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Vila Isabel, inventário da infância

Publicado em 1996 pela Relume-Dumará, Vila Isabel, inventário da infância saiu pela série Cantos do Rio. Para esta edição comemorativa, além do texto original, foram incluídas 13 crônicas escritas por Aldir Blanc sobre a sua Vila Isabel, cravada na Rua dos Artistas. Este Inventário do compositor, escritor e psiquiatra nada mais é do que uma espécie de álbum de recordações. Nele estão a lua cheia refletida na caixa d’água, as leituras que fazia de cima da goiabeira no quintal de casa, as brincadeiras de criança, os personagens de casa e da rua. Uma tentativa de reencontro com a infância, a memória acumulada, as alegrias e fracassos, os sonhos realizados — ou não. A apresentação desta nova edição é de Luiz Antonio Simas. O historiador, também um cronista do Rio que pulsa na Zona Norte, garante que não sabe se é o menino Aldir Blanc que vive em Vila Isabel, ou se é a Vila Isabel que vive no Aldir. E conclui, para desespero dos leitores: “Aldir vive na Vila, a Vila vive no Aldir e o Rio de Janeiro, daqui a pouco, periga não viver em coisa nenhuma, pelo andar da carroça em que nos meteram”. Antes que a carroça descambe barranco abaixo, ler Aldir Blanc e passear por sua Vila Isabel é fundamental. Esta reedição do livro integra a coleção Aldir 70 — composta também por Rua dos Artistas e arredores, O gabinete do doutor Blanc: sobre jazz, literatura e outros improvisos, Porta de tinturaria e Direto do balcão.

Publicado em 1996 pela Relume-Dumará, Vila Isabel, inventário da infância saiu pela série Cantos do Rio. Para esta edição comemorativa, além do texto original, foram incluídas 13 crônicas escritas por Aldir Blanc sobre a sua Vila Isabel, cravada na Rua dos Artistas. Este Inventário do compositor, escritor e psiquiatra nada mais é do que uma espécie de álbum de recordações. Nele estão a lua cheia refletida na caixa d’água, as leituras que fazia de cima da goiabeira no quintal de casa, as brincadeiras de criança, os personagens de casa e da rua. Uma tentativa de reencontro com a infância, a memória acumulada, as alegrias e fracassos, os sonhos realizados — ou não.

A apresentação desta nova edição é de Luiz Antonio Simas. O historiador, também um cronista do Rio que pulsa na Zona Norte, garante que não sabe se é o menino Aldir Blanc que vive em Vila Isabel, ou se é a Vila Isabel que vive no Aldir. E conclui, para desespero dos leitores: “Aldir vive na Vila, a Vila vive no Aldir e o Rio de Janeiro, daqui a pouco, periga não viver em coisa nenhuma, pelo andar da carroça em que nos meteram”. Antes que a carroça descambe barranco abaixo, ler Aldir Blanc e passear por sua Vila Isabel é fundamental.

Esta reedição do livro integra a coleção Aldir 70 — composta também por Rua dos Artistas e arredores, O gabinete do doutor Blanc: sobre jazz, literatura e outros improvisos, Porta de tinturaria e Direto do balcão.

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ALDIR BLANC<br />

<strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>, <strong>inventário</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>infância</strong><br />

AlDIr7


Esta reedição de <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>, <strong>inventário</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>infância</strong> integra a coleção Aldir 70 — composta<br />

também por Rua dos Artistas e arredores, Porta<br />

de tinturaria, O gabinete do doutor Blanc:<br />

sobre jazz, literatura e outros improvisos e<br />

Direto do balcão.<br />

A primeira edição do livro saiu em 1996, pela<br />

Relume-Dumará, como parte <strong>da</strong> série Cantos do<br />

Rio. Para este volume comemorativo, além do<br />

texto original, foram incluí<strong>da</strong>s 13 crônicas<br />

escritas por Aldir Blanc sobre a sua <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>,<br />

