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Revista Dr Plinio 39

Junho de 2001

Junho de 2001

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São Luís Gonzaga<br />

(Quadro conservado<br />

na Igreja de Santo<br />

Inácio, em Roma)<br />

Mais do que pela alta nobreza de sangue que o distinguia, São<br />

Luís Gonzaga reluziu na história por sua santidade estelar, especialmente<br />

vincada na prática exímia e heróica da virtude da<br />

castidade. Resguardando sua alma com um requinte de pudor e de fidelidade<br />

aos Mandamentos divinos, rejeitou até o fim da vida qualquer forma de mal,<br />

sempre ancorado na verdade, na lógica e na justiça.<br />

Varão talhado para grandes lutas, de físico vigoroso e espírito delicadíssimo,<br />

pode-se dizer que a inocência de São Luís começa onde a de muitos outros<br />

terminaram. Por isso a Santa Igreja o exaltou como o arquétipo da pureza e<br />

como uma de suas mais rutilantes glórias.


Sumário<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> diante<br />

da Catedral de<br />

Notre-Dame<br />

de Paris,<br />

em 1988<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />

Fotolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />

4<br />

5<br />

6<br />

10<br />

15<br />

21<br />

25<br />

EDITORIAL<br />

Inapreciável contributo para o<br />

apostolado no século XXI<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Ardorosa conclamação<br />

ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

O vigor da vida espiritual<br />

GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

“O que deixa saudade é a luta<br />

e o sacrifício<br />

PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

Quando os homens viviam como<br />

num cativeiro<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

Huysmans - Apelo à conversão<br />

DONA LUCILIA<br />

Tempo de apreensões e esperanças<br />

Preços da assinatura anual<br />

Junho de 2001<br />

Comum . . . . . . . . . . . . . . R$ 60,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . R$ 90,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . R$ 180,00<br />

Grande Propulsor . . . . . . R$ 300,00<br />

Exemplar avulso . . . . . . . R$ 6,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />

29<br />

31<br />

36<br />

DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

A maior crise moral da era cristã<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

O poder da fé e da devoção<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

Prêmio à altura do afeto<br />

3


Editorial<br />

Inapreciável contributo para o<br />

apostolado no século XXI<br />

Deus estabeleceu misteriosas e admiráveis<br />

relações entre certas formas, cores, sons,<br />

perfumes e sabores de um lado, e de outro<br />

lado certos estados de alma”. Por isso, é possível utilizar<br />

costumes, ambientes, artes e cultura para influenciar<br />

as mentalidades, levando indivíduos, grupos<br />

ou até povos inteiros a tomarem decididamente o rumo<br />

indicado pela doutrina da Igreja Católica, ou o<br />

oposto a ele.<br />

Este pensamento, consignado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em<br />

seu livro Revolução e Contra- Revolução, aponta para<br />

um vasto campo de investigação e experiência no âmbito<br />

sociológico e psicológico, um verdadeiro universo<br />

cuja exploração pode trazer incontáveis benefícios<br />

para a evangelização no terceiro milênio.<br />

Uma regra corriqueira de pedagogia ensina que os<br />

ambientes moldam as crianças. Não menos verdade<br />

— nota <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> — é que eles continuam a formar<br />

(ou deformar) os homens de qualquer idade, pois a<br />

luta para nos mantermos nas vias da virtude não termina<br />

senão ao cerrarmos os olhos para este mundo<br />

de exílio. Colocando-se nesta perspectiva, ele observava<br />

e analisava construções, monumentos, trajes,<br />

decorações, modas, veículos, músicas, alimentos, etc.,<br />

aquilatando toda a influência que podiam exercer —<br />

para o bem ou para o mal.<br />

*<br />

O odor perfumado do incenso, o fluir harmonioso<br />

do canto gregoriano ou do órgão, o jogo das penumbras<br />

em contraposição aos raios do sol coloridos pelos<br />

vitrais, tudo isto cria nas igrejas uma atmosfera<br />

propícia a atrair muitos freqüentadores, os quais nem<br />

chegam a discernir com nitidez o motivo da satisfação<br />

que ali experimentam. Sentem, entretanto, que aquele<br />

conjunto lhes traz paz e serenidade inefáveis no<br />

meio das piores aflições, e estão decididos a voltar<br />

muitas e muitas vezes.<br />

Como despertar nos evangelizadores a atenção<br />

para fenômenos deste tipo, tornando- os aptos a utilizá-los<br />

com eficiência no apostolado católico?<br />

Tal preocupação acompanhou <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> desde<br />

seus primeiros anos de Congregado Mariano, levando-o<br />

a dedicar a esta questão muitos de seus escritos<br />

e conferências. Quem teve a oportunidade de assistir<br />

a uma delas guarda saudades inenarráveis daqueles<br />

noites nas quais, fazendo projetar diapositivos ou<br />

filmes, o líder católico os comentava para seu auditório.<br />

Quanta variedade na abordagem do tema,<br />

quanta riqueza de análise, quanta observação surpreendente,<br />

quanta agudeza de espírito em perceber<br />

a força dos detalhes e mais ainda dos conjuntos! E<br />

que incrível facilidade em tornar claras suas reflexões<br />

e explicitações!<br />

E aqui encontramos um traço dos mais interessantes<br />

da escola de pensamento pliniana, o qual “embebe”<br />

a variada matéria estampada nas páginas de<br />

nossa revista. Veja-se neste número, por exemplo, em<br />

“<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta”, como ele ressalta a influência<br />

decisiva dos ambientes na conversão de um bemdotado<br />

escritor católico.<br />

Destaque especial deve ser dado à seção “Luzes da<br />

Civilização Cristã” — espaço natural para abrigar comentários<br />

desse gênero — onde vamos encontrar, de<br />

mês em mês, suas atraentes exposições a respeito dos<br />

mais variados aspectos da realidade que nos rodeia.<br />

A nosso ver, o domínio dessa matéria por parte dos<br />

apóstolos contribuirá ponderavelmente para o sucesso<br />

da nova evangelização.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista.Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

Ardorosa conclamação<br />

Certo dia de junho de 1931, um pequeno aeroplano<br />

sobrevoava a paulicéia, atirando uma<br />

chusma de folhetos. Era um recurso de propaganda<br />

que se tornara habitual, mas dessa vez não<br />

se tratava de mero reclame. Aqueles papéis traziam<br />

aos paulistanos um manifesto intitulado “Católicos!<br />

Brasileiros!” Não constava o nome do autor, mas,<br />

ao ser publicado o mesmo texto nos jornais daquele<br />

dia, vinha assinado por um desconhecido “Hernan<br />

Corrêa”. Tudo teria ficado envolto em mistério,<br />

Em mais uma prova de<br />

seu fervoroso amor à<br />

Santa Igreja, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

então com 22 anos,<br />

redigiu um manifesto em<br />

favor do ensino religioso<br />

nas escolas, para ser<br />

espalhado sobre a<br />

capital paulista (ao lado)<br />

se <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> não tivesse guardado para a história<br />

um exemplar, no qual cuidadosamente anotou:<br />

“Trabalho que escrevi a pedido de Mons. Pedrosa,<br />

Vigário Geral interino, no dia 4-VI-31. Foi feita do<br />

trabalho uma edição de alguns milheiros. Um aeroplano<br />

jogará alguns sobre a Cidade. Foi feita uma<br />

larga distribuição nas Escolas Superiores.”<br />

O governo paulista havia instituído o ensino religioso<br />

nas escolas, levantando a reação indignada<br />

de protestantes, agnósticos e adeptos de outros credos,<br />

que receavam a obrigatoriedade da instrução<br />

católica. Era um mero pretexto insuflado pelos<br />

adversários da Igreja. No folheto em questão, <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong>, então jovem advogado de 22 anos, demonstra<br />

a falta de fundamento dessa objeção, e o direi-<br />

to de as crianças católicas estudarem sua religião.<br />

Concluía o manifesto nos seguintes termos:<br />

“A consciência católica, absolutamente obrigada<br />

a cerrar fileiras em torno das autoridades eclesiásticas<br />

na campanha em prol do ensino religioso, não pode<br />

deixar de prestar à Igreja, neste momento de luta,<br />

sua adesão entusiástica.<br />

“Que todos os católicos se tornem, portanto, ardorosos<br />

propagandistas do ensino religioso; que atendam<br />

às considerações que aí ficam expostas, para sustentar<br />

sempre que a liberdade de consciência brilha,<br />

agora, com um fulgor que nunca teve sob o agnosticismo<br />

opressor; eis a tarefa que a cada católico incumbe<br />

em nossos dias.<br />

“É, pois, cheios de ardor e confiança que lembramos<br />

um brado glorioso que nos é caro: A Igreja espera<br />

que cada qual cumpra o seu dever!”<br />

5


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

Procissão<br />

de Santa<br />

Cristina,<br />

nos Alpes<br />

italianos<br />

O vigor da<br />

vida espiritual


Transcrevemos em seguida a parte final do memorando redigido por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

em 1940, a pedido de um sacerdote vinculado à Ação Católica, para mostrar<br />

a necessidade de se utilizarem as práticas consagradas pela ascese cristã.<br />

Meditar é aplicar a inteligência<br />

às verdades eternas,<br />

para sempre melhor<br />

conhecê-las. Aplicá-la, também, ao conhecimento<br />

quanto possível exato de<br />

nós mesmos, para verificar o grau de<br />

correspondência entre aquilo que há<br />

em nós e aquelas verdades eternas, e,<br />

por aí, deduzir os meios práticos para<br />

atingir essa correspondência. Para este<br />

último fim é necessária uma aplicação<br />

da vontade sobre todo o já meditado,<br />

para que se fortaleça no amor<br />

do bem e no ódio ao mal, e se proponha<br />

a aperfeiçoar-se.<br />

Há vários métodos de meditação,<br />

mas entre todos se salientam os que se<br />

contêm nos Exercícios Espirituais de<br />

Santo Inácio. Aliás, o Santo Padre Pio<br />

XI recomendou expressamente estes<br />

Exercícios aos membros da Ação Católica<br />

na Encíclica já citada, nos seguintes<br />

termos: “Vivamente desejamos,<br />

Veneráveis Irmãos, que se formem pelos<br />

Exercícios Espirituais numerosas<br />

coortes da Ação Católica. Não achamos<br />

palavras para exprimir toda a alegria<br />

que sentimos vendo organizaremse<br />

por toda a parte cursos de exercícios<br />

particularmente reservados às pacíficas<br />

fileiras dos valorosos soldados<br />

de Cristo, especialmente aos mais jovens,<br />

que numerosos acorrem para travar<br />

os santos combates do Senhor, e ali<br />

encontram não só a força para melhorar<br />

a própria vida, mas bem depressa<br />

sentem no coração a voz misteriosa<br />

que os chama para o apostolado em<br />

toda a sua magnifica significação”.<br />

A leitura espiritual recorda-nos nosso<br />

destino eterno em meio às atividades<br />

deste mundo, que nos distraem pela<br />

sua multiplicidade e urgência; desapega-nos<br />

a inteligência e a vontade das<br />

coisas terrenas e eleva-nos a sensibilidade,<br />

já mostrando-nos as misteriosas<br />

belezas da Fé, já movendo-nos pelos<br />

exemplos de santidade, ou ainda, dando-nos<br />

regras práticas de vida e de devoção.<br />

Desta forma, a leitura<br />

espiritual deposita em nós<br />

os gérmens da perfeição<br />

cristã, que hão de ser<br />

desenvolvidos e amadurecidos<br />

pela meditação,<br />

a qual encontra<br />

neles seus elementos vitais. Mais<br />

explicitamente, é a leitura espiritual que<br />

fornece a matéria de nossa meditação.<br />

Entretanto, para ser proveitosa, esta<br />

leitura deve ser periódica e freqüente,<br />

e cuidadosamente proporcionada<br />

aos interesses especiais de cada um,<br />

porque do contrário a sua influência<br />

fragmentária e esparsa facilmente se-<br />

Pela meditação<br />

e leitura<br />

espiritual,<br />

crescemos e<br />

amadurecemos<br />

em nosso<br />

caminho rumo<br />

à santidade<br />

Necessidade da leitura<br />

espiritual e modo de fazê-la<br />

Para bem meditar é quase sempre<br />

necessária a leitura espiritual, isto é, a<br />

leitura atenta e devota de algum livro<br />

de piedade, devidamente aprovado pela<br />

autoridade eclesiástica.<br />

7


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

ria delida pelos agentes mundanos,<br />

que atuam quase sem cessar.<br />

Obrigação de estudar a<br />

doutrina católica<br />

Para bem meditar é ainda necessário<br />

o conhecimento claro da doutrina da<br />

Igreja.<br />

Vimos que a meditação versa sobre<br />

as verdades eternas. Ora, estas verdades<br />

estão contidas na doutrina de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo. Portanto, sem<br />

