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LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 22, Janeiro <strong>2000</strong><br />
Depois de Zurbaran e do<br />
Beato Fra Angélico, o<br />
pintor cujas obras mais<br />
me impressionaram foi Claude Lorrain.<br />
Artista do século XVII, seu estilo<br />
é diáfano, encantador, que revela<br />
uma habilidade única de reproduzir<br />
em suas telas aquilo sem o que —<br />
no dizer de um poeta francês — as<br />
coisas não seriam senão o que elas<br />
são: a luz do sol.<br />
Lorrain é o pintor do sol. Seus<br />
quadros são fantasias em torno do<br />
astro diurno, que ele se compraz em<br />
representar na sua beleza plena, esplendorosa<br />
e régia, projetando a feeria<br />
dessa luz sobre naturezas e ce-<br />
nários os quais, sob a ação dela, parecem<br />
se transformar em imensas e<br />
suntuosas cortes.<br />
Em geral, os temas de suas pinturas<br />
são frutos de uma privilegiada<br />
imaginação, misturando-se neles elementos<br />
antagônicos e quase se diria<br />
contraditórios. Por exemplo, um porto<br />
em que as águas do mar penetram<br />
por um lado da cidade e formam<br />
uma espécie de enorme laguna, cercada<br />
de magníficos palácios, que ombreiam<br />
com ruínas de construções<br />
romanas. As ondas banham prestigiosas<br />
escadarias de mármores policromados,<br />
ou investem contra uma<br />
torre medieval que está posta naquele<br />
panorama como a proa de um<br />
navio apontada para o amplo oceano.<br />
Nesse porto estão ancoradas várias<br />
embarcações, grandes e pequenas,<br />
a bordo das quais se vêem camponeses<br />
tocando e dançando uma<br />
tarantela. São pessoas do fundo do<br />
país, de regiões onde não há mar, e<br />
que ele coloca ali, em tombadilhos<br />
enfeitados, junto a marinheiros e estivadores<br />
que desembarcam mercadorias.<br />
Tudo isso é irreal, imaginário, e<br />
chega a ser inconciliável: escadas de<br />
mármore banhadas pela água do<br />
mar (que corrói essa pedra facil-<br />
32
mente), ruínas romanas ao lado de<br />
torres medievais, próximas a palácios<br />
clássicos, camponeses fazendo<br />
festas a bordo de navios, personagens<br />
bíblicos ao lado de homens do<br />
século XVII... Ele toma esses elementos<br />
díspares e pinta quadros de<br />
realidades que nunca existiram.<br />
Pergunta-se, então, qual o mérito<br />
dessa concepção artística. A resposta,<br />
a meu ver, é que tudo isto convém<br />
ao pintor para iluminar por um<br />
certo tipo de luz de sol, também ela<br />
mirífica e transcendente da realidade.<br />
Ele cria coisas em ordem a<br />
um sol igualmente criado pelo seu<br />
talento. Ao término de uma fabulosa<br />
tela, Claude Lorrain terá composto<br />
uma situação natural que ele<br />
gostaria muito fosse verdade, e cuja<br />
existência encheria a sua alma. Não<br />
se trata, pois, de uma pura fantasia,<br />
mas de uma criação. Ele gerou tudo<br />
aquilo para formar um mundo dourado<br />
e irreal, que atrai profundamente<br />
o senso artístico de incontáveis<br />
pessoas apreciadoras da arte<br />
pictórica.<br />
Algum espírito<br />
menos afeito a<br />
idealizações poderia<br />
objetar contra<br />
o valor e a admiração<br />
que se tributam<br />
aos quadros<br />
de Lorrain, porque<br />
não se deve<br />
gostar do que é<br />
imaginário. E nas<br />
pinturas dele tudo<br />
— incluindo a<br />
própria luz do sol,<br />
sans lequel les choses<br />
ne seraient que<br />
ce qu’elles sont —<br />
é imaginário e, por<br />
conseguinte, anorgânico.<br />
Esta é uma objeção<br />
perfeitamente<br />
estúpida, porque<br />
faz parte da<br />
organicidade do<br />
homem ter uma certa saudade do<br />
Paraíso, perdido após o pecado de<br />
nossos primeiros pais. E ter, portanto,<br />
uma necessidade equilibrada,<br />
sem descabelamentos, de imaginar<br />
coisas que ele sabe não existirem<br />
nesta terra de exílio, mas que podiam<br />
ter existido no Éden, e que<br />
poderão existir no Paraíso Celeste.<br />
Assim, longe de merecerem nosso<br />
desprezo, os quadros de Claude<br />
Lorrain são quase uma pré-visão do<br />
Céu Empíreo.<br />
* * *<br />
Há, todavia, nas telas de Lorrain<br />
uma simbologia de algo ainda mais<br />
elevado.<br />
Quando consideramos o conjunto<br />
de sua obra, podemos perceber<br />
que sua especialidade é pintar muros<br />
velhos, leprosos, escalavrados,<br />
que perderam pedaços de reboco e<br />
os tijolos se tornaram aparentes, sobre<br />
os quais, porém, bate um sol<br />
magnífico. E o muro, feíssimo, fica<br />
agradável de ver e contemplar.<br />
Aqueles fabulosos raios solares, ao<br />
conferir à parede derruída algo do<br />
esplendor e da vida deles, fazem<br />
com que ela se torne linda, realçamlhe<br />
o valor, o significado e o ideal.<br />
Quer dizer, o muro alquebrado,<br />
que enfrentou tempestades, suportou<br />
vilipêndios, agüentou terremotos<br />
e continua sempre de pé, sob a<br />
ação de um luz feérica, adquire um<br />
ar de velho granadeiro da guarda<br />
que lutou em todas as batalhas, e<br />
agora serve como sentinela do lado<br />
de fora do palácio real, e cuja beleza<br />
consiste em ter sido surrado pelos<br />
acontecimentos e ter resistido. É o<br />
herói de todas as intempéries e de<br />
todos os combates. Tornou-se um<br />
homem feio, enrugado, o bigode<br />
branco manchado de tabaco, a face<br />
e o corpo marcados de cicatrizes. É<br />
rude e pouco educado. Porém, ao<br />
vê-lo... prestamos-lhe continência.<br />
Reverenciamos o sol de seu passado,<br />
de suas dores e de seus sofrimentos,<br />
que incide sobre ele, levanos<br />
a interpretá-lo, e arranca de<br />
nossos lábios a exclamação: Que<br />
maravilha!<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Do fundo do muro emerge então,<br />
pelo toque do sol de Lorrain, o que<br />
já não aparecia, mas nele estava, e<br />
que é o “arqui-ele”.<br />
Ora, assim é também a ação da<br />
graça divina. Ela é, digamos, a tinta<br />
celestial que Nosso Senhor utiliza,<br />
como se fosse um infinito Claude<br />
Lorrain da criação. O genial talento<br />
do pintor francês não foi senão pálida<br />
e pequena representação das perfeições<br />
incomensuráveis de Deus no<br />
que diz respeito a esta forma de talento.<br />
Visto à luz da graça concedida<br />
por Deus, tudo o que é árido e difícil<br />
se torna belo. A perda desse modo<br />
de ver as coisas pode ocorrer por<br />
culpa nossa, porque cedemos aos<br />
nossos egoísmos, caprichos e manias.<br />
Ou por decisão de Deus que,<br />
nos seus insondáveis desígnios, deseja<br />
nos provar: depois de nos cumular<br />
com seus dons, de nos favorecer<br />
com maravilhosas situações à la<br />
pintura de Claude Lorrain, permite<br />
que tudo se apague de repente.<br />
Agindo assim, Nosso Senhor como<br />
que nos pergunta: “Meu filho,<br />
considerando a formosura da graça,<br />
tu, por assim dizer, me viste e compreendeste<br />
o que é a maravilha das<br />
coisas. Agora Eu vou te provar. Sabes<br />
me ser fiel nas horas em que Eu<br />
não te visito pela graça sensível?<br />
Nas horas em que anoitece, tu continuas<br />
a crer no sol? Ou és daqueles<br />
que pensam ter-se tornado cegos<br />
porque escureceu? Ou seja, porque<br />
há aridez, tu pensas que as consolações<br />
não voltarão jamais?<br />
“Quero conhecer tuas disposições,<br />
para saber se tu me és grato. Se o<br />
fores, dir-me-ás: Nas sombras da<br />
morte, Senhor, acreditarei em Vós como<br />
se estivesse na plenitude da vida,<br />
porque sei que é verdade tudo o que vi<br />
antes da escuridão.”<br />
Saibamos ter esse reconhecimento<br />
para com o Sol da Justiça, cujos<br />
raios são graças sob cuja ação o que<br />
é feio e velho torna-se belo e admirável.<br />
Compreendamos que, assim como<br />
nos quadros de Claude Lorrain<br />
não é ilusão o aspecto fabuloso que<br />
o muro derruído assume sob a luz<br />
de um sol magnífico que lhe penetra<br />
na superfície e faz reviver a grandeza<br />
dos primeiros dias, assim também<br />
nesta nossa vida mortal não<br />
são ilusões as coisas sobre as quais<br />
incidem as cintilações da graça divina,<br />
que nos faz ver tudo o que elas<br />
têm de ensolarável, de maravilhoso<br />
e de arqui-verdadeiro. v<br />
34
35
Nas sendas da<br />
confiança
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 23, Fevereiro <strong>2000</strong><br />
Incrustado nas montanhas da Baviera, famoso<br />
no mundo inteiro, o castelo de Neuschwanstein<br />
foi construído no século XIX pelo Rei Luís II,<br />
um homem apaixonado pelas coisas da Idade Média.<br />
Seu entusiasmo por aquela época de fé e de grandezas<br />
cristãs o levou a idealizar um edifício que exprimisse<br />
todo o espírito medieval, e, mais ainda, chegasse a transcender<br />
em algo o estilo gótico. Surgiu Neuschwanstein.<br />
O castelo se situa num panorama ultra favorável.<br />
Posto numa espécie de píncaro em relação a todas as<br />
circunjacências imediatas, servem-lhe de fundo de<br />
quadro três lindos aspectos da natureza. Primeiro, um<br />
longo movimento de montanhas que parecem convergir<br />
para ele, extinguindo-se aos seus pés. Depois, dois lagos<br />
cujas águas límpidas e cristalinas assemelham-se a es-<br />
pelhos, como são em geral as que se represam nos altos<br />
dos montes. Em terceiro lugar, uma floresta plantada,<br />
tão densa e tão vigorosa que parece uma mata virgem.<br />
No meio de tudo, o castelo sobranceiro, dando a impressão<br />
de receber sua dignidade e sua força de todas as<br />
montanhas que nele desembocam. Domina de modo<br />
soberano tudo o que lhe fica abaixo, como quem agarra<br />
a natureza em nome da majestade dos montes que o antecedem.<br />
Como um rei procedente de uma genealogia<br />
fabulosa e de um passado grandioso, que no presente<br />
governa seus povos de forma altaneira. Assim temos<br />
esse castelo colocado no seu lugar. É uma verdadeira<br />
garra subjugando a montanha, é um autêntico herói que<br />
olha do alto os panoramas, sentindo-se superior a todo<br />
o cenário que considera.<br />
Sonhando com a<br />
Idade Média...
