação.<br />

É bem evidente que, com aplicação, e sobretudo com o<br />

auxílio da graça, se consegue para pessoas vivendo no século<br />

esse espírito interior. (...)<br />

E o apostolado? Não se diria que a meditação inutiliza<br />

o homem para a ação? Não é freqüente ver pessoas que rezam<br />

muito, e não lutam para a Igreja? O que é melhor: rezar<br />

ou agir?<br />

A pergunta equivaleria, no terreno espiritual, a esta outra<br />

no terreno material: o que deve fazer o homem, comer<br />

ou beber? Evidentemente, é preciso comer e beber, rezar e<br />

agir.<br />

A meditação bem feita traz por força o espírito de apostolado.<br />

E se alguém medita e não é apóstolo — fala-se evidentemente<br />

de pessoas que vivem no século e não em uma<br />

vida puramente contemplativa — é porque medita mal. E<br />

os próprios contemplativos não escapam a esta regra. Pois<br />

fazem apostolado, e do melhor. E se um contemplativo<br />

não tem zelo pela salvação das almas, pode-se dizer que<br />

sua contemplação é mal feita.<br />

Meditar é exercitar-se no amor a Deus e ao próximo.<br />

Como pode alguém ter esse amor e ser indiferente a que a<br />

glória de Deus seja conspurcada a todo momento pelo pecado,<br />

e a todo instante as almas exponham a sua salvação?<br />

Na realidade, ser apóstolo supõe, antes de tudo e acima<br />

de tudo, meditação. Pois um apostolado sem amor de Deus<br />

e amor do próximo não tem sentido, não tem consistência,<br />

é mera agitação.<br />

(Extraído do “Mensageiro do Carmelo”,<br />

novembro-dezembro de 1952.)<br />

27


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Reminiscências<br />

de advogado<br />

P<br />

or certo guarda o leitor viva lembrança<br />

da série de artigos em que acompanhamos<br />

uma das atraentes facetas da gesta<br />

marial de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, qual seja a sua influente e<br />

bem-sucedida carreira advocatícia. Tivemos o ensejo<br />

de conhecer como ele organizou seu primeiro<br />

escritório, onde conquistou escolhida clientela entre<br />

as Ordens religiosas de São Paulo, além da<br />

própria Cúria Metropolitana.<br />

Na conferência abaixo transcrita, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

novamente evoca alguns episódios e circunstâncias<br />

que marcaram de modo especial aqueles tempos<br />

de sua vida profissional.<br />

Acima, vista da Praça do Patriarca, no centro antigo<br />

de São Paulo, em cujas imediações <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