crava<strong>da</strong> na Rua dos Artistas.<br />

Publicado há 20 anos, o Inventário do<br />

compositor, escritor e psiquiatra na<strong>da</strong> mais é do<br />

que uma espécie de álbum de recor<strong>da</strong>ções. Nele<br />

estão a lua cheia refleti<strong>da</strong> na caixa d’água, as<br />

leituras que fazia de cima <strong>da</strong> goiabeira no<br />

quintal de casa, as brincadeiras de criança, os<br />

personagens de casa e <strong>da</strong> rua. Uma tentativa de<br />

reencontro com a <strong>infância</strong>, a memória<br />

acumula<strong>da</strong>, as alegrias e fracassos, os sonhos<br />

realizados — ou não.<br />

A apresentação desta nova edição é de Luiz<br />

Antonio Simas. O historiador, também um<br />

cronista do Rio que pulsa na Zona Norte,<br />

garante que não sabe se é o menino Aldir Blanc<br />

que vive em <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>, ou se é a <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong> que<br />

vive no Aldir. E conclui, para desespero dos<br />

leitores: “Aldir vive na <strong>Vila</strong>, a <strong>Vila</strong> vive no Aldir e<br />

o Rio de Janeiro, <strong>da</strong>qui a pouco, periga não viver<br />

em coisa nenhuma, pelo an<strong>da</strong>r <strong>da</strong> carroça em<br />

que nos meteram”.<br />

Antes que a carroça descambe barranco abaixo,<br />

ler Aldir Blanc e passear por sua <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong> é<br />

fun<strong>da</strong>mental.<br />

OS EDITORES<br />

Lapa, outono de 2017.


<strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>,<br />

<strong>inventário</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>infância</strong>


Copyright © Aldir Blanc.<br />

Todos os direitos desta edição reservados à MV Serviços e Editora Lt<strong>da</strong>.<br />

ILUSTRAÇÃO [ CAPA ]<br />

Allan Sieber<br />

REVISÃO<br />

Fal Vitiello de Azevedo<br />

cip-brasil. catalogação na publicação<br />

sindicato nacional dos editores de livros, rj<br />

B571v<br />

2. ed.<br />

Blanc, Aldir, 1946<br />

<strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>, <strong>inventário</strong> <strong>da</strong> <strong>infância</strong> / Aldir Blanc. —<br />

2. ed. — Rio de Janeiro : Mórula, 2017.<br />

84 p. ; 21 cm. (Aldir 70 ; 4)<br />

ISBN 978-85-65679-62-6<br />

1. <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong> (Rio de Janeiro, RJ) — Humorismo<br />

brasileiro. 2. Crônica brasileira. I. Título.<br />

17-43322 CDD: 869.8<br />

CDU: 821.134.3(81)-8<br />

R. Teotônio Rega<strong>da</strong>s, 26/904 — Lapa — Rio de Janeiro<br />

www.morula.com.br | contato@morula.com.br


Para <strong>Isabel</strong>,<br />

que tem o nome <strong>da</strong> <strong>Vila</strong>.


“A memória é a base <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de<br />

individual, assim como a tradição o<br />

é <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de coletiva de um<br />

povo. Vive-se na recor<strong>da</strong>ção e pela<br />

recor<strong>da</strong>ção e nossa vi<strong>da</strong> espiritual<br />

não é, no fundo, senão o esforço de<br />

nossa recor<strong>da</strong>ção por perseverar, por<br />

tornar-se esperança, o esforço de nosso<br />

passado por tornar-se porvir.”<br />

MIGUEL DE UNAMUNO<br />

“Reúna os fatos primeiro e... então você<br />

poderá distorcê-los à vontade.”<br />

MARK TWAIN<br />

[ EM ENTREVISTA A RUDYARD KIPLING, EM 1889 ]


SUMÁRIO<br />

11 Eis aqui <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong><br />

luiz antonio simas<br />

18 <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>, <strong>inventário</strong> <strong>da</strong> <strong>infância</strong><br />