a instrução religiosa que nos dê o seu<br />

conhecimento claro, não só se poderão<br />

perder os frutos da meditação e da leitura<br />

espiritual, como também poderá<br />

acontecer muito provavelmente que o<br />

espírito se ponha a divagar por caminhos<br />

escusos, que levam a ilusões perigosas<br />

e a erros funestos, com suas conseqüências<br />

imprevisíveis sobre a sensibilidade.<br />

Além disso, na doutrina da Igreja<br />

se contêm as verdades que são o objeto<br />

da Fé. Ora, desde que é a Fé o que<br />

caracteriza a nossa profissão de católicos,<br />

todos estamos obrigados a conhecer<br />

tais verdades em toda a medida<br />

de nossa condição e capacidade, pois<br />

que ninguém pode crer sem saber no<br />

que crê. E será suma ingratidão para<br />

com Deus, que nos revelou estas verdades<br />

para nossa salvação, não nos<br />

aplicarmos a conhecê-las quanto nos<br />

for possível.<br />

Este conhecimento deve ser haurido<br />

num catecismo mais ou menos desenvolvido<br />

segundo a inteligência e o<br />

estado de cada um, pois que o catecismo<br />

é a fonte autêntica.<br />

Fazer em tudo a vontade de<br />

Deus<br />

O fruto próximo da vida espiritual,<br />

segundo vimos indicando, deve ser o firme<br />

propósito, isto é, o desejo cada<br />

vez mais vivo e ardente de servir a<br />

Deus e de desapegar-se inteiramente<br />

das coisas do mundo. Desejo vivo,<br />

porque se propõe empregar todos os<br />

meios conducentes a este fim e não<br />

desfalece ante as dificuldades e a vista<br />

da própria fraqueza, mas está<br />

cônscio de seu livre arbítrio,<br />

e confia humilde e ativamente<br />

na Providência. Ardente,<br />

porque se consome<br />

no zelo pela glória de Deus.<br />

O firme propósito não<br />

quer dizer a promessa de<br />

sempre, em tudo, e nas mínimas<br />

coisas realizar a vontade<br />

de Deus, porque tal promessa<br />

não se pode fazer<br />

sem uma vocação especial ou<br />

graça toda particular, e, assim<br />

mesmo, em relação a certos<br />

fatos determinados. Mas é a<br />

vontade intensa de que isso<br />

aconteça o mais breve e perfeitamente.<br />

Exame de<br />

consciência: a chave<br />

da vida espiritual<br />

Para evitarmos surpresas<br />

e auferirmos os resultados<br />

positivos da vida espiritual,<br />

e, por aí, adotarmos os métodos sempre<br />

mais adequados de procedermos<br />

para com nós mesmos, é necessário o<br />

exame de consciência pelo menos<br />

quotidiano.<br />

O exame consiste na inspeção cuidadosa<br />

de nossos pensamentos, palavras<br />

e obras, dentro de um período de<br />

tempo determinado, e na investigação<br />

dos motivos e circunstâncias desse<br />

nosso comportamento. No exame assim<br />

feito está a chave da vida espiritual,<br />

pois é pela apreciação concreta<br />

do que se passa em nós que se pode atingir<br />

a atividade superior e geral de ver,<br />

julgar e agir em si mesmo. Além disso,<br />

o exame de consciência ajuda-nos a desfazer<br />

falsas idéias sobre nós mesmos,<br />

leva-nos à humildade e excita-nos o<br />

arrependimento.<br />

Também é necessário o exame de<br />

consciência para a confissão. Neste particular<br />

todos devem ter o seu diretor<br />

espiritual, que é a cúpula de tudo quanto<br />

se tem dito em matéria de vida de<br />

piedade. De fato, praticamente de nada<br />

adiantariam todas as recomendações<br />

que se vêm fazendo sem a direção de<br />

um sacerdote que, por estar muito mais<br />

aparelhado pelos seus conhecimentos<br />

e graças especiais, sabe indicar os caminhos<br />

que seus penitentes poderão<br />

seguir com segurança. Se não fosse<br />

pela inexperiência dos que se iniciam<br />

nas vias da perfeição — inexperiência<br />

que os fará certamente errar se não tiverem<br />

um guia —, bastaria considerar<br />

que a vida espiritual exige que cada<br />

um se julgue a si mesmo. Ora, ninguém<br />

pode ser juiz, não diremos imparcial,<br />

mas objetivo de si mesmo. É preciso,<br />

portanto, uma terceira pessoa de grande<br />

sabedoria e de virtude inconteste.<br />

Devoção à Santíssima<br />

Virgem e à Sagrada<br />

Eucaristia<br />

A vida espiritual exige a mortificação,<br />

isto é, a guarda cuidadosa dos sentidos,<br />

ou não será vida espiritual. A verdadeira<br />

mortificação não consiste apenas<br />

em nos privarmos dos prazeres<br />

8


ilícitos ou perigosos, mas também daqueles<br />

prazeres lícitos que, pelas circunstâncias<br />

de fato, variáveis no tempo<br />

e no espaço, têm uma certa conexão<br />

com a mundanidade. É necessário, ainda,<br />

a abstinência dos prazeres, também<br />

lícitos, que podem lisonjear as más<br />

disposições e tendências desregradas<br />

de cada um.<br />

Enfim, todas estas regras de vida espiritual<br />

devem encontrar seu complemento<br />

indispensável numa dupla devoção,<br />

sem a qual nenhum fruto se colheria:<br />

a devoção a Nossa Senhora e à<br />

Santíssima Eucaristia. Não basta uma<br />

só delas, mesmo porque não é possível<br />

separá-las, ou já não serão verdadeiras.<br />

A Santíssima Virgem é a Rainha da<br />

bem-aventurança e dos bem-aventurados,<br />

e a devoção a Ela é considerada<br />

sinal certo de predestinação. Só há um<br />

caminho para Deus, que é Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo; mas só há um caminho<br />

para Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />

que é Nossa Senhora, a medianeira de<br />

todas as Graças.<br />

Onde está Maria, não há temer ilusões,<br />

extravios, erros, porque Ela é a<br />

inimiga, assim constituída por Deus, do<br />

demônio e de suas fraudes (Gen. 3,<br />

15). A devoção a Maria é, ainda, uma<br />

conseqüência necessária do Corpo Místico.<br />

Pois, “se Jesus Cristo, o chefe dos<br />

homens, nasce d’Ela, os predestinados,<br />

que são os membros deste chefe,<br />

também devem nascer d’Ela inelutavelmente.<br />

Uma mesma mãe não dá ao<br />

mundo a cabeça ou o chefe sem os<br />

membros, nem os membros sem a cabeça;<br />

isto seria um monstro da natureza.<br />

Igualmente, na ordem da Graça,<br />

o chefe e os membros nascem da mesma<br />

mãe. E se um membro do Corpo<br />

Místico de Jesus Cristo, quer dizer, um<br />

predestinado, nascesse de outra mãe<br />

que não fosse Maria que produziu o<br />

chefe, não seria um predestinado, nem<br />

um membro de Jesus Cristo, mas um<br />

monstro na ordem da graça” (São Luís<br />

Maria Grignion de Montfort, La vraie<br />

dévotion, cap. 1, art. 1º, § 32).<br />

Assim, o devoto da Santíssima Virgem<br />

encontrará no Coração de Maria o<br />

próprio Coração de Jesus, naquilo que<br />

este Coração tem de mais amoroso, mais<br />

terno e mais compassivo. Ora, onde mais<br />

se manifestam as finezas do Coração<br />

de Jesus é na Santíssima Eucaristia. Desse<br />

modo, a devoção a Nossa Senhora leva<br />

natural e espontaneamente à devoção<br />

eucarística. E é aí que os membros<br />

da Ação Católica encontrarão o alimento<br />

de sua vida espiritual, em primeiro lugar<br />

na freqüência assídua à Santa Comunhão,<br />

depois na adoração também<br />

assídua ao Santíssimo Sacramento.<br />

Sem este culto fervoroso à Eucaristia<br />

— que só pode ser verdadeiro com<br />

o culto mariano, pelo culto mariano e<br />

no culto mariano — não é possível a<br />

vida espiritual, pois que esta é a assimilação<br />

deste sublime alimento, segundo<br />

as recomendações dadas. É no Santíssimo<br />

Sacramento que reside não só<br />

a Graça, mas o Autor de toda Graça,<br />

à cuja semelhança se fazem os eleitos,<br />

porque fora d’Ele não há bênção nem<br />

fruto, nem ressurreição bem-aventurada.<br />

A Ele, pois, sejam dadas honra,<br />

glória, louvor, adoração, ação de graças,<br />

por todos os séculos. Amém. v<br />

A devoção a Nossa Senhora e à Sagrada Eucaristia<br />

é indispensável para colhermos<br />

os frutos de que tanto necessitamos em nossa vida espiritual<br />

9


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

“O que deixa saudade é<br />

a luta e o sacrifício”<br />

Éum movimento natural<br />

do homem que,<br />

quando ele tem contato<br />

com outro homem, procure<br />

os pontos de semelhança<br />

e de dessemelhança.<br />

Se tomarem um álbum<br />

apresentando os povos da<br />

Terra, os senhores vão examinar<br />

que impressões têm.<br />

Há pouco caiu-me nas mãos<br />

um álbum sobre um arquipélago<br />

perdido entre a América<br />

e a Oceania: o reino<br />

de Tonga. Estava folheando<br />

aquelas páginas e me deparei<br />

com uma festa de indígenas<br />

que, para dançar,<br />

embrulhavam-se em panos<br />

de 10 ou 20 metros, ficando<br />

parecidos a tonéis.<br />

Ao considerarmos algo<br />

assim, nos espantamos, e o<br />

espanto se define numa<br />

comparação com o que estamos<br />

habituados a ver.<br />

Com a comparação, acabamos<br />

por fazer o conhecimento.<br />

Por meio dessa comparação,<br />

fiquei conhecendo<br />

Tonga. E um tonguês que<br />

me conhecesse, pensaria algo<br />

de semelhante a meu respeito.<br />

Dá-se o mesmo com a<br />

enorme diferença das ida-<br />

Um dos talentos mais notáveis<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> era<br />

