TROVADORISMO e HUMANISMO
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
— 118 —<br />
Memorial do Convento<br />
Um dos romances mais conhecidos<br />
de José Saramago é Memorial do Convento<br />
(1982), classificado como narrativa<br />
histórica, pois retrata aproximadamente<br />
30 anos da História de Portugal<br />
(época da Inquisição). Nesta obra podemos<br />
encontrar um cenário rico, registrando<br />
não só o fato histórico, mas<br />
reconstituindo a vivência popular, numa<br />
viagem a diferentes povoados ao redor<br />
de Lisboa. A narrativa segue linear, sem<br />
interrupções, vigorosa e rica. Saramago<br />
procura dar à linguagem o tom das crônicas<br />
históricas, reveste o vocabulário<br />
de termos raros e realiza malabarismos<br />
sintáticos.<br />
(resumo)<br />
O rei D. João V necessitava de herdeiros,<br />
mas o ventre de D. Maria Ana<br />
não os concebia. Fez ele, então, uma<br />
promessa de construir um convento em<br />
Mafra se a concepção ocorresse. Em<br />
paralelo, segue-se o registro da vida do<br />
povo, primeiro enfocando o soldado que<br />
perdeu a mão esquerda na guerra contra<br />
os espanhóis: Baltasar Sete-Sóis,<br />
que em um espetáculo da Inquisição,<br />
conheceu Blimunda, mulher de poderes<br />
mágicos, que enxergava o interior das<br />
pessoas e cuja mãe, por ter poderes<br />
semelhantes, havia sido desterrada para<br />
Angola. Desafiando os rigores da religião,<br />
ambos se “casam” através de um<br />
ritual de sangue. Baltasar torna-se ajudante<br />
do Padre Bartolomeu Lourenço,<br />
que, sob a proteção do rei, construía<br />
uma máquina de voar, a passarola. Sob<br />
o signo da máquina de voar, unem-se<br />
ideais: os cultos, representados pelo<br />
padre Bartolomeu de Gusmão e pelo<br />
músico Scarlatti, e os populares, ancorados<br />
em Blimunda e Baltasar. Padre<br />
Bartolomeu viaja, enlouquece e morre.<br />
Blimunda, após o sumiço de Baltasar,<br />
passa a procurá-lo, encontrando-o nove<br />
anos depois em situação trágica.<br />
(fragmento)<br />
Levar este pão à boca é gesto fácil,<br />
excelente de fazer se a fome o reclama,<br />
portanto alimento do corpo, benefício<br />
do lavrador, provavelmente maior<br />
benefício de alguns que entre a foice<br />
e os dentes souberam meter mãos de<br />
levar e trazer e bolsas de guardar, e<br />
esta é a regra. Não há em Portugal trigo<br />
que baste ao perpétuo apetite que os<br />
portugueses têm de pão, parece que<br />
não sabem comer outra coisa, por isso<br />
os estrangeiros que cá moram, doridos<br />
das nossas necessidades, que em maior<br />
volume frutificam que sementes de<br />
abóbora, mandam vir, das suas próprias<br />
e outras terras, frotas de cem navios<br />
carregados de cereal, como estes que<br />
entraram agora Tejo adentro, salvando<br />
à torre de Belém e mostrando ao governador<br />
dela os papéis do uso, e desta<br />
vez são mais de trinta mil moios de pão<br />
que vêm da Irlanda, e é a abundância<br />
tal, fome que finalmente deu em fartura,<br />
enquanto em fome se não tornar, que,<br />
achando-se cheias as tercenas e também<br />
já os armazéns particulares, andam<br />
por aí a alugar depósitos por todo o<br />
dinheiro, e põem escritos nas portas da<br />
cidade para que conste às pessoas que<br />
os tiverem para alugá-los, com que desta<br />
vez se vão arrepelar os que mandaram<br />
vir o trigo, obrigados pelo excesso<br />
a baixar-lhe o preço, tanto mais que se