37 Na rua, até hoje...<br />

40 Lembrando vovô na 19ª<br />

42 A árvore <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

45 Etiqueta<br />

47 Rena é coisa de viado<br />

50 Razão de ler<br />

52 Lili Ailôu<br />

68 Bo<strong>da</strong>s de Ouro<br />

71 Artista <strong>da</strong> Rua<br />

73 Uma transmissão pós-muderna<br />

75 Muro Caiado<br />

77 Terror à americana<br />

79 Homem de visão na <strong>Vila</strong>


Eis aqui <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong><br />

luiz antonio simas<br />

nos salamaleques oficiais de história (a disciplina, aquela que a<br />

turma escreve com agá maiúsculo), o empresário João Batista Viana<br />

Drummond pinta na área como um fervoroso adepto <strong>da</strong> causa <strong>da</strong><br />

abolição <strong>da</strong> escravatura. Foi ele que comprou as terras <strong>da</strong> Imperial<br />

Quinta do Macaco e resolveu contratar o arquiteto Francisco<br />

Joaquim Bithencourt <strong>da</strong> Silva para urbanizar a região e transformá-la<br />

em um bairro em homenagem à princesa: <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>.<br />

Só para constar, a principal via do bairro, o Boulevard 28 de<br />

Setembro, homenageia a <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> promulgação <strong>da</strong> Lei do Ventre<br />

Livre de 1871. Quando eu era moleque, este era o tipo de informação<br />

— ao lado <strong>da</strong> veloci<strong>da</strong>de do voo de uma mosca — forneci<strong>da</strong> pela<br />

Rádio Relógio; que Deus a tenha.<br />

A <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong> tem, pelo menos, três sólidos motivos para fazer<br />

parte <strong>da</strong> história do Rio de Janeiro e do Brasil. É a terra de Noel<br />

Rosa, lá foi criado o jogo do bicho e foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> a escola de samba<br />

que leva o bairro no nome.<br />

O jogo do bicho, como todo brasileiro deveria aprender ain<strong>da</strong><br />

no maternal, surgiu em 1893, de uma forma tão singela como um<br />

passeio de pe<strong>da</strong>linho em Paquetá ou o nascimento do menino Jesus<br />

numa modesta estrebaria.<br />

O Barão de Drummond, o empresário do início deste arrazoado,<br />

eminência política do Império, era fun<strong>da</strong>dor e proprietário do<br />

Jardim Zoológico do Rio de Janeiro. A manutenção <strong>da</strong> bichara<strong>da</strong> era<br />

feita com uma generosa subvenção mensal do governo, suficiente,<br />

11


diziam as línguas ferinas, para alimentar to<strong>da</strong> a fauna amazônica<br />

por dez anos.<br />

Quando a República foi proclama<strong>da</strong>, o velho Barão perdeu o<br />

prestígio que tinha nos tempos <strong>da</strong> Monarquia, morta e enterra<strong>da</strong><br />

pelas casacas dos generais. Perdeu, também, a mamata que lhe permitia<br />

alimentar o avestruz com caviar, <strong>da</strong>r champanhe francesa pra<br />

vaca e contratar manicure pro pavão. Mais perdido que zagueiro <strong>da</strong><br />

seleção depois do terceiro gol <strong>da</strong> Alemanha na Copa do Mundo de<br />

2014, o nosso Barão cogitou, em protesto, soltar os bichos na Rua<br />

do Ouvidor — o que, admitamos, seria espetacular — e fechar em<br />

definitivo o zoológico.<br />

Foi aí que um mexicano, Manuel Ismael Zeva<strong>da</strong>, que sabe lá por<br />

que carga d´água morava no Rio e era fã do zoológico, sugeriu a<br />

criação de uma loteria que permitisse a manutenção do estabelecimento,<br />

basea<strong>da</strong> em certo jogo <strong>da</strong>s flores mexicano. O Barão ficou<br />

entusiasmado com a ideia.<br />

O frequentador que comprasse um ingresso de mil réis para o<br />

zôo ganharia vinte mil réis se o animal desenhado no bilhete de<br />

entra<strong>da</strong> fosse o mesmo que seria exibido em um quadro horas depois.<br />