o de educar e orientar os jovens.<br />

Tal talento, vemo-lo brilhar nesta<br />

conferência que ele, já idoso,<br />

fez para rapazes de 15 a 18<br />

anos. Com sua extraordinária<br />

facilidade de comunicação, procurou<br />

apontar a seus ouvintes<br />

o caminho da virtude, recordando-se<br />

de suas próprias lutas espirituais<br />

da infância e adolescência.<br />

des. Quando alguém está<br />

com 74 anos, e outro com<br />

15, que diversidade! E eu<br />

me pergunto como, nos<br />

meus remotos 15 anos, olhava<br />

para os que tinham 70<br />

anos.<br />

Não posso deixar de me<br />

lembrar da sensação que<br />

experimentei, certo dia, ao<br />

ouvir alguém já velho dizer<br />

diante de mim: “Afinal<br />

de contas, nós também<br />

tivemos 15 anos...”. Levei<br />

um verdadeiro choque. Pois<br />

tinha a impressão de que<br />

aquelas pessoas que me<br />

haviam precedido na vida<br />

eram, há séculos, do jeito<br />

como eu as conhecia. Ou<br />

seja, nunca haviam passado<br />

pelos 15 anos; desde o<br />

nascimento eram daquele<br />

modo.<br />

Também me davam a<br />

impressão de que não iam<br />

morrer, mantendo-se como<br />

eram por um tempo indefinido.<br />

Na medida em que<br />

eu completava 15, 16, 17,<br />

18 anos, o calendário parecia<br />

virar só para mim. Os<br />

mais velhos estavam como<br />

que parados, olhando<br />

meu caminhar cômodo, alegre,<br />

ou duro.<br />

10


Fragilidade e vivacidade da<br />

adolescência<br />

Na juventude temos muita vitalidade,<br />

muita vontade de viver. Mas, viver<br />

para quê?<br />

Como era o caminhar de um jovem<br />

na distante época de meus 15 anos? Como<br />

eu via essa caminhada? Algumas<br />

das minhas muitas cogitações de então<br />

devem lhes passar também pelo pensamento,<br />

pelo menos instintivamente.<br />

Vou me pôr no lugar dos senhores, como<br />

se estivesse sentado numa das poltronas<br />

do auditório, ouvindo um homem<br />

de minha idade falar.<br />

Ele parece estabelecido, definido,<br />

com todos os problemas resolvidos, acomodado<br />

num rochedo. Não tem mais<br />

sustos nem surpresas, e toca a vida tranqüilo<br />

para frente.<br />

Passei os meus 15 anos num tempo<br />

de tranqüilidade, na qual tudo era tão<br />

estável e tão seguro que se tinha a impressão<br />

de que um velho se encontrava<br />

mais firme na vida que um arranhacéu<br />

de trinta andares.<br />

Eu comparava as fragilidades e a vitalidade<br />

que havia em mim. Sentia-me<br />

enormemente vivaz, não com a vitalidade<br />

dos agitados, mas com a de jorro<br />

forte dos calmos. Eu não era um menino<br />

de estar sempre pulando. Era muito<br />

sereno, e Nossa Senhora me conservou<br />

assim ao longo de minha existência.<br />

Dentro dessa serenidade,<br />

sentia uma imensa vontade<br />

de viver, de fazer, de<br />

ser.<br />

Mas a interrogação<br />

se punha: Viver<br />

o quê? Fazer o quê?<br />

Ser o quê?<br />

Hoje os senhores,<br />

nos seus 15<br />

anos, começam a<br />

abrir os olhos para<br />

a vida, começam<br />

a considerá-la<br />

de frente. Sentemse<br />

projetos de homem.<br />

Estão no instante<br />

em que a infância ficou atrás,<br />

olham-na e dizem: “Quanto tempo já<br />

faz que eu brincava de soldadinho de<br />

chumbo e de tanta outra coisa!” Olham<br />

os irmãos, os primos que têm 10 anos<br />

ou 12, e já começam a se sentir veteranos<br />

em relação a eles. É um mundo<br />

que fica para trás, aquela infância que<br />

passa lenta, de dias compridos, agradáveis,<br />

despreocupados.<br />

As dificuldades se<br />

apresentam<br />

Na minha infância, a vida me apresentara<br />

aspectos muito atraentes. Ora,<br />

certo dia entrou o primeiro aspecto da<br />

luta. Para mim, o “inimigo” era o alfabeto.<br />

Cumpria parar de brincar, de rodar<br />

de um lado para outro, deixar de<br />

fazer o que tinha vontade, porque havia<br />

chegado a hora de aprender bê-abá,<br />

cê-a-cá, etc., e a desenhar letras. A<br />

professora não se conformava com minha<br />

letra pouco elaborada. De onde a<br />

primeira montanha rochosa que tive de<br />

escalar: tentar desenhar uma letra bonita...<br />

As dificuldades continuaram: as da<br />

infância, as dos estudos, dificuldades<br />

com os pais. Há, infelizmente, uma época<br />

em que a criança começa a se voltar<br />

contra os pais. Como todo mundo,<br />

eu também passei por essa fase. Depois<br />

isso se resolve, mas vêm os problemas<br />

“Na infância, em<br />

determinado momento,<br />

começa a luta. No palco<br />

da vida, de súbito,<br />

aparece o segundo plano<br />

com a sala de aula...”<br />

(Acima, o menino <strong>Plinio</strong>.<br />

Ao lado, uma classe<br />

no Colégio<br />

São Luís, de seu tempo)<br />

11


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

com os amigos: brigamos com um deles,<br />

com um primo, com um irmão.<br />

Em seguida fazemos as pazes. Depois<br />

o amigo não quer mais saber da gente<br />

e nos mete um pontapé ou metemos<br />

um pontapé nele. É a vida real que começa.<br />

É a luta.<br />

No nosso tempo de criança, passase<br />

algo de repente que é como se estivéssemos<br />

assistindo a um teatro: está<br />

pintada no fundo do palco uma floresta;<br />

cai a pintura com a floresta e no<br />

outro plano aparece a sala de aula.<br />

“Quanta coisa complicada<br />

na vida!”<br />

Assim também, de súbito, aquela bagunceira<br />

infantil cai como um pano, e<br />

o modo de os outros nos tratarem exprime<br />

essa mudança: “A infância acabou!<br />

Você pensou que aquele mundo<br />

ia durar? Mas é agora que você está no<br />

começo! Aquilo ficou para trás”. Baixa<br />

o pano e tem início outra cena. É a<br />

vida!<br />

A família, cumprindo o seu dever,<br />

começa a advertir: “Cuidado! Cuidado!<br />

Tal coisa pode dar num pecado. Não<br />

faça isso! Não faça aquilo! Tal coisa é<br />

falta de educação! Tal coisa é...” E<br />

vem uma série de proibições para o<br />

jovem não ser um bárbaro. Pois há<br />

um selvagem em cada homem. E alguém<br />

que faça tudo o que tiver vontade<br />

é um bárbaro. Para evitar essa degenerescência,<br />

procuram nos orientar:<br />

“Não faça isso, não faça aquilo!” Sentimo-nos<br />

apertados por algo que se<br />

chama civilização.<br />

Mas, ao mesmo tempo, sentimonos<br />

deslumbrados. Percebemos quantas<br />

possibilidades de alegria, de vitória,<br />

de êxito feliz, a vida apresenta. E vamos<br />

tendo uma idéia exata de que ela<br />

representa algo difícil de realizar, mas<br />

que compensa. No fim virá o prêmio.<br />

Na adolescência, o homem começa<br />

a caminhada no meio das dificuldades.<br />

Percebendo-as, eu batia na fronte e pensava:<br />

“Quanta coisa difícil! Quanta coisa<br />

complicada na vida! Mas se eu for<br />

atrás da série de prazeres que ela também<br />

me oferece, torno-me imprestável!<br />

Vejo todos os que gozaram a vida<br />

transformados em pneus furados! Não<br />

prestam para mais nada! Sobretudo<br />

se gozaram a vida no pecado, na ofensa<br />

a Deus! Não valem mais nada”.<br />

O que deixa saudade é a<br />

luta e o sacrifício<br />

De outro lado, porém, quando nossa<br />

vida transcorreu muito e olhamos<br />

para trás, vemo-la feita de horas agradáveis<br />

e momentos difíceis. Posso lhes<br />

garantir: quando chegamos na ponta da<br />

existência, o que vemos quando olhamos<br />

para trás? Sabem o que deixa saudade?<br />

É a hora da luta e do sacrifício.<br />

É disso que sentimos saudade.<br />

Vêm as recordações. “Lembra-se de<br />

tal exame que foi um apuro, mas no<br />

qual conseguiu sair-se bem e passou<br />

com nota dez? Lembra-se de tal colega<br />

que o quis arrastar para o mal, mas<br />

que você enfrentou com furor, fazendo-o<br />

recuar desanimado, e continuando<br />

seu caminho adiante? Lembra-se de<br />

tal ocasião em que sentiu uma tentação<br />

nascendo no seu interior como uma<br />

tempestade, e que lhe dizia: ‘Venha,<br />

venha, venha!’, como se quisesse tragá-lo?<br />

E recorda-se como você dobrou<br />

os joelhos, aflito, e disse a Nossa<br />

Senhora: ‘Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem<br />

Maria (a oração é de São Bernardo),<br />

que nunca se ouviu dizer que<br />

algum daqueles que tenha recorrido à<br />

vossa proteção, implorado a vossa assistência<br />

e reclamado o vosso socorro<br />

fosse por Vós desamparado?’ Nossa<br />

Senhora, diante de minha oração, ajudou-me,<br />

eu me senti mudado, e disse<br />

à tentação: Para ti, não!”<br />

Para usar as palavras da Escritura:<br />

“... pes meus stetit in directo” — “meu<br />

pé, ó Deus, continuou na via reta, na<br />

via limpa”. E o salmo prossegue: “...<br />

in ecclesiis benedicam te, Domina” —<br />

“em todas as assembléias dos homens<br />

justos e bons eu te bendirei, ó minha<br />

Mãe, porque os meus pés permaneceram<br />

na via justa, na via certa, na tua<br />

via, no momento em que a tentação<br />

rugia em torno de mim.”<br />

No meu tempo de menino, haviase<br />

colocado para mim a possibilidade<br />

de ser um homem de Fé, puro, reto,<br />

Catedral de<br />

Notre-Dame<br />

de Paris<br />

que passasse a sua vida lutando por<br />

um ideal, por mais difícil que fosse esse<br />

combate. E de estar tranqüilo quando<br />

devesse comparecer diante do juízo de<br />

Deus. Encantava-me a idéia de ter dentro<br />

da alma todos os esplendores da<br />

neve quando sobre ela bate o sol. Todos<br />

os esplendores que vêm da Fé, da pureza<br />

e da coragem. E foi a escolha que<br />

fiz, como escrevi num livro de história<br />

do nosso grupo:<br />

“Quando ainda muito jovem, considerei<br />

enlevado as ruínas da Cristandade”...<br />

12


Eu achava admirável<br />

a ordem<br />

de valores que vinha<br />

dos tempos antigos, da<br />

Igreja primitiva, de<br />

Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, e que teve seu<br />

florescimento único na<br />

Idade Média...”<br />

13


GESTA MARIAL DE UM VARÃO CATÓLICO<br />

Eu olhava em torno de mim: tal coisa<br />

me agradava, parecia-me santa; tal<br />

outra me agradava, parecia-me pura;<br />

uma terceira me agradava e me parecia<br />

cheia de Fé. Eu começava a examiná-las,<br />

e percebia que representavam<br />

uma tradição ainda viva de um passado<br />

em que tudo isso tinha sido esplendoroso.<br />

Eu ficava encantado com esses cacos<br />

do passado que sobreviviam. Quais<br />

cacos, por exemplo? A pureza que os<br />

costumes naqueles tempos ainda exigiam<br />

das moças e das senhoras. Uma<br />

jovem que perdesse a sua virgindade;<br />

uma senhora que prevaricasse no adultério,<br />

que se divorciasse, que abandonasse<br />

seu esposo legítimo e tomasse<br />

outro causavam espanto. E como eram<br />

renegadas pelos costumes!<br />

“Oscularei essas ruínas<br />

uma por uma”<br />

Eu achava admirável essa ordem de<br />

valores, e me perguntava: “Donde vem<br />

isto?”<br />

Vem dos tempos antigos, da Igreja<br />

primitiva, de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Passou pela Idade Média, quando<br />

