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Revista Dr Plinio 35

Fevereiro de 2001

Fevereiro de 2001

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O que é<br />

a felicidade?


Eu procurei a Grandeza como a luz de<br />

meus olhos e amei-a em toda a medida em que<br />

devia ser amada, em todas as pontas de<br />

caminho em que a conheci! Ou seja, procurei<br />

adorar a Deus sobre todas as coisas e deixeime<br />

entranhar, até o fundo de minha alma,<br />

pela Santa Igreja Católica Apostólica<br />

Romana, a maior expressão da grandeza<br />

de Deus nesta Terra.<br />

<strong>Plinio</strong> Corrêa de Oliveira


Sumário<br />

Na capa, o “Anjo do<br />

Sorriso” (pórtico da<br />

Catedral de Reims,<br />

rança), eloqüente<br />

símbolo da autêntica<br />

felicidade cristã<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues erreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6971-1027<br />

otolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

033<strong>35</strong>-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />

Preços da assinatura anual<br />

evereiro de 2001<br />

Comum . . . . . . . . . . . . . . R$ 60,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . R$ 90,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 180,00<br />

Grande Propulsor . . . . . . R$ 300,00<br />

Exemplar avulso . . . . . . . R$ 6,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./ax: (11) 6971-1027<br />

4<br />

5<br />

6<br />

10<br />

12<br />

18<br />

24<br />

28<br />

32<br />

EDITORIAL<br />

Onde encontrar a felicidade?<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

No tempo do carnaval<br />

em família<br />

ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Religiosidade e coragem<br />

valores inseparáveis<br />

DENÚNCIA PROÉTICA<br />

E o mendigo tem razão...<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

A verdadeira felicidade<br />

PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

Uma era de fé, heroísmo e sabedoria<br />

DONA LUCILIA<br />

Magnífico equilíbrio<br />

entre cermônia e intimidade<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Grandezas e pulcritudes da dor<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

“Porta do Céu, abri-vos para mim!”<br />

3


Editorial<br />

“ E<br />

Onde encontrar a felicidade?<br />

Eforam felizes para sempre...”. Estes termos,<br />

que invariavelmente terminavam os<br />

contos de fada dos nossos tempos de<br />

criança, refletem a ânsia do ser humano pela felicidade.<br />

Os documentos mais remotos da história mostram<br />

como, desde sempre, os homens se perguntavam<br />

no que ela consiste. Em geral, não encontraram a resposta.<br />

Ou, pior, acharam uma solução falsa.<br />

Muitas pessoas se iludem, por exemplo, com a consideração<br />

de que a felicidade consiste em ter muito<br />

dinheiro, para poder dar vazão a todos os caprichos,<br />

realizar todas as fantasias (inclusive as ilícitas), fazer<br />

tudo quanto a imaginação sugerir.<br />

Vez ou outra, uma tragédia vem lançar sombra sobre<br />

essa idéia. oi o que ocorreu no fim de novembro<br />

passado, com o suicídio do filho de um grande industrial<br />

— e herdeiro da maior fortuna da Itália. Renunciando<br />

a tudo o que possuía, saltou de uma ponte rumo<br />

ao vazio.<br />

Há perto de uma década, um infortúnio semelhante<br />

provocava estupor generalizado: o suicídio de<br />

Cristina Onassis. ilha do célebre armador grego que<br />

passava por ter a primeira fortuna do planeta, Cristina<br />

vivia num luxo inimaginável. Quando o pai morreu,<br />

ela herdou aquela fábula de dinheiro e continuou<br />

a viver no fausto. Dispunha de tudo o que sonhasse.<br />

Seu triste fim foi uma excelente oportunidade para<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> mostrar as frustrações e equívocos dos que<br />

correm atrás das fátuas delícias do mundo: “Ela freqüentava<br />

os maiores hotéis”, comentou ele, “tinha as<br />

relações sociais mais altas, aparecia nas revistas de<br />

moda mais elegantes, realizava os sonhos mais extravagantes,<br />

como mandar construir uma casa de campo<br />

que era um verdadeiro porta-jóias, tão rica que, dentro,<br />

tudo não era senão rubi, brilhante e safira.<br />

“Nada disso, porém, a satisfazia. Sentia o vazio da<br />

vida e se perguntava: quem sou eu? Para que estou<br />

aqui? Que bagunça é essa? Tinha tudo, mas não encontrava<br />

explicação para nada. Se alguém lhe tivesse<br />

elucidado as razões de viver, ela poderia ter acertado<br />

a sua existência. Mas nem seu velho pai entendia essas<br />

perguntas, nem depois dele alguém as respondia.<br />

“Uma vida assim, ao invés da felicidade, traz um<br />

estado de tensão e de saturação que leva ao que ocorreu.<br />

Certo dia, ainda moça, estando ela em Buenos<br />

Aires num grande hotel, matou-se.”<br />

E <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> imaginava o que poderia ter acontecido<br />

se, naquele hotel, tivesse se apresentado à milhardária<br />

grega um ardente devoto da Santíssima Virgem,<br />

que lhe presenteasse uma imagenzinha de Maria Auxiliadora.<br />

O entusiasmo marial do visitante poderia<br />

tocar a moça, levando-a a fitar com piedade a imagem<br />

de Nossa Senhora, e receber uma graça de conversão.<br />

E concluía <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>: “Nossa Senhora teria sido, assim,<br />

verdadeiramente auxiliadora, não dando a Cristina<br />

nenhum bem da Terra, mas um bem do Céu.<br />

Qual? Um olhar cheio de pureza, de castidade, de<br />

compaixão, repleto de perdão, de afeto, e que tivesse<br />

para ela apenas o significado dessas três palavras:<br />

‘Minha pobre filha’. Esta graça de Nossa Senhora teria<br />

afastado das mãos da jovem o revólver suicida;<br />

teria afastado dela a morte criminosa e pecadora.”<br />

Teria infundido naquela alma tão desafortunada a<br />

noção e a sensação da verdadeira felicidade — que<br />

ela tanto procurava e em nenhum lugar encontrou.<br />

Sobre este tema, o leitor encontrará, na presente<br />

edição, comentários inéditos de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

No tempo do carnaval em família<br />

Nas<br />

N<br />

duas primeiras décadas do século<br />

XX, os carnavais de São Paulo decorriam<br />

num ambiente familiar, mesmo no<br />

caso das comemorações de rua. O folião o que, com<br />

atitudes, palavras ou trajes imorais, tentasse romper<br />

a atmosfera recatada de então, recebia um imediato<br />

e severo repúdio da sociedade.<br />

Naquele tempo procurava-se a diversão inteligentemente<br />

espirituosa e favorecedora do senso do<br />

maravilhoso, sem sentir-se a necessidade de intrometer,<br />

no meio de tanta alegria sadia, qualquer<br />

laivo de sensualidade.<br />

Levado por sua mãe, o pequeno <strong>Plinio</strong> participou<br />

dos carnavais infantis desde muito cedo. O Jornal<br />

do Comércio, de 20 de fevereiro de 1912, registra<br />

sua presença na matinê de domingo de carnaval,<br />

promovida pelo Clube Internacional para<br />

os filhos de seus associados — a elite da<br />

sociedade paulistana. A festa “teve<br />

uma concorrência extraordiná-<br />

ria, excedendo aos anos anteriores não só pelo número,<br />

como pela riqueza e diversidade de fantasias”.<br />

Com apenas três anos de idade nessa ocasião,<br />

<strong>Plinio</strong> e sua irmãzinha Rosée estavam fantasiados<br />

de ceifadores de trigo. As brincadeiras “para a petizada<br />

consistiram em fazê-las bailar, com a graça<br />

que lhes é peculiar, ora uma polka, ora uma valsa,<br />

distribuindo-lhes lança-perfumes para os seus renhidos<br />

combates”, seguindo-se um concurso de fantasias<br />

(vencido por Yelita, uma prima de <strong>Plinio</strong>) e<br />

terminando com distribuição de bombons e biscoitos<br />

— informa o jornal.<br />

Até completar 12 anos, o menino <strong>Plinio</strong> comparecerá<br />

a essas festas carnavalescas, trajando de cada<br />

vez uma fantasia que Dª Lucilia, com carinho e<br />

imaginação, lhe preparará: ora a de marquês, ora<br />

de mago, outra vez a de toureiro espanhol, ou<br />

ainda a de marajá — a mais apreciada<br />

por ele, por remeter a uma Índia<br />

de sonhos.<br />

Nos antigos carnavais<br />

de família, o pequeno<br />

<strong>Plinio</strong> envergava<br />

com manifesto<br />

comprazimento as<br />

fantasias que<br />

Dª Lucilia<br />

carinhosamente<br />

lhe confeccionava<br />

5


ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

RELIGIOSIDADE E CORAGEM<br />

VALORES INSEPARÁVEIS<br />

Compenetrados de sua genuína<br />

religiosidade, estes católicos<br />

participam de uma procissão em<br />

Locronan, norte da rança


N<br />

o meio da confusão de idéias que marcou o século XX,<br />

um dos preconceitos mais perniciosos ao catolicismo<br />

consistiu na idéia equivocada de que a religiosidade<br />

sincera era incompatível com a virilidade real. Em 1931, como<br />

jovem congregado mariano, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> enfrentou e esclareceu a<br />

