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LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 70, Janeiro <strong>2004</strong><br />
Força, bondade,<br />
contemplação<br />
Vistas do<br />
Mosteiro da<br />
Batalha<br />
32
Dos meus recuados tempos de aluno do Colégio<br />
São Luís conservo ainda certa lembrança<br />
de uma pitoresca descrição, comentada e analisada<br />
na aula de literatura portuguesa. Trata-se de uma<br />
cena da história lusitana, em algo enriquecida pelo grande<br />
estro do escritor que a tornou merecedora de figurar<br />
em todas as antologias daquele tempo.<br />
O Rei Dom João I havia feito a promessa de construir<br />
um imponente mosteiro, caso lograsse a vitória em decisiva<br />
batalha para o futuro de Portugal. Seu exército ten-<br />
do triunfado, ele se empenhou no cumprimento do voto<br />
que fizera. O edifício já estava quase terminado, faltando<br />
apenas retirar as estacas que sustentavam a imensa cúpula<br />
armada. Outras haviam ruído no fatídico momento,<br />
porque, dizia-se, não tinham sido levantadas conforme a<br />
planta original, desenhada por um velho arquiteto, agora<br />
cego. Esse valoroso mestre, antigo amigo do monarca,<br />
insistiu para que erguessem mais uma vez a cúpula, obedecendo<br />
em tudo às suas diretrizes.<br />
— A abóbada não cairá! — afirmava ele com todas as<br />
veras de seu intrépido coração.<br />
E para garanti-lo, tomou a arriscada decisão de permanecer<br />
sentado embaixo da abóbada, enquanto os andaimes<br />
e escoras eram retirados. Debalde os seus conhecidos, e<br />
até o próprio Rei Dom João, procuraram demovê-lo de<br />
atitude tão temerária. Como outro herói de legenda lusitana,<br />
ali ficou, mudo e calmo, confiante na sua obra, prestando<br />
ouvidos ao que se passava. À medida que as armações<br />
de madeira iam sendo deslocadas, o barulho diminuía,<br />
e assim ele, privado das vistas, percebia que o momento crucial<br />
se aproximava. Afinal, fez-se silêncio, e uma ansiosa expectativa<br />
estremeceu o espírito de todos ali presentes...<br />
A abóbada não caiu. Era a glorificação dele. Do seu<br />
talento, sem dúvida. Porém, glorificação ainda maior<br />
dessa qualidade que tanto o distinguia — a coragem.<br />
Décadas depois de me encantar com essa passagem<br />
antológica, visitei meu Portugal avoengo. E aquele fato<br />
me veio novamente ao espírito quando um dos meus<br />
amáveis anfitriões propôs de irmos conhecer o glorioso<br />
Mosteiro da Batalha. Sem hesitar, aceitei o convite.<br />
Habituado a ver as catedrais e outros edifícios religiosos<br />
erguidos dentro das cidades, pensava eu que o nosso automóvel<br />
entraria num centro urbano qualquer, e encostaria<br />
ao lado do Mosteiro. Qual não foi minha surpresa<br />
quando, à certa altura do percurso, vejo ao longe levantar-se<br />
num campo raso (como o era naquela época), de<br />
chão batido, não cultivado, aquele monumento colossal!<br />
A primeira impressão que ele desperta em nós é a de<br />
uma maravilhosa façanha no gênero da arquitetura, que<br />
somente foi possível de se tornar realidade porque construída<br />
por um povo entranhadamente católico. Difícil<br />
não se notar nele um reflexo da própria alma portuguesa,<br />
na sua condição de batizada, devota, fiel a Nossa Senhora<br />
e, portanto, repleta das graças que Deus concede aos<br />
povos que O servem com intenso e fervoroso amor.<br />
Impossível não discernir, também, naquelas paredes<br />
lavoradas com esmero, naquelas arcarias e torres ogivais,<br />
a robustez lusitana. É uma nação forte, que se compraz<br />
em fazer força. Assim foram todos os seus grandes varões<br />
de seu grande passado histórico, vigorosos e empreendedores<br />
de extraordinárias proezas, e assim é aquele Mosteiro,<br />
no qual proeza e vigor estão representados de ma-<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
neira estupenda. A tal ponto que, se construíssem à sua<br />
volta uma muralha, ele poderia ser tido por um magnífico<br />
castelo feudal.<br />
Por outro lado, essa alma portuguesa, tão forte, é igualmente<br />
muito bondosa, voltada a querer bem e que se<br />
agrada com essa benevolência. Ao encontrar um próximo<br />
em quem pode confiar, fica satisfeita, contente, dilata-se,<br />
expande a sua generosidade e seu desejo de ajudar. Ora,<br />
essa bela qualidade de espírito também se acha muito refletida<br />
no Mosteiro da Batalha. É um edifício protetor,<br />
no qual sentimos a presença de um Deus que nos ama e nos<br />
ampara, que gosta de nos amar e de ser amado por nós.<br />
E no seu interior, a par da força expressa nas suas colunas,<br />
da bondade acolhedora sob suas ogivas, do recolhimento<br />
e respeito que nos tomam debaixo de suas abóbadas,<br />
vamos encontrar nas irisações suaves dos seus vitrais, na<br />
luz especial que coa por toda a parte, uma resplendente<br />
cintilação da calma e do caráter contemplativo do espírito<br />
português.<br />
Breve, no seu esplendoroso conjunto, o Mosteiro da<br />
Batalha é um símbolo fabuloso daquela grandeza de ideal<br />
que soía mover os nossos valorosos antepassados lusitanos<br />
— no célebre dizer de Camões — a mais cristãos atrevimentos...!<br />
❖<br />
34
Nas irisações suaves dos<br />
vitrais, na luz especial que coa<br />
por toda a parte, cintilações<br />
da calma contemplativa do<br />
espírito português...
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 71, Fevereiro <strong>2004</strong><br />
“Gustate et videte...”<br />
C<br />
omo a maioria dos monumentos medievais, o Mont-<br />
Saint-Michel nos arrebata para uma espécie de clave<br />
única, apanágio das maravilhas da Idade Média. E´<br />
o reflexo daquela inocência católica que pervadia as<br />
almas e a sociedade dessa época dominada pela Fé.<br />
Candura batismal, luminosa, ponto de partida para a<br />
realização de belezas que aspiravam o Céu.<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Não duvido que algo de sobrenatural pode pairar<br />
sobre uma paisagem abençoada, envolver e<br />
penetrar os que nela vivem, assim como a unção de uma<br />
imagem da Santíssima Virgem pode impregnar a linda flor<br />
que depositamos aos seus pés.<br />
Imagine-se o Mont-Saint-Michel imerso num lindo pôrde-sol.<br />
O entardecer transforma o ar numa espécie de<br />
matéria fofa, sutil, delicada, leve, dentro da qual tudo<br />
vai se evanescendo. Um imenso repouso se estende sobre<br />
os largos horizontes, enquanto nossa mente é embalada<br />
por este pensamento: “Felizes os homens que habitam entre<br />
essas paredes e aos quais é dado admirar continuamente<br />
esse maravilhoso panorama.”<br />
A eles de nos convidarem: “Gustate et videte quam<br />
suavis est Dominum” — vinde ver aqui quão bom é o<br />
convívio do Senhor... (Sl 33, 8-9)<br />
32
Sim, uma natureza quase inteiramente absorvida pelo<br />
sobrenatural. E pairando acima de tudo, dominador,<br />
o Arcanjo — não a imagem na ponta da agulha, mas o<br />
próprio São Miguel —, que transmite a impressão<br />
fantástica de grandeza celeste, diante da qual todo o resto<br />
nos parece pequeno. Muito pequeno.<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
H<br />
á nele qualquer coisa de ordenativo<br />
do espírito, sem nada de<br />
cartesiano. Sobretudo, a meu ver, no<br />
claustro interno. Poder-se-ia ponderar<br />
se este não será ainda mais medieval<br />
que a própria silhueta completa do<br />
Mont-Saint-Michel, coroada pela abadia. Pois ali, entre as<br />
ogivas e as colunatas góticas, encontra-se a manifestação<br />
em pedra da razão, da lógica, do bom senso e da sabedoria<br />
extraordinárias que reluziram no auge da Cristandade. Ou<br />
seja, nas almas trabalhadas pela graça, as quais, por ação<br />
desta, tornaram-se capazes do equilíbrio e da logicidade total<br />
expressos na Filosofia de Santo Tomás de Aquino. Assim<br />
como capazes da atitude de espírito contemplativa, admirativa,<br />
enlevada, tranqüila, pronta a rugir como o leão ou a cantar<br />
como um anjo, conforme o exijam as<br />
circunstâncias que encontre diante<br />
de si.