O Barão mandou pintar vinte e cinco animais e, a ca<strong>da</strong> dia,<br />

um quadro subia com a imagem do bicho vitorioso.<br />

Em pouco tempo, o jogo do bicho tornou-se um hábito <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />

como os passeios na Rua do Ouvidor, a para<strong>da</strong> no botequim<br />

e as regatas na Lagoa. Coisa séria. A República, que detestava o<br />

Barão, proibiu, depois de algum tempo, o jogo. Era tarde demais.<br />

Popularizado, o bicho espalhou-se pelas ruas, com milhares de<br />

apontadores vendendo ao povo os bilhetes com animais <strong>da</strong>divosos.<br />

Daí para tornar-se uma mania nacional e <strong>da</strong>r origem a uma<br />

complexa teoria de interpretação dos sonhos de deixar Freud no<br />

chinelo foi um pulo.<br />

Já o GRES Unidos de <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong> originou-se de um clube de<br />

futebol <strong>da</strong> região — o <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong> Futebol Clube, que disputava os<br />

campeonatos de várzea com o uniforme azul e branco. O time deu<br />

origem a um bloco de carnaval que, no dia 04 de abril de 1946,<br />

12


transformou-se em escola de samba. A casa de um dos fun<strong>da</strong>dores,<br />

Antônio Fernandes de Oliveira, o Seu China, funcionou também<br />

como primeira sede administrativa <strong>da</strong> escola, até o ano de 1958;<br />

aquele em que o escrete papou a Jules Rimet na Suécia<br />

Quanto a Noel Rosa, apelo para a máxima do meu avô: nem preciso<br />

dizer o que acho. Noel é conversa de botequim, futebol no rádio<br />

de pilha, conta pendura<strong>da</strong>, conversa fia<strong>da</strong>, sacanagem no portão,<br />

punheta de garoto, selo carniça nova, bola ou búlica, sete com tabela<br />

na caçapa do meio, festa <strong>da</strong> Penha, novena, quermesse, sessão<br />

de mesa branca com tia-avó recebendo espírito de médico do século<br />

XVIII, doce de Cosme e Damião na umban<strong>da</strong> <strong>da</strong> esquina, baile nos<br />

infernos, flor e navalha, gol de letra e gol de mão, pomba <strong>da</strong> paz e<br />

galo de rinha. Estácio, Tijuca, <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>. Noel é fim de papo.<br />

Acontece que, além do bicho, <strong>da</strong> escola e do Noel, a <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong><br />

tem a <strong>Vila</strong> do Blanc; aquela que começa e continua na Rua dos<br />

Artistas. E não termina.<br />

***<br />

Em certa ocasião conheci um estu<strong>da</strong>nte de antropologia<br />

meio maluco que, numa mesa no Bode Cheiroso, na Rua General<br />

Canabarro, quase às margens do Rio Maracanã, anunciou que estava<br />

disposto a se aventurar em um trabalho de campo nas trilhas<br />

profun<strong>da</strong>s do Grande Sertão do Urucuia, lá pelas quebra<strong>da</strong>s do<br />

Brejo do Amparo, para refazer a epopeia do Riobaldo Tatarana.<br />

Dotado, depois de algumas ampolas, de um fervor místico de<br />

seguidor do beato Antônio Conselheiro e iracundo como Búfalo Bill<br />

man<strong>da</strong>ndo caroço em bisão, o ci<strong>da</strong>dão recitou trechos do Grande<br />

Sertão: Vere<strong>da</strong>s, dissertou sobre as estalactites <strong>da</strong>s cavernas de<br />

Januária e jurou atravessar o Liso do Sussuarão; o deserto terrível<br />

percorrido pelo jagunço Riobaldo que, para muita gente, não passa<br />

de um local inventado pelo Seu João Guimarães Rosa.<br />

13


Quando o sujeito, na defesa apaixona<strong>da</strong> <strong>da</strong> existência do Liso<br />

do Sussuarão, disse algo como “o pacto com satanás é um intertexto<br />

com a história do Doutor Fausto e eu vou mapear o Liso do<br />

Sussuarão com essa perspectiva”, um cachaça mandou de prima,<br />

acabando com o delírio:<br />

— Boa! E eu vou fazer uma expedição na Rua dos Artistas pra<br />

saber se ela fica em <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>, no An<strong>da</strong>raí, na Tijuca ou na tal <strong>da</strong><br />