questão.<br />

Entre os muitos preconceitos<br />

errôneos que dominam a<br />

mentalidade das massas populares<br />

hodiernas, figura em lugar de<br />

destaque a convicção muito generalizada<br />

de que é impossível a coexistência,<br />

no espírito de um homem, de uma<br />

virilidade real com uma religiosidade<br />

sincera.<br />

Dá-se com este preconceito o mesmo<br />

que se deu com o imundo casario<br />

que entulhava, no Egito, os lugares em<br />

que, em séculos passados, se erguiam<br />

os templos magníficos que os faraós<br />

elevavam à glória de seus deuses. A<br />

ação lenta de forças naturais soterrara<br />

gradualmente muitos dos monumentos<br />

da lendária civilização egípcia.<br />

E quando este soterramento ficou<br />

mais ou menos completo, sobre os últimos<br />

vestígios dos monumentos dos<br />

faraós veio lançar-se uma rede inextricável<br />

de barracas e cortiços destinados<br />

a abrigar a vasa da população egípcia.<br />

Quando alguns denodados egiptólogos<br />

empreenderam o estudo da história<br />

da pátria de Cleópatra, não tiveram<br />

outro recurso senão arrasar completamente<br />

quarteirões inteiros de cortiços,<br />

para fazer emergir do seio da terra,<br />

onde jaziam sepultados, os magníficos<br />

monumentos da arte egípcia, em<br />

toda a beleza de suas linhas, na beleza<br />

estupenda de sua concepção artística<br />

genial.<br />

Imitando os egiptólogos, é necessário<br />

que nos esforcemos por arrasar os<br />

preconceitos mesquinhos com que a<br />

mentalidade hodierna cerca e deforma<br />

a idéia de “homem”. E, uma vez<br />

executada esta obra de desobstrução,<br />

poderemos então ressurgir, no espíri-<br />

to público, a majestosa e máscula concepção<br />

cristã de virilidade.<br />

A simples análise racional da expressão<br />

“viril” indica claramente a inanidade<br />

dos preconceitos modernos<br />

(veiculados especialmente pelo cinema<br />

e pelo excesso do esporte) a este<br />

respeito.<br />

Ser másculo significa ter todas as<br />

qualidades próprias ao homem, para<br />

que este desempenhe integralmente<br />

os deveres ditados por sua alta finalidade<br />

religiosa, moral e social. É evidente<br />

que o esforço que se desenvolva<br />

para produzir no homem qualidades<br />

estranhas à sua finalidade será, ou<br />

Virilidade e piedade se exprimem de modo edificante na face deste pescador<br />

espanhol, talhado nos “grandes esforços que caracterizam os heróis”<br />

7


ECO IDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

inútil, ou nocivo. Por outro lado, é<br />

bem evidente que as qualidades serão<br />

tanto mais preciosas para o homem<br />

— e, portanto, tanto mais másculas<br />

— quanto mais altas forem as finalidades<br />

humanas que elas visem conseguir.<br />

Os diversos fins de um homem não<br />

têm todos importância igual. Pelo contrário,<br />

a razão demonstra que eles se<br />

subordinam uns aos outros, numa hierarquia<br />

completa. Para cada finalidade<br />

do homem existem virtudes adequadas.<br />

E tanto mais necessárias ao<br />

homem — e portanto mais máscula<br />

será a virtude — quanto mais elevada<br />

for a finalidade que lhe corresponder.<br />

Se existe um Deus, o primeiro dever<br />

do crente será de lhe prestar reverência<br />

e homenagem. E a violação deste<br />

dever primordial será, para o homem,<br />

uma infração máxima à virtude da virilidade.<br />

Aos olhos dos próprios descrentes,<br />

portanto, deve ser tido o<br />

crente que não cumpre seus deveres<br />

como indivíduo “inviril”. E, como<br />

uma conseqüência lógica, tanto mais<br />

viril será o crente quanto mais cabalmente<br />

der desempenho a seus deveres<br />

religiosos.<br />

Vêm em seguida os outros grandes<br />

deveres do homem, que marcam como<br />

que outros tantos degraus na escada<br />

da virilidade: os deveres em relação<br />

à família, em relação à pátria, em<br />

relação à humanidade, em relação a<br />

si próprio.<br />

O cumprimento destes deveres é árduo.<br />

Ora exige os grandes esforços<br />

que caracterizam os heróis, ora reclama<br />

trabalhos obscuros e perseverantes,<br />

sem poesia, sem grandeza, todos<br />

feitos de abnegação ignorada e de<br />

banalidade absoluta.<br />

Para o desempenho destas grandes<br />

missões, que fazem da vida<br />

de cada homem, quando bem<br />

compreendida, um poema<br />

de beleza incomparável,<br />

são necessárias certas<br />

disposições que são o<br />

pedestal de toda virtude<br />

ou virilidade sólida.<br />

Vem, em primeiro<br />

lugar, a força de<br />

vontade, que é o alicerce de todas as<br />

demais virtudes. Em seguida vem todo<br />

o longo cortejo de virtudes viris, que<br />

em última análise são um simples corolário<br />

da força de vontade: sobriedade,<br />

perseverança, domínio de si mesmo,<br />

prudência, coragem, audácia, generosidade,<br />

etc.<br />

Todos estes atributos não constituem<br />

virtudes diferentes; são apenas as cintilações<br />

multicolores de um mesmo<br />

brilhante: o vigor da vontade auxiliada<br />

pela graça.<br />

A par destas jóias puríssimas, que<br />

podem fazer do caráter de um homem<br />

A coragem do<br />

soldado que enfrenta<br />

a morte<br />

por patriotismo,<br />

ou a do mártir<br />

que abraça a<br />

imolação para<br />

confessar a é,<br />

não pode ser<br />

equiparada à<br />

falsa coragem<br />

do homem<br />

amoral que<br />

procura satisfazer<br />

seus baixos<br />

instintos<br />

(“Martírio de<br />

Santo André” e<br />

cena da Iª Guerra<br />

Mundial)<br />

8


um verdadeiro escrínio, há imitações<br />

mais ou menos grosseiras, que são<br />

meras deformações do senso moral,<br />

pérolas “tekla”, que tentam hoje em<br />

dia substituir completamente as antigas<br />

virtudes, imitando-as servilmente<br />

no aspecto exterior, mas diferenciando-se<br />

profundamente delas na sua essência.<br />

Assim, quando o temperamento é<br />

exaltado, quando uma pessoa não sabe<br />

refrear os excessos de um sistema<br />

nervoso doentio, as explosões de sua<br />

vontade desgovernada passam por força<br />

de vontade. Como se se pudesse<br />

confundir um rio que sai de seu leito<br />

para tudo inundar e tudo destruir, com<br />

a água fertilizante que corre em leitos<br />

certos, fecundando toda uma região.<br />

Quando o estouvamento da inteligência<br />

não vê o perigo, é fácil para uma<br />

pessoa afrontar os maiores riscos. E<br />

então confunde-se o desatino vulgar<br />

de uma inteligência defeituosa com a<br />

coragem do herói. Quando o abrasamento<br />

das paixões leva o homem a se<br />

entregar sem reservas à faina de amontoar<br />

fortunas com que as satisfazer,<br />

este sibarita camouflé pode facilmente<br />

passar por homem trabalhador.<br />

E, em geral, os heróis que o cinema<br />

nos aponta, ou que os romances incensam,<br />

não passam de caracteres cheios<br />

de vícios com aspecto de virtude. Como<br />

certas vitrines de joalherias populares,<br />

podem tais homens, com o exibicionismo<br />

desenfreado de suas quinquilharias<br />

morais, deslumbrar o populacho.<br />

Mas só logram despertar o riso<br />

e a compaixão dos verdadeiros psicólogos,<br />

que não se iludem com o brilho<br />

falso destas falsas pedrarias, nem com<br />

o esplendor ilusório de uns pobres pedaços<br />

de vidro polido.<br />

A coragem do herói que conhece o<br />

perigo, mas que o afronta por amor a<br />

um sublime ideal, não pode ser comparada<br />

à imprudência de um ladrão,<br />

que não se importa de correr os maiores<br />

riscos para dar largas à sua desonestidade.<br />

A coragem do soldado, que afronta<br />

a morte por amor à pátria, ou do mártir,<br />

que desafia os tormentos para confessar<br />

a é, não é a mesma coragem<br />

O cruzado: varão católico no qual, de modo paradigmático,<br />

aliam-se religiosidade e coragem, fé e virilidade<br />

do adúltero que, com risco de sua própria<br />

vida, penetra clandestinamente na<br />

casa de seu amigo para consumar, na<br />

escuridão da noite, a ruína de um lar!<br />

Não! A Igreja nunca sancionará o<br />

torpe conceito que erige em coragem<br />

o despudor, e que entroniza como herói<br />

o homem amoral, que ousa afrontar<br />

todos os perigos e sujeitar-se a todas<br />

as baixezas para satisfazer a solicitação<br />

de seus instintos.<br />

A triste coragem que faz do homem<br />

um monstro, e da canalhice uma<br />

virtude, é bem a coragem do mundo<br />

pagão em que vivemos. Mas, que rufem<br />

os tambores; que a pátria chame<br />

para o campo de sacrifício todos os<br />

seus filhos, e veremos que não é o<br />

“herói” pagão que melhor sabe imolar<br />

seu egoísmo, e que com mais espontaneidade<br />

sabe oferecer-se como<br />

holocausto à grandeza do país! (...)<br />

Religiosidade e coragem, é e virilidade<br />

são coisas inseparáveis. E se os<br />

preconceitos vulgares das pessoas incultas<br />

nos acoimarem de pusilânimes,<br />

(...) digamos: “Perdoai-lhes, Senhor,<br />

porque não sabem o que dizem”.<br />

(Transcrito do “Legionário”,<br />

nº 86, de 13/9/31)<br />

9


DENÚNCIA PROÉTICA<br />

Um aldeão espanhol,<br />

“gigantesco pobrinho<br />

de Jesus Cristo”<br />

E o mendigo<br />

tem razão...<br />

10


Mendigos ricos e nababos pobres. Seria possível, na vida real, situação<br />

tão contraditória? <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> estava convencido de que sim.<br />