Linda posição, meio ilha, meio terra firme. De maneira<br />
que, em certas horas, é totalmente ilha, entregue às<br />
cóleras e aos furores do mar. Noutro momento, o tempo<br />
serena, o oceano reflui, e vê-se uma mulher com criancinhas<br />
atravessar a pé enxuto aquelas areias, galgar as pedras e<br />
as escadarias para, lá no alto, render seu preito reconhecido<br />
pela graça que o Arcanjo lhe alcançou.<br />
Dali a pouco, quando as sombras do entardecer se<br />
projetam sobre ele, o Mont-Saint-Michel se conserva<br />
altaneiro no meio de uma paisagem onde só há crepúsculo e<br />
águas que o cercam...<br />
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LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 72, Março <strong>2004</strong><br />
REFRIGÉRIO,<br />
LUZ E PAZ<br />
Sepulcro Real,<br />
Basílica de Saint-<br />
Denis, França<br />
Belo ao extremo é o fato de que, no Novo Testamento,<br />
Deus tenha diminuído a distância entre<br />
Ele e os homens, descendo até nós e tomando a<br />
nossa natureza, através da Encarnação do Verbo, efundindo<br />
largamente suas graças e dádivas celestiais, de modo<br />
ainda mais intenso do que o fazia no Antigo Testamento.<br />
Essa disposição divina determina, então, uma mudança<br />
na ótica da história humana: aquilo que era próprio das<br />
almas muito eleitas e grandes, transforma-se em dom esplêndido<br />
também para as menores e até para as muito pequenas.<br />
Tal é a prodigiosa efusão de graças do Novo Testamento.<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Exemplo eloqüente — embora pouco frisado — de manifestação<br />
dessa riqueza espiritual encontramos nos gisants<br />
das sepulturas medievais. Sempre me entusiasmou a visão<br />
daquelas imagens de cavaleiros jacentes, estendidos<br />
sobre a laje de seus túmulos, revestidos de armadura, a espada<br />
cingida ao lado, as mãos postas e os olhos fechados<br />
para o tempo, fitando a eternidade.<br />
Figuras de cruzados prontos para a batalha, porém, enquanto<br />
a hora desta não soa, eles repousam. Não é a imagem<br />
de quem morre, mas de quem descansa à espera do<br />
Céu. Claro, sob aquela silhueta talhada em mármore ou<br />
granito, acha-se um corpo em decomposição. Provavelmente,<br />
já agora, séculos transcorridos, apenas um punhado<br />
de pó. Entretanto, se viveu e morreu naquela bendita<br />
atmosfera de bênçãos e graças, terá alcançado a bemaventurança<br />
eterna. No dia do Juízo, esse mesmo corpo<br />
ressurgirá e se unirá de novo àquela alma que mereceu a<br />
visão beatífica.<br />
Túmulo na<br />
Catedral de Ávila,<br />
Espanha<br />
32
Outras sepulturas ostentam a imagem de algum<br />
importante prelado, numa postura compenetrada<br />
e séria, como se preparado estivesse para<br />
sua última e solene celebração eucarística: vestido<br />
com seus paramentos de gala, a mitra cingindo<br />
sua fronte, e o báculo ao seu lado, símbolo perene<br />
de seu poder eclesiástico.<br />
Pode-se ver, ainda, as esculturas de nobres casais,<br />
dormindo o sono da morte sobre seus túmulos.<br />
Em geral, trazem a coroa correspondente ao<br />
grau de nobreza a que pertenciam, e suas vestes<br />
são aquelas que trajariam para uma grandiosa<br />
festa que dessem em seus domínios. Ambos, ma-<br />
No alto, “gisants” na igreja de São Pedro, Souvigny (França);<br />
acima, túmulo do Cardeal Juan de Cervantes, Espanha<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
rido e mulher, numa união admirável percebida até<br />
na representação fria da pedra e do mármore. Ao<br />
mesmo tempo recendendo uma tal pureza e castidade,<br />
que é edificante contemplá-los estendidos na<br />
laje sepulcral, eles também aguardando a ressurreição<br />
da carne.<br />
Há nessas imagens um reflexo daquele recolhimento<br />
profundo, daquela sensação experimentada<br />
por almas que se encontravam estavelmente, sem<br />
perder o fôlego, sob a dita efusão de graças que a<br />
vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo trouxe para o<br />
mundo.<br />
Símbolos de uma ordenação de espírito, de seriedade,<br />
deliberação e orientação conformes os desígnios<br />
de Deus para todos e cada um dos homens, de<br />
tal maneira que, vendo-os ali, silenciosos e serenos,<br />
tem-se a impressão de entrarmos em outro universo:<br />
abandonamos essa frigideira de pecados que é a civilização<br />
contemporânea, e imergimos num lugar<br />
onde só existem refrigério, luz e paz... ❖<br />
“Sancho, el fuerte”, Rei da Navarra –<br />
Colegiata de Roncesvalles, Espanha<br />
Sepulcro na Catedral de Salamanca, Espanha<br />
34
“Abandonamos a<br />
frigideira de pecados<br />
da civilização<br />
moderna,<br />
e imergimos<br />
num mundo<br />
de refrigério,<br />
luz e paz...”<br />
Túmulo no<br />
Mosteiro dos<br />
Jerônimos,<br />
em Lisboa<br />
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LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 73, Abril <strong>2004</strong><br />
“EU SOU<br />
AQUELE QUE É”<br />
R<br />
elíquia das mais preciosas<br />
da Cristandade, o Santo<br />
Sudário nos emociona de<br />
modo particular, posto nos oferecer,<br />
praticamente, uma fotografia de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Certo, ali está retratado o cadáver<br />
do Homem-Deus que passou por tormentos<br />
inenarráveis antes de morrer,<br />
e, portanto, encontra-se em algo<br />
desfigurado. Não devemos imaginar<br />
que Jesus tenha sido em vida como<br />
O vemos no Sudário. Foi muito parecido<br />
com essa figura, ressalvadas<br />
as deformações da morte e, sobretudo,<br />
de um longo martírio.<br />
Não obstante, podemos nos perguntar<br />
qual o alcance de contemplarmos<br />
essa Sagrada Face estampada<br />
de modo miraculoso no lençol que<br />
hoje é venerado em Turim.<br />
Sabemos que em todo homem a<br />
face é um símbolo da alma. Não raras<br />
vezes, uma imagem que oculta a verdade,<br />
pois temos o hábito<br />
de fazer fisionomias<br />
especiais para encobrir nossos<br />
defeitos. Além disso, em virtude<br />
do pecado original e das nossas<br />
imperfeições morais, essa fisionomia,<br />
mesmo não intencionalmente, é ambígua,<br />
não exprimindo tudo quanto<br />
nos vai no espírito. De modo que uma<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
pessoa menos avisada pode não perceber<br />
o autêntico valor da alma refletida<br />
no semblante de alguém.<br />
Ora, tal não se verificava em relação<br />
a Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
verdadeiro Deus e verdadeiro Homem.<br />
Como Homem, perfeitíssimo,<br />
o mais perfeito que jamais houve e<br />
haverá. Como Deus, a Perfeição. De<br />
sorte que a fisionomia d’Ele era de<br />
fato a expressão acabada de sua insondável<br />
santidade.<br />
***<br />
Contemplemos o Santo Sudário.<br />
Pela proporção entre o tamanho do<br />
rosto e o do corpo, percebe-se a grande<br />
estatura e a atitude majestosa de<br />
Jesus. Na face sagrada, em que permanecem<br />
as cicatrizes dos maus tratos<br />
recebidos, nota-se a extraordinária<br />
semelhança com as imagens existentes<br />
em nossas igrejas.<br />
A fisionomia, um tanto alongada,<br />
estirada, não reflete inteiramente o<br />
normal daquele rosto divino que atraiu<br />
o olhar enlevado de multidões.<br />
Aspecto curioso. Quando morreu,<br />
Nosso Senhor contava apenas 33 anos,<br />
mas para a ótica de homens de hoje<br />
Ele parece ali mais maduro, e com facilidade<br />
se Lhe daria 45. Quer dizer,<br />
é a manifestação de uma maturidade<br />
absoluta, de uma decisão profunda,<br />
imensa, de alguém inteiramente cônscio<br />
de tudo quanto pensa, e senhor<br />
de um juízo ponderado ao extremo.<br />
Homem de uma vontade forte e determinada:<br />
Ele sabe tudo quanto quer,<br />
Ele quer tudo quanto Lhe convém<br />
querer. Transmite-nos uma idéia de<br />
ordem completa, de uma varonilidade<br />
e um domínio de si perfeitos.<br />
Muito acima dessas qualidades,<br />
porém, admira-se n’Ele uma sacralidade<br />
extraordinária. Não nos é difícil<br />
perceber a suma responsabilidade<br />
desta figura e a segurança que tem das<br />
supremas excelências inerentes ao<br />
Verbo Encarnado. Admirando a sagrada<br />
