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apóStoLo Do puLcHrum<br />
Revista Dr Plinio 202, Janeiro <strong>2015</strong><br />
O belo e o prático - I<br />
Paulo sande (CC 3.0)<br />
“Terreiro do Paço”<br />
Museu da Cidade,<br />
Lisboa, Portugal<br />
A Revolução, fundamentalmente materialista, propaga a ideia de<br />
que o importante é o lado prático das coisas, pois proporciona<br />
conforto para o corpo, enquanto que o belo nem deve ser<br />
considerado. Dr. Plinio desmonta esse sofisma.<br />
D<br />
iante de tantas coisas bonitas dos tempos<br />
antigos que foram sendo destroçadas, e tantas<br />
coisas hediondas instauradas nos dias de<br />
hoje em nome do prático, põe-se a pergunta: o prático<br />
não é um precursor da feiura e o belo um inimigo<br />
do prático?<br />
Grahamedown (CC 3.0)<br />
Darwininius (CC 3.0)<br />
Carfax2 (CC 3.0)<br />
32
Rapidez e comodidade<br />
Para analisar esta questão, consideremos alguns meios<br />
de transporte.<br />
Toda coisa é perfeita na medida em que atinge o seu<br />
fim. Ora, o fim de uma carruagem, por exemplo, é transportar;<br />
e se ela transporta nas condições ideais, realizou<br />
a sua perfeição.<br />
Quais são as condições ideais do meio de transporte?<br />
Ele deve ser, entre outras coisas, rápido e cômodo. Entretanto,<br />
o conceito de cômodo é muito amplo, porque<br />
uma é a comodidade que se pode querer ter em um automóvel<br />
que transpõe a distância de alguns quarteirões;<br />
outra é a comodidade exigida desse veículo fazendo uma<br />
longa viagem. São distâncias muito diferentes em que o<br />
corpo e o próprio espírito humano pedem graus e modos<br />
de conforto diferentes.<br />
Há outras circunstâncias que condicionam a comodidade<br />
de um veículo, como, por exemplo: um molejo adequado<br />
para transitar em superfícies irregulares; arranque<br />
suave e silencioso do motor; estabilidade pela qual o passageiro<br />
sinta-se bem e seguro, mesmo em alta velocidade,<br />
etc.<br />
Chegamos, assim, à conclusão de que o espírito prático<br />
deve ser adaptado a várias circunstâncias.<br />
Beleza ou conforto?<br />
A beleza interna de um veículo é uma condição de<br />
conforto? Evidentemente sim. Porque tudo que lisonjeia<br />
os sentidos, de algum modo, é condição de conforto. É<br />
muito confortável viajar em uma carruagem e ver o sol<br />
entrando pelos cristais das janelas e incidindo sobre sedas,<br />
damascos, veludos, “brincando” naqueles tecidos de<br />
luxo. Portanto, estaria de acordo com o espírito prático<br />
— que deve procurar o conforto de um veículo — tornar<br />
bonito o interior de uma carruagem.<br />
Mas também deve estar de acordo com o espírito prático<br />
que um automóvel tenha um compartimento com<br />
um pequeno refrigerador contendo líquidos gelados para<br />
que, no auge do calor, sem ter de diminuir a velocidade<br />
do carro, o dono possa servir-se de um refresco.<br />
Havendo tudo isso, pode-se dizer que o espírito prático<br />
obteve uma vitória. Mas torna-se impossível fabricar<br />
uma bela carruagem com essas comodidades. Onde colocar<br />
a geladeira e as supermolas compatíveis com a supervelocidade?<br />
Onde instalar um mecanismo por onde baste<br />
apertar um botão para as janelas subirem e baixarem<br />
fazendo um ruído prestigioso? Essas coisas cabem nos<br />
produtos modernos, não nos antigos. Então, o que escolher:<br />
a beleza da carruagem ou o conforto do automóvel?<br />
Alma do homem e pulcritude<br />
Até pouco tempo atrás, os homens não tinham perdido<br />
a noção do belo, mesmo passando da era da bela<br />
carruagem para a do automóvel. Tomemos, por exemplo,<br />
automóveis do tipo Mercedes. Eram bonitos veículos,<br />
com cores lindas, reluzentes. O homem tinha a impressão<br />
de entrar em uma pedra preciosa, de tal maneira<br />
aquela lataria toda era ornada. Dentro havia couros<br />
de primeira ordem, espaço amplo, enfim, todos os agrados<br />
dos transportes de luxo se encontravam reunidos ali.<br />
Diversos modelos de<br />
carruagens inglesas<br />
Tony Hisgett (CC 3.0)<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