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Brasão do Rei Luís II<br />
A primeira coisa que se nota no<br />
castelo é o jogo das torres. Sobretudo<br />
a mais elevada, que parece desafiar<br />
os montes às suas costas, como<br />
quem diz: “Não me contento em<br />
jugular o que está abaixo; eu discuto<br />
e rivalizo com aquilo que, acima de<br />
mim, quer contestar que me encontro,<br />
sozinha, no píncaro do orbe!”<br />
Singularmente esguia, essa torre<br />
se divide em motivos ornamentais,<br />
culminando num telhado cônico<br />
que acentua a sensação de se tratar<br />
mesmo de um pináculo do universo.<br />
Terraços erguidos sobre ameias, além<br />
de várias janelas, indicam uma torre<br />
própria para ser habitada.<br />
E quando pensamos no que significa<br />
morar numa construção dessas,<br />
figuramos logo um quarto de paredes<br />
de pedra, com uma grande lareira<br />
onde o fogo aquece no inverno,<br />
projetando reflexos de labaredas<br />
num bonito vitral, enquanto se<br />
ouvem os ventos uivantes lá fora.<br />
Ou então, na proximidade da primavera<br />
e do estio, sentindo que a natureza<br />
toda estremece e a torre continua<br />
firme. Compreende-se que é<br />
alguma coisa viver num local como<br />
esse! Bem diferente da existência<br />
num edifício de apartamentos...<br />
Há depois o prédio principal do<br />
castelo, constituído de vários andares<br />
e que se prolonga em dois corpos<br />
laterais, mais baixos, entrecortados<br />
e finalizados por torres de diferentes<br />
feitios. Dir-se-ia que a grandeza<br />
de Neuschwanstein segue um<br />
ziguezague de torre a torre, sendo<br />
rematada pelo pátio interno, como<br />
se este fosse uma taça que recolhe<br />
em si toda a atmosfera de magnitude<br />
ali contemplada.<br />
Existe ainda outra fachada do castelo,<br />
edificada em pedra (ou tijolo)<br />
de cor avermelhada, aberta por um<br />
portal magnífico e dando para um<br />
terraço de onde se domina a natureza.<br />
Ali se ergue a última torre, reminiscência<br />
de todas as outras, que<br />
reproduz em ponto menor a grandiosidade<br />
da construção. Fosse esta<br />
última composta apenas por tal torre,<br />
dotada de uma vida própria, e já<br />
teríamos um lindo castelo. Mas, por<br />
trás disso sobe uma verdadeira sinfonia<br />
de torres, ameias e tetos cônicos,<br />
até a suprema ponta que desafia<br />
as montanhas.<br />
Todo esse conjunto nos transmite<br />
a idéia de uma grandeza sumamente<br />
hierárquica, que se desdobra nos<br />
seus respectivos degraus até se abrir<br />
para o que lhe é inferior, ter um afago<br />
para quem deseja ultrapassar<br />
seus portões com boa intenção, ou<br />
ter uma ameaça para quem se aproxima<br />
imbuído de maus sentimentos.<br />
Porque este castelo tem qualquer<br />
coisa de fortaleza; e esta fortaleza,<br />
algo de cárcere. Para aquele que entra<br />
de acordo com a vontade do dono,<br />
não há maravilhas que não lhe<br />
sejam aí desvendadas. Para o inimigo<br />
e o criminoso, porém, reservamse<br />
castigos e punições.<br />
Eis o Neuschwanstein, um castelo<br />
altamente simbólico do senso de<br />
batalha, de combate e de dignidade<br />
afidalgada do homem medieval.<br />
Castelo tão belo de se ver, esplêndido<br />
sonho de um rei que poderia<br />
ter sido grande e não o foi, mas que<br />
deixou à humanidade uma extraordinária<br />
figura de tudo quanto estava<br />
destinado a realizar... v<br />
30
31
Lógica<br />
inaciana<br />
e paz<br />
beneditina
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 24, Março <strong>2000</strong><br />
Venerável nascente<br />
da Cristandade<br />
32<br />
Arcos e afrescos no interior<br />
da gruta de Subiaco
Muito do que se tem admirado<br />
da Civilização<br />
Cristã ao longo dos<br />
séculos, e se admirará até o fim dos<br />
tempos, pode-se dizer que nasceu<br />
de uma gruta. Aberta no meio de<br />
montes ásperos e íngremes, ela abrigou<br />
o jovem Bento de Núrsia, que<br />
ali se refugiara para encetar sua vida<br />
contemplativa. Nela, ele forjou<br />
sua magnífica e santa alma de patriarca.<br />
E dela se irradiou a Ordem<br />
Beneditina, da qual floresceu o movimento<br />
cluniacense, do qual, por<br />
sua vez, brotou a sociedade católica<br />
medieval. Uma gruta, portanto,<br />
imensamente venerável.<br />
Trata-se de Subiaco, a “tinturamãe”,<br />
a fonte de onde jorrou a água<br />
da cristandade européia ocidental,<br />
de cujo desenvolvimento nasceriam<br />
a América e todas as expansões católicas<br />
pelo mundo.<br />
*<br />
As montanhas se sucedem e se<br />
encontram em vértices acentuados.<br />
Nenhuma delas cai de modo bonito.<br />
Nenhuma desenha as flexões e deflexões<br />
suaves dos montes da Baía<br />
da Guanabara. São elevações agrestes,<br />
justapostas pela mão do Criador,<br />
não se conhecem, não são amigas<br />
umas das outras, e mais parecem<br />
dilaceradas diante do<br />
firmamento. Para que servem?<br />
Para o vazio, para a<br />
aridez, para o isolamento<br />
dos homens chamados a<br />
viver na solidão. Ali, o<br />
religioso se sente imerso<br />
na terra abandonada<br />
e rude, pois para<br />
ele a existência neste<br />
mundo nada reserva.<br />
O seu viver é<br />
olhar para o Céu:<br />
Pater Noster qui<br />
es in coelis, sanctificetur<br />
nomen<br />
tuum...<br />
*<br />
A gruta... É<br />
muito bonito, poé-<br />
tico até, dizer que São Bento encerrou-se<br />
ainda moço numa gruta.<br />
Porém, o peregrino que visita Subiaco<br />
surpreende-se ao contemplar<br />
aquelas pedras ríspidas — em todo<br />
o sentido da palavra ríspida — com<br />
as quais o jovem ermitão teve de<br />
conviver. Pouca ou nenhuma beleza<br />
as distingue. Todas parecem uma<br />
amálgama constituída em épocas<br />
pré-históricas, quando ainda escorriam<br />
à maneira de cera de vela, acumulando-se<br />
na desordem, e na desordem<br />
se petrificando, depois de<br />
calores e frios espantosos. Tudo é<br />
desconforto, tudo é solidão, tudo é<br />
Céu! Devemos imaginar São Bento<br />
vivendo aí, lendo, meditando, rezando,<br />
talvez sem se dar conta de<br />
que, naquele fundo de rocha, a<br />
São Bento (Afresco de Subiaco)<br />
Cristandade européia estava nascendo.<br />
*<br />
As construções, por sua vez, erguidas<br />
com certa irregularidade,<br />
apresentam no seu conjunto uma<br />
beleza indefinível, ressaltada pelo<br />
fato de se confundirem com penhascos<br />
estupendos, que têm algo de<br />
profético, pois neles parece encerrar-se<br />
todo o futuro da ordem beneditina.<br />
Arcarias românicas servem de arrimo<br />
para os grandes edifícios do<br />
mosteiro. Arcos que transmitem<br />
uma idéia de lógica, de força, de calma,<br />
que têm seu encanto próprio, e<br />
mesmo uma certa majestade. Refletem<br />
eles algo da retidão, da despretensão<br />
e da robustez da alma do<br />
magnífico Patriarca.<br />
A um canto, o pequeno campanário,<br />
singelo e modesto, mas suficiente<br />
para abençoar aquelas solidões,<br />
na aurora e no pôr do sol, com<br />
o timbre do seu bronze a saudar a<br />
Virgem Santíssima nos toques do<br />
Angelus.<br />
*<br />
Dir-se-ia que o ambiente próprio<br />
para ser o berço da cristandade medieval<br />
deveria ser mesmo essa solidão<br />
predestinada, na qual o espírito<br />
humano se compraz em imaginar<br />
que a vegetação, as grandes<br />
árvores, os penhascos e as ondulações<br />
do terreno eram impregnadas<br />
de graças vaticinadoras<br />
do que adviria para<br />
a Europa nos séculos medievos.<br />
E ainda que São Bento<br />
não soubesse nem<br />
previsse tudo o que estava<br />
por nascer, ele tinha<br />
entretanto seus<br />
anseios e ideais de<br />
uma civilização cristã.<br />
E todas aquelas<br />
montanhas, pedras<br />
e penhascos repercutiam<br />
os seus<br />
ideais; e os ventos,<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
“Subiaco: solidão predestinada; rochas<br />