Aldeia Campista.<br />

Até hoje não sei se o expedicionário <strong>da</strong> “missão Urucuia” mapeou<br />

o Liso do Sussuarão e encontrou o Sete Peles, para dizer se o<br />

lugar existe de fato. Não tenho, to<strong>da</strong>via, qualquer dúvi<strong>da</strong> em relação<br />

ao enigma <strong>da</strong> Rua dos Artistas: Aldir Blanc já afirmou, jurou e<br />

sacramentou, baseado em documento escrito pelo avô português,<br />

que o número 257 fica em <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>. Aos que contestarem a sentença<br />

, Aldir recomen<strong>da</strong> um passeio à mer<strong>da</strong> e fim de papo.<br />

***<br />

A <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong> de Aldir Blanc, pano de fundo e boca de cena <strong>da</strong>s histórias<br />

deste livro, não é exatamente um Grande Sertão: Vere<strong>da</strong>s, mas<br />

pode bem ser o nosso Grande Quintal: Esquinas. Mais do que isso, e<br />

aqui não tenho como escapar do famoso lugar-comum, o mosaico deste<br />

Inventário traça certo mapa sentimental do Rio de Janeiro a partir<br />

<strong>da</strong> aldeia (que não é a Campista, aviso logo) — feito de flor e faca, afeto<br />

e porra<strong>da</strong>, punheta e pecado, velório e gol, sol<strong>da</strong>dinhos de chumbo e<br />

chumbo nos sol<strong>da</strong>dinhos, asma e gozo... — capaz de reafirmar a escalação<br />

de Aldir, a meu juízo, como centroavante, o famoso homem <strong>da</strong><br />

grande área, de um time capaz de enfiar um 7 a 1 cheio de categoria na<br />

babaquice dos que enxergam a ci<strong>da</strong>de como um balneário de grandes<br />

eventos, uma empresa destina<strong>da</strong> a atrair negócios e que tais.<br />

(Para quem tiver interesse, a escalação completa do meu escrete<br />

carioca é a seguinte: Maneco de Almei<strong>da</strong>; Rebelo, Efegê, Almirante<br />

e João do Rio. Machado, Nelson e Lima; Garrincha, Aldir e Noel.)<br />

14


Devaneios futebolísticos à parte, este Inventário <strong>da</strong> <strong>infância</strong> ganha<br />

corpo na rara simbiose entre o criador e a criatura: não sabemos<br />

se é o menino Aldir Blanc que vive — sempre viveu — em <strong>Vila</strong><br />

<strong>Isabel</strong>, ou se é a <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong> que vive permanentemente no Aldir. A<br />

conclusão a que chego tem um desfecho que não é dos mais confortáveis:<br />

Aldir vive na <strong>Vila</strong>, a <strong>Vila</strong> vive no Aldir e o Rio de Janeiro,<br />

<strong>da</strong>qui a pouco, periga não viver em coisa nenhuma, pelo an<strong>da</strong>r <strong>da</strong><br />

carroça em que nos meteram.<br />

Sem nenhuma novi<strong>da</strong>de, trava-se hoje no Rio de Janeiro uma<br />

batalha que envolve a perspectiva de se olhar a ci<strong>da</strong>de a partir do<br />

pertencimento ao território (adianto que vejo a ci<strong>da</strong>de, inscrita na<br />

História, como um território em disputa). Tal perspectiva se enre<strong>da</strong><br />

ca<strong>da</strong> vez mais — eis o ponto que me interessa — na batalha pelo<br />

imaginário de um Rio de Janeiro que vai muito além do balneário<br />

de grandes eventos abençoado por Deus e bonito por natureza.<br />

O carioca — essa enti<strong>da</strong>de sobrenatural que nos atormenta<br />

como um encosto padronizador — é o fingidor do poema do Pessoa.<br />

Desconfio que a gente ande acreditando muito na própria ci<strong>da</strong>de-<br />