Como há pouco girei muito largamente pelas ruas,<br />

não é de espantar que me venha ao espírito uma<br />

multidão de figuras humanas. Obviamente, as dessemelhanças<br />

entre elas são enormes.<br />

Sem embargo das diferenças, desse conjunto se desprende<br />

uma marcada monotonia. É que, na imensa maioria dos<br />

casos, trata-se de gente estandardizada pela vida moderna<br />

das grandes cidades industrializadas. Mais ricos uns, outros<br />

menos, vão-se fundindo ao ritmo da máquina, no torvelinho<br />

de Mamon, os temperamentos, as tradições e as mentalidades<br />

mais diversas. Tudo tende a proporcionar a sobrevivência<br />

razoável, a saúde, e a estabilidade de todos. Neste<br />

torvelinho estão engajados até os nababos. E também a<br />

eles esse sistema de trituração de almas alcança e reduz<br />

psicologicamente ao pó da mentalidade comum.<br />

Esforços para evitar a fome, os há muitos e, sem dúvida,<br />

com algum sucesso. Por exemplo, vão rareando sempre<br />

mais os tipos do gênero dos que passarei a descrever<br />

por pena de terceiros. Muitos leitores me dirão até que<br />

não existem mais.<br />

A rútila descrição não é minha, mas de um escritor português<br />

ainda de nosso século, que alcançou em seus dias<br />

gloriosa nomeada. Leiamo-lo (em notas, o significado das<br />

palavras hoje menos conhecidas):<br />

“À porta de uma tenda, apanhando os últimos raios de<br />

sol a descer, e sentado na terra, um mendigo de estrada come<br />

numa lata seu caldo esmolado. É uma figura de doido<br />

de fome: face escaveirada, olhos em desvario, grenha¹ densa<br />

de cabelo em pé. As cordoveias² do pescoço são de ferro<br />

negro, como o são os ossos das clavículas inteiramente<br />

escarnadas. Cobrem-no farrapos cosidos em farrapos. Nas<br />

pernas, umas como que polainas de tábua, atadas com guitas³,<br />

lembram os feixes de varas dos litores romanos; e pelos<br />

buracos das alpercatas a desfazerem-se saem os dedos<br />

negros dos magríssimos pés. Nas mãos, só pele e osso, segurando<br />

em garra a escudela 4 e a colher de estanho, desenham-se<br />

as falanges e os nós dos dedos como os de um<br />

esqueleto articulado.<br />

“Ah! os mendigos espanhóis!<br />

“O lápis trágico de Gustavo Doré, na sua viagem em Espanha,<br />

desenhou alguns destes espectros de fome, envoltos<br />

em capas de farrapos e cobertos com largos feltros esburacados,<br />

mantendo, no entanto, através da maior miséria,<br />

um tal aprumo que dir-se-ia serem Grandes de Espanha<br />

ou senhores de Bazan a quem as maiores tempestades<br />

da vida, arrastando-os à última miséria, obrigando-os a<br />

estender a mão à esmola, não conseguem desverticalizarlhes<br />

a espinha orgulhosa.<br />

“E como a arte é um sol que tudo doira, esses frangalhos,<br />

nas mãos do desenhista das visões, do negrume e da luz,<br />

tomavam aspectos de grandeza.<br />

“Os pobres espanhóis são trágicos! Sua miséria uiva, seu<br />

aspecto é pavor. Mas um halo de beleza cerca a cabeça<br />

deste desventurado: — a humildade, a resignação de toda<br />

a sua figura. Trapo humano, pobrinho de Cristo, crê, Jesus<br />

sorri para ti!” (Antero de igueiredo, Espanha - Páginas<br />

galegas, leonesas, asturianas, vasconças e navarras, Livraria<br />

Aillaud e Bertrand, Paris-Lisboa, 1923, pp. 400-402).<br />

Quanto poder evocativo, quanta riqueza de análise, quantos<br />

escachoantes coloridos na descrição!<br />

Saliento no quadro, a meu ver mais próximo do real do<br />

que se fosse pintado a tinta, um traço que o grande Antero<br />

soube deixar bem claro, porém não incluiu na condensação<br />

de seu parágrafo final. É a riqueza de personalidade, a<br />

força de alma, a elevação de vistas, em síntese, a verdadeira<br />

fidalguia de estilo, que existe a par da “humildade” e da<br />

“resignação” de coração, neste gigantesco “pobrinho de Jesus<br />

Cristo” que ele tão bem soube observar e descrever.<br />

Heroicamente de pé no próprio âmago de seu infortúnio,<br />

verdadeiro “caballero” da melhor cepa espanhola e cristã,<br />

este homem resplandece de nobre originalidade. Não<br />

hesito em acrescentar que também de augusta respeitabilidade.<br />

Mendigo de corpo, ele é um creso de alma.<br />

E aos meus olhos, novamente cerrados, voltam as inúmeras<br />

caras mais ou menos nutridas, apressadas e aflitas<br />

que encontrei hoje ao longo do meu caminho. Como são<br />

pobres daquilo de que este pobre é tão rico!<br />

É bem verdade que, se a qualquer desses açodados e estandardizados<br />

personagens do século XX se oferecesse de<br />

ser este sublime mendigo, eles recusariam horrorizados.<br />

Para eles, riqueza de personalidade, elevação de vistas,<br />

privilegiada força de alma, originalidade pessoal, respeitabilidade<br />

venerável, tudo isto vale menos do que uma vidinha<br />

calma, estável, farta. Ou então um vidão folgado,<br />

lauto e desanuviado.<br />

Mas, se se oferecesse ao mendigo perder todos os seus<br />

tesouros de alma para ser um homem padrão da imensa e<br />

monótona colméia contemporânea, com quanta indignação<br />

ele o recusaria!<br />

E, a meu ver, a opção do mendigo seria a certa. Só ela<br />

estaria verdadeiramente consoante com o senso católico.<br />

O mendigo é que teria razão.<br />

(Transcrito da Última Hora, Rio de Janeiro,<br />

de 9/7/1984)<br />

1) Cabelo em desalinho<br />

2) As veias jugulares e os tendões do pescoço<br />

3) Barbante fino<br />

4) Tigela de madeira, pouco funda<br />

11


DR. PLINIO COMENTA...<br />

A verdadeira<br />

felicidade<br />

Q<br />

uantos infelizes<br />

há hoje em dia!<br />

Contudo, nunca<br />

as pessoas correram tão<br />

febricitantemente ao encalço<br />

da felicidade como<br />

nossos contemporâneos.<br />

Nunca a felicidade lhes<br />

escapou tanto das mãos.<br />

Mas, saberão de fato o<br />

que procuram? E o objeto<br />

dessa busca incessante<br />

será a genuína felicidade?<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> aborda o<br />