instalou seu renomado escritório de advocacia<br />

Como já tive oportunidade de<br />

dizer, tinha eu um escritório de<br />

advocacia praticamente especializado<br />

em causas de instituições eclesiásticas,<br />

constituindo minha clientela<br />

as melhores ordens religiosas de São<br />

Paulo. A par destas, advogava também<br />

para algumas famílias tradicionais<br />

paulistas, o que muito contribuía<br />

— pelo favor de Nossa Senhora —<br />

para o renome e o êxito de meu estabelecimento.<br />

Houve episódios pitorescos por onde,<br />

de ponto em ponto, esses grandes<br />

clientes vieram ter aos meus cuidados<br />

advocatícios. Assim, como já lhes narrei,<br />

apareceu a Cúria Metropolitana,<br />

com o Arcebispo D. Duarte assinando<br />

nosso contrato numa praia de São<br />

Vicente. Em seguida veio a Ordem<br />

Beneditina, com seus monges-procuradores,<br />

D. Desidério e D. Aidano,<br />

dois alemães de boa presença e inteligência<br />

privilegiada, amantes de longas<br />

e elevadas conversas. Por fim, a<br />

Ordem dos Carmelitas, uma dádiva<br />

inesperada que me foi oferecida pelo<br />

desembargador Primitivo de Castro<br />

Sete, um velho amigo de meu tio-avô,<br />

o Conselheiro João Alfredo. Importantes<br />

patrimônios que, de modos imprevistos,<br />

entraram para a minha gestão,<br />

tornando bastante movimentado<br />

e rendoso o meu escritório.<br />

Na volta do trabalho, o<br />

repouso junto a Dª Lucilia<br />

Rendoso e movimentado, sim, mas<br />

igualmente semeado de complicações<br />

e aborrecimentos. Somavam-se a estes<br />

28


os trabalhos e preocupações de minha<br />

presidência na Ação Católica de São<br />

Paulo, cuja sede se encontrava no mesmo<br />

andar que o meu escritório. Resultado,<br />

no fim do dia eu chegava em<br />

casa muito cansado, porque já havia<br />

dado aulas pela manhã, e ainda passava<br />

a tarde enfronhado nas questões<br />

jurídicas e nos cuidados da causa católica.<br />

Um cansaço, é preciso dizer,<br />

mais psicológico do que propriamente<br />

físico.<br />

Por isso mesmo, tão logo eu entrava<br />

em casa e sentia a atmosfera do lar<br />

preenchido pela suave e atraente presença<br />

de Dª Lucilia, meu espírito sentia<br />

um grande refrigério. Em geral eu<br />

a encontrava sentada na cadeira de<br />

balanço que ficava na minha sala de<br />

trabalho, o mais das vezes rezando e<br />

desfiando seu rosário. Só o fato de estar<br />

junto a ela já me tranqüilizava, e o<br />

melhor do meu descanso consistia em<br />

me deixar ficar duas ou três horas ali,<br />

na companhia de mamãe. Era uma<br />

ação, digamos, repousante imediata.<br />

oi igualmente Dª Lucilia a afetuosa<br />

protagonista de uma cena que sempre<br />

se repetia no meu quotidiano de<br />

advogado. Quando eu saía para o escritório,<br />

após o almoço, ela me acompanhava<br />

até a porta do elevador do<br />

prédio em que morávamos. Um elevador<br />

antigo e muito vagaroso para<br />

quem, como eu, com freqüência estava<br />

atrasado. Na pressa, impacientavame,<br />

dava um beijo em mamãe e descia<br />

correndo as escadas. Então, enquanto<br />

eu vencia os degraus, ouvia a<br />

voz dela que me dizia lá de cima: “ilhão,<br />

cuidado com o corre-corre!”<br />

Era um último sinal de carinho...<br />

recentes, um pouco de história, de filosofia,<br />