Dcoetzee (CC 3.0)<br />
Isso obedecia ao seguinte princípio: há uma<br />
razão para, tanto a carruagem quanto o automóvel,<br />
serem belos.<br />
Todos os argumentos dados até agora a favor<br />
do espírito prático valem para o corpo. Mas o homem<br />
tem só corpo? Ele é principalmente corpo?<br />
O homem não é principalmente alma? E se a alma<br />
é o elemento principal do ser humano, do que vale<br />
o belo para a alma? Neste caso, ter beleza não seria o<br />
principal componente que um transporte deveria possuir?<br />
Lindos cavalos, belas carruagens<br />
Dcoetzee (CC 3.0)<br />
O Bucentauro no<br />
Grande Canal de<br />
Veneza - Museu Pushkin,<br />
Moscou, Rússia e<br />
Museu Nacional de Arte,<br />
Copenhagen, Dinamarca<br />
Analisemos o papel do belo.<br />
Primeiramente, a pessoa que está em uma carruagem<br />
ou qualquer outro meio de transporte, ainda que seja<br />
simplesmente um cavalo, apresenta-se aos olhos do público<br />
de modo a chamar a atenção. Porque um indivíduo<br />
que atravessa uma rua dentro de um veículo ou montado<br />
em um animal, atrai muito mais a atenção do que<br />
quem vai a pé, e forma um todo psicológico e artístico<br />
aos olhos dos transeuntes.<br />
Ademais, o homem tem interesse em ser conhecido<br />
pelo que ele é, para que se lhe dê o valor ao qual tem direito.<br />
Se ele é um verdadeiro cavaleiro, descendente, por<br />
exemplo, dos cruzados, convém que monte um lindo cavalo<br />
de raça.<br />
E montar, não é estar sobre o animal como estaria um<br />
saco de batatas. É preciso cavalgar com elegância, altaneria<br />
e dignidade. O cavaleiro deve dar a impressão de<br />
tal domínio sobre o cavalo, que o oriente simplesmente<br />
pelo movimento das pernas. As rédeas servem mais como<br />
um elemento ornamental.<br />
Além disso, o animal<br />
precisa estar belamente ajaezado<br />
com uma bonita sela, belos<br />
arreios. Tudo isso forma a moldura com que o homem<br />
se apresenta em público.<br />
É de acordo com a dignidade do homem que ele queira<br />
cavalgar esplendidamente um lindo cavalo. Isso não é<br />
vaidade, mas o reto exercício do instinto de sociabilidade,<br />
não com pretensão, mas com a naturalidade com que<br />
uma pessoa quer mostrar o rosto limpo para os outros.<br />
Tratando-se de pessoas de uma condição inteiramente<br />
excepcional, como um rei e uma rainha, que ocupam no<br />
Estado e na sociedade o primeiro lugar, é natural que,<br />
por uma necessidade da alma, se façam ver e reverenciar<br />
pelo que eles são, utilizando uma carruagem à altura<br />
de seu cargo.<br />
Para eles, mais importante do que a grande velocidade<br />
e todas as comodidades é ter um coche, no qual se<br />
apresentem como dentro de uma linda moldura.<br />
Por isso as altas situações são tratadas pelos artistas —<br />
no caso concreto, pelos fabricantes de coches — de maneira<br />
a serem realçadas. A arte se empenha em apresentar<br />
o rei, a rainha, os príncipes da casa real, os nobres,<br />
os titulares de altas dignidades da Igreja, do Poder Judi-<br />
34
Peter Isotalo (CC 3.0)<br />
ciário, das Forças Armadas, etc. de modo a serem naturalmente<br />
respeitados, proporcionando-lhes outra modalidade<br />
de conforto: a comodidade de governar.<br />
Então, é uma vantagem do Estado que haja lindas<br />
carruagens. Quanta revolta é evitada, quanta guerra interna<br />
é poupada a um país porque o povo se habituou a<br />
respeitar quem o governa!<br />
O Bucentauro e a ponte sobre o Tâmisa<br />
A República de Veneza tinha um presidente do Conselho<br />
dos Nobres intitulado Doge, palavra derivada do<br />
vocábulo latino dux, chefe.<br />
Para navegar pelas águas fabulosas da Laguna de Veneza,<br />
o Doge dispunha de uma embarcação, toda esculpida,<br />
folheada a ouro, lindíssima, que por uma reminiscência<br />
mitológica chamava-se “O Bucentauro”.<br />
Na ocasião máxima do Estado Veneziano, o Doge<br />
partia no Bucentauro acompanhado de centenas de barcos,<br />
gôndolas com aquelas proas lindas, gente tocando<br />
instrumentos, cantando, etc., laguna adentro, até o Mar<br />
Adriático. E, quando estavam no alto mar, o Bucentauro<br />