assunto.<br />

Assim como na época do jovem <strong>Plinio</strong>,<br />

a mocidade de hoje procura resolver o problema<br />

da verdadeira felicidade<br />

Um problema que freqüentemente<br />

se põe para os<br />

jovens do mundo contemporâneo<br />

diz respeito à verdadeira felicidade:<br />

onde e de que maneira alcançá-la?<br />

Ainda me lembro de como esta<br />

questão se apresentava aos moços do<br />

meu tempo de adolescente, e acredito<br />

que, com algumas variações, o modo<br />

de considerá-la continua o mesmo.<br />

Em geral, eram rapazes que não<br />

enfrentavam dificuldades graves de<br />

12


nenhuma espécie, criados em ambientes<br />

familiares bem constituídos, e com<br />

toda uma existência regular à sua<br />

frente. Nessas condições, o moço logo<br />

pensava no que fazer para ser feliz. E<br />

começava a analisar algumas pessoas<br />

ao seu redor — parentes, amigos, ou<br />

simples conhecidos — as quais, no entender<br />

dele, destacavam-se por parecerem<br />

donas de uma indiscutível felicidade.<br />

Se ele era um pouco mais crescido<br />

ou exigente, seu panorama se<br />

alargava, procurando considerar também<br />

os “felizes” do seu país e os do<br />

mundo.<br />

alsa idéia de felicidade<br />

Dessas análises, a primeira noção<br />

que vinha ao espírito do jovem é a de<br />

que o homem nasceu para ser feliz. E<br />

se assim não fosse, a bem dizer não<br />

valia a pena ter nascido. Portanto, o<br />

normal nesta Terra é a alegria contínua,<br />

nunca interrompida por nada de<br />

desagradável. Apenas o bem-estar, as<br />

boas perspectivas, as idéias animadoras,<br />

aquilo que faça as pessoas conversarem<br />

de modo jovial, agradável e, sobretudo,<br />

as faça rir. Eis a máxima noção<br />

de felicidade.<br />

Então, numa roda de amigos, quanto<br />

mais se ri, mais se supõe que estão<br />

felizes. E se são pessoas que têm o hábito<br />

de estarem sempre sorrindo, os terceiros<br />

se referem a elas como sendo<br />

muito venturosas, porque demonstram<br />

seu contínuo regozijo interior.<br />

As conseqüências desse estado de<br />

espírito eram as seguintes: primeiro,<br />

possuíam a felicidade ininterrupta<br />

aqueles que riam constantemente, os<br />

quais realizavam uma espécie de paraíso<br />

neste mundo. Em segundo lugar,<br />

quanto mais alguém tivesse uma atitude<br />

que convidasse os outros à ale-<br />

Rir e divertir-se continuamente, a<br />

máxima e falsa idéia de felicidade<br />

engendrada pelo egoísmo do<br />

homem moderno<br />

13


DR. PLINIO COMENTA...<br />

gria e à diversão, tanto mais seria uma<br />

companhia procurada. Porque o jovem<br />

capaz de ditos jocosos e de provocar a<br />

hilaridade em torno de si, faz o papel<br />

de um spray de felicidade, de cujas emanações<br />

todos querem se beneficiar.<br />

Assim, era uma verdadeira satisfação<br />

a pessoa ser engraçada, pois a queriam<br />

por toda parte. Havia um piquenique,<br />

uma excursão, uma festa? Os<br />

parentes mais afastados, os conhecidos<br />

mais vagos, os colegas que menos<br />

se davam com ele, o convidavam. ormavam<br />

grandes rodas em torno do<br />

personagem, riam de suas anedotas, e<br />

se encantavam vendo como ele espargia<br />

o júbilo à sua volta. O rapaz engraçado<br />

— ou a moça engraçada —<br />

era o eixo e o centro de tudo.<br />

Para si próprio, esse indivíduo acaba<br />

não desejando outra coisa senão a<br />

felicidade de todas as formas. E para<br />

se pôr nessa perspectiva de bem-aventurança<br />

terrena, ele estabelece planos<br />

e coordenadas, determina com que pessoas<br />

deve andar, quais as atitudes que<br />

deve tomar, os objetivos que lhe interessa<br />

alcançar, etc. E se lança na vida<br />

à procura do que ele imagina ser a<br />

completa felicidade.<br />

Como não será difícil perceber, o<br />

contentamento assim concebido é exclusivamente<br />

egoístico, baseado na procura<br />

e na fruição dos prazeres pessoais<br />

e mundanos. Trata-se de ir atrás<br />

de todas as satisfações, lícitas e ilícitas,<br />

fugindo da morte quanto for possível,<br />

das prolongadas doenças, das deficiências<br />

físicas, das contrariedades<br />

morais e psicológicas, dos infortúnios<br />

e dos sofrimentos.<br />

Graves conseqüências das<br />

alegrias frenéticas<br />

Ora, essa corrida desenfreada atrás<br />

de uma felicidade incessante e equivocada<br />

esmigalha tanto a alma e a personalidade<br />

do homem, deforma-o tanto<br />

que ele se esquece por completo do<br />

que seja a verdadeira felicidade. E<br />

não pode haver pior infelicidade do<br />

que a de ficar cego para a autêntica<br />

alegria. A pessoa a deseja e não compreende<br />

onde ela está; procura e não<br />

a encontra; e, no fim de longos ou<br />

breves anos, a vida dela se torna vazia<br />

e deixa de ter sentido. Daí surgem os<br />

desastres de toda espécie que vemos<br />

pelo mundo. É a catástrofe geral das<br />

coisas. Um triste exemplo dessa tragédia<br />

humana, a meu ver paradigmático,<br />

é a espantosa ocorrência de suicídios<br />

de crianças nos Estados Unidos,<br />

por excelência a “terra da felicidade”...<br />

Compreende-se. É o resultado do<br />

enganoso ambiente de prazer que cerca<br />

a criança desde o berço, e no qual<br />

sempre lhe fica faltando algo. Ela<br />

imagina que carece de prazeres ainda<br />

maiores. Então, é outro brinquedo,<br />

outra diversão. Não basta. Quer mais.<br />

E quanto mais ela tem, mais ela se<br />

persuade de que não é suficiente. E<br />

neste ponto atinge um extremo de<br />

frenesi por onde ela, nos rudimentos<br />

de lógica que possui, pensa: “Só o que<br />

é gostoso torna feliz. Se tudo que é<br />

gostoso a mim não me fez feliz, então...”.<br />

Ela acaba pondo um termo à<br />

sua própria existência.<br />

Não muito distintas dessas desilusões<br />

infantis são as que acometem os<br />

homens que buscam a felicidade nos<br />

pecaminosos prazeres da impureza.<br />

Cumpre considerar de frente: as práticas<br />

imorais e libidinosas que já não<br />

conhecem freios, também não trazem<br />

Desiludidas com<br />

prazeres que não<br />

as satisfazem,<br />

crianças se<br />

suicidam nos<br />

Estados Unidos –<br />

algo inimaginável<br />

no tempo em que<br />

os alegres meninos<br />

da ilustração<br />

ao lado<br />

brincavam no<br />

interior de seu<br />

modesto lar<br />

(“A máscara”<br />

tela de Chierici)<br />

14


“Eu era um menino<br />

imensamente feliz. Que<br />

alegrias carregava dentro de<br />

minha alma! Sobretudo<br />

quando ia à igreja (do<br />

Sagrado Coração de Jesus),<br />

que me parecia um santuário<br />

celestial...”<br />

a almejada satisfação completa que as<br />

pessoas tanto desejam. A prova?<br />

Imagine-se o leitor sentado no banco<br />

de uma praça, defronte a um hotel<br />

de máximo luxo, cujas dependências<br />

oferecem a seus hóspedes o que pode<br />

haver de melhor, de mais opulento e<br />

confortável. Portanto, um lugar de<br />

gozo, de bem-estar e felicidade ideais.<br />

É tarde da noite, e nota-se que as luzes<br />

dos quartos começam a se apagar.<br />

Dir-se-ia o descanso delicioso depois<br />

de um dia magnífico, transcorrido na<br />

diversão e no prazer. Porém, dali a<br />

instantes uma luz se acende num dos<br />

aposentos. Depois em outro e em outro...<br />

Os hóspedes passaram a madrugada<br />

mudando de quartos. Estas dependências<br />

lhes trouxeram felicidade?<br />

Não, porque onde há mudança,<br />

não há satisfação.<br />

A metáfora nos serve para comprovar<br />

a infelicidade decorrente da impureza:<br />

tantas combinações ilícitas, tantos<br />

concubinatos, tantos casamentos<br />

desfeitos, tantas ligações efêmeras e<br />

pecaminosas, tanta corrida frenética<br />

atrás de mais e mais prazeres sensuais,<br />

não são sintomas de que ninguém<br />

encontrou a felicidade em cada<br />

um deles? Por isso mudam a toda hora,<br />

por isso nunca se saciam, como os<br />

hóspedes nos quartos do hotel mítico.<br />

Eis a inevitável conclusão: o mundo<br />

de hoje não conhece a felicidade<br />

autêntica.<br />

Onde encontrá-la?<br />

O homem verdadeiramente<br />

feliz<br />

A verdadeira felicidade não está<br />

nessa avidez de emoções e de sensações<br />

prazerosas, mas na temperança<br />

15


DR. PLINIO COMENTA...<br />

oriunda da fé católica, apostólica, romana,<br />

bem correspondida. É feliz o<br />

homem que compreende a realidade<br />

desta vida como ela é, que sente todas<br />

as coisas nas suas devidas proporções<br />

e diante delas reage em conseqüência.<br />

É o homem imbuído da noção de<br />

que não é razoável nem é de acordo<br />

com a natureza humana — portanto,<br />

não é também de acordo com a moral<br />

católica — querer a todo momento algum<br />

prazer, alguma satisfação.<br />

O homem feliz vive do equilíbrio<br />

entre a realidade e as vibrações que<br />

ela provoca. Não foge do sofrimento<br />

nem do que é desagradável. Se algo é<br />

ruim, ele procura remediá-lo. Se não<br />

é possível, pede a Deus resignação e<br />

forças para se habituar às condições<br />

desfavoráveis e às provações que Nosso<br />

Senhor dispôs que ele sofresse, entendendo<br />

que é para o seu bem, para<br />

alcançar méritos para a outra vida —<br />

esta, sim, feita de uma felicidade perene<br />

e sem jaça.<br />

O homem verdadeiramente feliz é<br />

aquele que tem a consciência tranqüila,<br />

porque possui uma alma batizada e<br />

virtuosa, fiel aos Mandamentos da<br />

Lei de Deus, do mesmo modo que<br />

quando se é pequeno e inocente.<br />

Volto, uma vez mais, a um exemplo<br />

pessoal. Sempre me lembro, com saudades,<br />

da minha primeira infância,<br />

antes de entrar no Colégio São Luís.<br />

Eu era um menino imensamente feliz.<br />

Nunca um homem foi tão invejável como o Homem-Deus no auge<br />

de sua tristeza (Cristo da Piedade, Avignon)<br />

Que alegrias eu carregava dentro de<br />

minha alma! Que felicidade eu sentia<br />

dentro de mim! Tão intensa que, um<br />

pouco mais capaz de raciocinar, comecei<br />

a analisá-la e a procurar a causa<br />

de tanto júbilo.<br />

Era a sensação da consciência satisfeita<br />

consigo mesma e em paz com<br />

Deus. Era a felicidade da inocência<br />

primeva, que a pessoa carrega em si<br />

enquanto não ofende a Nosso Senhor.<br />

É uma disposição de espírito consonante<br />

com a doutrina católica, de tal<br />

maneira que todas as coisas criadas<br />

por Deus aparecem aos olhos do inocente<br />

com o fulgor de uma extraordinária<br />

beleza, e produzem no seu íntimo<br />

um deleite cuja razão ele não sabe<br />

explicar bem; mas é que, no fundo,<br />

essas coisas são símbolos do próprio<br />

Deus, foram criadas à imagem e semelhança<br />

d’Ele, e por isso despertam<br />

essa alegria que não sabemos definir,<br />

parecida vagamente com aquele gáudio<br />

inimaginável que teremos quando<br />

contemplarmos face a face o Criador.<br />

A posse de um estado de alma onde<br />

tudo nos oferece essa impressão,<br />

onde estamos em condições de ver e<br />

de nos encher dessa alegria, porque é<br />

um reflexo de Deus e, portanto, nos<br />

comove de modo intenso — isso sim<br />

dá uma verdadeira felicidade. Uma<br />

alegria que chega a seu ápice genuíno<br />

quando se começa a conhecer e a<br />

amar a Santa Igreja Católica. Mais do<br />

que um magnífico panorama, mais do<br />

que uma estupenda flor, mil vezes<br />

mais do que qualquer saboroso prato<br />

de comida, mais que tudo nos cumula<br />

de satisfação a Esposa Mística de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

