Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
inesperados o bastante para sugerir que a literatura, concebida de maneira ampla para abranger<br />
todas as fases da produção e difusão de livros, se alastrava mais profundamente na sociedade do<br />
Antigo Regime do que jamais se imaginou na versão da história literária concentrada nos grandes<br />
livros e nos grandes homens.<br />
UM SISTEMA DE DISTRIBUIÇÃO: CAPILARES E ARTÉRIAS<br />
A “inspeção” de livros muitas vezes começava no ponto final de sua difusão e depois refazia seu<br />
caminho de trás para a frente, até chegar aos vigias de depósitos, cocheiros, gráficos, editores e<br />
autores. A fim de seguir os fios da meada na repressão da literatura ilegal, a polícia precisava<br />
conhecer seus caminhos na rede de capilares do comércio — os aposentos dos fundos, as rotas dos<br />
mascates, as feiras livres, onde a população mais pobre do mundo literário tentava, a duras penas,<br />
ganhar a vida <strong>em</strong> conjunto. Muitas vezes, a penúria levava à criminalidade, porque os maiores<br />
lucros provinham de onde os riscos eram maiores — do comércio ilegal. Muitas vezes a polícia<br />
prendia comerciantes periféricos, que operavam no setor de maior risco, lutando para que seus<br />
estoques atendess<strong>em</strong> à d<strong>em</strong>anda, e nos arquivos da Bastilha abundam as histórias sobre esses<br />
pobres-diabos (pauvres diables), na camada mais baixa do comércio de livros.<br />
O dossiê de um bouquiniste (pequeno livreiro que, <strong>em</strong> geral, trabalhava numa barraca de feira)<br />
parisiense contém a mais rica série de informações acerca desse aspecto do sist<strong>em</strong>a de distribuição.<br />
Louise Manichel, conhecida no meio do comércio como “la fille La Marche”, cuidava de uma<br />
barraca que ficava numa travessa que ligava o jardim do Palais-Royal com a Rue de Richelieu, no<br />
coração de Paris. Muito antes de Balzac celebrá-lo <strong>em</strong> Les Illusions perdues, o Palais-Royal tinha se<br />
tornado um ponto de venda vital para a indústria editorial. Ele encarnava outro aspecto do sist<strong>em</strong>a<br />
de privilégio peculiar ao Antigo Regime. Como pertencia ao duque d’Orléans, m<strong>em</strong>bro da família<br />
real, era um lieu privilégié (lugar privilegiado), fora do alcance da polícia. Os inspetores e seus<br />
espiões podiam examinar as mercadorias à venda nas barracas espalhadas por seus jardins, mas não<br />
podiam dar batidas e fazer detenções s<strong>em</strong> a autorização prévia do governador do palácio, que <strong>em</strong><br />
geral adiava as coisas por t<strong>em</strong>po suficiente para que os acusados fugiss<strong>em</strong>. Em resultado, o Palais-<br />
Royal, cuja área era aberta a todos <strong>em</strong> Paris, servia de abrigo para toda sorte de atividade dúbia —<br />
prostituição, jogo de apostas, mexericos políticos e venda de livros ilegais. La fille La Marche<br />
oferecia as mercadorias mais seletas para um público faminto de informação sobre intrigas<br />
ministeriais, a vida sexual do rei e todas as formas de libertinag<strong>em</strong>, tanto as filosóficas quanto as<br />
eróticas.<br />
Ela não tinha nenhum direito de fazer isso. Em princípio, todos os mascates e bouquinistes<br />
tinham de obter autorização da polícia para se registrar na Direction de la Librairie, mas o Palais-<br />
Royal a protegia, com o manto de seu privilégio, b<strong>em</strong> como vários outros minúsculos varejistas. Eles<br />
montavam barracas (étalages) sob as arcadas que rodeavam o jardim e <strong>em</strong> todas as vielas e travessas<br />
anexas. Quando havia oportunidade, faziam negócios entre si, disputavam uns com os outros<br />
baixando os preços e faziam alianças com seus colegas <strong>em</strong> outros locais relativamente seguros, como