teve florescimento único, e depois entrou<br />

em decadência. Isto são ruínas. E<br />

eu pensava:<br />

Q<br />

uando<br />

ainda<br />

muito jovem,<br />

considerei<br />

enlevado as<br />

ruínas da<br />

Cristandade...<br />

“Houve um tempo, então, em que<br />

tudo o que amo estava no auge e na<br />

vitória, e tudo o que detesto estava<br />

por baixo.<br />

“A Providência me fez nascer numa<br />

época em que tudo o que eu detesto<br />

está de cima e tudo o que amo está debaixo.<br />

O que farei? Dobrarei o joelho<br />

diante do que está de cima e direi à<br />

corrupção, ao ateísmo e a todas as formas<br />

de maldade de hoje: ‘Eu vos adoro!’,<br />

para receber o prêmio vil daqueles<br />

que se entregam e que consentem<br />

em agir contra a sua consciência, para<br />

imitar os outros?<br />

“Ou farei o contrário? Oscularei<br />

essas ruínas uma por uma, pedirei a<br />

Nossa Senhora perdão por terem ficado<br />

nesse estado, voltar-me-ei contra o<br />

moloch que está de cima e direi: Nossa<br />

Senhora te derrubará! E às ruínas:<br />

eu vos abraçarei!”<br />

Estas eram idéias que povoavam o<br />

meu espírito quando tinha a idade dos<br />

que aqui me ouvem. Os meus 15, 16<br />

anos foram povoados de cogitações<br />

assim, as quais, ao longo de tantas décadas<br />

que Nossa Senhora me concedeu<br />

viver, tenho desenvolvido mais e<br />

mais e mais...<br />

v<br />

Ruínas do Castelo<br />

Fère-en-Tardenois (França)


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

Dizimações habituais,<br />

mutilações<br />

de populações<br />

inteiras, ferocidade no<br />

trato humano. Não<br />

são imagens de um<br />

pesadelo, nem de filme<br />

de terror. Trata-se<br />

da situação do mundo<br />

antes do advento<br />

de Jesus Cristo. Como<br />

ensinava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

vale a pena conhecê-la<br />

pelo menos<br />

nos seus traços gerais,<br />

para melhor<br />

avaliar o que significou<br />

de bênção para<br />

o mundo e de graças<br />

de civilização o sacrifício<br />

do Calvário.<br />

Continuamos, na presente<br />

seção, a acompanhar<br />

as observações<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> a<br />

esse respeito.<br />

QUANDO OS<br />

HOMENS VIVIAM COMO<br />

NUM CATIVEIRO<br />

15


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

Os homens, em todo o período<br />

anterior à vinda de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, viviam<br />