-farsa, pátria espiritual do biscoito Globo (que surgiu em Sampa) e<br />

do mate com limão. O personagem libertador — maneiro, descolado<br />

ou fantasiado de Zé Pelintra no samba — fugiu completamente<br />

do nosso controle e, paradoxalmente, nos acorrenta ca<strong>da</strong> vez mais.<br />

Aquele papo de criatura que papou o criador. Mas Aldir tá aí, feito<br />

cambono de gira, para <strong>da</strong>r uns cacetes no encosto e man<strong>da</strong>r o obsessor<br />

de volta pras profun<strong>da</strong>s.<br />

Passeando pelas páginas desta <strong>Vila</strong>, reforço a impressão de que<br />

as ci<strong>da</strong>des, mais do que conjuntos de ruas, casas, prédios, praças e<br />

monumentos, são sarapatéis em que se misturam na mesma panela<br />

memórias, aspirações, anseios, sonhos, desilusões, conquistas,<br />

fracassos, alegrias e invenções <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de inúmeras gerações que<br />

passaram por suas esquinas. Uma ci<strong>da</strong>de guar<strong>da</strong> experiências intangíveis;<br />

é feita, para o bem e para o mal, <strong>da</strong> matéria e <strong>da</strong> memória<br />

acumula<strong>da</strong> pelas gerações sucessivas que a habitaram.<br />

15


O Rio de Janeiro tem, ao longo dos tempos, a bizarra tendência<br />

de destruir seus lugares de memória. O Morro do Castelo, sítio <strong>da</strong><br />

criação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, foi pra cucuia; o Palácio Monroe foi pro beleléu;<br />

o Mercado <strong>da</strong> Praça XV, um marco <strong>da</strong> arquitetura em ferro, foi extirpado;<br />

a Praça Onze, um caldo temperado pelas culturas de negros,<br />

judeus e ciganos, acabou em nome do progresso; o local em<br />

que Machado de Assis viveu, no Cosme Velho, virou um edifício<br />

safado; botequins centenários viraram bares de grife com arquiteturas<br />

modernosas; cinemas de rua tiveram facha<strong>da</strong>s descaracteriza<strong>da</strong>s<br />

para funcionar como igrejas neopentecostais; centenários<br />

sobrados e coretos do subúrbio foram destroçados sem que deles<br />

reste ao menos o vestígio.<br />

As ci<strong>da</strong>des, no fim <strong>da</strong>s contas, não se revelam apenas no que<br />

acontece nas suas esquinas. Elas mostram-se também — e muitas<br />

vezes de maneira mais reveladora — em tudo aquilo que já não é.<br />

A <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong> pratica<strong>da</strong>, vivi<strong>da</strong>, delira<strong>da</strong> e cria<strong>da</strong> por Aldir é mais<br />

que o mergulho do menino. É mesmo uma forma de viver (e morrer),<br />

como o bandido do filme do Velho Oeste em pleno saloon. Se<br />

for pra ir pro beleléu, o negócio é sacar a arma e meter bronca; a<br />

única sani<strong>da</strong>de possível em tempos em que a ci<strong>da</strong>de é empresa, a<br />

escola é empresa, o botequim é empresa, a universi<strong>da</strong>de é empresa,<br />

a imprensa é empresa, o hospital é empresa, a igreja é empresa, rapinagem<br />

é empresa, a escola de samba é empresa, o time de futebol<br />

é empresa.<br />

Na linha do Grande Sertão, e ain<strong>da</strong> sem saber se o profeta do<br />

Bode Cheiroso an<strong>da</strong> perdido nas quebra<strong>da</strong>s do Urucuia, lembro-<br />