fisionomia, vem-nos à lembrança<br />
o episódio do Evangelho em que<br />
os algozes se apresentam para pren-<br />
32
der Nosso Senhor, perguntando se era<br />
Jesus Nazareno. E Ele respondeu:<br />
“Sou Eu!”. Ao ouvirem o som daquela<br />
voz divina, os malfeitores caíram<br />
com a face no chão. Tal eram a majestade<br />
e a segurança de Jesus.<br />
Essa resposta — “Sou Eu!” —<br />
evoca, por sua vez, a definição de si<br />
mesmo dada por Deus a Moisés, quando<br />
apareceu no meio da sarça ardente.<br />
Perguntado pelo líder do povo<br />
eleito quem Ele era, Deus disselhe:<br />
“Eu sou Aquele que é”.<br />
Se afirmássemos que essa figura do<br />
Sudário se define assim: “Eu sou Aquele<br />
que é!”, tomaríamos como adequado<br />
e natural, porque ela exprime a posse<br />
de todo o absoluto, uma certeza de<br />
si por onde se vê que Ele é o padrão<br />
e a medida de todas as coisas, que<br />
julga como Rei e como Deus a tudo<br />
e a todos, em função de si próprio.<br />
Ao mesmo tempo, entrevemos o<br />
que poderia ter de divinamente suave<br />
e de afável no olhar desse Homem,<br />
assim como o que haveria de supremamente<br />
doce na linguagem e no timbre<br />
de sua voz. É a coexistência de<br />
todas as virtudes, de todas as perfeições<br />
em todos os graus que possam<br />
caber na natureza, como reflexo da<br />
natureza divina ligada a Ele pela união<br />
hipostática.<br />
De outro lado, é interessante observar<br />
a severidade da expressão. Nosso<br />
Senhor morreu sob o maior tormento<br />
de que há notícia na História. Contemplamos<br />
essa fisionomia, e vemos<br />
que Ele se acha como um Juiz diante<br />
de seus algozes. Escritos nesse semblante,<br />
de modo verdadeiramente<br />
divino, estão a rejeição, a censura, o<br />
desacordo e a condenação àqueles<br />
que O mataram. Como quem diz: “Eu<br />
sou a Lei, sou o Juiz e sou a Vítima!<br />
E julgo a esses três títulos o crime<br />
que contra Mim foi praticado”. É<br />
majestoso! É admirável!<br />
***<br />
O que se destaca no Santo Sudário,<br />
no meu entender, é a soma e a<br />
conjugação inteiramente harmonio-<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
sa de todas as virtudes, semelhantes<br />
e opostas, num grau tão elevado que<br />
nem a mente nem o olhar humanos<br />
logram alcançar. N’Ele temos, então,<br />
a força e a bondade; a mansidão e ao<br />
mesmo tempo a cólera divina; a placidez,<br />
bem como uma capacidade de<br />
agir, de tomar iniciativas, que ofusca<br />
a qualquer um. E assim por diante,<br />
poderíamos enumerar todo o rol de<br />
virtudes e perfeições de que Nosso<br />
Senhor é o adorável modelo.<br />
Por outro lado, para se compreender<br />
tudo o que há de profundo e misterioso<br />
na fisionomia deste Varão divino,<br />
devemos atentar para o fato de<br />
que Ele está repleto das mais subidas<br />
cogitações, nas quais vive de modo<br />
permanente e estável; assim como<br />
para o fato de que Ele é a via posta<br />
para os homens de todos os séculos:<br />
quem se encontra de acordo com Ele,<br />
está certo; em desacordo, está errado.<br />
“As minhas cogitações não são as<br />
vossas, e as minhas vias não são as<br />
vossas”, disse Ele...<br />
E disse também, de si mesmo: “Eu<br />
sou o caminho, a verdade, a vida”.<br />
Há nisto um mistério que é o próprio<br />
do absoluto. Vendo-O, tem-se a impressão<br />
de que essa prodigiosa autosegurança<br />
se comunica em todo o ser<br />
d’Ele, de uma maneira indizível, com<br />
a natureza divina, com a Santíssima<br />
Trindade, e que a sua atenção está<br />
ao mesmo tempo posta nos segredos<br />
de Deus e nas atitudes dos homens,<br />
entre os quais Ele vive.<br />
Cogitações e vias que procedem do<br />
Céu. N’Ele, tudo é sagrado, santo,<br />
perfeito, altíssimo. Se dissermos que<br />
é um poderoso monarca, O diminuímos;<br />
se grande orador, O apequenamos.<br />
Todos os maiores títulos que possam<br />
ser atribuídos a uma pessoa, tornam-se<br />
minúsculos em paralelo com<br />
esse Homem-Deus. Ele é o Rei dos<br />
reis, o Senhor dos senhores. Nunca<br />
houve nem haverá filósofo que se Lhe<br />
iguale, nem oratória que se assemelhe<br />
à sua. Porque ninguém, jamais,<br />
debaixo de nenhum ponto de vista,<br />
poderá ser comparado com esse Varão<br />
do Santo Sudário. ❖<br />
Milhares de fiéis acorrem do<br />
mundo inteiro para venerar o<br />
Santo Sudário, no interior da<br />
Catedral de Turim.<br />
Abaixo, o Papa João Paulo II<br />
durante uma das exposições<br />
da sagrada relíquia<br />
34
35
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 74, Maio <strong>2004</strong><br />
Como os encantos do mar...<br />
Omar... Objeto perpétuo de<br />
meu enlevo, meu encanto,<br />
meu entusiasmo!<br />
Eu seria capaz de passar uma tarde<br />
inteira sozinho olhando para o mar,<br />
quieto, inteiramente entretido, sem<br />
nenhuma outra preocupação que me<br />
distraísse desse convívio com as águas<br />
do imenso oceano!<br />
No mar sempre me chamou muito<br />
a atenção o fato de ele se apresentar<br />
variando entre dois pontos extremos,<br />
com todas as gamas intermediárias.<br />
É agradável considerar tantas formas<br />
de belezas postas por Deus na Criação.<br />
E a magnificência do Altíssimo<br />
se reflete de modo especial nessa capacidade<br />
que foi dada ao mar de<br />
passar do auge da serenidade para o<br />
auge da impetuosidade, através de<br />
etapas. Se, de repente, a seqüência<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
desse processo fosse bruscamente interrompida,<br />
saltando de um lado para<br />
outro, levaríamos um susto.<br />
O ordenado e o bonito daquelas<br />
imensas ondas que avançam em ofensiva<br />
para a terra, sem se mostrarem<br />
descabeladas nem fazendo tumulto,<br />
evocam um ataque em regra de uma<br />
cavalaria nobre.<br />
Já a maré montante de certos dias,<br />
que vai cobrindo a praia, tem seu esplendor<br />
próprio, lembrando uma bataille<br />
rangée, em fileiras.<br />
É linda, igualmente, a variedade<br />
das ondas, porque às vezes algumas<br />
não chegam a rebentar: apenas formam<br />
aquelas eminências e vão adiante.<br />
Outras, pelo contrário, arrebentam<br />
e há um gáudio de gotas pelo ar que<br />
depois caem e seguem na sua ofensiva,<br />
detendo-se um pouco antes de<br />
atingir a praia, saltitando, porque<br />
vão se entranhar nas profundidades<br />
das areias, e terão de esperar um longo<br />
tempo até se tornarem água de<br />
novo. Elas então bailam pelo ar, jubilosamente,<br />
como guerreiros que, antes<br />
de desferir o ataque definitivo, entregam-se<br />
à dança da vitória.<br />
Agrada-me também considerar o<br />
mar quando se acha calmo, quase<br />
imóvel. Dir-se-ia que está de tal maneira<br />
absorto na contemplação do firmamento,<br />
que nem pensa em si. De<br />
súbito, percebe-se que de um lugar<br />
qualquer virá uma surpresa. Algo começa<br />
a se mover, e dentro em pouco<br />
forma-se um vagalhão; é uma bagunça<br />
aquática, um assalto contra a terra<br />
em que os vários elementos do mar<br />
não vêm em bataille rangée, mas parecem<br />
se empurrarem uns aos outros<br />
para tomar a dianteira, a fim de conquistar<br />
a costa mais depressa. É o esplendor<br />
da variedade, do inesperado,<br />
do quase susto, do imprevisto, que<br />
tem seu encanto próprio. E a sucessão<br />
desses aspectos torna o mar muitíssimo<br />
entretido.<br />
Esses diversos modos do movimento<br />
das águas têm pulchrum, porque é<br />
belo o mar. Se este fosse feio, suas<br />
variações também o seriam. Imaginese<br />
um espetáculo em que aparecesse<br />
uma dançarina feia dançando bem.<br />
Ninguém quereria assisti-lo, porque<br />
a dança é bela quando é belo quem a<br />
executa.<br />
Afigurem-se um exército que avança.<br />
Será muito bonito quando composto<br />
de homens fortes, robustos. Se,<br />
pelo contrário, formado de capengas<br />
a se arrastarem em certa ordem, não<br />
valerá coisa alguma.<br />
Assim também o mar: é belo e a<br />
sua movimentação está à altura dele.<br />
32
O ordenado e bonito das ondas<br />
que avançam em ofensiva para a<br />
terra, lembram um ataque em<br />
regra de uma cavalaria nobre...