como que num cativeiro, numa espécie<br />

de penosa espera, dolorosa, terrível,<br />

do dia em que nasceria o Sol de<br />

Justiça. Na verdade, não conseguimos<br />

formar exata idéia da situação calamitosa<br />

do gênero humano até o momento<br />

em que foi resgatado pelo holocausto<br />

do Divino Redentor. Entretanto, ao folhearmos<br />

a história dos povos antigos,<br />

é-nos franqueada alguma noção daquele<br />

triste estado da humanidade antes<br />

do Cristianismo.<br />

Ao lado, governante assírio rodeado de símbolos divinos;<br />

na página anterior, alto- relevo que representa<br />

tropas assírias combatendo adversários árabes<br />

Crueldades habituais no<br />

mundo antigo<br />

Já comentamos sobre o bárbaro costume<br />

dos assírios de furarem os olhos<br />

dos prisioneiros de guerra para transformá-los<br />

em escravos. Apenas para<br />

mencionar outro sinal da crueldade<br />

desse povo, lembro cenas como esta<br />

que se podem ver em alguns ladrilhos:<br />

soldados jogando uma espécie de boliche<br />

— ou, antes, de peteca — com<br />

as cabeças decepadas dos inimigos. É<br />

algo suficiente para ilustrar os costumes<br />

deles.<br />

Os morticínios eram banais<br />

no mundo pagão. Não só<br />

os indivíduos, mas também<br />

os povos se entrematavam<br />

freqüentemente,<br />

de modo<br />

terrível. Entrar numa<br />

cidade e massacrar<br />

a população<br />

inteira, era façanha<br />

que constava nos<br />

anais quase correntes<br />

de certos povos<br />

da antiguidade.<br />

Ainda entre as<br />

práticas cruéis comuns<br />

no mundo<br />

pagão, é interessante<br />

citar um<br />

costume de certas<br />

regiões da<br />

Índia. Nestas,<br />

quando morria<br />

o marido, a viúva<br />

era queimada<br />

viva. Na procissão<br />

fúnebre<br />

do homem seguia<br />

uma espécie<br />

de pequena<br />

carruagem, na<br />

qual ia a sua esposa<br />

toda preparada,<br />

com os<br />

perfumes necessários<br />

para o<br />

corpo ficar combustível.<br />

Quando<br />

o cadáver era<br />

incinerado, obrigavam<br />

a mulher a descer e entrar na<br />

fogueira. Ela nem resistia, tomando<br />

isto como algo natural.<br />

Pode-se, porém, imaginar a sensação<br />

de uma senhora quando via o marido<br />

adoecer... Ficaria pensando na morte<br />

dela, queimada viva?<br />

E que dizer das brutalidades na velha<br />

Roma?<br />

Quando ouvimos hoje falar do palácio<br />

do Vaticano, vêm-nos à mente um<br />

lugar glorioso, com seus edifícios bonitos,<br />

jardins, coleções, museus, Basílica<br />

de São Pedro, etc. Um lugar de glória<br />

da Fé católica. É verdade. Mas o que<br />

precedeu a esta glória em geral não se<br />

conhece.<br />

Nero, por exemplo, um dos mais ferozes<br />

imperadores romanos, resolveu<br />

realizar uma grande festa nos bosques<br />

do Monte Vaticano, então povoado apenas<br />

de árvores e plantações, sem nenhum<br />

edifício. Para iluminar o vasto local,<br />

esse César não teve melhor idéia<br />

do que amarrar nos troncos um número<br />

incontável de católicos que ele desejava<br />

matar. Assim, enquanto os mártires<br />

ardiam e se consumiam até morrer,<br />

embaixo os pagãos dançavam, riam,<br />

pulavam, diziam desaforos, zombavam<br />

deles e os atormentavam. E desta maneira<br />

sacrificavam os católicos com uma<br />

extraordinária indiferença para com a<br />

vida humana, com gosto de causar a dor<br />

e empenho de tratar com crueldade.<br />

Infantilidade e<br />

aviltamento nas<br />

religiões antigas<br />

Quanto aos cultos praticados pelos<br />

povos anteriores a Cristo, a despeito<br />

da imensa variedade que apresentam,<br />

certos traços comuns podem ser apontados<br />

em todos eles.<br />

Cada país tinha sua religião e seus<br />

deuses. Entretanto, essas religiões em<br />

geral não se consideravam reciprocamente<br />

falsas como hoje ocorre. Um romano<br />

podia crer, por exemplo, na existência<br />

de deuses tutelares do Egito, bem<br />

como um egípcio podia crer nos deuses<br />

romanos. Mas os deuses de cada país<br />

eram privativos do respectivo povo.<br />

16


série de práticas infantis. No<br />

Japão, por exemplo, afugentavam-se<br />

os espíritos com<br />

flechas sibilantes. Na Pérsia,<br />

a religião vedava como pecado<br />

cuspir dentro d’água,<br />

ou enterrar os mortos; e o<br />

melhor remédio para as pessoas<br />

gravemente enfermas<br />

consistia em aproximar delas<br />

um cão, cujo olhar teria<br />

a propriedade de afugentar<br />

os maus espíritos causadores<br />

da doença. Matar formigas<br />

era considerado um<br />

insigne ato de virtude.<br />

Outra característica do<br />

aviltamento a que as religiões<br />

pagãs reduziam o homem<br />

era a adoração de seres que lhe<br />

são inferiores. Daí os egípcios adorarem<br />

bois, pássaros, crocodilos e gatos.<br />

Daí também a adoração de elefantes na<br />

Índia, e até de pulgas. Pior ainda era<br />

o culto prestado a seres inanimados.<br />

E vemos ritos por vezes abomináveis,<br />

idolátricos, satânicos, em que se<br />

praticava o homicídio ou até o infanticídio,<br />

como se dava nas mãos do<br />

monstro Moloc — o Baal de Cartago.<br />

Quando esta cidade-estado encontrava-se<br />

em perigo, ateava-se fogo por<br />

debaixo do ídolo, e sua grande figura<br />

de bronze se tornava incandescente.<br />

Então as melhores famílias do patriciado<br />

local eram obrigadas a depositar<br />

as suas crianças recém-nascidas nos<br />

braços desse ídolo para ali morrerem<br />

queimadas. Acreditavam que com esse<br />

bárbaro holocausto evitariam a destruição<br />

de Cartago.<br />

Muitos povos da<br />

Antiguidade<br />

eram dados a<br />

práticas aviltantes<br />

e infantis nos<br />

cultos aos seus<br />

ídolos. Ao lado, a<br />

deusa grega<br />

Minerva; abaixo,<br />

Istar, deusa<br />

babilônica da<br />

guerra<br />

Práticas infames das<br />

religiões pagãs<br />

Mas se fosse só a crueldade! Quantas<br />

outras coisas havia!<br />

As religiões em geral exerciam<br />

uma ação malfazeja pela imoralidade<br />

intrínseca de suas doutrinas. Mesmo<br />

Os romanos acreditavam que, enquanto<br />

os dois países combatiam, os<br />

deuses também entravam em luta. Sempre<br />

bons políticos, procuravam então<br />

obter a traição das divindades opostas,<br />

prometendo-lhes que, em caso de vitória<br />

das armas imperiais, seriam transferidos<br />

para Roma. E os romanos consideravam<br />

isto um prêmio invejável pelos<br />

próprios deuses...<br />

Por esse motivo, receosos da traição,<br />

muitos povos também se dirigiam a seus<br />

deuses antes dos combates, ameaçando-os<br />

de apedrejamento, caso a cidade<br />

não fosse vitoriosa. E, por via das dúvidas,<br />

amarravam-nos com fortes cordas!<br />

Atitudes como essa nos fazem ver<br />

que, mesmo nas civilizações mais adiantadas,<br />

misturava-se na religião uma<br />

17


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

as mais elevadas pactuavam com grandes<br />

desonestidades.<br />

Os caldeus eram politeístas e panteístas.<br />

Acreditavam que os deuses habitavam<br />

nos planetas. Tinham uma idéia<br />

muito confusa acerca de Deus, por<br />

eles identificado com a natureza. Sua<br />

religião era do terror, e tinham grande<br />

pavor dos deuses que adoravam. Era<br />

também uma religião sinistra e corruptora,<br />

com práticas lúbricas e horripilantes,<br />

como no templo da deusa<br />

Mélita.<br />

Veja-se a religião dos fenícios. Eles<br />

habitavam uma estreita faixa de terra<br />

limítrofe com Israel e o Mar Mediterrâneo.<br />

Mas era um povo muito empreendedor<br />

e ganhador de dinheiro.<br />

Não tendo possibilidade de se estender<br />

no seu pequeno território, construiu<br />

uma marinha mercante extraordinária<br />

para aquele tempo, que percorria<br />

o Mediterrâneo em todos os sentidos<br />

e fazia grande riqueza. De maneira<br />

que a Fenícia era um lugar de luxo e<br />

de opulência. Ali tinham o templo de<br />

seu principal deus, a quem chamavam<br />

Baal.<br />

A religião fenícia era muito depravada.<br />

Entre os sacrifícios para agradar<br />

a divindade estava o da mulher se tornar<br />

impura. Quanto ao homem, considerava-se<br />

que devia oferecer à divindade<br />

aquilo que tinha de mais precioso.<br />

Penetravam no templo em horas<br />

determinadas, enquanto uma música<br />

executava ritmos fortes e repetidos.<br />

Próximo ao altar, certos indivíduos<br />

ligados à religião acompanhavam a música<br />

girando velozmente como piões<br />

em torno de um ponto fixo. O ritmo<br />

alucinava e contagiava a multidão. Os<br />

homens pertencentes ao público que<br />

quisessem se sacrificar, aproximavamse<br />

do altar frenéticos pela dança coletiva,<br />

e com uma espada que ali se encontrava,<br />

se amputavam. Banhados em<br />

sangue, saíam a correr pela cidade.<br />

Tais indivíduos passavam depois a residir<br />

junto ao templo e diariamente<br />

executavam a sua dança circular, flagelando-se<br />

até escorrer sangue em<br />

abundância.<br />

A religião greco-romana não era<br />

menos cruel, nem menos depravada.<br />

Se os deuses do Olimpo grego realmente<br />

existissem, deveriam ser presos<br />

pela polícia, tal o número de incestos,<br />

de infanticídios, de parricídios e de<br />

roubos de que eram réus.<br />

Segundo o velho culto dos antepassados,<br />

professado por gregos e romanos,<br />

quando um chefe de família morria,<br />

estrangulavam-se alguns escravos<br />

sobre a sua sepultura, junto com alguns<br />

cavalos, para que ele fosse servido<br />

na outra vida.<br />

Os combates de gladiadores, que assumiram<br />

em Roma terríveis proporções,<br />

eram também, na sua essência,<br />

solenidades religiosas. A velha religião<br />

romana considerava conveniente, além<br />

do sacrifício dos escravos, o holocausto<br />

de algumas vidas para o apaziguamento<br />

dos mortos. Daí as lutas de<br />

gladiadores, nas quais o combatente<br />

derrotado era imolado em beneficio<br />

da alma de algum defunto. Posteriormente,<br />

esses combates passaram a ser<br />

diversões públicas, sem jamais perder<br />

o seu caráter religioso, pelo que, em<br />

“O Faraó Taharka<br />

oferece dois copos<br />

de vinho ao deus<br />

falcão Hemen” — A<br />

adoração a seres<br />

inferiores ao<br />

homem era outra<br />

aviltante prática<br />

religiosa da<br />

Antiguidade pagã


muitas lutas, a solenidade começava pela matança<br />

de uma vítima inocente, aos pés do altar<br />

que se encontrava na arena.<br />

Um grande historiador chegou a dizer<br />

que os gregos e romanos, tão admiráveis por<br />

muitas de suas virtudes, perdiam completamente<br />

a moralidade quando se tratava de<br />

assuntos religiosos.<br />

O fim do culto de Vesta<br />

Na religião pagã romana se adorava uma<br />

deusa chamada Vesta, em cujo altar se mantinha<br />

aceso um fogo sagrado, a cargo de sacerdotisas<br />

que deveriam velar para que ele<br />

não se apagasse. Durante o dia não havia tanto<br />

problema. A questão era a vigília noturna:<br />

se uma vestal dormisse durante seu período<br />

de guarda e o fogo se extinguisse, deveria<br />

ser enterrada viva. E os romanos eram<br />

implacáveis na execução dessas penalidades.<br />

O culto de Vesta exigia que essas mulheres<br />

fossem virgens. E se uma delas deixasse<br />

de sê-lo, também era enterrada viva. Não podia<br />

se casar. Fora dessas restrições, elas levavam<br />

uma existência farta. Ganhavam muito<br />

dinheiro, e por toda parte eram alvo de<br />

homenagens especiais. No Coliseu,<br />

ocupavam uma bancada<br />

de honra, e quando levantavam<br />

o polegar, o condenado à morte<br />

era libertado. Quando apontavam<br />

o polegar em direção ao<br />

solo, ele era irrevogavelmente<br />

condenado. Podiam passear, ir<br />

a festas, teatros, beber, e fazer<br />

o que quisessem.<br />

Por causa desses privilégios,<br />

durante muito tempo esse cul-<br />

Acima, o que resta do antigo templo<br />

de Vesta, em Roma;<br />

Ao lado, ruínas da residência das<br />

virgens que mantinham o fogo sagrado<br />

19


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

to se manteve. Mas o ambiente do<br />

mundo antigo, antes de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, era tão contrário à pureza<br />

que, apesar de as vestais terem todas<br />

essas regalias, o número de romanas<br />

desejosas de ser uma delas foi caindo,<br />

até o dia em que não apareceram mais<br />

candidatas. Com isso, o fogo de Vesta<br />

se apagou para sempre.<br />

O mundo era um inferno<br />

antes de Nosso Senhor<br />

Muito ainda se poderia dizer das<br />

infâmias do mundo antigo, presentes<br />

até mesmo num dos povos mais elogiados<br />

pela sua cultura e inteligência,<br />

como é o povo grego. Em matéria religiosa,<br />

contudo, entregava-se a coisas<br />

como esta: uma vez por ano realizavam<br />

uma procissão em Atenas, levando<br />

uma enorme escultura obscena. Homens<br />

e mulheres percorriam as ruas<br />

cantando, pulando e dançando em torno<br />

desse ídolo, adorado por toda a cidade.<br />

A Grécia contava inúmeros templos<br />

votados a Vênus, deusa do amor impuro.<br />

A tal ponto a religião estava ligada<br />

à imoralidade que, quando Atenas<br />

certa vez esteve em grave perigo<br />

de ser conquistada pelo adversário, o<br />

governo recomendou seus destinos a<br />

Vênus. Tendo passado o perigo, mandou<br />

pintar no templo um desfile das<br />

mulheres mais infames da cidade, postas<br />

em atitude de prece, com a seguinte<br />

inscrição: “Elas, com as suas orações,<br />

salvaram Atenas”.<br />

Não tardou que as mentalidades<br />

mais eminentes da Grécia se insurgissem<br />

contra tal religião, reconhecendo-a<br />

como absurda, e chegando à convicção<br />

da falsidade dos deuses pagãos. Por ter<br />

pregado tais doutrinas às escondidas,<br />

Sócrates foi condenado à morte. E Platão,<br />

só sob impenetrável segredo, sustentava<br />

a mesma convicção aos seus<br />

alunos, por receio de lhe advir igual<br />

destino.<br />

Como acontece naturalmente hoje<br />

em dia, procura-se ocultar o pior dessas<br />

coisas, para apresentar o mundo antigo<br />

quase exclusivamente por seu aspecto<br />

favorável. De um lado, celebrase<br />

as linhas clássicas e perfeitas do Parthenon,<br />

em Atenas, que representam<br />

um senso estético muito apurado; de<br />

outro, omite-se a menção aos cultos depravados<br />

e a outras coisas do gênero<br />

que representavam a extrema decadência<br />

desse povo.<br />

Na realidade, o mundo era um inferno<br />

antes do advento de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo. Somente depois de<br />

Ele ter ensinado a sua lei, fundado a<br />

sua Igreja e obtido para os homens as<br />

graças necessárias, abundantes e superabundantes<br />

para praticarem a virtude,<br />

é que esta começou a se espalhar pela<br />

face da Terra.<br />

v<br />

As infâmias dos<br />

povos antigos<br />

transformaram o<br />

mundo num inferno,<br />

que apenas deixou de<br />

sê-lo quando nasceu o<br />

Sol da Justiça,<br />

Cristo Nosso Senhor,<br />

espargindo a graça<br />

e a virtude sobre<br />

a face da Terra<br />

20


DR. PLINIO COMENTA...<br />

Huysmans<br />

Apelo à conversão<br />

Interior da<br />

Catedral de<br />

Notre-Dame<br />

de Paris<br />

21


DR. PLINIO COMENTA...<br />

A<br />

inda muito moço, <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> despontara como<br />