e penhascos impregnados de graças vaticinadoras<br />
da Cristandade medieval...”<br />
Dr. Plinio contemplando<br />
o roseiral e as<br />
montanhas de Subiaco,<br />
em fins de 1988<br />
quando ali sopravam, pareciam<br />
cantar os seus anseios.<br />
Resultado, quando hoje se<br />
visita Subiaco, procura-se interrogar<br />
aqueles montes e<br />
aquelas grutas que ouviram os<br />
ecos dos passos de São Bento,<br />
os soluços e os prantos dele<br />
durante as crises e tentações,<br />
o sussurro de suas preces e os<br />
seus cânticos de alegria. Procura-se,<br />
enfim, sentir de algum<br />
modo as ressonâncias de<br />
uma história que lá se passou,<br />
de um futuro que lá se engendrou,<br />
e perceber os reboares<br />
de bênçãos e graças que ali<br />
reinaram, que ali ainda palpitam.<br />
Em Subiaco, tem-se a impressão<br />
de que se toca o Céu<br />
com as mãos. Mais ainda. É o<br />
Céu que baixa à Terra e inunda<br />
os homens com sua bondade,<br />
sua sacralidade e sua<br />
grandeza.<br />
v<br />
34
BRASIL:<br />
UMA GRANDIOSA<br />
VOCAÇÃO
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 25, Abril <strong>2000</strong><br />
À espera de um<br />
grandioso porvir...
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
N<br />
a memória e na sensibilidade de<br />
quem contempla as belezas naturais<br />
com as quais Deus ornou o<br />
Brasil, resta a impressão de que elas exprimem,<br />
à sua maneira, a vocação deste gigantesco<br />
país.<br />
Muitos de seus lindos e abençoados panoramas<br />
refletem a especial vocação da alma<br />
brasileira de ser profundamente católica<br />
apostólica romana, de estar disposta a receber<br />
uma extraordinária comunicação do espírito<br />
da Santa Igreja.<br />
Como corolário dessa disposição, o brasileiro<br />
é convidado a ter uma mentalidade afim<br />
com a formosura de seus mares e litorais,<br />
com a elegância de seus ipês em flor, com a<br />
variedade de suas montanhas, ora graciosas e<br />
suaves, ora rudes e desafiadoras, com a grandeza<br />
de suas íngremes penedias que escorrem<br />
e se confundem com deleitáveis planícies...<br />
Que dizer das praias do Brasil? Ele tem<br />
uma só praia, com alguns intervalos, que se<br />
estende do Rio Grande do Sul ao Amapá. É<br />
32
um dos seus mais belos aspectos naturais.<br />
Dificilmente nos cansamos de<br />
ver o mar imenso, envolvendo ilhas<br />
que dão aos panoramas litorâneos<br />
uma nota semelhante à de pedras preciosas<br />
encastoadas num anel. E as ondas,<br />
acompanhadas de nuvens que<br />
parecem icebergs colossais caminhando<br />
em direção ao continente, têm um<br />
curioso movimento que exprime também<br />
certas habilidades da alma brasileira,<br />
certos jeitos, seja para acariciar,<br />
seja para louvar a Deus, seja ainda<br />
para fazer diplomacia...<br />
Irmã da imensidade e beleza marítimas<br />
é a abundância das águas fluviais,<br />
correndo às quantidades pelo<br />
Brasil afora. Exemplo paradigmático<br />
são as cataratas do Iguaçu, em cujas<br />
quedas se pode avaliar a caudal e o<br />
ímpeto do líquido que se precipita<br />
majestosamente por toda a parte.<br />
Que extraordinário e fragoroso domínio!<br />
*<br />
Das águas para os campos e serranias.<br />
Em geral, montanhas não muito<br />
altas, sem píncaros<br />
que pareçam galgar<br />
até os céus. Dir-seia<br />
que existem, confiantes<br />
e contentes,<br />
sob as vistas do firmamento,<br />
sem necessidade<br />
de tentar<br />
arranhá-lo, porque<br />
sentem que ele desce<br />
até elas. Deixamse<br />
banhar pacificamente<br />
pela luz do<br />
sol, e permanecem<br />
à espera de um futuro<br />
talvez não remoto.<br />
Uma espera<br />
tranqüila, doce, cordata,<br />
de quem sabe<br />
que, sem dúvida alguma,<br />
esse dia chegará.<br />
Suaves ondulações<br />
de terreno, cobertas<br />
de um verde<br />
ora alegre e risonho,<br />
ora um tanto<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
escuro e sombrio, sem nada de trágico<br />
porém. Aqui e ali, aninham-se restos<br />
de antigas florestas, sobejos de matas<br />
virgens: é o Brasil da selva, do mistério<br />
primitivo, repleto de surpresas.<br />
Ao lado das montanhas e ondulações<br />
adocicadas, cabem também os<br />
grandes gestos geográficos, o estupendo<br />
e o extraordinário rasgando aquela<br />
doçura, como para dar a entender ao<br />
nosso povo que, na placidez de seu<br />
temperamento, há de contar, nas ocasiões<br />
dramáticas, com lances heróicos.<br />
Então surge, por exemplo, o famoso<br />
Dedo de Deus, na serrania que<br />
conduz a Teresópolis (foto da página<br />
31). Quando se repara nele, tem-se a<br />
impressão de que houve algum dia ali<br />
um forte, onde guerreiros impávidos<br />
lutaram contra invasores que tentavam<br />
conquistá-lo. E que um murro<br />
formidável de um avantajado demônio<br />
dos antigos tempos arrebentou<br />
com quase tudo no seu cimo. Porém,<br />
restou um dedo em riste, dizendo:<br />
“Ainda voltarei! A minha altura natural<br />
é esta e a ela não renunciarei. Dia<br />
virá em que a montanha inteira ascenderá<br />
ao mesmo píncaro, que continuo<br />
a reivindicar, na figura ideal desta fortaleza<br />
sonhada!”<br />
*<br />
Se nos voltamos para a exuberante<br />
e variegada flora brasileira, parece<br />
nos faltar o vocabulário para comentá-la<br />
de modo satisfatório. Haja vista<br />
um ipê na plenitude de sua floração,<br />
na riqueza estupenda de sua beleza,<br />
ou seja, no que ele tem de verdadeiramente<br />
único. É uma árvore de ouro.<br />
Sua copa não desenha uma esfericidade<br />
perfeita, pois tem reentrâncias<br />
diversas as quais fazem com que os jogos<br />
de luz sobre o dourado mudem de<br />
tonalidade, e se evidenciem os diferentes<br />
matizes dessa cor.<br />
E quando o ipê floresce contrastando<br />
com uma paisagem seca e desoladora,<br />
dir-se-ia que ele é um protesto<br />
do futuro, a proclamar: “Esperem!<br />
Alguma coisa ainda virá!”<br />
*<br />
Praias, rios, cordilheiras, ipês... Panoramas,<br />
cenários e ambientes que<br />
convidam a cogitações, que sugerem<br />
planos, anseios, ideais, tendo no alto de<br />
si um grandíssimo descortínio, meio<br />
feito de imponderáveis que nos levam<br />
a esperar os desígnios de Nossa Senhora<br />
para o Brasil.<br />
Pois algo há de se passar aqui, à altura<br />
dessas imensidões. Elas não foram<br />
criadas sem que um dia surgissem<br />
homens a elas proporcionados.<br />
Por isso sobre elas paira uma graça<br />
carregada de belos prognósticos, uma<br />
bênção que faz dessas paisagens panoramas-argumentos.<br />
Dizem-nos da<br />
parte da Providência: “Esperai, porque<br />
este será o Brasil do Reino de<br />
Maria! Confiai! Vós não imaginais<br />
como será! Esses panoramas são apenas<br />
um sinal, um prenúncio daquilo<br />
que virá, se fordes fiéis. Um Brasil<br />
ainda mais lindo, maior e mais extraordinário.<br />
E que aí, na proporção<br />
do que virá, esse povo também se despertará<br />
e estará à altura!”<br />
Sim, para isso foi criado o Brasil.<br />
O Brasil da Terra de Santa Cruz. O<br />
Brasil de Nossa Senhora Aparecida,<br />
que vive à espera de seu grandioso<br />
futuro.<br />
v<br />
34
“Talvez não fosse ousado afirmar que Deus colocou os povos de sua eleição<br />
em panoramas adequados à realização dos grandes destinos a que os chama. (...)<br />
Quando nosso poeta cantava que ‘nossa terra tem palmeiras onde<br />
canta o sabiá, e as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá’, percebeu talvez,<br />
confusamente, que a Providência depositou na natureza brasileira a promessa<br />
de um porvir igual ao dos maiores povos da terra”.<br />
(Trecho do discurso de Dr. Plinio, no encerramento do IV Congresso Eucarístico Nacional)
Um marco<br />
na história<br />
da Igreja
Revista Dr Plinio 26, Maio <strong>2000</strong><br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Mistérios<br />
e encantos do<br />
passado...<br />