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Além disso, confere-lhe particular formosura<br />
os mistérios que ele contém.<br />
É um outro mundo a se mover em<br />
suas entranhas, nas suas profundidades<br />
ocultas aos nossos olhos os quais,<br />
das areias, continuam a contemplar<br />
o atraente vaivém das ondas...<br />
Concluo essas divagações, fazendo<br />
notar que no existir humano há<br />
situações e aspectos de alma análogos<br />
aos movimentos do mar. Por exemplo,<br />
indivíduos cujos pensamentos avançam<br />
em bataille rangée, cuja oratória,<br />
argumentação e dialética apertam e<br />
estalam nas praias da polêmica.<br />
E há homens que não são do gênero<br />
Turenne, general de Luís XIV,<br />
célebre por suas triunfantes táticas<br />
de combate, mas são os “condeanos”,<br />
imitadores do Grande Condé: afeitos<br />
aos pulos de vitória em meio a<br />
raios de luz e de aventura. Percebem<br />
rapidamente uma situação e a resolvem<br />
com rasgos de ousadia.<br />
Há espíritos e feitios de inteligência<br />
de uma e outra espécie, todos<br />
eles com sua beleza peculiar, assim<br />
como se reveste de encantos próprios<br />
o mar quando sereno, quando impetuoso...
Homens existem que espelham na<br />
sua personalidade algo dos<br />
movimentos do mar: uns<br />
refletidos, calculados, serenos;<br />
outros, impetuosos, afeitos aos<br />
pulos de vitória, em meio a raios<br />
de luz e de aventura...<br />
Na pg. anterior, o Grande Condé; à direita, Turenne —<br />
Palácio de Versailles, França
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 75, Junho <strong>2004</strong><br />
Catedral de<br />
Amiens, França<br />
Fotos: Sergio Hollmann e Leopoldo Werner<br />
Equilíbrio,<br />
façanha e alegria<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Q<br />
uando analisamos a Idade Média, notamos que<br />
esta se encontra toda semeada do desejo e da<br />
prática de atos heróicos. Não, porém, do heroísmo<br />
como vulgarmente se o entende, e sim como<br />
o propugna a Igreja, isto é, a palpitação contínua do<br />
coração do verdadeiro católico, que o inclina de modo<br />
constante para o melhor de sua alma: a façanha.<br />
Não se trata, portanto, de façanhas quaisquer, mas daquelas<br />
que interessam à Fé, e é a propósito delas que somos<br />
levados a afirmar ser a Idade Média toda ela “façanhuda”.<br />
Em seus diferentes aspectos, nos diversos terrenos<br />
de seu realizar, mesmo nos mais práticos, operativos,<br />
técnicos, ela está sempre empreendendo proezas. De<br />
maneira que, com freqüência, a altura das torres são ousadias<br />
de impulso para o céu, as espessuras das muralhas<br />
são audácias de arquitetura, os vitrais são aventuras de luz<br />
e policromia, e assim por diante, os mil progressos artísticos<br />
e industriais da época medieval representam façanhas<br />
porque estão na fina ponta do que um espírito muito<br />
dinâmico poderia querer realizar.<br />
E examinando aquelas maravilhas, nos perguntamos<br />
como esses homens ousaram tanto! Ousadia que comporta<br />
riscos, e esse ombrear com o perigo do fracasso é igualmente<br />
belo. Contudo, o melhor da façanha medieval é ter<br />
pensado com tanta maturidade, seriedade e prudência os<br />
seus planos arrojados que, na hora de concretizá-los, o<br />
risco está reduzido ao mínimo que as circunstâncias da<br />
época permitem. Sempre deverão contar com ele, é verdade,<br />
mas protegido pelos escudos da prudência e da seriedade,<br />
do equilíbrio e do “saber fazer” todas as coisas<br />
com largueza de espírito.<br />
Não há negar que aquelas grandiosas catedrais góticas,<br />
aqueles castelos-fortalezas, aquelas abadias monumentais,<br />
aquelas torres e muralhas só podem ter sido construídos<br />
por arquitetos sérios, à solicitação de príncipes<br />
ou de bispos profundamente sérios, para um povo também<br />
ele imbuído de seriedade. Mas, ao mesmo tempo,<br />
dotados do senso católico que os leva a pôr em tudo uma<br />
nota característica que nos fala de equilíbrio, de harmonia,<br />
de contentamento de alma.<br />
Torres e muralhas, abadias e catedrais concebidas<br />
por homens sérios, imbuídos entretanto<br />
de grande equilíbrio e intensa alegria de alma<br />
32
No alto, Castelo de Fougeres, França; à esquerda, Catedral de Rouen e,<br />
à direita, Abadia de Tournus - França.<br />
Na página anterior, Castelo de Aljaferia, Zaragoza - Espanha<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Muralhas de Ávila,<br />
Espanha<br />
Muralhas e torres de robustez quase inabalável<br />
— como as de Ávila, por exemplo, que tive<br />
a grata oportunidade de admirar — recordam<br />
a batalha e a luta, lembram dias de tragédia,<br />
de desventuras em meio aos perigos que<br />
traziam consigo os cercos contra a cidade. Mas,<br />
como não ver nesses gigantescos panos de muro<br />
e altaneiros torreões a temperança de alma<br />
e a dignidade com que arrostavam todas as vicissitudes?<br />
Como não ver a tranqüilidade e a<br />
alegria dessas pedras resplandecendo à luz do<br />
sol?<br />
Coisas equilibradas, do mesmo equilíbrio<br />
que se acha disseminado pela civilização medieval,<br />
e que constitui o ponto de partida da<br />
felicidade da Idade Média. Nela, todas as disposições<br />
lícitas do espírito se coadunam, dão-se<br />
as mãos, e a alma sente um certo aprumo, uma<br />
certa solidez, uma certa serenidade, uma certa<br />
distância psíquica para considerar as belezas<br />
da criação, e para subir até Nossa Senhora, para<br />
chegar até Deus — fonte de todas as grandes<br />
alegrias, de todos os heroísmos, de todas<br />
as façanhas, de todas as santidades. <br />
Catedral de<br />
Béziers, França<br />
34
A alma sente serenidade<br />
para considerar as<br />
belezas da criação e<br />
subir até Deus, fonte de<br />
todas as alegrias e de<br />
todos os heroísmos<br />
Catedral de Reims, França)<br />
35
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 76, Julho <strong>2004</strong><br />
PALCO DE GLÓRIAS<br />
Fotos: Sergio Hollmann<br />
Castelo de Segóvia,<br />
Espanha<br />
Do cimo do monte que lhe<br />
serve de pedestal, ele contempla,<br />
sobranceiro e elegante,<br />
a aldeia que o circunda, o vale<br />
e as vastidões de terra que se estendem<br />
à sua frente.<br />
Suas torres de variegadas proporções,<br />
em gracioso movimento para o<br />
céu, conferem ao seu todo o signo da<br />
leveza, enquanto seus vigorosos panos<br />
de muro, maciços, apenas atenuados<br />
por janelas e arcos ogivais, dãolhe<br />
a nota da majestade grandiosa e<br />
forte.<br />
Deixa-se ver entre folhagens ou<br />
brandamente refletido no espelho das<br />
águas que correm um pouco abaixo<br />
de seus alicerces. Numa e noutra visão,<br />
aparece recuado nos tempos de<br />
heróicas epopéias, de lutas e de glórias<br />
em que cravou raízes naquela<br />
paisagem espanhola.<br />
Apesar de reconstituído em sua<br />
maior parte no século XIX, o lindo<br />
Castelo de Segóvia conserva ainda a<br />
atmosfera dos seus dias de batalhas e<br />
triunfos. Ao visitá-lo, sem muito esforço<br />
nossa imaginação viaja pela<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
história, e nos achamos na presença<br />
de um rei santo, São Fernando III,<br />
que o utilizou como uma espécie de<br />
posto avançado em seus vitoriosos<br />
combates.<br />
Podemos figurá-lo ali, na sala do<br />
trono, ou na sala de estar, — com<br />
suas paredes de pedras rudes e tetos<br />
ricamente lavorados — séria, solene,<br />
bonita, onde o soberano vivia na intimidade<br />
com a rainha. A distração<br />
mais repousante de ambos era se dirigirem<br />
para junto de alguma das largas<br />
aberturas em ogiva, através das<br />
quais perlustravam os campos e as<br />
pradarias que se desdobravam além.<br />
Então, o casal régio sentado em cadeiras<br />
de madeira com espaldar alto,<br />
com almofadas de um conforto discutível,<br />
olhava para aquela imensidão<br />
na qual nada se erguia, a não ser<br />
uma pequena fortificação de Templários,<br />
distante algumas centenas de<br />
metros do castelo. Observar a movimentação<br />
dos cavaleiros que entravam<br />
e saíam de seu reduto, constituía,<br />
assim, um motivo de entretenimento<br />
para o rei e sua esposa.<br />
São Fernando, porém, sabia que<br />
os momentos de lazer não deviam<br />