notável orientador da juventude católica.<br />

Abordando com coragem temas<br />

às vezes espinhosos e polêmicos,<br />

ele utilizava as páginas do “Legionário”<br />

para proporcionar uma<br />

formação adequada aos jovens.<br />

Exemplo disso são os dois artigos<br />

publicados em janeiro de 1932, nos<br />

quais comenta as obras de um grande<br />

escritor católico francês.<br />

Aliteratura de nossos dias, acorrentada à sensualidade,<br />

está em franca crise de assuntos. Esta crise<br />

é, mesmo, o mais sério problema com que têm<br />

de lutar todos os literatos hodiernos. O cinema, o romance,<br />

a novela, a poesia, tudo enfim, está assolado por uma tremenda<br />

crise de temas. Os enredos giram eternamente em<br />

torno de casos amorosos. Ora, os aspectos amorosos da vida,<br />

por mais que nos modernizemos, só podem dar lugar a quatro<br />

combinações: ou são duas pessoas casadas, que abando-<br />

J. K. Huysmans<br />

nam seus respectivos lares para constituírem juntas um terceiro<br />

sobre os escombros da felicidade de seus primeiros cônjuges;<br />

ou é uma pessoa casada, que se apaixona por uma solteira,<br />

culminando a paixão numa ruptura dos laços conjugais;<br />

ou a ruptura não se dá, mas morre oportunamente o cônjuge<br />

embaraçoso, de sorte que o viúvo ou viúva pode, mal fechado<br />

o caixão do defunto, atirar-se nos braços da outra; ou<br />

são duas pessoas solteiras que se tributam mutuamente um<br />

amor combatido barbaramente pelo “sogro” implacável.<br />

Cena<br />

parisiense<br />

na época<br />

em que<br />

Huysmans<br />

residia na<br />

capital<br />

francesa


Estes casos comportam evidentemente algumas variantes.<br />

Ou o crime corta o nó górdio de uma vida supérflua, que<br />

ameaçava durar demais; ou o adultério brutal põe termo a<br />

uma situação incômoda; ou o cônjuge supérfluo se suicida<br />

discretamente, para deixar o lugar a seu sucessor mais feliz.<br />

Evidentemente, porém, estas combinações também são<br />

limitadas e se esgotam ao cabo de algum tempo. De tal sorte<br />

que, quem se entrega assiduamente à leitura de romance<br />

durante cinco anos, fica conhecedor de todo o estoque<br />

amoroso de nossas livrarias. E, com um pouco de argúcia,<br />

poderá ver, logo ao ler as primeiras páginas, qual o desfecho<br />

da história, desfecho este que depende das inclinações<br />

do autor, e dos sentimentos e posição que atribui aos personagens<br />

do romance.<br />

Um autor que combata este círculo vicioso, para ingressar<br />

em um campo novo, é, evidentemente, um Cristóvão<br />

Colombo do espírito, que abre para a inteligência continentes<br />

novos, mundos inexplorados. É o que se dá com<br />

Huysmans, um dos mais estranhos e admiráveis escritores<br />

do século passado [século XIX]. Seu mérito foi o de ter sabido<br />

confeccionar as mais espantosas obras literárias que se<br />

possam imaginar, abstraindo totalmente de complicações<br />

amorosas.<br />

J. K. Huysmans, literato naturalista, residente em<br />

Paris, encontrou-se a certa altura de sua vida mergulhado<br />

em tremenda crise intelectual. Suficientemente<br />

lúcido para abominar seu século, mas destituído<br />

de qualquer amparo sentimental em alguma<br />

amizade sólida ou afeição de família profunda, Huysmans,<br />

ao mesmo tempo que se isolava cada vez mais<br />

do convívio de todos, fazia dentro de si um vácuo<br />

tremendo.<br />

Tendo abandonado todos os seus amigos, destruído<br />

todas as suas antigas ilusões, perdido todos os seus<br />

parentes, vivia isolado em Paris, em pequeno quarto,<br />

onde passava dias infindáveis em companhia de<br />

um gato, a maldizer indefinidamente o século XIX.<br />

Foi então que conheceu um pseudo-médico, des<br />

Hermies, fidalgo “déclassé”, que freqüentava rodas<br />

espíritas, de mágicos, astrólogos, etc. no “bas fonds”<br />

canceroso que existe em Paris.<br />

A princípio, seduziu-o no amigo o cunho original e<br />

misterioso de sua vida. Esta sedução se acentuava à<br />

medida em que ia privando com as pessoas mais chegadas<br />

a des Hermies, todas elas atacadas de um misticismo<br />

acatólico e doentio, que exalava os miasmas<br />

da mais absoluta putrefação espiritual. Levado por<br />

suas inclinações de diletante, Huysmans não recuou<br />

à vista de tal ambiente.<br />

Sobreveio-lhe, nessa ocasião, em condições misteriosas,<br />

um convite para que assistisse a uma “missa<br />

negra”, celebrada em honra do demônio por um sacerdote<br />

privado de ordens sacras. Excitada fortemente<br />

sua curiosidade, aceita o convite e é conduzido<br />

a um lugar estranho, em que se amontoam mulheres<br />

e homens carregados com o peso de todos os vícios e<br />

todas as baixezas. Sobre o altar, um Cristo rindo, num rictus<br />

ignóbil, ultrajante.<br />

Toca uma sineta, entra o sacerdote. Começa a missa, entre<br />

contorções dos presentes. Quando chega no momento<br />

da consagração, o sacerdote pronuncia as palavras sacramentais<br />

banhado em suor, a voz repassada de ódio, o olhar<br />

carregado de estranhos eflúvios diabólicos. Distribui a Sagrada<br />

Eucaristia aos presentes, que a profanam abominavelmente.<br />

Gargalhadas satânicas, blasfêmias tremendas, insultos<br />

implacáveis, nada se poupa ao Corpo adorável de Nosso<br />

Senhor.<br />

Manifestações evidentemente diabólicas irrompem por<br />

todos os lados. É o triunfo de Satanás, glorificado pelos assistentes<br />

num delírio de abjeção e de infâmia.<br />

Enojado, ferido nos poucos sentimentos que ainda lhe restavam,<br />

Huysmans se esgueira pela porta e foge espavorido.<br />

Desde então, uma grande preocupação assaltou sua inteligência<br />

e acabou trazendo-o submisso aos pés da Igreja.<br />

Vira o demônio, vira o espírito das trevas urdindo contra a<br />

Sagrada Eucaristia as mais tremendas infâmias.<br />

Igreja de Saint-Germain-des-Prés, uma das muitas<br />

visitadas por Huysmans, quando teve início seu penoso<br />

processo de conversão<br />

23


DR. PLINIO COMENTA...<br />

Ora — refletia ele —, se o demônio, de cuja existência já<br />

não posso duvidar, odeia a hóstia consagrada pelos sacerdotes<br />

católicos, é porque realmente ela é o Corpo de Cristo.<br />

Logo, a Igreja Católica é verdadeira.<br />

Daí uma conversão dolorosa, penosa, que se vai arrastando<br />

através de inúmeras lutas, de combates sem fim, travados<br />

contra a carne rebelde às injunções da vontade, e o espírito<br />

rebelde às exigências da Fé. Quando entra em uma igreja,<br />

extasia-se diante das belezas da liturgia católica. Sua alma<br />

se eleva até os pés de Deus, ao som do órgão, no desenrolar<br />

grave e compassado da música sacra. Poucas almas<br />

sentiram como a sua as belezas do cantochão. Sua descrição<br />

do De Profundis, do Miserere e da Missa de defuntos<br />

são as mais belas páginas que tenha lido em minha<br />

vida.<br />

Freqüentando assiduamente as igrejas de Paris, a todas<br />

surpreende nas suas horas de mais intensa sentimentalidade.<br />

Ora é Notre Dame de Paris, detendo nas<br />

suas ogivas seculares uns restos de claridade coada<br />

através dos vitrais, enquanto some no céu, lentamente,<br />

tristemente, um sol crepuscular. Ora é uma igreja operária,<br />

na qual observa detidamente as mulheres paupérrimas, os<br />

mendigos, os operários exaustos, os miseráveis dos arrabaldes<br />

de Paris, que vêm dirigir a Deus, depois de um dia<br />

de intenso trabalho, preces infindáveis, enquanto, de dentro<br />

do tabernáculo, o Senhor invisível os consola repetindo<br />

mudamente o Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os<br />

que choram, os que sofrem, os que têm sede de justiça”...<br />

No entanto, Huysmans ainda não ousou aproximar-se<br />

dos sacramentos. Recai no pecado com tal facilidade<br />

que nem se atreve a aproximar-se do tremendo tribunal<br />

da Penitência.<br />

Resolve, então, ir fazer um retiro numa Trapa.<br />

Começa aí a parte culminante de seu segundo livro,<br />

“En Route” (“A caminho”), de que me ocuparei no<br />

próximo artigo.<br />

(Transcrito do “Legionário”, nº 93, 31-1-32.<br />

O segundo artigo da série<br />

será reproduzido no próximo número.)<br />

Ao fundo,<br />

Notre-Dame<br />

de Paris,<br />

num anoitecer<br />

de neve


DONA LUCILIA<br />

Preocupada com a integridade de seu<br />

querido filho, Dª Lucilia via com não<br />

pequenas inquietações as desordens<br />

políticas que convulsionaram o Brasil de<br />

1930 (ao fundo, cena da revolução que<br />

derrubou a República Velha)<br />

Tempo de<br />

apreensões<br />

e esperanças<br />

No artigo anterior pudemos acompanhar a afetuosa<br />

correspondência trocada entre Dª Lucilia e<br />

seu querido filho, quando este se encontrava ausente,<br />

no Rio de Janeiro. As separações iam se tornando<br />

mais freqüentes, à medida que aumentavam os compromissos<br />

apostólicos de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, o qual ia se destacando<br />

como jovem e ardoroso líder mariano em todo o País. Essa<br />

projeção acontecia numa importante conjuntura histórica,<br />

nacional e internacional.<br />

Com efeito, às profundas transformações nas mentalidades<br />

e nos costumes que abalavam o mundo nas primeiras<br />

décadas do século XX, seguiram-se revoluções políticas.<br />

Contudo, em nosso imenso e pacato Brasil a vontade de<br />

não lutar sobrepujou quase sempre a vontade de vencer.<br />

Na maioria dos casos, hábeis manobras evitaram confrontos<br />

cujas conseqüências poderiam ter sido trágicas.<br />

Até 1930 o Brasil viveu sob um regime conservador, de base<br />

rural e com traços aristocráticos, que afirmava sua adesão<br />

doutrinária a uma democracia liberal. A história qualificou<br />

este regime de República Velha.<br />

A situação internacional, a partir de 1918, exerceu efeitos<br />

desestabilizadores em nosso país. Três grandes impérios<br />

— Áustria-Hungria, Alemanha e Rússia — vistos como<br />

bastiões do conservadorismo, haviam desaparecido.<br />

Subia ao zênite o sistema político norte-americano, sustentáculo<br />

do apogeu econômico daquela nação e da irradiação<br />

de seu way of life.<br />

No Brasil teve início uma onda de protestos em vários<br />

setores, exigindo a coerência da prática política com a ins-<br />

piração doutrinária. No sulco da exacerbação de ânimos, a<br />

revolução de 1930 ia derrubar a República Velha.<br />

Era natural que Dª Lucilia visse com desassossego as sublevações<br />

que marcavam o fim de um Brasil e o início de<br />

outro.<br />

“Se fosse uma cruzada...”<br />

<strong>Dr</strong>. Gabriel, seu irmão, que havia pouco fora Secretário da<br />

Agricultura, chegou à casa de Dª Gabriela explicavelmente<br />

alarmado por graves notícias, vindas de vários pontos do<br />

País. À hora do almoço, ocorreu um revelador diálogo entre<br />

ele e Dª Lucilia. Conhecendo-a bem, disse-lhe em tom<br />

de afetuosa provocação que <strong>Plinio</strong> devia ir se preparando<br />

para a mobilização militar, pois o governo estava para convocar<br />

todos os moços.<br />

Se de um lado Dª Lucilia estava disposta a sacrificar seu<br />

filho pela Igreja, de outro jamais concordaria em que o enviassem<br />

para uma guerra civil na qual estavam envolvidos<br />

meramente, pelo menos na aparência, interesses políticopartidários.<br />

Por isso, sem perder a afabilidade, replicou a<br />

seu irmão com aquela firmeza toda sua:<br />

— O <strong>Plinio</strong> não vai!<br />

Para ver até que ponto chegava o ardor religioso da irmã,<br />

<strong>Dr</strong>. Gabriel comentou em tom de crítica:<br />

— Para isso você não o deixa ir, mas se se tratasse de uma<br />

guerra de religião, de uma Cruzada, você o mandaria para<br />

a primeira fileira...<br />

Ao que ela retrucou com vivacidade:<br />

25


DONA LUCILIA<br />

— É verdade! Se fosse para uma Cruzada, eu seria a<br />

primeira a mandar o <strong>Plinio</strong> para a batalha. E ele seria o<br />

primeiro a enfrentar os inimigos.<br />

“Daqueles a quem Deus dá Fé, Ele<br />

próprio exige Esperança”<br />

O levante armado de 1930 apanhou o jovem <strong>Plinio</strong> numa<br />

fazenda em Campos do Jordão, onde estava com primos<br />

seus a passar alguns dias. Evidentemente, a preocupação<br />

de Dª Lucilia pela integridade de seu filho foi enorme,<br />

sobretudo porque tornavam-se insistentes os rumores sobre<br />

uma mobilização geral dos moços em idade militar para<br />

combater as tropas revoltosas.<br />

<strong>Plinio</strong>, logo que pôde, enviou-lhe uma carta, transbordante<br />

de amor filial, em que descrevia a esplêndida fazenda, onde<br />

estava recebendo excelente acolhida. Sua mãe não precisava<br />

se preocupar com o bem-estar nem com a saúde dele.<br />

“Minha queridíssima Mãezinha<br />

Não fossem as imensas saudades que sinto de todos e particularissimamente<br />

da Senhora, e também o receio de que seu<br />

pessimismo esteja arruinando sua saúde, e eu me sentiria<br />

perfeitamente bem nesta belíssima e confortável fazenda.<br />

Os panoramas são lindos. Tem-se a impressão perfeita de<br />

estar vendo uma vista tiroleza. Aquela amenidade européia<br />

da natureza é aqui encontrada em todas as paisagens. Nunca<br />

pensei que isto aqui fosse tão estupendo. A casa é uma habitação<br />

em estilo brasileiro antigo e conta mais de 100 anos.<br />

Tem umas fechaduras enormes, com chaves colossais, o que<br />

é muito interessante. Está a habitação perfeitamente “amenagée”<br />

[bem-arranjada], com luz<br />

elétrica, água corrente e encanada<br />

e todo o conforto possível. Tomamos<br />

até banhos quentes!!!<br />

Não lhe escrevi há mais tempo,<br />

porque as comunicações com<br />

a vila são muito difíceis. Dista a<br />

Vila de Capivari uma hora daqui.<br />

O mato aqui é muito denso e temos<br />

feito de manhã alguns passeios.<br />

Por isto, só lhe escreverei<br />

uma ou duas vezes por semana.<br />

André tem sido para conosco<br />

de uma amabilidade perfeita. Tem<br />

nos tratado com uma solicitude<br />

extrema e com a maior gentileza.<br />

A mesa é excelente, e temos comido<br />

com um apetite extraordinário.<br />

Já entrei em um leitão e em um<br />

cabrito. Ando mais corado do que<br />

nunca!!<br />

O clima tem sido excelente, e<br />

muito temperado. Para maior tranqüilidade<br />

sua, tenho a declarar que<br />

tenho sido de uma prudência absoluta, no resguardo de minha<br />

saúde. Tenho tomado toda a cautela no observar o intervalo<br />

entre os banhos e as refeições (diga-o a Rosée), e também<br />

me tenho resguardado de ventos encanados, etc, etc, inclusive<br />

de balançar em cadeiras que não são de balanço. (...)<br />

Este repouso, para minha cabeça, será ótimo. Não tenho<br />

ainda começado a ler, para aproveitar a oportunidade de descansar<br />

bem.”<br />

Após dizer que havia comungado por Dª Lucilia em<br />

Pindamonhangaba e pedir notícias da família, <strong>Plinio</strong> lhe dá<br />