No que me diz respeito, já tive<br />

oportunidade de narrar como me sentia<br />

feliz ao ir à igreja nos dias de preceito.<br />

Como ela me parecia um santuário<br />

celestial, transmitindo-me as<br />

mais eloqüentes impressões de harmonia,<br />

na sua composição de cores e<br />

de formas, parecendo-me tão digna,<br />

tão séria, tão recatada, enfim, a expressão<br />

da própria santidade. Sobretudo<br />

no momento da Missa, quando<br />

os sinos e o órgão tocavam, o sacerdote<br />

entrava revestido de lindos para-<br />

16


mentos e o coro entoava belos cânticos<br />

religiosos. Depois, a hora da Consagração,<br />

a elevação do cálice, atos<br />

que me enchiam de amor e entusiasmo<br />

pela Liturgia católica. Eu comungava,<br />

e tinha a convicção de que o Cordeiro<br />

de Deus que tira os pecados do<br />

mundo, o Homem-Deus estava dentro<br />

de mim. Misteriosamente, toda<br />

aquela felicidade chegava ao auge:<br />

“Oh! Que maravilha!”<br />

Além disso, comecei a notar que<br />

havia uma correlação e uma uniformidade<br />

entre os aspectos exteriores<br />

da Igreja e os seus ensinamentos, sua<br />

doutrina e a vida dos seus Santos. Havia<br />

uma correlação entre a forma de<br />

uma pia de água benta, por exemplo,<br />

e o espírito de tal santo, ou entre a<br />

virtude de um outro e a cor de um vitral<br />

ou o som de um órgão. Pareciame<br />

que tudo isso provinha de um ser<br />

infinitamente superior, que se deixava<br />

ver misteriosamente aqui, lá e acolá<br />

por aqueles símbolos da Santa Igreja<br />

e por aquela ação que ela produzia no<br />

interior das almas fiéis.<br />

Daí a conclusão: “Por mais que sofra,<br />

por mais que lute, por mais que<br />

haja dificuldades, ainda que fosse apenas<br />

para levar uma existência, tanto<br />

quanto possível, digna de ser vivida<br />

neste vale de lágrimas, valia a pena,<br />

só para ser filho da Igreja. Aí o homem<br />

encontra a parcela de felicidade<br />

— mas que parcela de ouro! — que a<br />

vida pode de fato dar.<br />

O bem-estar da dor cristã<br />

Mas, ao mesmo tempo em que se<br />

alcança essa felicidade, compreendese<br />

também que a venturosa influência<br />

da Igreja só perdura nas almas na medida<br />

em que elas saibam sofrer. Então<br />

o bom católico começa a compreender<br />

o valor do sofrimento, do qual os<br />

pseudo-felizes tanto fogem. De fato, a<br />

dor é para a alma humana o que é o<br />

fogo para um metal que deve ser separado<br />

da ganga e purificado: sofre-se,<br />

porém com resignação e dignidade.<br />

Isso dá à alma uma tranqüilidade,<br />

uma harmonia, uma força que não há<br />

prazer que pague. Oh, o bemestar<br />

da dor cristã!<br />

Às, vezes, quando pequeno,<br />

eu me colocava diante de crucifixos<br />

ou imagens do Senhor<br />

Bom Jesus e, olhando-as, pensava:<br />

“É misterioso, Ele está coberto<br />

de dores, mas se percebe<br />

n’Ele uma congruência, um vigor,<br />

uma coerência, uma resignação<br />

que me levam a dizer:<br />

nunca um homem foi tão invejável<br />

como o Homem-Deus no<br />

auge de sua tristeza!”<br />

É preciso, portanto — se este<br />

for o desígnio da Providência<br />

para nós —, ter a coragem de<br />

penetrar no mar de dores e<br />

agüentá-las. Quando se procede<br />

assim por amor de Deus, uma<br />

certa doçura penetra em nós e<br />

nos habita, uma suavidade que é<br />

única e que faz parte desse bemestar<br />

de ser filho da Igreja.<br />

E quando perseveramos nesse<br />

estado de espírito, no extremo<br />

do caminho as alegrias do<br />

tempo de infância renascem, alcandoradas<br />

e elevadas a um<br />

grau muito maior, porque banhadas<br />

pelo sobrenatural. Então<br />

as compreendemos e aproveitamos<br />

melhor. Chegamos felizes<br />

ao término da vida, à espera<br />

de sermos conduzidos por<br />

nosso Anjo da Guarda até a<br />

presença do Altíssimo, para O<br />

contemplarmos numa inundação<br />

de felicidade de que não se<br />

pode ter idéia. Aí nos serão<br />

franqueados todos os graus e<br />

formas de alegria, superiores às<br />

mais inocentes de nossa melhor<br />

e mais primeira inocência, às<br />

mais fervorosas dos momentos<br />

cruciais de nossa vida.<br />

Peçamos a Nossa Senhora,<br />

Ela que é a Causa de Nossa Alegria,<br />

que nos conceda a verdadeira<br />

felicidade. Será, muitas<br />

vezes, a felicidade da dor. Per<br />

crucem ad lucem: pela cruz se vai<br />

à luz. Tenhamos coragem, e lá<br />

chegaremos.<br />

v<br />

Que Maria Santíssima,<br />

Causa de Nossa Alegria, alcance-nos<br />

a felicidade autêntica<br />

17


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

UMA ERA<br />

DE É, HEROÍSMO<br />

E SABEDORIA


N<br />

um dia de carnaval, lá<br />

pelos idos de 1914-1918,<br />

o menino <strong>Plinio</strong> participava<br />

com sua família de um corso<br />

de carnaval, quando viu passar<br />

um carro com a capota aberta, e<br />

duas ou três moças com chapéus<br />

compridos, em forma de cone, de<br />

cujas pontas caíam largos tules.<br />

Extasiado com a beleza desses chapéus,<br />

perguntou a alguém que fantasia<br />

era aquela.<br />

— É da Idade Média. — responderam-lhe.<br />

“Idade Média! O que será? Eu<br />

preciso conhecer mais sobre isso...”<br />

oi o primeiro encontro de <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> com aquela era histórica, e<br />

o início de uma veneração que<br />

durou até seu último suspiro.<br />

Um dos princípios básicos que costumamos aprender<br />

é o de que Deus criou todos os homens<br />

iguais por natureza.<br />

Em virtude disso, todos têm análogos direitos à vida, à<br />

propriedade, à liberdade individual, à dignidade pessoal, à<br />

saúde, etc.<br />

Entretanto, ao lado desses direitos essenciais, inerentes<br />

à condição humana, existem também determinados direitos<br />

acidentais, oriundos dos predicados que caracterizam<br />

cada indivíduo. Assim, o homem mais inteligente, o mais<br />

capaz, o mais trabalhador, o mais virtuoso, pelo fato de<br />

possuir certas qualidades superiores às do nível comum,<br />

acaba adquirindo privilégios igualmente invulgares.<br />

Então, a verdadeira justiça dentro da sociedade não<br />

consiste em ser absolutamente igual para todos, mas em<br />

tratá-los de tal maneira que lhes assegure os direitos essenciais<br />

da pessoa humana, porém distribuindo melhores<br />

vantagens e honrarias àqueles que, dotados de superiores<br />

atributos, suportam com maior responsabilidade o fardo<br />

dos interesses coletivos.<br />

19


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

representante de Nosso Senhor no mundo e como<br />

uma personificação da religião católica.<br />

A este principal atributo do sacerdote se soma<br />

o fato de que o exercício de seu ministério é da<br />

maior importância para o próprio Estado. Com<br />

efeito, ao contrário do que hoje se passa, para o<br />

homem da Idade Média a razão fundamental de<br />

ser do Estado não era formar uma grande cooperativa<br />

de caráter financeiro. O Estado não existe<br />

apenas para saciar o apetite de todos os seus<br />

cidadãos. Sua tarefa primordial consiste em promover<br />

as condições de uma vida virtuosa para os<br />

indivíduos, de maneira a conduzi-los à glória celestial.<br />

Em outros termos, a função essencial do<br />

Estado é favorecer e incentivar o bem.<br />

Se isto é assim, compreende-se que, dentro da<br />

sociedade, nenhuma classe tem direito a mais preeminência<br />

do que aquela que representa exatamente<br />

o elemento propulsor da salvação eterna<br />

dos homens, ou seja, a classe sacerdotal. Esta<br />

posição de destaque se acentuava tendo em vista<br />

que ela, por sua natureza e pelas circunstâncias<br />

que a envolvem, é propensa a constituir uma elite<br />

não só na virtude, mas também no saber, o que a<br />

faz se sobressair, uma vez mais, na orientação da<br />

vida social.<br />

De outra parte, como esta classe arca com obrigações<br />

muito pesadas — antes de tudo, a de re-<br />

A situação social do clero na<br />

civilização medieval<br />

Dentro dessa linha de idéias, na Idade Média prevalecia<br />

o conceito de que duas classes sociais deveriam<br />

sobretudo viver para o bem público, granjeando<br />

as legítimas distinções decorrentes do alto serviço<br />

que prestavam ao povo.<br />

Em primeiro lugar, o Clero. Sendo esta a classe, a<br />

bem dizer, instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo<br />

através do sacramento da Ordem, sendo os membros<br />

do Clero sagrados e incumbidos na Terra de uma<br />

missão divina, é compreensível que — máxime numa<br />

civilização católica — constituam a primeira categoria<br />

social. É quase uma imposição da honra que os<br />

distingue, pois a unção sacerdotal confere à pessoa<br />

do padre uma preeminência humana. Ele está posto<br />

acima de seus semelhantes para ser um traço de<br />

união entre estes e Deus, merecendo respeito como<br />

Considerava-se justo, na sociedade medieval, que os<br />

sacerdotes (no alto) e os guerreiros cristãos (acima, a sagração<br />

de um cavaleiro) tivessem privilégios e distinções, em razão das<br />

obrigações que assumiam em favor do bem público<br />

20


nunciar a fazer carreira e fortuna para se dedicar inteiramente<br />

aos interesses da Igreja —, como o sacerdote renuncia<br />

até ao prazer legítimo de constituir família, para se<br />

entregar por completo ao serviço de Deus e das almas,<br />

maior deve ser a sua recompensa. Por causa disto, a esta<br />

classe, cuja função era de capital importância, cabia uma<br />

posição privilegiada na civilização medieval.<br />

A alta missão de verter o próprio<br />

sangue<br />

Ao lado da classe sacerdotal vinha a categoria militar.<br />

Esta tinha obrigação de derramar seu sangue pela sociedade.<br />

Não se entendia a carreira militar como uma profissão<br />

qualquer, nem o homem consagrado ao mister das armas<br />

podia ser considerado como um mercenário que vendia<br />

seu sangue para o Estado. As tropas mercenárias sempre<br />

existiram na Idade Média. Eram lutadores que gostavam<br />

dos combates, sentiam-se mal longe dos perigos bélicos<br />

e por isso se faziam anunciar nos mercados internacionais,<br />

prestando serviços a quem os contratasse. A palavra<br />

mercenário não tinha então um sentido pejorativo. Pelo contrário,<br />

esses soldados combatiam com muita fidelidade,<br />

característica que os distinguiu e os tornou célebres muito<br />

tempo depois do período medieval. Quando a monarquia<br />

francesa caiu em 1789, as tropas que se manifestaram mais<br />

fiéis ao rei foram os mercenários suíços. E o último vestígio<br />

da tropa mercenária existente no mundo é também a<br />

Guarda Suíça do Papa, soldados contratados naquele país,<br />

e que servem com exímia presteza ao Sumo Pontífice.<br />

A condição do mercenário era, enfim, honesta. Muito<br />

diferente, porém, apresentava- se a situação do militar de<br />

carreira. Tratava-se de um homem que, em favor do bem<br />

comum, renunciava a tudo aquilo que a vida pode dar de<br />

“A partida”, gravura de Doré — Heróico ao extremo,<br />

o cavaleiro cristão media e sentia profundamente o risco e a<br />

dor que a guerra representava para ele e para os seus<br />

legitimamente bom. E chama a atenção que a mais belicosa<br />

época da história, a que nos ofereceu o maior número<br />

de grandes guerreiros, de indivíduos de imensa valentia e<br />

denodo, a que mais glorificou a coragem, foi ao mesmo<br />

tempo a época que teve mais consciência do que a condição<br />

de militar tem de pungente e de dramático para quem<br />

se entrega a ela de corpo e alma.<br />

Explica-se, em virtude da profunda catolicidade dos homens<br />

de então. Imbuídos dos ensinamentos da Igreja,<br />

sabiam compreender que a coragem não consiste<br />

apenas em ter toda a noção da importância do<br />

perigo, mas em enfrentá-lo por um ato de deliberação<br />

e de vontade. Nisto imitavam o modelo perfeito,<br />

o protótipo de heroísmo, que é Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo no Horto das Oliveiras. Ali o<br />