Como é belo o passado! E como têm sua beleza própria as construções e monumentos<br />
transformados pelo volver dos séculos! De tal sorte que, se oferecessem<br />
restituir-lhes sua aparência primitiva, quando apenas saídos das<br />
mãos de seus artífices, tal proposta deveria ser tomada como insulto. Ainda que<br />
os anos e as intempéries tenham corroído as pedras, enegrecido os muros, coberto<br />
de vetusta pátina tetos e paredes, não importa: aquilo tornou-se mais bonito.<br />
Exemplo? Veneza.<br />
32
33
Atrás de majestosos portais, escadas<br />
que ao subir se perdem na penumbra,<br />
no mistério. A escadaria cambaia<br />
e meio inclinada, cujos degraus<br />
cansados e enfraquecidos certamente<br />
rangem quando neles se pisa, a escadaria<br />
que há muito não vê vassoura<br />
e não recebe o adorno de uma prestigiosa<br />
passadeira vermelha, fala<br />
entretanto de um passado longínquo,<br />
lamenta saudosas glórias.<br />
Tem-se a impressão de que, a<br />
qualquer momento, durante a noite,<br />
Igrejas-palácios, palácios-igrejas que<br />
conservam restos de dignidade e pulcritude;<br />
casas delabrées, escalavradas<br />
pelas injúrias do tempo, mas cujos antigos<br />
esplendores ainda se ufanam de<br />
se manifestar. Paredes que perderam<br />
o revestimento, velhos tijolos aparentes,<br />
emoldurados por colunas e esculturas<br />
que lhes emprestam uma nota<br />
de seriedade, de gravidade e de nobreza.<br />
Dr. Plinio admirando a paisagem<br />
de Veneza, em 1988<br />
34
descerão por ela num conciliábulo profundo<br />
as pessoas que aí viviam, para saírem correndo<br />
e tomarem gôndolas, depois de transmitida<br />
uma palavra de ordem e de executada uma<br />
conspiração.<br />
Nas entradas dos canais, gôndolas vazias<br />
parecem dormitar à espera de tripulação,<br />
amarradas a estacas de formas incertas, fincadas<br />
no fundo do mar raso, à maneira de<br />
uma floresta de linhas e silhuetas que querem<br />
exprimir não se sabe o quê. No topo de algumas<br />
delas vêem-se lampadários de vidros policromados,<br />
cintilantes durante a noite para<br />
sinalizar que não esbarrem, porque ali estão<br />
algumas das gôndolas de Veneza!<br />
Catedral de<br />
São Marcos<br />
Palácio dos Doges<br />
E as cúpulas da gloriosa Catedral de São Marcos,<br />
encimadas por cruzes de uma fantasia magnífica, leves<br />
e poéticas a ponto de darem a impressão de que,<br />
ao bater o vento, seus adereços de metal começarão<br />
a se agitar e a tocar música pelos ares!<br />
E o célebre Palácio dos Doges, com seu estilo ogival<br />
caracteristicamente veneziano, apoiado sobre um<br />
leve rendilhado de pedras que confere ao conjunto<br />
um efeito de agradável distensão. Ele é frágil, delicado,<br />
maravilhoso, e pode perdurar pelos séculos afora,<br />
do mesmo modo como tem se sustentado há centenas<br />
e centenas de anos, sem o menor perigo.<br />
Veneza, um extraordinário exemplo dos mistérios,<br />
atrativos e encantos do passado... v<br />
35
Na Eucaristia,<br />
o segredo das conquistas<br />
futuras
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 27, Junho <strong>2000</strong><br />
Desassombro,<br />
coragem e galhardia
Ao contrário do que pretendem<br />
alguns espíritos exageradamente<br />
pacifistas, segundo<br />
os quais qualquer forma de perigo<br />
deve ser afastada da vida, o ser humano<br />
— por sua natureza, a mais elevada<br />
e nobre das criaturas — tem um<br />
certo gosto do risco. Essa afeição é<br />
um dos elementos que trazem felicidade<br />
para a sua existência. E, não raras<br />
vezes, afastar de alguém o risco pode<br />
causar-lhe grande prejuízo.<br />
Este princípio torna-se mais compreensível<br />
e aceitável quando se considera,<br />
por exemplo, as touradas ibéricas.<br />
Especialmente aquelas em que<br />
o toureiro se lança a cavalo na arena.<br />
É impossível não sentir a impressão<br />
de risco que transmite a marcha<br />
do cavaleiro e de sua montaria diante<br />
do perigo. Nota-se o prazer, uma espécie<br />
de alegria, de euforia mesmo,<br />
em se atirarem naquela situação desafiadora.<br />
E parece que o risco produz,<br />
psicologicamente, no cavalo e no<br />
cavaleiro, como um arejamento fresco<br />
e agradável. E que espetáculo! Cavalgar<br />
dentro da aventura e do imprevisto;<br />
improvisar as manobras que devem<br />
ser executadas; avançar, recuar,<br />
atacar, defender... tudo realizado de<br />
acordo com uma certa regra interior,<br />
que faz exatamente o esplendor da<br />
tourada!<br />
Em geral, o cavalo corre de modo<br />
extraordinário, com um passo lindo e<br />
audacioso. Dir-se-ia — não é assim,<br />
pois trata-se de puro instinto — que o<br />
animal possui uma noção raciocinada<br />
do que se está passando, e acha uma<br />
verdadeira beleza jogar-se para frente<br />
e raspar no perigo. Tem-se a impressão<br />
de um bem-estar do cavalo, no<br />
momento em que o touro avança,<br />
quase o toca, e ele se esquiva com<br />
donaire, como se dissesse: “Touro, tu<br />
não és senão touro; eu sou cavalo.<br />
Sou elegância, força e garbo. Você é<br />
massa bruta! E por causa disso, posso<br />
raspar-me em você, posso até permitir<br />
que seu chifre me risque, e eu ter a<br />
alegria de roçar pelo perigo e sair vitorioso!”<br />
Curiosamente, essas reações do cavalo<br />
lembram certas atitudes do espírito<br />
humano colocado diante do perigo,<br />
em várias circunstâncias do quotidiano<br />
nesta terra: não só quando a<br />
vida está ameaçada, mas numa jogada<br />
política, numa polêmica acirrada, num<br />
negócio arriscado, num empreendimento<br />
difícil, etc., há pessoas que se<br />
saem como o cavalo diante do touro.<br />
E se este segundo animal é a força<br />
bruta, sem expressão nem nada de humano<br />
em sua postura, já no primeiro<br />
há qualquer coisa de sobre-animal, parecendo<br />
transcender — não o faz, claro<br />
está — a mera condição de bicho e<br />
participar em algo do reino dos homens,<br />
pelas atitudes que demonstra<br />
na arena. Característica esta que nos<br />
leva a admirar outro interessante aspecto<br />
desse tipo de tourada.<br />
O autêntico cavaleiro sabe transmitir<br />
alguma coisa de sua personalidade<br />
à montaria. E vê-se que, ao en-<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
frentar o touro, o cavalo compartilha<br />
do heroísmo do toureiro. Geralmente,<br />
este é esguio, destro, cheio de movimentos<br />
ágeis, e quando ele mesmo<br />
raspa pelo perigo, sente euforia. Quando<br />
executa a manobra para cravar a<br />
banderilha no touro, e quase é atingido<br />
pelos chifres de seu adversário, ele<br />
seria comparável a um homem que<br />
está tomando o melhor trago de rico<br />
licor. É o licor do risco! O delicioso licor<br />
que o pacifista exagerado de nossos<br />
dias não sabe compreender nem<br />
apreciar...<br />
Quando se esquivam do oponente,<br />
a atitude do cavaleiro e do cavalo<br />
não é a de dar as costas e se pôr a<br />
correr. Eles saem de lado, procurando<br />
contornar o touro para lhe fincar<br />
mais uma farpa. É a imagem da “distância<br />
psíquica”, de um inteiro domínio<br />
de si, calculado e ativo. Podese<br />
olhar para o toureiro e para o cavalo:<br />
ambos estão numa posição em<br />
que não têm medo. Não perderam a<br />
noção da realidade e só estão procurando<br />
dar uma volta, com elegância e<br />
distinção, para atacar com mais eficácia!<br />
É este um lado esplendoroso da luta<br />
entre cavaleiro e touro que nos faz<br />
considerar um outro aspecto da vida<br />
humana: o gosto que tem o homem<br />
justo, colocado na presença do mal,<br />
diante de ignomínias insuportáveis que<br />
se propagam e não podem ser contidas<br />
senão pela força, de enfrentá-las e<br />
de vencê-las, obedecendo aos altos desígnios<br />
de uma é sumamente equilibrada.<br />
Então ele, obrigado a atacar,<br />
avança e subjuga.<br />
É realmente belo que o homem,<br />