um filial conselho naquele tão convulsionado período.<br />

“Vamos, agora, à Senhora. Espero que tenha a suficiente dose<br />

de espírito religioso requerida pelas circunstâncias. A Esperança<br />

é uma virtude que decorre da Fé.<br />

Daqueles a quem Deus dá Fé, Ele próprio exige Esperança.<br />

Espere, portanto, em Deus, porque nenhum fio de cabelo<br />

cai de nossa cabeça sem que Ele consinta. E, sendo assim, que<br />

temos nós a recear, quando somos protegidos por um Deus<br />

de Poder e Misericórdia infinitos? A Senhora, que gosta tanto<br />

de se orientar pelos princípios de Vovô Ribeiro, deve lembrarse<br />

da grande confiança que ele tinha em Deus, a ponto de dar<br />

seus últimos 2$000 a um pobre, certo de que nada lhe faltaria,<br />

enquanto não lhe faltava a graça de Deus! E a Senhora,<br />

que, ao contrário dele, freqüenta os Sacramentos, deve ter<br />

em Deus uma confiança ainda muito maior.<br />

Comungue assiduamente, mas sem sacrifício para sua saúde,<br />

e reze muito a Nossa Senhora. O resto se arranjará.<br />

Mande afetuosíssimos abraços e beijos a Papai, Rosée, Vovó<br />

e Maria Alice. A Antônio, um apertadíssimo e fraternal<br />

abraço. À tia Yayá, Tio Adolpho, Dora, e Adolphinho, muitos<br />

abraços e saudades. A todos os demais da família, o mesmo.<br />

Quando estourou a revolta de 1930, o jovem <strong>Plinio</strong> encontrava-se com<br />

alguns amigos numa fazenda em Campos do Jordão<br />

26


Para a Senhora, finalmente, todo o meu coração, todo<br />

o meu afeto, todo o meu carinho e todo o meu respeito.<br />

Abençoe o filho que tanto a quer.”<br />

Pouco depois, <strong>Plinio</strong> escrevia novamente a sua<br />

mãe, renovando com o respeito de filho as recomendações<br />

da anterior missiva:<br />

“Minha querida Mãezinha<br />

Escrevo-lhe esta, para lhe enviar um afetuosíssimo<br />

beijo, e lhe pedir que se lembre de que é católica, e de<br />

que a proteção de Deus nunca lhe faltará. Comunguei<br />

hoje aqui, e rezei muito pela Senhora e por<br />

todos os nossos. Jesus me atenderá.<br />

Muito cuidado com o fígado. Envie a Papai e a<br />

Rosée afetuosíssimos beijos. Outro tanto para Vovó,<br />

Maria Alice. Para a Senhora, meu bem, todo o meu<br />

coração. Até breve. Abençoe o seu<br />

Filho”<br />

Quem lê, noutra carta da mesma época — desta<br />

vez escrita por Dª Lucilia a <strong>Plinio</strong> — a referência às<br />

incontáveis orações feitas na intenção dele, para<br />

que Deus o preservasse dos perigos, bem pode notar<br />

a aflição em que ela se encontrava.<br />

“São Paulo, 13-10-930<br />

Filho querido!<br />

Espero em Deus, que estejas com saúde, e por Ele,<br />

te peço, que com o máximo cuidado e prudência,<br />

evites toda e qualquer moléstia ou acidente.<br />

O meu fígado vai melhor do que supunha, e, quanto<br />

à minha saúde, não te preocupes, pois vou passando<br />

regularmente. Tua avó está em franca convalescença,<br />

felizmente. Maria Alice ainda tosse um pouco, mas já<br />

está boazinha, e reza todos os dias por tua intenção.<br />

Eu o faço o dia todo.... são terços, coroas, ladainhas,<br />

novenas, etc.... já mandei pedir orações às freiras da<br />

Luz, que me mandaram umas quatro ou seis pedrinhas<br />

do túmulo de Frei Galvão, que desejaria poder mandar-te<br />

para [que] as tragas sempre junto a ti, para te<br />

curar ou preservar de moléstias e perigos. Vou mandar<br />

pedir orações também às freiras das Perdizes, e mando<br />

acender todos os dias uma vela a Santo Expedito. Fiz<br />

promessas ao Sagrado Coração de Jesus, a Nossa Senhora<br />

Auxiliadora, Santa Teresinha do Menino Jesus, e<br />

a São Luís, teu protetor. Deus permita que a paz volte<br />

logo! Nós ficaremos na Capital, pois creio que nada haverá<br />

por aqui. Teu pai, irmãos, e o pessoal de teu tio,<br />

mandam abraços.<br />

27


DONA LUCILIA<br />

“Doida” de saudades, te abraço, te beijo muito, e muito, e<br />

te cubro de bênçãos.<br />

De tua mãe muito extremosa,<br />

Lú”<br />

“Não cesso de pedir por ti!”<br />

Talvez por dificuldade de comunicação naqueles convulsionados<br />

dias, Dª Lucilia não pôde enviar a seu filho a carta<br />

acima. Nesse meio tempo, tendo recebido por um portador<br />

a primeira missiva que <strong>Plinio</strong> lhe escrevera da fazenda,<br />

ela, com o coração apertado de saudades, acrescentou às<br />

linhas anteriores, em 16 de outubro, estas palavras cheias<br />

de unção:<br />

“Não me tendo sido possível enviar-te esta no dia em que te<br />

escrevi, a seguir escrevo-te de novo. Com grande prazer e comoção,<br />

li tua carta, que conservo sempre á mão, para a reler<br />

todas as vezes que apertam as saudades, que são imensas!<br />

Meu filho, peço-te mais uma vez, que te esforces por andar<br />

bastante, pois nesta época, receio que te vejas obrigado a grandes<br />

caminhadas, sem training algum, o que te será duplamente<br />

penoso. Não cesso de pedir por ti, e só me sinto tranqüila,<br />

quando o faço, e muito! (...)”<br />

Um sinal do Sagrado Coração de Jesus?<br />

A um tão bondoso coração, não deixaria a Providência<br />

Divina sem algum consolo. Durante suas aflições foi Dª<br />

Lucilia objeto de uma manifestação da celestial benquerença<br />

do Sagrado Coração de Jesus.<br />

O fato se deu num momento em que a sua angústia, devido<br />

à situação de <strong>Plinio</strong>, atingiu um clímax. Enquanto rezava<br />

e colocava uma rosa num vasinho aos pés da imagem do<br />

Sagrado Coração de Jesus, na sala de visitas, Dona Lucilia<br />

implorou ao Divino Salvador que livrasse seu filho do perigo,<br />

e por outro lado desse a ela um sinal de ter sido atendida.<br />

Formulada a súplica, desceu ao jardim, onde, enquanto<br />

caminhava um pouco, certamente prosseguia piedosamente<br />

as orações.<br />

De repente ouviu o troar de canhões ao longe, o que a<br />

deixou muito alarmada. Mas daí a pouco chegou a notícia<br />

da renúncia do presidente Washington Luís, no Rio de Janeiro.<br />

Os tiros de canhão festejavam a vitória do levante militar.<br />

Sua primeira reação ao ouvir a notícia — cuja conseqüência<br />

imediata era o fim das hostilidades e a reabertura<br />

do caminho de volta para <strong>Plinio</strong> e seus companheiros —<br />

consistiu em ir aos pés da imagem do Sagrado Coração de<br />

Jesus para agradecer-Lhe este efeito dos complexos acontecimentos,<br />

que assim começavam a desenvolver-se no País.<br />

Qual não foi sua surpresa quando, ao acercar-se da referida<br />

imagem, encontrou desfolhadas no chão as pétalas da rosa<br />

pouco antes ali colocada. Até o fim da vida ela contaria<br />

esse expressivo episódio, vibrante de gratidão para com<br />

seu Divino Protetor.<br />

(Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”,<br />

de João S. Clá Dias)<br />

O Presidente<br />

Washington<br />

Luís renuncia:<br />

era o fim da<br />

revolução de<br />

1930. Para Dª<br />

Lucilia, o fato<br />

determinava<br />

também o<br />

retorno de<br />

<strong>Plinio</strong> ao tão<br />

almejado<br />

convívio<br />

doméstico<br />

28


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

A maior<br />

crise moral da<br />

era cristã<br />

Se compararmos os costumes de nossos dias com os<br />

de outrora, não podemos deixar de notar que a<br />

diferença é a maior e a mais chocante possível. E<br />

que, desde a fundação da Igreja por Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo, não houve uma época em que um número tão<br />

grande de países entrasse numa crise moral tão profunda,<br />

levando a uma tal dissonância com os Mandamentos da<br />

Lei de Deus, com os Mandamentos da Igreja. Levando,<br />

portanto, a uma tal dissonância, não só esta ou aquela camada<br />

social de um país, mas os países inteiros de alto a<br />

baixo da sociedade, de maneira tal que se pode dizer que o<br />

mundo todo de hoje vive longe de Nosso Senhor, vive contra<br />

Nosso Senhor, e que desenvolve uma vida que não<br />

pode deixar de trazer a derrocada da civilização.<br />

Ruínas da igreja cisterciense<br />

de Roche<br />

(Inglaterra)