ser o preponderante da existência<br />
para a qual fora suscitado por Deus.<br />
Sua missão providencial exigia dele a<br />
disposição para o sacrifício e para a<br />
luta. E foi esse mesmo Castelo de<br />
Segóvia o palco de um dos episódios
mais eloqüentes da gesta que o santo<br />
monarca empreendeu de forma magnífica.<br />
Ainda hoje é mostrado aos visitantes<br />
o lugar em que São Fernando almoçava,<br />
quando lhe foi avisado que<br />
Sevilha, a metrópole dos invasores, a<br />
cidade cuja conquista proporcionaria<br />
o êxito em todas as demais batalhas,<br />
estava prestes a ceder diante das investidas<br />
das tropas espanholas. E o<br />
mensageiro lhe dirigiu o apelo: “Vinde,<br />
Majestade, auxiliar os vossos, e<br />
hoje à noite entrareis em Sevilha!”<br />
Mais não era preciso para aquele<br />
coração de herói e de santo. No mesmo<br />
instante o Rei interrompeu a refeição,<br />
mandou preparar suas armas<br />
“Aparece recuado nos<br />
tempos de heróicas<br />
epopéias, de lutas e de<br />
glórias em que cravou<br />
raízes naquela<br />
paisagem espanhola...”<br />
e seu cavalo, e se dirigiu à brida solta<br />
até a cidade sitiada, onde já seus intrépidos<br />
soldados empreendiam os<br />
assaltos finais. Ao verem o soberano<br />
que se aproximava, os inimigos compreenderam<br />
que nada mais lhes restava<br />
senão se render e entregar a<br />
praça.<br />
Naquela noite, São Fernando se<br />
lembraria das torres e grossas pare-<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
des do Castelo de Segóvia sem nostalgias<br />
nem tristezas. Ele já dormia<br />
em Sevilha, olhando para o próximo<br />
campo de batalha. Pois assim fazem<br />
os Santos. Não contemporizam, não<br />
deixam para daqui a pouco, e, quando<br />
é necessário, interrompem a refeição,<br />
sem consumi-la até o último<br />
bocado, nem beber o último trago de<br />
vinho. Se chegou o momento do combate,<br />
que venham as armas e o cavalo,<br />
façamos uma jaculatória a Nossa<br />
Senhora, um Nome do Pai, e corramos...<br />
de encontro ao quê?<br />
À esquerda, detalhe dos tetos<br />
lavorados; acima, janelas de ogivas;<br />
abaixo, friso com esculturas de<br />
reis e rainhas de Espanha<br />
(entre eles, São Fernando III)<br />
Ao que poderia ser para São Fernando<br />
a morte, ou a vitória e a glória...<br />
Pouco lhe importava que fosse<br />
a vitória, a glória ou a morte. Importava,<br />
sim, que Maria Santíssima triunfasse<br />
e que a Espanha novamente<br />
Lhe pertencesse.
Deixa-se ver entre<br />
folhagens ou brandamente<br />
refletido no espelho das<br />
águas que correm abaixo<br />
dos seus alicerces...
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 77, Agosto <strong>2004</strong><br />
“Raffinement”<br />
Como já tive oportunidade de<br />
comentar, um dos preciosos<br />
frutos da Civilização Cristã<br />
foi, a meu ver, o desejo da perfeição<br />
e do equilíbrio aplicado aos mais variados<br />
aspectos da sociedade, da cultura,<br />
da arte, etc., impregnados de<br />
temperança e senso católico.<br />
Em francês se diria o raffinement<br />
de todas as coisas. Um requinte, um<br />
auge de excelência e de harmonia<br />
que atinge aquela forma de beleza<br />
plena, acabada, na qual ninguém ousa<br />
mexer, porque nada há a lhe alterar.<br />
Essa característica sobressai de<br />
Detalhe da fachada<br />
de Notre-Dame de<br />
Paris, França<br />
Fotos: S. Hollmann e L. Werner<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
maneira particular em duas obras<br />
nascidas da alma medieval e que até<br />
hoje nos deixam repassados de encanto<br />
e admiração.<br />
A primeira delas, constante objeto<br />
de meus elogios e enlevos, é a Catedral<br />
de Notre-Dame de Paris. Nela<br />
— como em geral nas produções<br />
do estilo gótico — me parece estar<br />
refletida a temperança que coroa as<br />
virtudes e qualidades do coração justo.<br />
Sobretudo na sua fachada, podemos<br />
discernir esse espelho de todas<br />
as boas disposições da alma humana.<br />
O maravilhoso semblante desse templo<br />
é “raffinesíssimo”, se assim nos é<br />
dado dizer, no sentido de que nos revela<br />
uma série de sentimentos levados<br />
à sua completa finura, convivendo<br />
urbanamente no mesmo frontispício.<br />
E talvez seja este o lado pelo<br />
qual ela tanto me atrai.<br />
De sorte que, procuremos ali uma<br />
expressão do carinho de Nossa Senhora,<br />
é logo a encontramos. Ou se<br />
quisermos ver algo da seriedade de<br />
Maria, lá está. Algo da severidade<br />
d’Ela contrabalançada por uma insondável<br />
bondade e misericórdia,<br />
também achamos naquelas pedras<br />
esculpidas de modo primoroso. Contemplamos,<br />
ainda, a realeza, a majestade<br />
da Mãe de Deus, rebrilhando<br />
na riqueza dos lavores e entalhes<br />
com que os artífices medievais esculpiram<br />
aquelas imagens.<br />
Vistas da fachada<br />
e rosácea central<br />
de Notre-Dame<br />
de Paris<br />
32
Enfim, Nossa Senhora na ação, na<br />
paz, na glória, na fulguração de todas<br />
as suas virtudes, encontra-se expressa<br />
na fachada de Notre-Dame,<br />
um requinte de esplendor.<br />
*<br />
Outro tesouro raffiné que nos legou<br />
a Idade Média é a fascinante<br />
arte dos vitrais. Mais uma daquelas<br />
manifestações de equilíbrio intocáveis,<br />
fixas de modo perene na sua<br />
perfeição, na sua magnificência e beleza.<br />
O vitral admirável, requintado,<br />
ninguém terá coragem de lhe modificar<br />
qualquer detalhe. Por exemplo,<br />
na feeria da Sainte Chapelle, nas<br />
rosáceas de Chartres, de Bourges,<br />
quem pensaria em mexer nelas?<br />
São dessas formas de realizações<br />
que alcançaram, no gênero, toda a<br />
perfeição possível, e qualquer alteração<br />
que sofrerem significa um movimento<br />
de decadência. Digamos,<br />
substituir as luminosas policromias<br />
por algum vidro transparente reputado<br />
de excelente qualidade, com<br />
inúmeras vantagens óticas, práticas,<br />
etc., etc. — seria um desastre.<br />
Por quê? Porque o vitral representa<br />
uma tal síntese, sempre prodigiosamente<br />
equilibrada, de cores diversas<br />
e desconcertantes, que temos<br />
neles todas as variedades, todas as<br />
formosuras que nunca cansam, dentro<br />
de uma unidade harmoniosa, sos-<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
segada, tranqüila, passando-nos uma<br />
agradável sensação de plenitude.<br />
Assim, o vitral seria uma forma de<br />
requinte ideal. E tão proporcionado<br />
que numa mesma cena representada<br />
em tal rosácea vamos encontrar<br />
cavaleiros saindo de sua fortaleza,<br />
monges trabalhando na sua abadia,<br />
etc., e, pelo meio, um homem usando<br />
um chapéu verde que ninguém<br />
conceberia portar algo semelhante.<br />
Entretanto, a tonalidade dessa cor,<br />
quando batida pelo sol, revela-se de<br />
uma tal excelência, que até mesmo<br />
na cabeça daquele personagem deixa<br />
de ser ridícula. Pelo contrário, ele<br />
carrega consigo um esplendor. Um<br />
raffinement...<br />
<br />
Os vitrais: arte fascinante, fixa de modo perene na sua perfeição...<br />
Vitrais da Sainte Chapelle<br />
34
A grande rosácea de Notre-Dame de Paris<br />
35
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 78, Setembro <strong>2004</strong><br />
Secos e<br />
molhados...<br />
Fotos: Olavo Barbosa<br />
Venda portuguesa<br />
na Rua do Arsenal,<br />
em Lisboa<br />
Desde os meus tempos de menino, percorrendo<br />
algumas regiões da capital<br />
paulistana, comprouve-me observar<br />
o exercício de uma profissão pouco renomada:<br />
a de vendeiro. Hoje quase não existem mais<br />
aquelas quitandas — em geral de proprietários<br />
lusitanos — como as conheci, substituídas por<br />
lojas, bares e outros estabelecimentos adaptados<br />
às conveniências da vida moderna.<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Porém, aqui e ali, sobretudo em nosso Portugal avoengo,<br />
pode-se encontrar algo dos antigos comércios de “secos<br />
e molhados”, com vestígios do sabor e do pitoresco<br />
que tanto atraíam minha curiosidade infantil.<br />
A própria expressão “secos e molhados” já nos sorri,<br />
gotejando realidade, cheirando a bacalhau defumado e a<br />
tragos de vinho para acompanhar os aperitivos, consumidos<br />
em animadas rodas de amigos. Pois a venda era também<br />