em presença do mal, o goste de calcar<br />
aos pés. E a sensação do golpe atingindo<br />
o alvo, é uma experiência na<br />
qual o homem se realiza inteiro!<br />
Por fim, um outro aspecto a se contemplar<br />
nas touradas a cavalo. Durante<br />
todo o certame, não se vê nada de<br />
teatral no toureiro. Ele não presta<br />
uma atenção vaidosa em si. Mas está<br />
sempre vigilante, e por isso não tem<br />
receio de que a coragem lhe pregue<br />
alguma peça nos momentos decisivos.<br />
Naturalmente, conhece à saciedade o<br />
seu métier, está muito bem treinado, e,<br />
note-se, todas as sensações que nascem<br />
nele — na aparência, impulsivas<br />
e até irrefletidas — são na verdade<br />
enriquecedoras da razão.<br />
É o garbo, a galhardia, a coragem e<br />
o desassombro, o esplendor da “distância<br />
psíquica”, a vivacidade da inteligência<br />
e da varonilidade que enfrentam<br />
o perigo. São qualidades, também<br />
elas, frutos da civilização cristã. v
Ao sentir o risco e quase ser atingido pelos chifres<br />
do touro, o cavaleiro se compara a um homem<br />
que sorveo melhor trago de rico licor...!
O essencial<br />
papel da<br />
piedade
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 28, Julho <strong>2000</strong><br />
Harmoniosa<br />
e bela simplicidade<br />
Enquanto Veneza desperta maravilhamento<br />
pelo extraordinário colorido<br />
que lhe vem da presença da<br />
água e do esplendor de seus palácios, lorença<br />
representa a arte racionalizada, dando<br />
ao homem supercivilizado todos os prazeres<br />
que a razão pode conceder. Não é,<br />
pois, uma arte feita sobretudo de coloridos,<br />
nem principalmente de poesias, mas<br />
de cálculos técnicos, de desenho, perfeição<br />
e harmonia, levados ao supra-sumo capaz<br />
de ser alcançado pelo espírito humano.<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Acima, vista de lorença, ao entardecer; ao lado, o<br />
célebre e extraordinário Palácio da Senhoria<br />
Séria, amiga de considerar nas coisas o aspecto que<br />
resulta do silogismo e do raciocínio, a alma florentina<br />
engendrou construções e monumentos que primam<br />
pelas proporções e perspectivas sumamente bem calculadas.<br />
Por exemplo, o famoso Palácio da Senhoria de lorença,<br />
durante muito tempo a sede de um governo que<br />
ocupou relevante lugar na cultura e pensamento humanos.<br />
No seu exterior, nenhum colorido a não ser o dos tijolos,<br />
de agradável aparência. Uma linda torre que se<br />
eleva cercada de ameias; algumas janelas abertas a esmo,<br />
outras que compõem espécies de ogivas. Embaixo,<br />
nos dois ângulos do palácio, aparecem ornatos que deixam<br />
ver sua harmonia total: são estátuas de mármore
anco, bem alvo, contrastante de<br />
maneira graciosa com a cor avermelhada<br />
dos tijolos.<br />
É um edifício extraordinário, de<br />
rara beleza enquanto sério e altivo. Se<br />
tomarmos apenas o modo de a torre<br />
se erguer altaneira no monumento,<br />
consideramo-lo magnífico, seguro de<br />
si e lógico em tudo. Se olharmos para<br />
a construção no seu conjunto, ela nos<br />
agrada enormemente pela boa e bela<br />
ordenação. E o que nela há de por demais<br />
severo, é atenuado pela doçura<br />
ao mesmo tempo hierática e agradável<br />
dos seus três arcos, que compõem<br />
o “decor” da praça onde se encontra<br />
esse edifício.<br />
Poderá talvez não se comparar às<br />
maravilhosas e policromadas fachadas<br />
de Veneza, mas é, ele também, um<br />
palácio célebre e admirado em todo o<br />
mundo. Ao contemplá-lo, enriquecemos<br />
nossas almas com um precioso e<br />
incomparável depósito de arte.<br />
*<br />
A beleza das proporções e harmonias<br />
de lorença se completa com o<br />
atrativo do rio Arno e a popular vitalidade<br />
da Ponte Vecchio.<br />
O rio, em cujas margens se deram<br />
fatos históricos extraordinários, chama<br />
a atenção pela cor de suas lindas<br />
águas, de um verde dado a certo tipo<br />
de musgo. Tem-se a impressão de que<br />
um cristal colorido tornou-se líquido<br />
e passou a correr lentamente através<br />
da cidade...<br />
Já a Ponte Vecchio nos reporta aos<br />
longínquos tempos medievais. Surgiu<br />
ele das necessidades impostas pelas<br />
condições militares daquela época,<br />
quando uma cidade tinha de se fortificar<br />
e erguer muralhas, para fazer<br />
frente ao assalto de cobiçosos adversários.<br />
Nos períodos de guerra e de<br />
cercos, a população que vivia ao redor<br />
dessas proteções refugiava-se no interior<br />
da cidade, levando consigo o que<br />
podia de seus pertences.<br />
Ora, na falta de espaço, os florentinos<br />
não encontraram melhor solução<br />
do que construir uma espécie de casas<br />
sobre pontes, as quais, com o passar<br />
dos séculos, tornaram-se moradias<br />
definitivas, hoje um dos pitorescos e<br />
encantadores aspectos de lorença.<br />
Ali se mistura um comércio riquíssimo<br />
e magnífico de antiquários, com a<br />
vida alegre e ruidosa do “populino”,<br />
com as casas onde as escadas rangem,<br />
as matronas se ameaçam com rolos de<br />
amassar, e um velhinho esclerosado<br />
sobe penosamente alguns degraus<br />
apodrecidos, levando o jornal debaixo<br />
do braço, indo curtir sua pobreza e<br />
seu isolamento junto a um gato no<br />
quarto que ocupa lá no alto... Il Ponte<br />
Vecchio!<br />
*<br />
A simplicidade e beleza das formas<br />
voltam às nossas considerações, quando<br />
admiramos o Duomo, ou seja, a<br />
Catedral.<br />
Toda ela é feita de mármore branco,<br />
verde e avermelhado. lorença,<br />
mais importante e mais rica que muitas<br />
cidades italianas, ousou fazer para<br />
si uma catedral sem vistosos adornos.<br />
Porque, para os florentinos, mosaicos<br />
e cores bonitas são enfeites fáceis para<br />
imaginações débeis... Ali, não: exis-<br />
A Ponte Vecchio, sob a qual correm as<br />
belas águas do rio Arno
“A alma florentina engendrou construções<br />
e monumentos de proporções e<br />
perspectivas sumamente bem calculadas”<br />
achada da Basílica<br />
da Santa Cruz
te uma proporção perfeita entre a torre,<br />
o corpo da igreja, as naves laterais<br />
e a abóbada encimada por pequena<br />
cúpula. Tudo muito bem calculado,<br />
como são bem calculadas as portas, os<br />
vitrais, as colunatas e a grande rosácea.<br />
A abóbada se fecha belamente em<br />
cima. A torre, à medida que se eleva,<br />
vai se afinando de modo discreto e<br />
bonito, fazendo brilhar à luz do sol a<br />
sua vestidura de mármore, magnificamente<br />
envergada.<br />
É a construção estética por eles<br />
reputada irretocável. Então, a reflexão,<br />
o equilíbrio, a profundidade como<br />
que zombam do ornato, do charme,<br />
da graça, e possuem uma inegável<br />
beleza, resistente à metralhagem dos<br />
olhares analíticos que procurem nela<br />
algum defeito. A Catedral parece dizer:<br />
“Eis-me aqui, sem adornos nem<br />
maquiagem. Eu sou eu. E vejam como<br />
sou linda!”<br />
Tudo isso faz lembrar um fait divers<br />
que, narram as crônicas, aconteceu na<br />
antiga Grécia. Durante um concurso<br />
de esculturas, artistas de diversas nações<br />
expuseram suas obras. Após as<br />
eliminatórias, restaram para decidir o<br />
prêmio as figuras esculpidas por um<br />
persa e um grego. O primeiro havia<br />
representado uma mulher trajada de<br />
forma extremamente rica, compensando<br />
a menor beleza dos traços fisionômicos.<br />
O segundo, pelo contrário,<br />
cinzelou uma grega de linhas simples<br />
e formosas, vestindo apenas uma<br />
túnica branca.<br />
O júri escolheu a grega. O persa<br />
protestou:<br />
— Mas, a minha, está tão mais bem<br />
vestida!<br />
Resposta incontestável:<br />
— Tu a fizeste rica, porque não a<br />
soubeste fazer bela... v<br />
A Catedral de<br />
lorença<br />
35
Apóstolo de<br />
Maria Rainha
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 29, Agosto 2008<br />
Maravilhas que<br />
fazem sonhar...