de teologia, etc. E como eu<br />

tinha o primeiro escritório de advocacia<br />

eclesiástica de São Paulo, o maior,<br />

com as principais ordens religiosas,<br />

sabia abordar os assuntos de religião<br />

com eles, e tudo isso lhes agradava.<br />

Não raras vezes as conversas duravam<br />

duas ou três horas, com padres<br />

e com leigos das mais variadas nacionalidades<br />

— holandeses, alemães,<br />

italianos, um ou outro brasileiro, etc.<br />

—, que enchiam a minha sala. Desse<br />

modo eu ia fazendo deles amigos que<br />

adquiriam confiança na minha visão<br />

geral das coisas e a certeza de que, na<br />

hora “h”, o advogado deles apresentaria<br />

a matéria de suas causas com inteira<br />

consciência. E, graças a Deus, eu<br />

era muito responsável, tinha pleno<br />

conhecimento dos assuntos postos aos<br />

meus cuidados, ganhava as disputas<br />

para eles e deixava-os contentes com<br />

meu serviço.<br />

“Sou naturalmente<br />

cerimonioso”<br />

Vem a propósito recordar aqui um<br />

episódio pitoresco que se deu com um<br />

desses clientes que freqüentavam meu<br />

escritório para, a pretexto dos negócios,<br />

demorar-se em conversas com o<br />

advogado dele. Este senhor, homem<br />

de posses consideráveis e de boa índole,<br />

era o pai de um colega meu de<br />

Congregação Mariana, e nossas famílias<br />

já se relacionavam há algum tempo.<br />

Eu sempre retribuía essa cordialidade,<br />

recebendo-o do melhor<br />

modo possível no meu local de trabalho.<br />

Certa tarde, porém, durante a famosa<br />

prosinha, ele me disse:<br />

Prosas e contatos no<br />

movimentado escritório<br />

No escritório, a partir de mais ou<br />

menos seis horas da tarde, tinha início<br />

o meu trabalho pessoal. Era quando<br />

apareciam alguns dos meus bons clientes,<br />

os quais sabiam que ali me encontrariam,<br />

e vinham mais para conversar<br />

do que para fazer consultas. Tratávamos<br />

sobre vários fatos, acontecimentos<br />

religiosos, políticos ou culturais<br />

“Meu descanso consistia em me deixar ficar na companhia de mamãe.”<br />

29


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

— <strong>Plinio</strong>, nós nos damos muito e<br />

somos tão amigos, apesar da diferença<br />

de gerações (ele, naturalmente, era<br />

bem mais velho), mas uma coisa eu<br />

noto: você não é natural comigo. Eu<br />

gostaria que você fosse inteiramente<br />

natural comigo.<br />

Surpreso, perguntei-lhe com amabilidade:<br />

— Mas, Sr. ulano, o que o senhor<br />

entende por ser natural?<br />

Ele definiu:<br />

— Assim, mais sem cerimônia...<br />

Eu intervim, também muito cortesmente:<br />

— Sr. ulano, vamos cortar a prosa.<br />

Eu sou naturalmente cerimonioso.<br />

O senhor quer me conhecer na minha<br />

naturalidade? A minha naturalidade<br />

é cerimoniosa. E se eu tiver com o senhor<br />

um trato sem cerimônia, estarei<br />

sendo artificial.<br />

Ele deu risada, e nosso trato continuou<br />

muito cordial até ele morrer.<br />

Aliás, tenho a certeza de que esta cerimônia<br />

no nosso relacionamento aumentou<br />

a confiança que ele tinha em<br />

mim, como advogado.<br />

<strong>Dr</strong>. Gabriel Monteiro da Silva<br />

A estampa que acompanhou<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em sua vida<br />