um lugar com mesas ao ar livre, na calçada, para os<br />
fregueses se sentarem e colocar em dia a conversa. Portanto,<br />
uma espécie de clube da rua, na rua, para os homens<br />
de rua, de categoria social menos favorecida.<br />
Ela tinha, inclusive, algo de instituição bancária. As<br />
pessoas de trato, clientes do armazém, se não podiam ou<br />
não queriam se dar o trabalho de ir ao banco retirar dinheiro,<br />
chamavam a criada e lhe davam a incumbência:<br />
“Diga lá ao seu Manuel da venda que vou descontar este<br />
cheque com ele”. O “seu” Manuel, bonachão, solícito<br />
e seguro de suas economias, satisfazia o freguês. No dia<br />
seguinte ele mesmo ia descontar o cheque, e embolsava a<br />
quantia dispensada na véspera. Ele havia feito mais uma<br />
gentileza ao fazendeiro afidalgado e indolente que morava<br />
perto...<br />
A venda não pode ter luxo, mas uma exuberância de<br />
produtos, inclusive pendurados no teto, como garrafas<br />
de vinhos, queijos, presuntos, lingüiças, pernis, etc. Mal<br />
iluminada, sem ornatos nem decorações de estilo. Seu<br />
grande adorno é a figura do vendeiro, presidindo a vida<br />
que ali dentro se desenrola, sob seu olhar acolhedor e vigilante.<br />
A sua família reside nos fundos da loja, numa casa<br />
comprida em forma de flauta, um corredor extenso, para<br />
o qual se abrem todos os quartos. E ele, embora estando<br />
no balcão, tem um sexto sentido voltado para o que se<br />
passa no lar. De maneira que, verificando-se ali qualquer<br />
coisa de anormal, ele sabe e toma providências. É o rei<br />
de dois reinos — um “reino unido”, como eram Brasil e<br />
Portugal: a casa do vendeiro e a venda.<br />
A antiga caixa registradora, atrás da qual ele se<br />
instala, eleva-se sobre o balcão, e o seu Manuel a opera<br />
com visível satisfação, contente de ouvir os sons daqueles<br />
mecanismos repercutirem pela venda inteira. A manivela<br />
32
oda, a gaveta se abre com ruídos de<br />
campainha, as notas roçam umas nas<br />
outras, as moedas tilintam, e a conjugação<br />
desses ruídos constituem a harmonia do<br />
progresso dele. Uma prosperidade plebéia<br />
no que o plebeu tem de maior suco de vida,<br />
de realidade. É pão, pão, queijo, queijo,<br />
mas fecundo.<br />
Com seus bigodes “a la Rei Dom Carlos”,<br />
ele supervisiona tudo, conversa pouco,<br />
mas sabe da existência de todos, porque<br />
não perde um detalhe das conversas<br />
à sua volta. Seus diálogos são com a gaveta<br />
da registradora: o que entrou, o que vai<br />
depositar, o que vai ou não recolher, os investimentos<br />
com a quantia acumulada, a<br />
outra venda que ele pretende abrir, e já<br />
pensando em encaminhar o filho mais velho<br />
para assumir e continuar os negócios.<br />
Sim, pois ele não tem ambições de que<br />
o seu primogênito se torne um médico, ad-<br />
A expressão “secos e molhados”<br />
já nos sorri, gotejando realidade, cheirando<br />
a bacalhau defumado e a tragos<br />
de vinho para acompanhar os petiscos<br />
consumidos em animadas<br />
rodas de amigos<br />
Vendas e vendeiros da Rua do Arsenal,<br />
Baixa Pombalina, em Lisboa<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
vogado ou engenheiro, como aqueles que andam sempre<br />
devendo à quitanda. Não. Basta-lhe o seu status, eminentemente<br />
abdominal e saudável a ponto de as bochechas<br />
serem pontudas, a bigodeira abundante, a voz estentórica,<br />
mãos nas quais se nota o proletariado, mas em cujo<br />
dedo anular refulge um anel de brilhante usado por ele<br />
no dia do casamento da filha. É tudo o que deseja para<br />
si e seu sucessor.<br />
A um canto da loja se vê a imagem da devoção dele,<br />
iluminada constantemente por uma pequena luz dourada.<br />
Será do seu Santo padroeiro ou de Nossa Senhora,<br />
sob alguma invocação venerada na sua aldeia natal.<br />
A imagem está lá, intocável como uma preciosa tradição,<br />
recebendo de quando em vez um olhar piedoso da velha<br />
freguesa, uma súplica dele próprio, quando as preocupações<br />
o atormentam.<br />
Em suma, a figura do vendeiro se torna simpática para<br />
quem a sabe compreender e admirar no seu peculiar<br />
contexto. Foi, aliás, o meu caso. Comecei a freqüentar a<br />
venda do “seu Manuel” com certa reticência. Em determinado<br />
momento, percebi o papel que desempenhavam<br />
numa sociedade organicamente estabelecida. E pensei:<br />
“Não, mas essa gente é interessante, tem vitalidade, disposições,<br />
pitorescos, funcionalidades que desempenham<br />
sua missão benéfica e enriquecedora no ambiente social<br />
onde se insere.”<br />
E aí passei a compreender melhor o “meu” Portugal...<br />
<br />
“Essa gente é interessante, tem<br />
disposições e funcionalidades<br />
que desempenham seu papel<br />
benéfico e enriquecedor no<br />
ambiente social em que vivem...”<br />
À esquerda, venda na Rua do Arsenal;<br />
no centro, vendeiro na Lisboa antiga; na<br />
pág. seguinte, a Rua da Alfama, tradicional<br />
centro de vendas na capital portuguesa<br />
34
35
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 79, Outubro <strong>2004</strong><br />
Hífen gaudioso<br />
Fotos: S. Hollmann, V. Domingues e R. C. Branco<br />
Ponte nas montanhas<br />
das Astúrias, Espanha<br />
Sempre se concebeu a ponte como algo de nobre e<br />
belo, digno de possuir fisionomia e características<br />
próprias. Ela é uma obra da inteligência e da habilidade<br />
humanas, construída para vencer as dificuldades e<br />
os entraves da natureza, impondo assim a vitória do rei<br />
da criação sobre aquilo que o desafia.<br />
A ponte é um hífen entre as duas partes de um caminho<br />
interrompido pelo precipício, pelo vale, por um rio...<br />
Traço de união, ufana-se de não pertencer a nenhum dos<br />
lados que ela aproxima, ciosa de sua individualidade e de<br />
sua nobreza. Seja a mais elementar, estendida numa trilha<br />
de roça, seja a mais monumental, projetando-se aci-<br />
31
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
ma de águas famosas, ela possui peculiaridades que a diferenciam<br />
do restante do percurso.<br />
Pensemos na célebre ponte da Torre de Londres, sobre<br />
o Tamisa. Em determinados momentos, seu leito se<br />
divide e se ergue para dar passagem aos navios que, numerosos,<br />
sulcam o rio a serviço de um intenso comércio.<br />
Em seguida, ela se fecha, permitindo a fluência do trânsito<br />
da grande capital inglesa.<br />
Quer na sua posição horizontal, que nos transmite a<br />
idéia de firmeza, de solidez e força; quer quando suas<br />
partes se levantam lenta e solenemente, como se ignorassem<br />
a vida ao seu redor, e o rio começa a ser navegado<br />
diante da majestosa indiferença (ligeiramente indignada<br />
e sentida) dos batentes que se abrem — a ponte mantém<br />
aquele semblante próprio, fotografado e filmado de todos<br />
os modos possíveis por turistas do mundo inteiro.<br />
Há pontes lindas em outro gênero. Uma delas, a que<br />
transpõe o Rio Tibre, em Roma, e conduz ao Castelo<br />
de Sant’Ângelo. Esta antiga construção abrigava outrora<br />
os restos mortais do Imperador Adriano. Os despojos<br />
do César se desfizeram, e no período medieval essa<br />
mole se transformou no castelo fortificado onde as tropas<br />
dos Pontífices se acantonavam para a defesa da Cidade<br />
Eterna.<br />
A ponte, monumental, muito à maneira italiana é<br />
adornada com imagens de Santos e de Anjos, e no passado<br />
era favorecida por indulgências: o fiel que a atravessasse<br />
recitando determinadas orações junto a cada ima-<br />
32
Sobre as águas do velho<br />
Tibre romano, os Anjos<br />
lançam uma ponte espiritual,<br />
unindo a Terra ao Céu...<br />
Ponte e Castelo de Sant’Ângelo, em Roma<br />
gem, beneficiava-se de tais e tais privilégios concedidos<br />
pelos Papas. Assim, sobre as águas do velho Tibre romano<br />
que os imperadores contemplaram, os Anjos lançam<br />
uma fabulosa ponte espiritual, significando que a intercessão<br />
deles ajuda nossas almas a vencerem as distâncias<br />
entre a Terra e o Céu...<br />
Há, também, pontes de uma simplicidade maravilhosa.<br />
Não a singeleza fria, mal-humorada e tola, mas aquela<br />
feita de equilíbrio, distinção, e de beleza presentes<br />
apenas na forma dos seus arcos. Entretanto, parecem<br />
nos dizer coisas inenarráveis. Exemplo frisante, o Pont-<br />