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Quando uma alma é reta e inocente,<br />
ela deixa falar em seu interior a<br />
apetência que tem de uma ordem de<br />
coisas inteiramente conforme com os planos de<br />
Deus para a Criação, de algo que havia no Paraíso<br />
em que todos viveríamos, não fosse a queda<br />
de nossos primeiros pais. Se tomássemos uma<br />
pessoa nesse estado de espírito, e a ela disséssemos:<br />
“Olhe, o Céu é assim, como o que você deseja<br />
no mais íntimo de seu ser”, não estranharia<br />
que tal pessoa sentisse intensa vontade de partir<br />
logo para o Éden celeste, ao encontro das maravilhas<br />
que tanto procura.<br />
Tenho razões para afirmar que esse estado de<br />
espírito foi o ponto de partida da Idade Média.<br />
Que esta, na medida em que rezou, lutou, ou<br />
construiu, o fez orientada para aquele fim mais<br />
alto, movida por aquilo que vem expresso na<br />
Ladainha de Todos os Santos: ut mentes nostras<br />
ad caelestia desideria erigas — para que Vos digneis<br />
elevar as nossas almas a desejar as coisas do<br />
Céu.<br />
Assim, poder-se-ia comparar a alma medieval<br />
a uma ogiva, séria, sólida, pensativa, levando tu-<br />
do para cima. Ao mesmo tempo calma e reflexiva,<br />
pesando e analisando tudo, disposta tanto a<br />
se recolher, dizendo: “Quanta coisa existe de<br />
bom neste mundo”, e a subir para maiores considerações;<br />
ou então, inflexível na sua retidão, disposta<br />
a combater o que não seja conforme à verdade,<br />
ao bem e ao belo. Porém, com serenidade<br />
e isenção de ânimo, sem agitações nem trepidações.<br />
Almas assim engendraram as grandes maravilhas<br />
da Idade Média.<br />
Por exemplo, Notre-Dame de Paris. Uma catedral<br />
toda feita de seriedade, gravidade, estabilidade,<br />
pensamento, grandes considerações das<br />
linhas gerais, mil pormenores e detalhes harmônicos,<br />
panorama... e as torres que se lançam para<br />
o céu!<br />
Tão magnificamente para o céu, que nenhum<br />
artista se atreveu a completá-las. Porque só<br />
quem as planejou tem alma para lhes conferir o<br />
arremate final. E as torres estão ali, ao mesmo<br />
tempo tragicamente incompletas, mas fazendo<br />
cada observador imaginar no subconsciente uma<br />
torre ideal, segundo o seu próprio feitio. Dir-se-<br />
Notre-Dame<br />
de Paris
Inspirado pela<br />
mesma graça que<br />
deu origem a<br />
Notre-Dame de Paris,<br />
certo dia um artífice<br />
concebeu a idéia<br />
de construir uma<br />
parede feita toda de<br />
vitrais. Nasceu a<br />
Sainte-Chapelle!...
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Interior da Sainte-Chapelle, feita para abrigar almas<br />
que você tem, ou alguma coisa está<br />
faltando?”<br />
E a história dos seus vitrais passa a<br />
ser a dos vôos cada vez mais altos, até<br />
chegar a um ponto em que o homem<br />
diga: “Aqui não é possível ir mais longe”.<br />
Ele instala o vitral na parede. De<br />
repente lhe vem ao espírito a idéia de<br />
uma parede feita toda de vitral. Nasceu<br />
a Sainte-Chapelle!<br />
*<br />
Agora, para termos um pouco a<br />
idéia do que foi a civilização cristã<br />
medieval, precisamos imaginar uma<br />
noite na Paris do século XIII. A cidade<br />
dorme. Na Sainte-Chapelle, em<br />
Notre-Dame, o Santíssimo Sacramento<br />
aguarda no interior do sacrário a<br />
adoração dos homens. No Louvre de<br />
São Luís, repousa um rei que é santo,<br />
e que ordena com santidade todas as<br />
coisas do seu reino.<br />
E assim, a história da rança flui<br />
gloriosa e tranqüilamente, como flui<br />
o rio Sena aos pés do palácio do piedoso<br />
monarca.<br />
v<br />
ia que elas terminam num pontilhado,<br />
de acordo com o espírito de quem as<br />
contempla. De maneira que se nos<br />
dissessem: “Olhe, sabe de uma novidade!?<br />
Completaram as torres de Notre-Dame!”,<br />
tomaríamos um susto: “Será<br />
que fizeram errado!?”<br />
Ou seja, de modo diverso desse pontilhado<br />
que, subconscientemente, cada<br />
um constrói no seu interior, olhando<br />
aqueles dois magníficos fragmentos<br />
de torre que nos convidam para o<br />
sonho. Porque, a partir daquele ponto,<br />
se sonha...<br />
*<br />
O mesmo sonho para o qual nos<br />
atrai a Sainte-Chapelle, do rei São<br />
Luís. Uma bonbonnière feita para ter<br />
almas dentro e não bombons. É o que<br />
pode haver de magnífico e encantador.<br />
O espírito que a concebeu, se pudesse<br />
construir um edifício todo de<br />
cristal, sentir-se-ia realizado. Construiu<br />
um feito de vitrais!<br />
Agrada-me imaginar a ação da graça<br />
sobre a alma desse artífice. Até então,<br />
ele apenas manuseava vidros comuns,<br />
de cores também comuns. Em<br />
determinado momento,<br />
ele sente no seu íntimo<br />
a inspiração — vinda do<br />
alto — de procurar uma<br />
cor ideal, mais bela do<br />
que todas as outras. Então<br />
compõe uma cor de<br />
sonho, ou toda uma policromia<br />
de sonho, para<br />
colorir, não só um vitral,<br />
mas um mundo,<br />
porque nos vitrais e rosáceas<br />
se representam<br />
batalhas, trabalhos, cenas<br />
do Antigo Testamento,<br />
episódios do Novo<br />
Testamento, enfim, a vida<br />
dos homens enquanto<br />
relacionada com a<br />
Igreja e a religião.<br />
À medida que ele vai<br />
colorindo, em seu espírito<br />
vão brotando novas<br />
idéias. O vitral seguinte<br />
que ele fará, será<br />
precedido por uma crítica<br />
ao vitral anterior:<br />
“Atingiu inteiramente<br />
esse desejo de perfeição<br />
Notre-Dame e suas torres que fazem sonhar<br />
34
“Enquanto no Louvre repousa um rei santo,<br />
que ordena com santidade todas as coisas do seu reino...”
Uma alma<br />
profundamente<br />
cristã
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 30, Setembro 2009<br />
Magnífico palácio espiritual
N<br />
ão é raro visitarmos algum ambiente, monumento<br />
ou lugar histórico, e termos a impressão<br />
de ali estarem presentes algumas pessoas que<br />
muito o marcaram. Além de dar uma dimensão mais profunda<br />
à nossa visita, essa experiência nos leva a compreender<br />
melhor o espírito dessas personagens do que se<br />
houvéssemos diariamente convivido com elas.<br />
Esta reflexão me vem à mente, de modo especial, quando<br />
me lembro das ruínas do Coliseu romano. Ao penetrarmos<br />
nelas, sentimos, por uma ação da graça divina, a<br />
presença dos mártires que ali padeceram e verteram seu<br />
sangue, para se tornarem — no inspirado dizer de Tertuliano<br />
— sementes de novos cristãos. Heróis da é, admirados<br />
por todo o mundo, em todos os séculos, desde os<br />
tempos da Igreja catacumbal até o dia de hoje! E mesmo<br />
homens que se vangloriam de seu ateísmo, quando vão a<br />
Roma, não deixam de passar pelo Coliseu, para ver de<br />
perto o lugar onde aqueles valentes enfrentaram as feras<br />
para se manterem fiéis à religião católica apostólica romana.<br />
Que palácio espiritual magnífico! Imenso e faustoso, é<br />
uma das matrizes de maravilha nesta terra.