Divino Salvador não teve nenhuma atitude de<br />

estourado, incompatível com sua santidade infinita.<br />

Ele mediu toda a tristeza das dores que ia<br />

sofrer e chegou a sentir tanto medo que suou<br />

sangue. Apesar disto, como era dever d’Ele enfrentar<br />

aqueles padecimentos para cumprir sua<br />

missão redentora, enfrentou tudo, levou a Cruz até<br />

o alto do Calvário e se deixou imolar. Neste holocausto<br />

havia um ato deliberado da vontade de Jesus.<br />

Ora, o cavaleiro cristão medieval era um homem que tinha<br />

eminentemente esta concepção da coragem, possuin-<br />

21


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

do no mais alto grau a noção do perigo. Com freqüência<br />

aparecem na literatura medieval as manifestações de tristeza<br />

do cavaleiro que parte para a guerra. Com lágrimas<br />

nos olhos ele se despedia de seus familiares, os quais o<br />

acompanhavam até certo trecho da estrada. No último<br />

adeus, longe do castelo, chorava-se mais uma vez. E os cavaleiros<br />

sentiam tantas saudades de sua própria pátria, que<br />

combinavam com seus parentes uma determinada hora do<br />

dia em que rezariam certas orações para, ao menos em espírito,<br />

mitigarem a saudade. Vê-se aí a noção profunda,<br />

eminentemente cristã, que tinham do risco, da dor da separação,<br />

da aventura que a guerra representava e quanto todos<br />

sofriam com isto.<br />

A par dessa idéia do que representava o perigo dos combates,<br />

o cavaleiro medieval estava habituado a uma alta<br />

idéia do dever, conhecendo de modo claro as razões de ordem<br />

sobrenatural, deduzidas da é e da Revelação, que o<br />

levavam a correr esses riscos. E era por causa dessas razões<br />

sobrenaturais que ele de fato se expunha à luta e à morte.<br />

Característica desse estado de espírito era a vigília de<br />

armas do cavaleiro cristão.<br />

Durante a noite, enquanto fora tudo é silêncio<br />

e repouso, o futuro guerreiro reza sozinho<br />

no interior de uma igreja ou de<br />

uma capela. Sobre uma mesa diante do altar estão as armas<br />

que ele irá revestir no dia seguinte, quando for armado.<br />

Em meio às suas fervorosas preces, ele vai se compenetrando<br />

de que, uma vez sagrado cavaleiro, não mais<br />

se pertencerá a si mesmo. Pelo juramento que brotará de<br />

seu coração e de seus lábios, ele dispõe para sempre a sua<br />

vida a serviço da Igreja, dos órfãos, das viúvas, dos fracos e<br />

oprimidos, em cuja defesa é obrigado a entrar na liça.<br />

Cumpre notar que a Santa Igreja não ocultava a esse<br />

homem o risco que ele iria correr. Pelo contrário, fazia-o<br />

meditar durante uma noite inteira a respeito desse perigo.<br />

As armas colocadas diante do altar mostram a ele toda a<br />

rudeza do combate que vai enfrentar. Aquele elmo significa<br />

que a cabeça dele pode ser rachada e o seu pescoço cortado,<br />

enquanto a couraça o adverte de que seu peito pode<br />

ser transpassado. Tudo lhe recorda a iminência do perigo<br />

que vai correr, por amor a Nosso Senhor e a Nossa Senhora,<br />

de quem todo cavaleiro é um servidor e um arauto.<br />

Com esta noção eminente do peso do sacrifício e da<br />

dor, com esta aceitação das altas razões pelas quais um homem<br />

deve de fato expor-se a tanto, compreende-se que<br />

o medieval tivesse a condição militar no<br />

mais elevado conceito. À semelhança<br />

do que se passava com o Clero, esta<br />

Ao lado das classes sacerdotal e militar,<br />

outra havia que exercia grande...<br />

... influência na Idade Média: a universitária<br />

ou dos intelectuais


classe que arcava com a ingente obrigação<br />

da vida militar tinha de ser necessariamente<br />

privilegiada. Um homem<br />

de armas era considerado um<br />

verdadeiro benemérito, e as condições<br />

de guerreiro e de nobre eram inseparáveis.<br />

O nobre era o militar, o militar<br />

era o nobre, porque vertia o seu sangue<br />

pelo país, porque suportava o pior<br />

nos campos de batalha. Era, portanto,<br />

legítimo que desfrutasse também<br />

de maiores direitos, e da situação<br />

privilegiada, das honras e deferências<br />

que lhe eram tributadas.<br />

A influente classe dos<br />

intelectuais<br />

Sapateiro medieval — Os mestres<br />

artesãos eram sumidades no seu gênero<br />

Ao lado das duas classes precedentes<br />

havia outra que, pela ordem<br />

natural das coisas, sempre teve e terá<br />

uma imensa influência na sociedade:<br />

a universitária ou dos intelectuais.<br />

Mais do que por interesses, os homens<br />

se deixam conduzir por idéias.<br />

Sem estas, ele é incapaz de se mover.<br />

Na Idade Média o pensador elaborava suas doutrinas<br />

no recesso das universidades, mas gozava de uma glória da<br />

qual dificilmente temos noção em nossos dias. Quando,<br />

naqueles tempos, um mestre dava um grande curso, ele<br />

adquiria logo fama intelectual e estudantes do mundo inteiro<br />

acorriam para ouvir suas exposições. Era objeto de<br />

tanta admiração que, depois de uma brilhante aula, os alunos<br />

costumavam estender suas capas sobre a rua, a fim de<br />

sobre elas passar o ilustre sábio. Às vezes o levavam de liteira<br />

para casa, aplaudindo-o e conversando com ele. De<br />

maneira que, não raro, o trânsito parava nas ruas estreitas<br />

da cidade medieval, dando passagem a uma turba de universitários<br />

carregando o mestre, sentado numa liteira. Era<br />

o Prof. ulano de tal, de tal cátedra, que acabava de dar<br />

uma aula extraordinária.<br />

Essa fama e essa influência se irradiavam pela cidade.<br />

Por causa disso, os atos acadêmicos se revestiam de muita<br />

importância na vida civil. Quando havia defesa de tese numa<br />

universidade, não era de estranhar que as maiores personalidades<br />

do lugar comparecessem para assistir ao evento<br />

intelectual e presenciar a disputa entre dois grandes<br />

doutores. Aquelas pessoas todas estavam vendo um ato relevante<br />

da existência social: era uma discussão de idéias,<br />

pelas quais elas nutriam um respeito eminente.<br />

Aliás, uma das belezas da Idade Média vem do fato de<br />

se encontrar na organização de sua sociedade um universo<br />

de teorias harmônicas e coerentes entre si, atestando a<br />

existência de um mundo profundamente dominado pelas<br />

idéias. Princípios e noções elaborados pelos concílios, pelos<br />

teólogos, pela Igreja, pelas universidades,<br />

enfim, e que na realidade<br />

governavam os homens.<br />

Tríplice elite e sumidades<br />

populares<br />

Temos, então, uma tríplice elite<br />

participando da direção da Idade<br />

Média: elite eclesiástica, representando<br />

uma missão divina, o saber, a virtude;<br />

elite social, representando a nobreza<br />

incumbida da guerra, da meditação,<br />

da coragem, do patriotismo<br />

considerado com espírito sobrenatural,<br />

encarregada da manutenção das<br />

tradições da sociedade; e a elite intelectual,<br />

feita dos plebeus e dos nobres<br />

desejosos de seguir a vida universitária<br />

e que constituíam a luz da<br />

sociedade.<br />

Dentro dessa civilização protegida<br />

por essa tríplice elite, qual era a situação<br />

do homem do povo?<br />

Ele não constituía uma espécie de<br />

matéria anônima. A própria condição<br />

popular era repleta de elites, de caráter profissional. As<br />

corporações dos artífices produziam operários excelentes, e<br />

quando um deles se revelava dotado de talento incomum,<br />

passava por um exame e, se aprovado, recebia o título de<br />

mestre. Esses mestres eram sumidades em seu próprio<br />

gênero e ainda tinham dentro do seu pequeno âmbito muita<br />

honra e muito galardão.<br />

Além disso, o homem do povo vivia protegido pela Igreja,<br />

dentro de uma existência humilde, mas cuja modéstia a<br />

Igreja sabia iluminar. De que forma? Ensinando a todos<br />

que o importante neste mundo não é ser rico ou pobre, ser<br />

nobre ou plebeu, inteligente ou ignorante, mas é ter é<br />

Católica, autêntica e íntegra, ser puro, honesto e leal. azendo<br />

compreender que, após a morte, o Eterno Juiz haverá<br />

de julgar a cada um, não de acordo com a posição que<br />

ocupou nesta vida, e sim segundo o bem ou o mal que praticou<br />

na Terra. De maneira que essa convicção, iluminando<br />

a vida do homem do povo, conferia muita dignidade à<br />

própria pobreza e à própria mendicância. É o que explica<br />

certas cenas da Idade Média em que vemos reis lavando os<br />

pés de leprosos, servindo os pobres, e declarando que, se<br />

pudessem, deixariam o trono para se tornarem mendigos<br />

de Jesus Cristo.<br />

Desta realidade do Juízo inal e dos supremos objetivos<br />

da existência humana depreendia-se toda a organização<br />

medieval. A figura desta vida passa. Ela não é senão uma<br />

representação. No fundo, o homem vale pela virtude que<br />

pratica. Eis o grande, o fundamental axioma em que se<br />

baseava a civilização na Idade Média.<br />

v<br />

23


DONA LUCILIA<br />

Dª Lucilia entre sua irmã Yayá (esquerda)<br />

e sua prima Anita. Ao lado, fac-símiles de<br />

uma das cartas transcritas nesta seção<br />

Magnífico equilíbrio<br />

entre cerimônia e intimidade<br />

Em harmonia com seus anelos de um mundo onde<br />

só reinassem elevação, benquerença e bom trato,<br />

Dª Lucilia demonstrava uma invariável delicadeza<br />

de sentimentos, sempre própria a encantar os corações<br />

abertos que dela se aproximassem. Exemplos paradigmáticos<br />

dessa riqueza de alma são as cartas e outros escritos<br />

que ela dirigia a seus filhos, procurando amenizar as<br />

saudades quando estes se ausentavam por breves ou longos<br />

períodos.<br />

“Parece-me ouvir-te e ver-te<br />

o dia inteiro”<br />

Assim, em meados de 1921, por ocasião de uma estadia<br />

de <strong>Plinio</strong> e Rosée em Santos, na casa de sua tia Zili, irmã<br />

de Dª Lucilia, esta enviou ao filho as seguintes linhas, impregnadas<br />

de intenso carinho materno:<br />

ilho querido!<br />

24


Escrevo-te às pressas por estar passando mal e muito cansada<br />

pelas muitas visitas que temos recebido ontem e hoje.<br />

Tenho tido tantas, tantas saudades tuas, meu filho, que se<br />

quisesse não saberia dizer-te!... Parece-me ouvir-te e ver-te o<br />

dia inteiro..... arei todo o possível para ir ver-te e à minha filhona<br />

na segunda-feira, se Deus permitir.<br />

Dizes-me que a casa de tia Zili está lindinha, o que é natural<br />

com o seu bom gosto, e tenho muito desejo de vê-la. Recebi<br />

ontem e hoje à tarde tuas cartinhas que me alegram tanto...<br />

Sê sempre bonzinho, obediente e delicado para com teus<br />

bons tios, e carinhoso e delicado para com Ilka.<br />

Um apertado abraço a tio Nestor¹, muitos beijos a tia Zili<br />

e Ilka, e para você..... muitas bênçãos e o coração saudoso de<br />

tua mamãe,<br />

Lucilia<br />

De outra estadia, um pouco posterior, é este cartão escrito<br />

por Dª Lucilia a <strong>Plinio</strong>:<br />

que gostaria de dotar o <strong>Plinio</strong> de grande fortuna e prestígio.<br />