profissional<br />

Entre as recordações dos meus tempos<br />

de advocacia, algumas sobressaem<br />

pela importância do objeto a que estão<br />

relacionadas. Quero me referir à<br />

estampa do Imaculado Coração de<br />

Maria que adquiri num momento em<br />

que dispunha de poucos recursos e,<br />

portanto, não podia comprar coisa<br />

melhor (foto p. 31). Mas, por modesta<br />

que fosse, pareceu-me especialmente<br />

piedosa, exprimindo de modo tocante<br />

o insondável afeto de Mãe, a bondade,<br />

a misericórdia, a pureza e todas<br />

as excelsas virtudes que Nossa Senhora<br />

possui num grau inconcebível por<br />

nós.<br />

É um quadro que A representa no<br />

seu resplendor, tendo atrás de si uma<br />

série de luzes que fulguram como que<br />

emanadas d’Ela, constituindo uma espécie<br />

de auréola em torno de sua cabeça.<br />

E Ela se apresenta segurando o<br />

coração com a mão, como se este houvesse<br />

rompido o peito para<br />

se mostrar aparente aos homens<br />

e oferecido pela Santíssima<br />

Virgem: “Ele é vosso;<br />

dou, se me pedirdes”.<br />

Portanto, é um convite à<br />

prece, à súplica ao Imaculado<br />

Coração d’Ela, feito por<br />

Ela mesma: “Sede devotos<br />

do meu Imaculado Coração<br />

e recebereis graças incontáveis.”<br />

É uma estampa que representa<br />

Nossa Senhora<br />

cheia de personalidade, afirmativa,<br />

forte e declarada,<br />

aspectos estes que me agradaram<br />

e me fizeram decidir<br />

pela compra. Mandei guarnecê-la<br />

de moldura, e ela<br />

me acompanhou misericordiosamente<br />

em quase toda<br />

a minha vida de profissional:<br />

nos problemas, nas dificuldades,<br />

nos êxitos, enfim,<br />

em todos os altos e baixos<br />

de meus trabalhos como advogado.<br />

Eu olhei para essa imagem<br />

várias vezes em momentos de aflição,<br />

olhei também em momentos de piedade,<br />

como olhei em momentos de<br />

intensa alegria. E nos dois melhores<br />

escritórios que tive, ela esteve sempre<br />

atrás de mim, como que presidindo a<br />

tudo o que neles se passava.<br />

O primeiro desses estabelecimentos<br />

situava-se na rua Quintino Bocaiuva,<br />

num dos prédios mais conceituados<br />

de São Paulo naquele tempo. Infelizmente,<br />

por motivos de má administração,<br />

esse conceito decaiu muito<br />

e o lugar se degradou a tal ponto que<br />

resolvi me transferir para outro edifício,<br />

na rua do Tesouro esquina com a<br />

rua 15 de Novembro. Um prédio de<br />

qualidade e categoria muito superiores,<br />

onde, com a ajuda de Nossa Senhora,<br />

me foi possível alugar duas salas<br />

bem amplas, em que nos instalamos,<br />

meu sócio e eu. Erigimos uma capelinha<br />

para uso comum dos dois escritórios,<br />

e o quadro do Imaculado Coração<br />

de Maria passou a presidir, ali também,<br />

nossos trabalhos e nosso apostolado.<br />

Um encontro providencial<br />

Quais foram os fatos que se deram<br />

nesse escritório e que mais marcantemente<br />

me vêm à lembrança, quando revejo<br />

essa imagem de Nossa Senhora?<br />

Um desses episódios foi, na aparência,<br />

muito insignificante. No mesmo<br />

andar em que eu estava havia um<br />

outro advogado, mais velho que eu,<br />

porém ainda moço, muito vivo, amável,<br />

e que certa vez externou seu desejo<br />

de falar comigo. Nós nos conhecíamos<br />

apenas pela proximidade dos escritórios<br />

e por fugazes cumprimentos<br />

de estilo, mas nunca nos tínhamos apresentado<br />

um ao outro.<br />

Ele entrou, nos saudamos, declinei<br />

o meu nome e ele o seu: chamava-se<br />

Gabriel Monteiro da Silva. Sentamonos<br />

e a primeira coisa que ele fez foi<br />

prorromper em elogios ao quadro do<br />

Imaculado Coração de Maria. Estava<br />

entusiasmado com a beleza e a unção<br />

da imagem. Em seguida, tratamos de<br />

qualquer assunto sem importância, e<br />

a conversa correu de maneira muito<br />

30


cordial, como costuma ser entre colegas.<br />

Pouco depois vieram as eleições<br />

para a presidência da República, sendo<br />

eleito o Dutra. Para minha surpresa,<br />

o Gabriel Monteiro da Silva foi nomeado<br />

Chefe da Casa Civil do novo<br />

presidente. Surpresa, pois nunca imaginei<br />

que ele subisse assim como um<br />

rojão, de um momento para outro.<br />

O fato é que, precisamente nessa<br />

ocasião, necessitei de um favor dele<br />

em algo que, para mim, se revestia de<br />

não pequena importância. Dirigi-me<br />

ao Rio de Janeiro, então capital federal,<br />

e solicitei uma audiência a ele.<br />

Recebeu-me imediatamente e atendeu<br />

sem delongas ao meu pedido. Tudo<br />

transcorreu com a maior facilidade,<br />

resultado daquele primeiro encontro<br />

que tivemos sob as vistas do quadro<br />

do Imaculado Coração de Maria...<br />

Alguns meses depois, abro o jornal<br />

e vejo a notícia de que ele morrera<br />

num desastre de automóvel. E eu pensei,<br />

com profundo reconhecimento,<br />