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Sua maior beleza aparece à noite,<br />
quando as sombras e trevas atenuam<br />
o prosaísmo das coisas modernas que<br />
o circundam, e o silêncio das altas horas<br />
envolve os ruídos cacofônicos da<br />
cidade que adormece. Em certo momento,<br />
enquanto uma lua graciosa e<br />
amiga esparge suas aveludadas cintilações,<br />
ouve-se o demorado silvo de<br />
uma ave noturna, aninhada sob um<br />
dos arcos do Coliseu. Aquela espécie<br />
de brado nos faz lembrar o gemido dilacerante<br />
de um mártir, a derradeira<br />
prece lançada aos céus por uma alma<br />
a caminho da suprema imolação...<br />
Contemplar aquele anfiteatro de<br />
tragédias e de heroísmos leva nossa<br />
imaginação a reproduzir um dos mais<br />
belos episódios de martírio que registra<br />
a hagiografia católica.<br />
*<br />
É noite na Roma dos Césares. Aqui<br />
e ali, as tochas que a iluminam vão se<br />
apagando. Pouco a pouco, esmorecem<br />
os barulhos das festas, extinguem-se<br />
conversas e risos. Na soberana metrópole<br />
do mundo, tudo é calma e tudo<br />
repouso. Despertos, em meio a densas<br />
trevas, ficam apenas os mártires do Coliseu,<br />
orando e se encorajando mutuamente.<br />
Por vezes a noite é borrascosa,<br />
o tempo inóspito, tornando ainda mais<br />
horrorosa e dorida aquela vigília para<br />
a morte.<br />
De súbito, ouve-se o bramido de<br />
uma fera ecoando pelos lúgubres porões<br />
do grande circo. Rugido de animal<br />
faminto, há dias privado de alimento<br />
para que mais encarniçado se<br />
atire sobre sua vítima, na hora do fatídico<br />
encontro. E o urro do tigre, do<br />
leão, da pantera ou da hiena repercute<br />
como um estremecimento de terror<br />
nos corpos dos católicos. Alguns choram,<br />
com medo de lhes faltar a coragem<br />
no momento decisivo. Suplicam<br />
a Deus, com toda a alma, forças superabundantes<br />
para não cometerem a<br />
pior das infidelidades, para não apostatarem<br />
da verdadeira religião de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo.<br />
Sereno em meio a tanta apreensão,<br />
um dos cativos, já entrado na ancianidade,<br />
percorre as fileiras de prisioneiros,<br />
dirigindo a cada um palavras<br />
de ânimo e esperança. Certamente recorda-se<br />
ele, nesse extremo de vida,<br />
daquela voz suave e paternal que —<br />
conforme reza a tradição — um dia,<br />
em sua remota infância, penetrou no<br />
mais íntimo de seu ser: “Deixai vir a<br />
Mim as criancinhas, pois delas é o<br />
Reino dos Céus”. Agora, imitando o<br />
Divino Redentor, promete àqueles irmãos<br />
de é a mesma bem-aventurança<br />
eterna.<br />
Aos poucos vão se atenuando as<br />
trevas, e a claridade da manhã traz<br />
consigo o ponteiro que marca a hora<br />
do sangrento suplício. Os rugidos das<br />
feras tornam-se mais intensos e aterradores;<br />
as súplicas, mais prementes e<br />
fervorosas. Soam os clarins, anunciando<br />
a chegada do César. Abrem-se as<br />
prisões, e os mártires são conduzidos<br />
ao local da imolação. Ao vê-los, trôpegos<br />
e maltratados, o povo pagão<br />
que lota as arquibancadas do Coliseu<br />
explode em vaias e apupos.<br />
Libertas de suas jaulas, as feras esfomeadas<br />
se precipitam sobre as carnes<br />
dos católicos. Exceto uma. Dando<br />
provas da autenticidade da é que<br />
professa, aquele velho cativo detém<br />
miraculosamente o leão que cresce para<br />
ele. Abre seus grandes braços e eleva<br />
aos céus uma extraordinária prece:<br />
34
“Senhor, assim como o trigo é esmagado<br />
para se transformar na Sagrada<br />
Eucaristia, assim esta fera triture o<br />
meu corpo, por Vós, ó meu Deus!”<br />
Só então, desvencilhado da misteriosa<br />
força que o retinha, o animal<br />
se atira sobre o mártir, despedaçando-o.<br />
O herói foi Santo Inácio<br />
de Antioquia, aquele que, quando<br />
menino, fora acariciado pelo<br />
Mestre Divino, recebendo d’Ele a promessa<br />
do Reino dos Céus.<br />
E a noite recai uma vez mais sobre<br />
a grandiosa mole do Coliseu. As areias<br />
do circo pagão, embebidas de sangue<br />
católico, transformam-se de novo em<br />
campo arado e fértil, de onde germinarão<br />
muitos outros filhos da Esposa<br />
Mística de Cristo.<br />
v
Procurou<br />
o Reino de Deus<br />
e sua justiça...<br />
¸
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 31, Outubro <strong>2000</strong><br />
Cintilações<br />
da alma<br />
franciscana
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Surgindo das brumas matinais, a imponente<br />
mole da Basílica de São rancisco, em Assis
Em diversas regiões da velha Europa cristã, há lugares<br />
que ainda conservam uma certa unção, ligada<br />
à própria natureza deles, não só porque<br />
Deus assim o dispôs, mas também porque foram “sobrenaturalizados”<br />
pela santidade de homens que ali viveram.<br />
É exemplo paradigmático disto a cidade de Assis, marcada<br />
para todo o sempre pela extraordinária virtude do santo<br />
undador dos franciscanos.<br />
Ao peregrinarmos por aquelas paragens que conheceram<br />
a prodigiosa alma do Poverello, logo o imaginamos<br />
passeando pelos lindos e pitorescos arredores de Assis,<br />
analisando tudo e fazendo altas considerações que o uniam<br />
ainda mais ao Criador. Então se encantava com uma<br />
pequena flor, com as ervinhas a crescerem nos sopés das<br />
colinas, ou com o “irmão sol” num lindo crepúsculo, etc.,<br />
elevando-se na contemplação, no conhecimento e no amor<br />
de Deus com uma plenitude incomparável. Essa comunicação<br />
especial que São rancisco tinha com Nosso Senhor<br />
produzia, por sua vez, uma forma de circulação de sobrenatural<br />
por aqueles lugares, envolvendo e conferindo a tudo<br />
algo da própria perfeição espiritual do santo.<br />
Em Assis, ainda se pode degustar algo que só a autêntica<br />
piedade católica é capaz de engendrar, isto é, a harmonia<br />
de sentimentos opostos. Ali se experimenta um pouco<br />
da bondade e da doçura franciscanas, ao lado da austeridade<br />
e da combatividade de um varão que era entusiasta
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
das Cruzadas. Sente-se a felicidade extraordinária de um<br />
dos santos mais alegres da história cristã e, ao mesmo tempo,<br />
o signo de uma tristeza digna, composta, senhora de si,<br />
que é o reflexo da dor de São rancisco pela morte do ilho<br />
de Deus. Tem-se a imponência das construções da monumental<br />
basílica, ao lado do espírito de humildade e desapego<br />
das coisas terrenas levadas ao último ponto no Êremo<br />
delle Carceri. Assim como a pureza estava para São<br />
Luís Gonzaga, estava a pobreza para São rancisco. A<br />
“dama pobreza”, como dizia, a qual ele misticamente desposara.<br />
Eis uma das grandes maravilhas a serem admiradas em<br />
Assis: extremos opostos que nascem dos troncos benditos<br />
da Igreja, que não entram em conflito, mas se equilibram<br />
de forma prodigiosa, manifestando, pelos fulgores da alma<br />
de um santo, algumas das infinitas perfeições do Criador.v<br />
“São rancisco e a ovelha”,<br />
estátua de Vincenzo Rosignoli<br />
34
“Tristeza digna e senhora de si,<br />
espírito de humildade e pobreza levadas ao último<br />
ponto, felicidade de um dos santos mais alegres<br />
da história cristã...”<br />
(Vistas do Eremo delle Carceri)
Cantor<br />
das<br />
bondades da<br />
Mãe da<br />
Divina Graça
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 32, Novembro <strong>2000</strong><br />
Ao longo dos séculos, desde que o cristianismo<br />
penetrou no Ocidente, a moral católica<br />
foi impregnando e modelando os costumes<br />
de acordo com seus princípios, gerando assim as<br />
boas maneiras, os belos trajes e atitudes, a delicadeza<br />
de trato, a cortesia, o requinte de educação, e<br />
as mais excelentes normas do proceder humano no<br />
convívio social.<br />
É preciso dizer, desde logo, que uma pessoa pode<br />
observar uma moral perfeita, sem que tenha necessariamente<br />
uma boa educação, porque não houve<br />