E, como que a confirmar o adágio latino, filius<br />

matriscat³, acrescentava:<br />

— Quer ver Lucilia? Olhe para <strong>Plinio</strong>. Quer ver João<br />

Paulo? Olhe para Rosée.<br />

Nos conselhos, afeto e sabedoria<br />

Nos momentos oportunos, nunca faltava a Dª Lucilia a<br />

palavra adequada para esclarecer uma conjuntura ou dirimir<br />

uma dúvida. Com o passar do tempo, as repreensões<br />

foram naturalmente cedendo lugar a recomendações que<br />

ela sabia dar como ninguém, deixando que os filhos resolvessem<br />

por si os problemas.<br />

Em razão do alto grau de perfeição moral a que aspirava<br />

para eles, era levada a aconselhá-los com palavras repassadas<br />

de afeto e sabedoria.<br />

ilho querido!<br />

Recebi tua carta que muito prazer me causou.<br />

Dora² te dirá porque não te escrevo mais hoje, o<br />

que farei amanhã sem falta. Vai este pequeno money<br />

para ficares mais um dia. Sê bem amável para<br />

com tua irmã e prima. Estou com muitas saudades<br />

tuas, e envio-te com minha bênção, muitos e muitos<br />

beijos e abraços. Divirta-te mas com juízo.<br />

De tua mamãe que muito te quer,<br />

Lucilia<br />

“Quer ver Lucilia? Olhe para<br />

<strong>Plinio</strong>”<br />

O Sr. Nestor, mencionado na carta acima<br />

transcrita, sempre manteve afetuoso relacionamento<br />

com Dª Lucilia e os seus. Havia-se formado<br />

na Inglaterra, ainda em fins do século passado.<br />

Parecia um gentleman, muito distinto e amável,<br />

mas ao mesmo tempo com uma têmpera de<br />

ferro.<br />

Quando seus sobrinhos ainda eram crianças,<br />

para distraí-los imitava às vezes dança de caféconcerto,<br />

o que conseguia representar com toda<br />

a perfeição. De bengala e palhetinha, cantava,<br />

assobiava, pulava, conseguindo entreter durante<br />

um bom tempo seus pequenos espectadores, que<br />

o aplaudiam alegremente.<br />

Votou de forma ininterrupta dedicada<br />

amizade a Dª Lucilia. Nos últimos anos de vida,<br />

conversando com alguns amigos de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