Neuf, sobre o Rio Sena, em Paris. Construído por Henri-<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
que IV, não é mais que um conjunto de arcos lembrando<br />
um pouco ogivas, mas tão calculados, tão medidos na sua<br />
simplicidade que, tempo eu tivesse, passaria uma tarde<br />
inteira contemplando a sua beleza se refletindo nas prestigiosas<br />
águas do Sena.<br />
Lembra-me, ainda, a Ponte dos Suspiros, em Veneza.<br />
Não reúne dois pedaços de estrada, mas dois corredores<br />
de palácios. Tão simples! Tão pequena! Quase irrisória<br />
em comparação com os gigantescos viadutos modernos.<br />
Porém, ao contrário destes, ela é um capítulo da história<br />
da alma humana. Nem precisaria ser autêntico o fato<br />
de que passavam por ela os condenados à morte na Sereníssima<br />
República. Pois só a idéia de se chamar Ponte<br />
dos Suspiros a reveste de uma beleza ímpar. Como é<br />
nobre suspirar numa ponte, olhando para a água! Como<br />
é lindo! Que melhor lugar para um derradeiro gemido,<br />
um último murmúrio ouvido pelas águas que pranteiam<br />
a desdita de quem caminha para o suplício?<br />
A relação ponte-água nos faz pensar... A ponte se espelha<br />
no rio que passa sob ela. Pode-se dizer que a alegria<br />
deste é fluir por debaixo da ponte, recolher a imagem<br />
dela e levá-la muito além. É a realização dele: passou<br />
pela ponte tal.<br />
34
Mas, como é verdade o contrário! Imagine-se<br />
uma ponte a cujos pés as águas tenham<br />
deixado de correr, desviadas que foram<br />
para alguma represa. Desolada, envolta<br />
por uma triste solidão, a ponte vê seus fundamentos<br />
secos, percebe o vazio junto a ela:<br />
sua imagem já não se reflete em nada, não<br />
tem mais brilho, ela está seca, esturricada<br />
no ar. De súbito, abrem-se as comportas, a<br />
água começa a circular novamente...<br />
E da ponte, revigorada, rejuvenescida,<br />
parte uma exclamação de gáudio! <br />
A alegria do rio é fluir sob<br />
a ponte, recolher a imagem<br />
dela e levá-la muito além...<br />
Reflexo de ponte nas águas de Veneza<br />
Na página anterior: em cima, a Ponte dos Suspiros,<br />
Veneza; embaixo, ponte sobre o Rio Sena, Paris<br />
35
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 80, Novembro <strong>2004</strong><br />
Fotos: L. Werner e S. Hollmann<br />
Acatedral é figura da Cidade<br />
de Deus, da Jerusalém Celeste,<br />
imagem do Paraíso,<br />
como afirma a liturgia da sagração<br />
das igrejas.<br />
As paredes laterais são símbolos do<br />
antigo e do novo testamento. Os pilares<br />
e as colunas são os Profetas e os<br />
Apóstolos que sustentam a abóbada,<br />
representação de Cristo, a sua chave.<br />
As janelas translúcidas que nos separam<br />
da tempestade e derramam sobre<br />
nós a claridade, são os Doutores<br />
da Igreja. O portal é a entrada do Paraíso<br />
embelezada pelas imagens em<br />
Catedral<br />
de Amiens,<br />
França<br />
Símbolo da<br />
Jerusalém Celeste
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
pedra, pelos baixos relevos pintados e<br />
dourados e pelos suntuosos batentes<br />
de bronze.<br />
A casa de Deus deve ser iluminada<br />
pelos raios do sol resplandecente da<br />
caridade como o próprio Paraíso, porque<br />
Deus é a luz, e a luz dá beleza às<br />
coisas. Assim também se deve aumentar<br />
a iluminação interior da catedral,<br />
abrindo janelas tão amplas quanto o<br />
permitam os vértices das grandes arcadas<br />
e as próprias abóbadas.<br />
Belo, semeado de poesia, esse texto<br />
de um ótimo medievalista francês<br />
nos faz degustar, de modo intenso, a<br />
noção de símbolo.<br />
Trata-se de considerar as magníficas<br />
catedrais góticas, não apenas como<br />
um recinto fechado onde se presta<br />
culto a Deus sem riscos de se expor<br />
às intempéries, mas, muito além<br />
desta finalidade prática e indispensável,<br />
como uma grandiosa imagem<br />
do Paraíso celestial. Algo que nos<br />
lembra a bem-aventurança eterna e<br />
dela nos oferece consoladora prelibação.<br />
Desse modo, as catedrais são<br />
verdadeiras obras-primas de simbolismo,<br />
cada um de seus ricos aspectos<br />
encerrando significados e conceitos<br />
que nos remetem para as realidades<br />
do Céu.<br />
Então, o templo majestoso e imenso<br />
é a figura do lugar onde Deus vive,<br />
cercado das almas dos justos. É a<br />
cidade do Altíssimo, a Jerusalém Celeste,<br />
como no Antigo Testamento a<br />
Jerusalém terrena foi a urbe santa,<br />
ela mesma representação da futura<br />
Igreja Católica, da Civilização Cristã,<br />
da sociedade temporal organizada<br />
de acordo com os princípios do<br />
Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
De tudo isto a catedral é um extraordinário<br />
símbolo.<br />
E os detalhes de sua construção<br />
acrescentam belezas e expressões diversas<br />
nessa simbologia. Por exemplo,<br />
a linda idéia de se ver as paredes<br />
laterais como evocações do Velho<br />
e do Novo Testamento, ou de admirar<br />
aquelas esguias e sólidas colunas<br />
como se fossem os severos Profetas<br />
da Antiga Lei e os compassivos<br />
Apóstolos da era cristã. Mais ainda.<br />
Contemplar a vastidão da elevada<br />
abóbada e pensar que lá está a chave<br />
da Igreja, Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
sobre o qual tudo repousa e em<br />
honra de quem tudo foi edificado!<br />
O pórtico imponente recorda a<br />
entrada do Céu. São portas de bronze,<br />
de carvalho, entalhadas e lavradas<br />
com requintes de perfeição e<br />
candura, emolduradas por centenas<br />
de imagens de santos e figuras históricas<br />
dispostas em esplendorosa ordenação.<br />
Ao transpô-las, devemos<br />
nos lembrar de que um dia — pela<br />
infalível intercessão de Nossa Senhora<br />
— as portas da catedral celeste se<br />
abrirão para nós e penetraremos na<br />
glória de Deus, unindo-nos aos Anjos<br />
e aos bem-aventurados que ali<br />
nos precederam.<br />
A nota de poesia é dada pela claridade<br />
que inunda o interior do templo<br />
através das amplas janelas translúcidas,<br />
pelas refulgências policromadas<br />
dos vitrais tocados de sol. São<br />
32
O pórtico imponente recorda a entrada do Céu, e<br />
as esguias clounas, os Profetas e Apóstolos...<br />
Aspectos da Catedral de Amiens, França
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
os Doutores da Igreja esplendendo<br />
sua sabedoria, são os raios da caridade<br />
com os quais se ilumina o próprio<br />
Paraíso.<br />
Como Deus é a luz, convém que a<br />
catedral tenha luz, e a tenha no pleno<br />
jorro da fulguração do sol, e na<br />
aconchegante, espetacular matização<br />
dos vidros coloridos.<br />
Toda a arquitetura do gótico se<br />
desenrolou à procura das janelas cada<br />
vez maiores, sem prejuízo da estabilidade<br />
do edifício, até chegar a<br />
uma Sainte-Chapelle de Paris, verdadeiro<br />
escrínio cujas paredes são<br />
vitrais... É uma caixa de cristal onde<br />
todas as cores de luz brincam e folgam,<br />
constituindo desenhos maravilhosos<br />
que nos lembram a luz eterna<br />
do Paraíso.<br />
Assim, ao entrarmos numa catedral,<br />
levemos conosco esse pensamento:<br />
“Graças à misericórdia infinita<br />
de Deus e à insondável bondade<br />
de Maria, passarei um dia pelas<br />
portas do Céu; verei os Profetas, os<br />
Apóstolos e os Doutores, como vejo<br />
aqui estas colunas. Sobretudo, serei<br />
inundado pela luz divina, como<br />
agora me envolve essa luminosidade<br />
que, de todas as partes, invade o recinto<br />
sagrado”. E então a nossa presença<br />
na igreja aumentará em nós<br />
a alegria e a esperança dos grandes<br />
triunfos do Céu.<br />
Quanto mais nos sentirmos opressos,<br />
perseguidos nesta Terra, tanto<br />
mais devemos nutrir essa nossa apetência<br />
pelo Paraíso, onde as misérias<br />
presentes se extinguem por completo,<br />
dando lugar apenas à perfeita<br />
e eterna felicidade, sem que nada a<br />
possa perturbar. Pois ali não teremos<br />
somente todas as alegrias possíveis,<br />
mas o fundamento de todos os gáudios<br />
— Deus Nosso Senhor e o olhar<br />
indizivelmente afável de sua Mãe<br />
Santíssima.<br />
<br />
34
Na vastidão da elevada abóbada, o símbolo da chave da Igreja,<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo, em cuja honra tudo foi edificado!