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

O que digo pode parecer terrível, mas é verdade. E seria<br />

terrível não dizer a verdade nas épocas em que esta é<br />

terrível, porque é uma obrigação dizê-la. Os efeitos maus<br />

de não fazê-lo são péssimos, quando uma situação é terrível<br />

e não temos coragem de apontá-la como tal.<br />

Imagine-se que, dentro de um recinto, eu começasse a<br />

notar um início de incêndio numa cortina. É um perigo tremendo<br />

que ameaça a todos os ali presentes. Quanto maior<br />

o perigo, maior a gravidade se eu não alertasse. É uma coisa<br />

evidente. Se há uma situação terrível no mundo moderno,<br />

os que a vêem têm a obrigação de alertar os outros, senão<br />

são cúmplices do perigo que avança.<br />

Em termos mais simples, se vejo uma fera que escapou<br />

de um circo, e que está andando livremente por uma rua<br />

onde brincam crianças e eu não advirto: “Olhe, vem vindo<br />

uma fera, é preciso levar embora as crianças, avisar a polícia,<br />

etc.”, eu sou cúmplice da fera.<br />

Ora, uma fera avança no mundo contemporâneo, ameaçando-o<br />

por inteiro. Quem não advertir a humanidade<br />

desse perigo, fica cúmplice dele.<br />

A moral católica, fundamento da civilização<br />

Para fazermos essa advertência, cumpre respondermos<br />

antes a uma importante questão: como se pode dizer que o<br />

fundamento da civilização é a moral católica? Poderia alguém<br />

dizer: “É qualquer moral, não precisa ser a católica.”<br />

Não. O que é que vem a ser a moral? A moral é o conjunto<br />

de regras que são conformes à ordem natural das coisas,<br />

de maneira que, se os homens as seguirem, tudo dá certo,<br />

caso contrário, tudo dá errado.<br />

É a coisa mais normal do mundo. Uma máquina de projeção<br />

de filmes, por exemplo, tem a sua construção, e suas<br />

várias peças estão numa determinada ordem, necessária para<br />

que a projeção se realize. Se as peças não obedecerem à<br />

ordem que lhes é própria, não se pode fazer projeção. A<br />

desordem traz a inoperância, a inutilidade, a impossibilidade<br />

de fazer qualquer coisa. Pode trazer o desastre, conforme<br />

o caso concreto.<br />

Ora, os Mandamentos da Lei da Deus e, como seu desdobramento,<br />

toda a moral católica, são os princípios da ordem<br />

natural das coisas, nos quais se baseia o bom andamento<br />

de tudo na sociedade humana. Se esses princípios<br />

desandam, com sua deterioração decai também o mundo.<br />

Por isso Santo Agostinho fez uma bela interpelação a<br />

um pagão de seu tempo, expressando-se mais ou menos do<br />

seguinte modo: “Vós dizeis que o fato de o império romano<br />

se ter convertido à Fé católica é a razão de sua<br />

fraqueza, pela qual os bárbaros o estão invadindo. Eu vos<br />

respondo: Imaginai um estado no qual o rei e os súditos<br />

procedam de acordo com a Lei de Deus, e que os pais e os<br />

filhos, os esposos e as esposas, os mestres e os alunos, os<br />

generais e os soldados, os prefeitos e os habitantes do município,<br />

etc., todos agirem de acordo com a Lei divina, não<br />

fica evidente que nasce daí uma ordem maravilhosa para o<br />

país? E que o país sobe até todo o grau de perfeição que<br />

A contínua violação<br />

dos Mandamentos<br />

divinos cria para o<br />

mundo contemporâneo<br />

um estado de perigo<br />

permanente o qual, mais<br />

dia ou menos, salvo uma<br />

conversão regeneradora,<br />

o conduzirá à sua<br />

completa ruína<br />

os seus recursos naturais lhe proporcionam? É evidente.<br />

Imaginai, pelo contrário, que todo o mundo viole esses<br />

princípios, que país pode resistir à violação sistemática dos<br />

Mandamentos da Lei de Deus? Nenhum. A nação desaba.<br />

Imaginai um país onde todos roubam, mentem, pecam<br />

contra a castidade, cometem adultério, e daí para a frente.<br />

Pergunto-lhe: quanto tempo dura a grandeza desse país?<br />

Ele se dissolve”.<br />

O mundo atual vive da violação dos Dez<br />

Mandamentos<br />

Ora, a sociedade contemporânea vive da violação comum<br />

dos Mandamentos da Lei de Deus. Prestemos<br />

atenção a qualquer fato: por exemplo, o traje com o qual<br />

uma criança anda na rua. Os pais a vestem muitas vezes<br />

com tal indecência que é freqüente encontrar-se crianças<br />

trajadas de maneira altamente censurável. Mas, se fosse só<br />

isto... O pai e a mãe estão vestidos de modo indecente. O<br />

professor e a professora também, e dão aulas de educação<br />

sexual para salas mistas, deformando a moralidade das crianças,<br />

pois estas não devem receber esse ensino de uma pessoa<br />

estranha, num ambiente estranho, e sim diretamente<br />

dos pais, no recesso do lar. Ou então de um confessor, de<br />

um pároco, autoridades qualificadas para falar sobre o tema.<br />

Imaginem todo o resto: a droga, a televisão imoral e tudo<br />

o mais que vemos freqüentemente. É uma violação<br />

contínua da Lei de Deus, um incitamento a que todo mundo<br />

a viole cada vez mais. E esta situação cria um estado de<br />

perigo permanente que o mais atilado dos políticos, o mais<br />

exímio dos economistas, o mais perfeito dos militares não<br />

poderá evitar. Um dia a mais ou um dia a menos, ou os homens<br />

se convertem a Deus e à sua Igreja, ou este mundo<br />

ruirá completamente.<br />

v<br />

30


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

O<br />

PODER DA<br />

FÉ E DA<br />

DEVOÇÃO


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Exposta aos luminosos ósculos do sol, envolta<br />

nas sombras de uma nublada atmosfera,<br />

ou emergindo numa certa penumbra prateada<br />

romana (que é preciso conhecer para<br />

compreender toda a sua beleza), a grande cúpula da<br />

Basílica de São Pedro se destaca no cenário da Cidade<br />

Eterna. No alto, uma espécie de pequeno mirante se adelgaça<br />

até se cobrir de uma esfera dourada, tendo por arremate<br />

o símbolo de nossa Redenção. É a glorificação festiva<br />

da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

O Cupolone (assim a chamam em italiano) é como que<br />

separado em gomos por largas estrias de pedra, todas elas<br />

de uma simetria perfeita, cobertas de uma camada azula-<br />

da, tendente ao prateado e meio propensa a refletir o céu.<br />

Imenso, sob ele se poderia construir um edifício com várias<br />

dezenas de andares. Tal é o tamanho interno da Igreja<br />

de São Pedro.<br />

À esquerda e à direita da grande cúpula erguem-se<br />

duas menores, na aparência sem muita significação. Entretanto,<br />

quando queremos compreender a razão de ser de<br />

algo ou de alguém, não devemos considerar apenas a impressão<br />

que causa por sua atuação e presença. Devemos<br />

igualmente imaginar como seriam as coisas se ele estivesse<br />

ausente ou se não existisse. Essa é a pergunta que<br />

nos importa fazer, diante dessas duas cúpulas pequenas,<br />

diminutas imitações do Cupolone. Poderiam alegar que a


função estética delas não passa de mero enfeite. Eu digo:<br />

são enfeites, mas por que possuem essa capacidade de<br />

adornar?<br />

Imaginemos que essas cúpulas menores não existissem.<br />

Teríamos logo a impressão de que o Cupolone esmaga a<br />

igreja. Portanto, para a ótica humana, elas como que suportam<br />

psicologicamente o peso da cúpula gigantesca, e<br />

ajudam a tornar leve algo que, sem elas, tornar-se-ia por<br />

demais pesado.<br />

*<br />

Abaixo da grande cúpula, surge o frontispício da Basílica,<br />

assinalado por vigorosas colunas. Nele encontra-se a<br />

loggia, isto é, o balcão de onde os papas costumam abençoar<br />

o povo reunido na Praça de São Pedro. Ato que se reveste<br />

de brilho e emoção particulares quando se dá logo após a<br />

eleição do Sumo Pontífice. Segundo a sapiencial tradição<br />

da Igreja, o Conclave se realiza no palácio do Vaticano, a<br />

portas fechadas. Os fiéis, conhecendo a hora em que os<br />

Cardeais se reúnem para as votações, dirigem-se para a<br />

praça e ali permanecem à espera do resultado. De uma pequena<br />

chaminé evola-se uma fumaça preta, quando o novo<br />

Papa ainda não foi eleito. O povo então se dispersa, desapontado<br />

e ansioso. Quando sai branca, uma estrondosa<br />

ovação ressoa pelos ares: a Igreja já não está mais órfã.<br />

Após os rituais que se seguem a uma eleição pontifícia<br />

— como a escolha do nome adotado pelo sucessor de Pe-


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

dro e a obediência que lhe é prestada pelos cardeais presentes<br />

—, o Papa se dirige para esse balcão. As portas se<br />

abrem ante o entusiasmo indescritível do povo: este conhecerá,<br />

finalmente, a fisionomia do atual Pai da Cristandade.<br />

Os carrilhões da Basílica começam a tocar, acompanhados<br />

pouco a pouco pelos sinos de todas as igrejas de<br />

Roma. É a glória de São Pedro que se faz ouvir em toda a<br />

Cidade Eterna. Então o Sumo Pontífice dá a primeira<br />

bênção urbi et orbi — para Roma e para o mundo inteiro.<br />

*<br />

A loggia e o frontispício triangular, testemunhas de toda<br />

essa glória do Papado, olham para a praça, no meio da qual<br />

se levanta um enorme obelisco. É um tipo de pedra coberta<br />

de inscrições egípcias, que se encontrava originariamente<br />

na terra dos Faraós. Em monumentos semelhantes costumavam<br />

esses soberanos deixar gravados os fatos marcantes<br />

de seu reinado e outros acontecimentos do gênero.<br />

No alto do obelisco foi colocada uma cruz, que nos faz recordar,<br />

emocionados, o lema dos cartuxos: “Stat Crux dum<br />

volvitur orbis”— enquanto o mundo todo gira, a Cruz permanece<br />

de pé.<br />

É muito interessante observar que a arquitetura da Praça<br />

de São Pedro foi concebida de maneira a que ela representasse<br />

a forma da cabeça de uma chave, que toma contornos<br />

a partir das colunatas de Berninni, dispostas em semi-círculo.<br />

Habitualmente, no dia de Corpus Christi, o Papa<br />

realiza aí a procissão com o Santíssimo Sacramento,<br />

acompanhada por uma multidão<br />

de fiéis, sob o dobrar<br />

dos sinos da Basílica e das<br />

igrejas romanas.<br />

O corpo da chave é desenhado<br />

por uma avenida<br />

de linha retíssima — a Via<br />

della Conciliazione — que<br />

chega até as margens do<br />

rio Tibre. Assim ficam lembradas<br />

as chaves de São Pedro,<br />

a dos Céus e a da Terra,<br />

quer dizer, o mando do<br />

reino celestial e, indiretamente,<br />

do terreno.<br />

*<br />

Entre todos os eloqüentes<br />

aspectos que enriquecem<br />

a Basílica do Vaticano,<br />

entre a fabulosa pluralidade<br />

das cores de seus mármores,<br />

o reluzimento de seus<br />

ouros e a beleza extraordinária<br />

de suas pratas, um objeto<br />

sobressai por seu maravilhoso<br />

simbolismo: é a famosa<br />

imagem de bronze de<br />

São Pedro. Antiqüíssima, datada<br />

ainda do tempo anterior<br />

à Idade Média, e cujos<br />

pés os católicos do mundo<br />

inteiro vêm oscular. De tantos<br />

beijos depositados ao<br />

longo dos séculos, ficaram os<br />

dedos do pé completamente<br />

sem saliência. É o poder<br />

do amor e da dedicação sobre<br />

o poder do bronze. Os<br />

lábios dos fiéis, penetrados<br />

pela doçura da Fé, corroeram<br />

a dureza do metal... v<br />

34


N<br />

um maravilhoso símbolo do<br />

poder da devoção cristã,<br />

a suavidade dos ósculos dos fiéis<br />

corroeu a dureza do bronze secular...


Prêmio à altura do afeto<br />

Mãe de Misericórdia,<br />

Nossa Senhora às vezes<br />

concede graças a<br />

pedido de quem não<br />

merece, como reza o<br />

“Lembrai-Vos”.<br />

Mas, Ela é também<br />

Mãe de Justiça. E<br />

a todo bem realizado<br />

por seus filhos,<br />

com quanta<br />

alegria Ela os favorece<br />

com uma<br />

justa recompensa! Como se dissesse<br />

a cada um deles: “Meu<br />

filho, a ti não darei uma<br />

graça porque te perdôo,<br />

e sim porque te premio.<br />

Que felicidade tu me<br />

proporcionas pelo fato<br />

de mereceres esse prêmio!<br />

Ei-lo, não à altura,<br />

mas muito<br />

maior do que teu<br />

mérito: à altura<br />

de meu maternal<br />

afeto...”<br />

Nossa<br />

Senhora do<br />

Trono Largo<br />

(Alemanha)

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