comentava:<br />

— Lucilia tinha uma personalidade muito<br />

marcada e muito vigorosa. E um afeto sem igual<br />

por seu filho <strong>Plinio</strong>. Várias vezes ela me disse<br />

ino e amável, Nestor Barbosa erraz comprazia-se no relacionamento<br />

afetuoso que sempre manteve com Dª Lucilia e os filhos dela<br />

25


DONA LUCILIA<br />

O tino psicológico fazia dela exímia observadora e<br />

excelente conselheira. Discreta, prestando muita atenção<br />

no que se conversava em sua presença, era dotada de agudo<br />

senso moral que lhe possibilitava discernir com nitidez<br />

os matizes de bem e de mal de tudo quanto em torno dela<br />

se passava. Sua percepção era especialmente sensível e fina<br />

no que dizia respeito aos Mandamentos da Lei de<br />

Deus, à dignidade e à correção.<br />

Sobre assuntos práticos, ela não era de dar conselhos<br />

inoportunos, limitando-se a alguma sugestão. Se opinava<br />

sobre a conduta de alguém ou emitia seu juízo a respeito<br />

de certo conjunto de circunstâncias, insistia em determinado<br />

ponto que julgasse não haver sido considerado adequadamente.<br />

Alertando a um dos filhos, dizia:<br />

— Preste atenção. Sobre tal pessoa ou tal situação assim,<br />

sua mãe acha que...<br />

E se se tratava de precatar contra algum defeito ou má<br />

intenção de outrem, nunca o fazia sem antes haver refletido<br />

muito. É claro que jamais dava conselhos a alguém diante<br />

de terceiros. Este modo de conduzir as almas, impregnado<br />

de espírito católico, tornou-se mais admirável ao terem<br />

Rosée e <strong>Plinio</strong> atingido a idade própria a freqüentar a<br />

vida social.<br />

Se a quem é muito jovem o tempo parece escoar vagarosamente,<br />

a quem é mãe os anos correm céleres. Como que<br />

num piscar de olhos ela vê aqueles filhos, que ainda ontem<br />

embalava no colo, já prontos a ingressar na sociedade.<br />

Para Dª Lucilia, essa nova fase dava origem a não poucos<br />

receios.<br />

Na adolescência, <strong>Plinio</strong> e Rosée começaram a freqüentar a<br />

sociedade, preparados por Dª Lucilia, a quem costumavam<br />

encontrar rezando diante do seu oratório do Sagrado<br />

Coração de Jesus (página seguinte)<br />

Guiando os filhos que vão freqüentar<br />

a sociedade<br />

Em conseqüência do anticlericalismo reinante no século<br />

XIX e que se prolongou século XX adentro, a prática da<br />

religião era vista como mais própria às mulheres. Segundo<br />

os conceitos então dominantes, não se admitia que uma jovem<br />

não fosse recatada e piedosa. Envolta na branca veste<br />

da virgindade, ela subia os degraus do altar apoiada no braço<br />

protetor de seu pai, para ser entregue àquele que daí a<br />

pouco seria seu cônjuge. Não se tolerava que uma esposa<br />

fosse infiel ao marido, e havia todo tipo de compreensão<br />

para o esposo que, vendo-se traído, “lavasse no sangue a<br />

honra ofendida”. Este era um dos clichês da linguagem do<br />

tempo.<br />

Contudo, embora se exigisse do sexo feminino, com razão,<br />

o cumprimento da Lei de Deus, contraditoriamente<br />

isto não ocorria em relação aos homens. O modelo de virilidade<br />

então na moda, herdado do positivismo caduco e anticlerical<br />

do século anterior, prescrevia como impróprio a<br />

um espírito “objetivo” e “esclarecido” — outros termos do<br />

vocabulário redundante e vazio da impiedade em voga —<br />

a prática da Religião Católica, incluída no rol das superstições<br />

que a ciência acabaria por derrubar com seus progressos<br />

deslumbrantes. Como decorrência dessas idéias,<br />

havia todas as complacências em relação àqueles que, antes<br />

ou depois do casamento, não conservassem a castidade<br />

segundo seu estado. Era isto tão difundido que alguns pais<br />

chegavam a favorecer, e por vezes até a impor veladamen-<br />

26


te, que os próprios filhos passassem a freqüentar casas de<br />

perdição.<br />

Por tudo o que já conhecemos de Dª Lucilia, bem podemos<br />

calcular a sua aversão a essa mentalidade anticristã<br />

e o quanto procurava formar seu filho em sentido diametralmente<br />

oposto.<br />

No que diz respeito às filhas, as mães procuravam precavê-las<br />

de modo discreto. Mas até quando os usos sociais<br />

manteriam as regras de moralidade em relação às moças?<br />

De qualquer modo, assim como para evitar que uma criança<br />

se machuque não se lhe pode proibir de andar, correr e<br />

saltar, também era inevitável o ingresso da juventude na<br />

vida de sociedade, ainda que com o risco de extraviar-se.<br />

Ao atingir 15 anos de idade, as jovens eram apresentadas<br />

em um baile de gala às relações de suas famílias, o<br />

que se revestia, conforme as épocas e o nível social,<br />

de maior ou de menor solenidade. Este costume<br />

se mantém ainda hoje, mesmo em países mais<br />

modernos e avançados como<br />

os Estados Unidos, onde é<br />

habitual convidarem-se príncipes<br />

e princesas de sangue a<br />

honrar semelhantes event os<br />

com sua presença.<br />

Embora no Brasil os tempos<br />

felizes do Império, com<br />

suas cerimônias e seu protocolo,<br />

tivessem ficado para<br />

trás, pomposas festas e bailes<br />

continuavam a atrair e<br />

deslumbrar a sociedade. Dª<br />

Lucilia não se furtava às<br />

obrigações que sua posição<br />

lhe impunha. Por isso, quando<br />

chegou a hora de seus filhos<br />

começarem a freqüentar<br />

esses ambientes, ela os<br />

preparou convenientemente.<br />

Tais encontros sociais, apesar<br />

de se revestirem das aparências<br />

de diversão, constituíam<br />

também uma espécie<br />

de campo de batalha sui generis,<br />

onde se jogavam interesses<br />

de família das mais diversas<br />

ordens. Ali se faziam<br />

e desfaziam projetos de casamentos<br />

dos quais não estavam<br />

ausentes aspectos econômicos,<br />

relações de sociedade<br />

e até alianças políticas.<br />

Por isso, ao se abrirem as<br />

portas dessas solenes atividades<br />

aos jovens novatos,<br />

era chegada a hora de colocar<br />

em prática a arte das boas maneiras. Sobretudo era o<br />

momento de se mostrarem dignos descendentes das respectivas<br />

estirpes.<br />

Quando Dª Lucilia não acompanhava seus filhos, estes,<br />

ao voltarem para casa, encontravam-na freqüentemente a<br />

rezar diante de seu oratório do Sagrado Coração de Jesus.<br />

Ela nunca se recolhia sem que Rosée e <strong>Plinio</strong> retornassem.<br />

Nas conversas domésticas do dia seguinte, queria saber como<br />

havia transcorrido a festa. Às vezes as circunstâncias<br />

lhe davam oportunidade para uma “lição ao vivo” a respeito<br />

de tipos característicos daquela ainda requintada sociedade.<br />

Cultivando o trato cerimonioso<br />

Aliás, cumpre ressaltar que, embora já estivessem<br />

em plena era da influência liberalizante do American<br />

way of life, os parentes próximos de Dª Lucilia<br />

conservaram entre si um trato<br />

amenamente cerimonioso,<br />

em inteira consonância<br />

com o modo de ser desta dama<br />

paulista, sempre inclinada<br />

a tudo quanto era decoroso<br />

e elevado.<br />

Mas, Dª Lucilia não seria<br />

ela mesma se não aliasse à<br />

admiração por um relacionamento<br />

impregnado de dignidade<br />

aquele seu contínuo<br />

e envolvente afeto. E era<br />

esse magnífico equilíbrio entre<br />

cerimônia e intimidade,<br />

mantido com sabedoria por<br />

ela e pelas gerações passadas,<br />

que tornava particularmente<br />

encantadores os aspectos<br />

miúdos da vida de todos<br />

os dias.<br />

(Transcrito, com<br />

adaptações,<br />

da obra “Dona Lucilia”,<br />

de João S. Clá Dias)<br />

1) Nestor Barbosa erraz, esposo<br />

de Dona Zili.<br />

2) Sobrinha de Dª Lucilia.<br />

3) Expressão latina que significa:<br />

o filho sai à mãe.<br />

27


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

GRANDEZAS<br />

E PULCRITUDES<br />

DA DOR<br />

Sepultura<br />

do Rei<br />

Eduardo II<br />

da Inglaterra<br />

(Catedral de<br />

Gloucester)


Ohomem tem necessidade de<br />

tornar suportável a vida nesta<br />

Terra. Para adoçar suas<br />

agruras, ele tem à disposição muitos lenitivos<br />

lícitos, entre os quais, a contemplação<br />

do que há de celeste e maravilhoso<br />

na obra da Civilização Cristã.<br />

Acontece, porém, que um dos frutos<br />

excelentes engendrados pela Cristandade<br />

é, precisamente, a atitude que<br />

o católico deve tomar em face da dor.<br />

Certa vez, nos meus tempos de aluno<br />

dos jesuítas, um professor de Religião<br />

nos propôs um problema muito<br />

interessante, abstraindo-se do aspecto<br />

prosaico que o envolve.<br />

— Imaginem — dizia ele — que<br />

uma galinha fosse capaz de pensar, e que<br />

alguém se aproximasse dela e lhe dissesse:<br />

“Tu foste criada para servir de alimento<br />

ao homem. Daqui a pouco, seu<br />

dono vai te matar e te almoçar”. Pergunta-se,<br />

então, que sentimento deveria<br />

ter a galinha: de horror, porque vai morrer?<br />

Ou de entusiasmo, porque o fim<br />

para o qual ela existe — alimentar o<br />

homem — vai se realizar?<br />

O problema estava bem apresentado,<br />

e me impressionou de modo profundo.<br />

Anos depois, procurando resolvêlo<br />

à luz da doutrina católica, a solução<br />

me pareceu clara. Não se trata, é evidente,<br />

da galinha, mas do estado de<br />

espírito delineado pela figura metafórica<br />

que o professor nos pintou. A resposta<br />

que encontrei foi esta: a galinha<br />

sentiria necessariamente a dor horrorosa<br />

de sua própria imolação; porém,<br />

mais do que a dor, ela não poderia<br />

deixar de sentir a felicidade inerente<br />

ao fato de ter alcançado o seu fim último,<br />

a sua completa realização. E isto<br />

traz uma alegria muito superior à infelicidade<br />

do holocausto. Portanto, os<br />

dois sentimentos deveriam se juntar,<br />

de tal maneira que a galinha amasse o<br />

fato de chegar a seu fim, embora o<br />

fizesse com dor.<br />

O mesmo se pode aplicar à vida humana.<br />

Neste mundo, a pessoa feliz não<br />

é a que vive muito, nem a que vive<br />

prazerosamente. É, na verdade, aquela<br />

que conduz a sua existência segun-<br />

Túmulo do Infante D. Alfonso (Catedral de Burgos)<br />

do o objetivo para o qual foi criada:<br />

amar, servir e glorificar a Deus no cumprimento<br />

dos desígnios que Ele tem<br />

sobre ela. Nosso ânimo deve decorrer<br />

desse senso de que a alegria elevada e<br />

serena da finalidade alcançada é a autêntica<br />

alegria da vida. Nela encontramos<br />

as forças para suportar os sofrimentos<br />

que a Providência permite<br />

em nosso caminho, e os recursos para<br />

compreender tudo quanto eles significam<br />

na consecução de nossa realização<br />

suprema.<br />

Por isso mesmo, na época da Europa<br />

maravilhosa, nos áureos tempos<br />

da Civilização Cristã, encontramos a<br />

dor instalada no meio dos esplendores<br />

da vida, com toda a amplitude possível.<br />

Assim, a morte transformava-se<br />

numa grande solenidade, a respeito<br />

da qual a etiqueta tinha disposto todas<br />

as suas exigências.<br />

Por exemplo, quando um arquiduque<br />

d’Áustria agonizava, no momento<br />

em que lhe seria ministrado o Santo<br />

Viático, todos os príncipes da Casa<br />

Imperial ali presentes entravam em<br />

procissão no quarto, e formavam uma<br />

corola de velas acesas em torno do<br />

Senhor Eucarístico e daquele que em<br />

breve partiria para a eternidade. No<br />

meio de toda essa magnificência, o<br />

moribundo recebia o Santíssimo Sacramento,<br />

era ungido com os santos<br />

óleos. Seu falecimento se dava em<br />

meio a esse aparato da morte realizado<br />

com as pompas da vida. Como suprema<br />

despedida, seu funeral era um<br />

requinte de gala.<br />

Magnífica expressão desse enobrecimento<br />

da dor, dessa superior beleza<br />

de que se revestia o sofrimento, temos<br />

os garbosos e hieráticos gizantes medievais,<br />

os grandiosos monumentos<br />

fúnebres, as estátuas representando<br />

homens cobertos de véu e carregando<br />

imponentes caixões. Toda uma arte<br />

imensamente desenvolvida, para re-<br />

29


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

vestir de pulcritude o aspecto doloroso<br />

da vida.<br />

Mais. O entusiasmo com que se esperava<br />

e se cantava, nas vésperas das<br />

batalhas, a agonia da luta. Nasceram<br />

as canções de gesta, nas quais cada<br />

golpe, cada “ai!” recebia a glorificação<br />

de um acento épico, de uma arrebatadora<br />

melodia. Nas salas de armas<br />

dos castelos, na noite que antecedia<br />

a partida para a frente de combate,<br />

os homens conversavam e sorriam.<br />

E nos bailes das festas de primavera,<br />

enquanto dançavam pelos salões<br />

dos palácios, aqueles nobres de cabeleira<br />

empoada, de sapatos de fivelas<br />

de prata e saltos escarlates sabiam<br />

que dali a poucas semanas estariam<br />

partindo para a guerra. Sabiam que<br />

muitos não retornariam, que várias<br />

daquelas senhoras estariam na viuvez,<br />

mães ficariam sem filhos, e os filhos,<br />

sem pais. Entretanto, dançavam...<br />

Eles encaravam a dor com serenidade<br />

e grandeza de alma.<br />

Do mesmo modo eram respeitadas<br />

e postas em foco as mais variadas formas<br />

de sofrimento — inclusive o da<br />

maternidade ou o do esforço intelectual<br />

levado a bom termo —, porque<br />

bem se compreendia a noção de que<br />

esta Terra é um vale de lágrimas, segundo<br />

a linda expressão da Salve Rainha.<br />

Sorria-se para a dor por uma superior<br />

razão: “Vou realizar meu fim,<br />

aquilo para o que existo, e, por causa<br />

disso, apesar de todo sofrimento, estou<br />

alegre”.<br />

Daí vêm, igualmente, o júbilo e a<br />

pompa com que a Igreja celebrava —<br />

e celebra — a entrada de alguém para<br />

a vida religiosa. É o ingresso numa<br />

existência de renúncias e provações.<br />

Mas, em se tratando de uma jovem,<br />

esta se veste de noiva, orna-se a capela<br />

de flores, toca-se o órgão, o coro<br />

canta, e tudo se passa como se fosse<br />

uma esplêndida festa de casamento.<br />

A razão disso: a moça está em vias de<br />

realizar a finalidade para a qual foi<br />

criada.<br />

Em sua vida no claustro ela encontrará<br />

a dor, sem dúvida, porém a assumirá<br />

de grand coeur, com abundância<br />

de alma, sondando-a até o extremo, a<br />

exemplo do Divino Mestre que, diante<br />

da Cruz, abraçou-a e chorou. Pranto<br />

de comoção no qual, avantajandose<br />

ao oceano de amargura interior,<br />

entrava uma imensa felicidade: era<br />

seu supremo objetivo, a Cruz para a<br />

qual toda a vida d’Ele havia sido ordenada.<br />

v<br />

Gizante do<br />

senescal Philippe Pott<br />

(Museu do Louvre)<br />

Na página seguinte,<br />

gizantes na catedral de<br />

Canterbury<br />

30


31


Nossa Senhora com Anjos, por ra Angélico<br />

“Porta do Céu, abri-vos para mim!”<br />

Nossa Senhora é chamada a Porta do Céu. É por meio d’Ela que<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo passou do Céu para a Terra, e é através<br />

d’Ela que os homens passam do mundo para a eterna bem-aventurança.<br />

É por essa porta que todas as nossas orações chegam até Deus, e é<br />

por meio d’Ela que obtemos as graças necessárias para a nossa salvação.<br />

Assim, em todos os dias de nossa vida e, sobretudo, no momento em que<br />

estivermos para entrar na eternidade, a Ela devemos dirigir esta filial e<br />

confiante súplica: “Porta do Céu, abri-vos para mim!”

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