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 81, Dezembro <strong>2004</strong><br />
Fotos: S. Hollmann<br />
Casa de brinquedos -<br />
Rothenburg, Alemanha<br />
Universo Natalino<br />
Uma das inocentes alegrias<br />
que o Natal proporciona<br />
às almas provém das tocantes<br />
canções com as quais os diversos<br />
povos louvam e homenageiam<br />
o Divino Recém-nascido.<br />
Ao longo dos séculos, cada nação<br />
da Cristandade, e notadamente<br />
as da Europa, compôs seus cânticos<br />
natalinos típicos, cujas letras e melodias<br />
se unem aos costumes e culinárias<br />
locais para conferirem mais<br />
luz e perfume à unção própria dessa<br />
grande festa católica.<br />
Já tivemos ocasião de comentar o<br />
Stille Nacht, a canção de Natal universal,<br />
entoada no mundo inteiro,<br />
surgida no século XIX numa aldeia<br />
austríaca. Deu-lhe vida o povo alemão,<br />
o povo da bravura, da proeza<br />
militar, mas também dessa profunda<br />
delicadeza de espírito que o levou<br />
a imaginar o sentimento de ternura<br />
de quem se colocasse junto à<br />
31
manjedoura do Menino Jesus e contemplasse<br />
aquela criança fraquinha,<br />
com todas as debilidades físicas<br />
da infância e, entretanto, o próprio<br />
Deus.<br />
Em qualquer canção natalina<br />
germânica encontra-se essa nota de<br />
compaixão humana, contemplativa<br />
e súplice, diante do que há de mais<br />
frágil e suave. Será, então, Maria<br />
Durch ein Dornwald ging, uma lenda<br />
cantada acerca de um bosque onde,<br />
por sete anos, apenas espinhos brotaram,<br />
sem flor e folhagem alguma.<br />
Por essa rude floresta entra Nossa<br />
Senhora, trazendo ao braço seu Divino<br />
Rebento, e à medida que Eles<br />
caminham, os espinhos vão se transformando<br />
em rosas...<br />
Maria Santíssima, com sua candura<br />
e força virginais, traz o Menino<br />
bem protegido sobre o seu coração.<br />
“Nascimento de<br />
Jesus” - Catedral<br />
de Strasbourg,<br />
França<br />
32
Ambos penetram num bosque de espinhos.<br />
Ora, como podem essa flor<br />
de delicadeza ímpar que é a Mãe de<br />
Deus, e esse tesouro da Terra que é o<br />
próprio Homem-Deus, exporem-se a<br />
natureza tão agreste e hostil? Não é<br />
possível concebê-lo. Então, enquanto<br />
andam, os espinhos viram rosas<br />
de agradável fragrância. Nossa Senhora<br />
compreende: foi uma amabilidade<br />
de seu Filho para com Ela! Jesus<br />
dorme junto ao seu coração, mas<br />
continua a governar a natureza. Ternura,<br />
enlevo, extremo respeito.<br />
Voltemos nossos olhos para a Espanha<br />
e seus célebres villancicos de<br />
Navidad.<br />
À semelhança do povo alemão, o<br />
espanhol é feito para o heroísmo de<br />
uma autenticidade e arrojo inegáveis.<br />
Encara a coragem como lance<br />
individual, atira-se na peleja sozi-<br />
33
34<br />
nho, como o toureiro diante do touro,<br />
banderilha na mão, disposto a<br />
todas as façanhas.<br />
Entre as inúmeras dádivas que<br />
Deus concedeu à Espanha, está a<br />
de lhe ter envolvido por um panorama<br />
de montanhas as quais nos dão<br />
a impressão de haverem sido moldadas<br />
pela truculência de um gigante,<br />
um quebra-montes que, à força<br />
de pancadas e pontapés, desenhou<br />
aquelas cordilheiras, enquanto talvez<br />
dançasse uma jota ou cantasse<br />
uma saeta.<br />
É uma natureza pobre, contrastando<br />
com a riqueza de vida e superabundância<br />
de coragem que leva o<br />
espanhol a realizar essa arte que nos<br />
deixam boquiabertos: são alegres na<br />
carência, na necessidade, na falta de<br />
doces, de confortos. E essa felicidade<br />
de existir, de sentir a sua própria vida,<br />
de olhar para o Céu e pensar em
A Santa Igreja<br />
vive na alma de<br />
povos diferentes,<br />
despertando distintos<br />
acordes com os<br />
quais eles cantam<br />
e glorificam o Natal<br />
de nosso Salvador<br />
Na página anterior, o “Nascimento”<br />
- Catedral de Sevilha, Espanha<br />
Deus, está presente na canção de Natal<br />
espanhola. Eles oferecem ao Menino<br />
Jesus o seu júbilo por pertencer<br />
a esse povo, como se dissessem: “Senhor,<br />
Vós me deixais muito contente<br />
e cheio da coragem que Vós me destes!<br />
Homenagem a Vós, Senhor!”<br />
É um modo diverso, porém digno<br />
de festejar o Natal, pois é o povo que<br />
se oferece a si mesmo e a sua alegria<br />
como ação de graças a Deus. Gratidão<br />
preciosa, daquele que recebeu<br />
menos mas demonstra toda a grandeza<br />
de sua alma.<br />
Já o inglês, tão diferente do espanhol,<br />
apresenta uma analogia na<br />
maneira de entoar suas canções natalinas.<br />
A nação britânica canta também<br />
a sua alegria de viver e de ser<br />
conforme seus costumes peculiares.<br />
Porém, não é saltitante nem procura<br />
se exprimir através dos superlativos<br />
como os castelhanos. A principal<br />
preocupação da música de Natal inglesa<br />
é ser equilibrada, procurando<br />
a beleza do sentimento proporcionado,<br />
adequado, comedido.<br />
E ele oferece ao Divino Infante a<br />
sua anglicidade, a sua personalidade,<br />
os seus problemas. Povo de gentlemen,<br />
dirige-se a Nosso Senhor como<br />
um gentleman, sem demonstrar<br />
tristeza nem aborrecimento. Sabe<br />
que essa existência é árdua, mas não<br />
desanima, pois o Menino Jesus nos<br />
socorre e ampara.<br />
São estes alguns exemplos de como<br />
a Cristandade canta o Natal. E<br />
servem para nos fazer compreender<br />
como a Igreja Católica vive na alma<br />
de povos diferentes, produzindo diferentes<br />
acordes. Porque Ela é riquíssima<br />
e inesgotável em frutos de<br />
santidade, de perfeição. É como o sol<br />
quando atravessa vitrais de variegadas<br />
policromias: oscula o vidro vermelho<br />
e acende um rubi, o verde, e<br />
faz fulgurar uma esmeralda.<br />
Assim o gênio da Igreja iluminando<br />
o povo alemão, o espanhol, o inglês<br />
ou qualquer outro, engendra<br />
maravilhas e inocências natalinas<br />
que devem nos cumular de admiração,<br />
comprazimento e desejo de louvar<br />
o Verbo Eterno que se fez carne e<br />
habitou entre nós.<br />
<br />
35