-me que Guimarães Rosa começou o seu discurso de posse na<br />

Academia Brasileira de Letras (hoje habita<strong>da</strong> por encostos e obsessores<br />

de baixíssimo escalão), pronunciando o nome de sua ci<strong>da</strong>de:<br />

Cordisburgo. E terminou o arrazoado se confundindo com a terra<br />

e tirando on<strong>da</strong>:<br />

Eis aqui Cordisburgo!<br />

O homem é o chão que vive e delira.<br />

16


Pois eu imagino, depois de ler este <strong>inventário</strong> blancquiano, um<br />

Aldir de cotovelo no balcão, sem fardão e sem penacho, brandindo a<br />

máxima que há de se perpetuar nas pleuras do maciço do Engenho<br />

Novo, ecoar nas vielas cariocas entre o São Carlos, o Salgueiro e o<br />

Morro dos Macacos, e se entranhar na Rua dos Artistas com a força<br />

<strong>da</strong> linha de frente do Expresso <strong>da</strong> Vitória atravessando o Grande<br />

Sertão, umbigo do mundo:<br />

— Eis aqui <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>!<br />

17


foto_arquivo pessoal<br />

Este livro foi composto em Acta e Tremendous. Foi<br />

impresso em 2017 pela gráfica Rotaplan em papel<br />

pólen bold 70g/m 2 para o miolo e triplex 300g/m 2<br />

para a capa. Na foto, Aldir Blanc, aos cinco anos, no<br />

quintal <strong>da</strong> casa <strong>da</strong> Rua dos Artistas, número 247,<br />

em <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>, ao lado do seu cavalo com rodinhas.


ALDIR BLANC é neto <strong>da</strong> dona Odette e do seu Alfredo,<br />

por parte de pai; <strong>da</strong> dona Noêmia e do seu Aguiar, por<br />

parte de mãe. É filho <strong>da</strong> Helena e do Ceceu Rico. Viveu<br />

sua meninice — dos 3 aos 11 anos — na Rua dos Artistas,<br />

em <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>. Para ele, aquele “foi um período<br />

dourado”: havia um cavalo enorme, laranjeiras-<strong>da</strong>-terra,<br />

goiabeiras, entre as quais a sua goiabeira branca que se<br />

curvava até o chão. Passava horas no alto dessa árvore<br />

lendo Monteiro Lobato e livros de capa e espa<strong>da</strong>, e<br />

jogando marimba em linhas de pipas que bor<strong>da</strong>vam o<br />

céu <strong>da</strong> tarde. É autor, entre outros, de <strong>Vila</strong> <strong>Isabel</strong>,<br />

<strong>inventário</strong> <strong>da</strong> <strong>infância</strong> (Relume-Dumará, 1996) e Um<br />

cara bacana na 19ª (Record, 1996).


Caramba, que responsa falar de Aldir. Que rouba<strong>da</strong>, que ousadia, que atrevimento.<br />

Que Aldir embalou as bagunças de meus filhos, as minhas, as alegrias e as tristezas<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> gente.<br />

A vi<strong>da</strong> como é de ver<strong>da</strong>de. A hipocrisia sente vergonha de existir, se é que hipocrisia<br />

sente vergonha de alguma coisa.<br />

A gargalha<strong>da</strong>.<br />

O carioca desnudo, digo, pelado, com orgulho, que roupa nenhuma veste melhor<br />

o carioca que a prosa desse senhor, meu amigo, mas que eu não vejo mais. Não<br />

vejo mais porque vim morar na ilha de Paquetá, terra que ele tanto cantou e ain<strong>da</strong><br />

cantará. Aliás, como canta bonito! Que voz!<br />

Aí grudei na ilha, como ele grudou na Mu<strong>da</strong> e talvez nunca mais a gente<br />

se encontre, que já somos velhotes. Mas sei que a gente se gosta.<br />

Eu, pirralhinha <strong>da</strong>s letras, tenho orgulho de viver no tempo desse camara<strong>da</strong>.<br />

CRISTINA BUARQUE<br />

ISBN 978856567962-6<br />

9 78 8 5 6 5 6 7 9 6 2 6

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