que Nossa Senhora havia disposto a<br />

breve presença desse homem em minha<br />

vida, para que ele elogiasse o quadro<br />

d’Ela e me auxiliasse decisivamente<br />

num assunto de imensa importância.<br />

Sempre serei grato a ele por isso,<br />

e até hoje me lembro desse fato com<br />

boas recordações para ele. Rogo à<br />

Santíssima Virgem que o tenha consigo<br />

na paz eterna.<br />

E aqui ficam mais algumas reminiscências<br />

dos meus tempos de advocacia,<br />

que se prolongaram por muitos<br />

anos até inícios da década de 60, quando<br />

passei a me dedicar exclusivamente<br />

aos interesses da causa católica. v<br />

31


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

ortaleza<br />

e Temperança<br />

Sob as luzes douradas de um<br />

entardecer em Paris,<br />

Le Pont Neuf ostenta seus<br />

vigorosos arcos acima<br />

das tranqüilas águas do rio Sena


D<br />

Dir-se-ia mais um dos atraentes aspectos da<br />

Europa de antigos tempos. Mais uma ponte,<br />

bonita como tantas outras que por lá construiu<br />

o engenho humano. Comum, portanto, para os padrões<br />

do Velho Continente.<br />

Porém, Le Pont Neuf (a Ponte Nova), que transpõe o poético<br />

rio Sena na capital francesa, poderia dar acesso a um<br />

faustoso castelo. Porque, apesar de erigida com uma pedra<br />

tão banal como é o granito, suas linhas e seu traçado artístico<br />

lhe conferem uma grandeza que a torna venerável.<br />

Extremamente larga, ela se estende sobre arcos ladeados<br />

por grossas colunas, além dos sustentáculos em forma<br />

de braços que concorrem para ampará-la na sua longa arquitetura.<br />

Os arcos se repetem com uma seriedade e distinção<br />

completas. São dignos, sisudos, pesados e muito profundos,<br />

como que compenetrados da grave missão de esco-


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Verhille/Maison de la rance<br />

rar ponte tão extensa e vigorosa. Vigor e extensão que, a<br />

quem passa de barco sob ela, dão a impressão de se estar<br />

atravessando a espessa muralha de um castelo mítico.<br />

Nela não se vê nenhum brilhante, nenhuma safira. Raros<br />

enfeites. oi construída com parcos recursos financeiros.<br />

Pouco dinheiro entrou na sua edificação. O que entrou,<br />

pois? A arte. Mas, arte em que sentido? Alma. E alma<br />

em que sentido? Notam-se ali restos da seriedade austera,<br />

firme e forte da Idade Média.<br />

Por que firmeza e força?<br />

Simplesmente porque a ponte enfrenta uma série de obstáculos.<br />

Em geral, ela se ergue sobre um fundo de leito viscoso,<br />

e precisa deitar as garras por baixo do lodo, no terreno<br />

firme, a fim de possuir solidez. Por outro lado, carrega<br />

um peso muito grande: o da sua longa plataforma,<br />

acrescido do fardo que representam tudo e todos que sobre<br />

ela passam. Ela tem de ser tal que, se a imaginarmos<br />

repleta de gente ou de veículos numa hora de trânsito<br />

muito obstruído, isto não lhe traga o menor problema. Le<br />

Pont Neuf os sustenta com seriedade e indiferença.<br />

Ora, a seriedade indiferente a obstáculos, que agarra as<br />

dificuldades, empunhando-as e impondo-se a elas, é o próprio<br />

aspecto da alma católica dotada da virtude da fortaleza.<br />

De outra parte, a regularidade dos arcos e das linhas<br />

da Pont Neuf nos fala de temperança, a qual é regular em<br />

tudo. Assim, nesse lindo monumento da Cidade Luz, vemos<br />

simbolizadas de modo magnífico duas virtudes cardeais.<br />

Há, portanto, uma beleza moral por detrás dessa ponte.<br />

Há a formosura da alma humana e o pulcro do sobrenatural.<br />

v<br />

<strong>34</strong>


Seriedade indiferente a obstáculos, que agarra<br />

as dificuldades, impondo-se a elas: Le Pont Neuf nos fala<br />

da fortaleza e da temperança cristãs


Incansável amparo materno<br />

Nossa Senhora do Amparo, venerada<br />

em Sevilha (Espanha)<br />

O indivíduo mais desamparado<br />

não é aquele a quem<br />

falta algo, mas é sobretudo<br />

o que recorre em vão a todos<br />

os meios humanos para<br />

obter o que necessita. Aquele<br />

que se vê imerso numa<br />

grave dificuldade, na qual<br />

sua vida inteira está<br />

empenhada, e não encontra<br />

sustentáculo, arrimo ou<br />

apoio terreno algum.<br />

Nossa Senhora do Amparo<br />

é precisamente Aquela que<br />

tem particular pena dos que<br />

se acham desamparados, seja<br />

do ponto de vista espiritual,<br />

seja do ponto de vista material.<br />

Ela, cheia do especial<br />

desvelo que têm as mães para<br />

com os filhos necessitados,<br />

opera maravilhas para<br />

ajudá-los. N’Ela encontram<br />

eles o sustentáculo, o apoio e<br />

o arrimo que procuram.<br />

Nossa Senhora do Amparo<br />

é, pois, Nossa Senhora de todas<br />

as solicitudes, é Nossa<br />

Senhora de todas as compaixões,<br />

é Nossa Senhora de<br />

todos os instantes em que o<br />

homem precisa de algo<br />

e a Ela recorre.

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