condições nem tempo para aqueles princípios filtrarem<br />
no ambiente em que ela foi formada. Mas<br />
também não deixa de ser verdade que, mesmo sem<br />
ter recebido uma instrução de salão, a prolongada<br />
correspondência aos ditames católicos acaba por fazer<br />
reluzir nela uma distinção e uma nobreza afins<br />
com os ideais cristãos que ela pratica.<br />
Por outro lado, pode acontecer que uma pessoa<br />
não tenha boa moral e, entretanto, demonstre uma<br />
Distinção<br />
e finura cristãs
educação perfeita. Ainda aí será a<br />
manifestação de um resto de Religião<br />
Católica. Sem perceber, esse indivíduo<br />
observa algumas regras da moral<br />
autêntica, porque compreende que<br />
são bonitas nas atitudes concretas do<br />
seu quotidiano. Infelizmente, praticando-as,<br />
ele não terá intenção de dar<br />
glória a Deus, mas imita os que O glorificam.<br />
E imitando a estes, de modo<br />
involuntário ele rende a mesma homenagem<br />
ao Criador.<br />
Esse requinte e essa distinção de<br />
que falamos, favorecidos pelos princípios<br />
católicos, têm seu fundamento<br />
no fato de que todas as atitudes de<br />
um homem devem fazer lembrar a<br />
consciência que ele tem de ser mais<br />
alma do que corpo. E, portanto, manifestar<br />
assim o seu elemento mais<br />
nobre, que é o espiritual e não o físico.<br />
Dessa concepção nasceram, por<br />
exemplo, vestidos e trajes maravilhosos,<br />
confeccionados com tecidos extraordinários,<br />
enriquecidos de lindos<br />
adornos, jóias, condecorações, alamares,<br />
chapéus de dois ou três bicos,<br />
aigrettes, plumas, etc. Tudo elevando<br />
os espíritos para o mais belo e mais<br />
perfeito.<br />
Nasceram também as residências e<br />
palácios que ainda hoje encantam<br />
tantos turistas que viajam pela Europa<br />
ocidental. Construídos por arquitetos<br />
e engenheiros imbuídos de princípios<br />
católicos, e que catolicamente<br />
planejaram e conceberam as decorações<br />
internas e externas de suas<br />
obras. A própria respiração das almas<br />
deles, influenciadas pelos valo<br />
res cristãos, inspiradas pela graça divina,<br />
os levou a fazerem prevalecer<br />
32
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
nas suas realizações as coisas<br />
do espírito, que têm categoria,<br />
finura, e nas quais a alma<br />
humana aparece na sua excelência.<br />
E cabe aqui, de passagem,<br />
uma rápida constatação: a Civilização<br />
Cristã ocidental terá<br />
menos rubis, menos pérolas,<br />
menos esmeraldas, brilhantes<br />
e safiras do que os povos orientais<br />
pagãos, não tem rajás<br />
nem marajás, mas possui a finura<br />
católica que domina todo<br />
o resto.<br />
Agora, o que é Civilização<br />
Cristã?<br />
Nunca será o bastante relembrar.<br />
É uma civilização na<br />
qual os homens, tendo por um<br />
dom de Deus a virtude da é,<br />
e, nascidas desta, as demais<br />
virtudes teologais e cardeais,<br />
acabam alcançando toda essa<br />
grandeza pessoal que é o resplandecer<br />
da graça.<br />
Mas, quem nos obteve a<br />
graça? oi Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo ao expirar por nós<br />
na Cruz. oi já quando Ele<br />
começou a sentir tédio e pavor<br />
do que lhe aconteceria durante<br />
a Paixão, naquela meditação<br />
sumamente majestosa<br />
e linda no Horto das Oliveiras.<br />
A partir dali, a graça<br />
penetraria nos homens, conquistada<br />
para eles pelo Sangue<br />
de Cristo. E produziria<br />
depois tudo o que se pode dizer<br />
da distinção, do donaire,<br />
da magnificência dos grandes<br />
monumentos e personagens<br />
da história católica. v<br />
34
35
Noite<br />
de Luz
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 33, Dezembro <strong>2000</strong><br />
Onde o Arcanjo um<br />
dia pousou...
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
OTibre, o velho rio Tibre, corre suavemente por<br />
uma das mais pitorescas zonas da Cidade Eterna.<br />
Em suas águas tranqüilas, deixa refletir os<br />
arcos de uma robusta ponte e a silhueta de uma construção<br />
monumental, conferindo particular beleza a esse<br />
cenário romano.<br />
A ponte, de linhas fortes e traçado muito lógico, foi feita<br />
para resistir às vicissitudes e desgastes dos séculos. Nas<br />
margens onde ela toca cresce uma vegetação nascida ao<br />
léu, com um certo espontâneo e desordenado que a tornam<br />
ainda mais atraente. Ao longo de suas balaustradas se erguem,<br />
em intervalos regulares, imagens de santos e de anjos,<br />
diante das quais os fiéis costumam rezar, enquanto se<br />
dirigem para aquele grande edifício que se espelha no<br />
Tibre. Esses peregrinos vão visitar o Castelo Sant’Angelo.<br />
*<br />
Os antigos imperadores romanos, pagãos, tinham o<br />
hábito de preparar monumentos nos quais deveriam ser<br />
enterrados. Por suas características arquitetônicas, esses<br />
mausoléus procuravam imortalizar o César ali sepultado.
Mais que um túmulo, era uma glorificação à memória do<br />
homem que, por tempo maior ou menor, governara os destinos<br />
de Roma e de seus vastos domínios. Um desses perpetuados<br />
foi o imperador Adriano, cujos restos mortais<br />
descansariam para sempre no monumento que ele mandou<br />
construir, próximo às plácidas águas tiberinas.<br />
Na época imperial chamava-se “Mole Adriana”, nome<br />
bastante adequado se considerarmos tratar-se de um edifício<br />
de grandes e sólidas proporções. De diâmetro colossal,<br />
ele impressiona pelo sério, pelo compacto, pelo imenso.<br />
É uma afirmação do poder quantitativo, qualitativo e<br />
ordenativo de Roma, bem como de seu incontestável domínio<br />
sobre extensa parcela do mundo.<br />
Porém, com o passar dos séculos, os ossos desse Adriano<br />
se desfizeram e dele nada sobrou. A história não o celebra,<br />
apenas o registra, porque ainda permaneceu de pé<br />
seu imponente mausoléu. E metida a cidade de Roma nas<br />
contínuas guerrilhas e guerras da Idade Média, esse túmulo<br />
começou a ser utilizado para finalidades diversas,<br />
transformando-se numa importante fortaleza. Seu papel
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
defensivo pode ser notado até hoje, por quem visita a sede<br />
do Papado e a Basílica de São Pedro. Visto de fora o Palácio<br />
do Vaticano, nota-se em determinado ponto um corredor<br />
todo coberto, construído sobre arcadas que, mais<br />
adiante, atravessam o Tibre e se emendam na antiga Mole<br />
Adriana, agora Castelo Sant’Angelo. De maneira que,<br />
sentindo-se ameaçado, o Sumo Pontífice podia facilmente<br />
escapar por esse corredor e se refugiar entre os robustos<br />
muros do velho monumento. Era a suprema defesa do<br />
Vigário de Cristo.<br />
Cessados os períodos de convulsões e saques a que se<br />
expunha a Cidade Eterna, o Castelo Sant’Angelo passou a<br />
ser outro lugar de descanso e recolhimento, à disposição<br />
do Papa.<br />
E assim, como tantas outras construções de passadas<br />
eras, esse monumento de um imperador pagão foi incorporado<br />
às tradições e aos valores cristãos, tornando-se<br />
mais um símbolo das grandezas da Igreja.<br />
No alto desse gigantesco castelo paira, sobranceira e<br />
protetora, a imagem de São Miguel Arcanjo. Ela é quem<br />
deu o novo nome ao antigo túmulo imperial.<br />
Narram as crônicas que, durante a Idade Média, devastadora<br />
epidemia se alastrou por Roma, ceifando incontáveis<br />
vidas.<br />
Compadecido e angustiado diante de tanta calamidade,<br />
o Soberano Pontífice ordenou que se fizessem procissões<br />
em toda a cidade, a fim de se alcançar dos Céus o fim daquele<br />
inclemente flagelo.<br />
E suas preces foram atendidas. Pouco depois, como<br />
sinal da misericórdia divina, viu-se o gladífero Arcanjo<br />
pairar sobre a Mole Adriana, numa atitude de quem conjurava<br />
a peste.<br />
Roma voltou à vida. E, desde então, a glória de um imperador<br />
em pó transformou-se em escabelo para o Príncipe<br />
da Milícia Celeste...<br />
v<br />
34
A glória de um imperador<br />
em pó é hoje escabelo<br />
para o Príncipe da Milícia Celeste...<br />
35