parava e o Doge jogava nas águas um anel precioso: era<br />
o casamento de Veneza com o mar.<br />
Veneza era uma grande república comercial e dominava<br />
os mares naquele tempo, sendo, por isso riquíssima.<br />
O casamento da República de Veneza com o<br />
mar representava uma espécie de união entre o Estado<br />
veneziano e seu destino histórico.<br />
Evidentemente era útil para o Estado veneziano<br />
ter um barco assim.<br />
Portanto, nem sempre a beleza tem essa incompatibilidade<br />
com o prático que apresentávamos no início<br />
desta exposição. Para a vida da alma, para o intercâmbio<br />
de relações entre as almas, para a formação da política<br />
e da cultura de um povo, o belo tem uma importância<br />
maior do que o prático. E quando há incompatibilidade,<br />
quase sempre o belo prevalece sobre o prático.<br />
Dou um exemplo de nossos dias: o Rio Tâmisa, em<br />
Londres, com aquela ponte levadiça. Aquilo é lindo, mas<br />
já não necessário, porque com os meios modernos poder-se-ia<br />
construir uma ponte alta que substituísse aquela.<br />
Por que se mantém a ponte atual? Porque é bela!<br />
Há, portanto, um prático de categoria inferior que encontramos<br />
ao olhar automóveis bem equipados. Mas há<br />
um prático mais elevado que toma em consideração que<br />
o homem é mais espírito do que matéria, e que as coisas<br />
do espírito têm muito mais importância do que as da matéria.<br />
Por isso, deve-se dar mais valor ao belo do que ao<br />
prático.<br />
v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de 4/10/1986)<br />
McKarri (CC.3.0)<br />
Stefan.lefnaer (CC.3.0)<br />
Ponte da Torre<br />
Londres, Inglaterra<br />
Proa do Bucentauro<br />
35
Apóstolo do pulchrum<br />
Revista Dr Plinio 203, Fevereiro <strong>2015</strong><br />
Luca Boldrini (CC 3.0)<br />
O belo e o prático - II<br />
Na sociedade deve haver uma hierarquia harmônica e<br />
proporcionada, a qual se manifesta, entre outras coisas, nos meios<br />
de transporte, que precisam ser belos e práticos. As carruagens<br />
existentes no Museu Nacional dos Coches, em Portugal, são<br />
exemplos característicos dessa verdade.<br />
T<br />
endo sido exposta, de modo muito sumário, a doutrina<br />
sobre o prático e o belo, é o momento de comentarmos<br />
algumas carruagens 1 que se encontram<br />
no famoso Museu Nacional dos Coches, em Lisboa.<br />
A parte nobre do corpo do homem deve<br />
aparecer mais que a inferior<br />
Logo à primeira vista notamos como o chão dessa car-<br />
32
uagem tem uma superfície menor do que a do teto; este<br />
se alarga, enquanto o chão é estreito. De maneira que<br />
se considerarmos como chão apenas a parte onde está a<br />
porta central, ele é minúsculo em comparação com o teto.<br />
A razão de ser disto é que, em tudo quanto o homem<br />
faz, há uma vantagem para ele em que a parte nobre de<br />
seu corpo apareça mais, e a parte inferior apareça muito<br />
menos.<br />
Temos, assim, uma arquitetura que, para visar o belo,<br />
é altamente prática porque, a partir da parte baixa dos<br />
cristais até em cima, o que se vê do homem é a parte nobre,<br />
em que ele aparece como um busto. Imaginem que<br />
este carro não tivesse na parte de baixo o quadro pintado<br />
na porta, nem esses ornatos, mas tudo fosse vidro até<br />
embaixo. Perderia enormemente.<br />
Porque ver pernas cruzadas, pés trançados que se agitam<br />
nervosamente, tudo isto é muito menos bonito do<br />
que ver os bustos elevados, a cabeça alta, do homem ou<br />
da dama, em atitude monumental, escultural.<br />
Harmonia entre as diversas<br />
partes da carruagem<br />
O carro tem duas partes bem diversas: uma é a que<br />
transporta, e outra a que é transportada. A parte que<br />
transporta são as rodas e a boleia onde senta o condutor.<br />
Atrás, entre as rodas grandes, há uma espécie de chãozinho<br />
para ficarem de pé os dois lacaios, de maneira que<br />
quando o carro para, imediatamente eles descem e vão<br />
correndo abrir as portas e pôr um banquinho<br />
embaixo — que já vem dentro do<br />
próprio carro —, para que o passageiro<br />
não seja obrigado a dar um pulo. Já pensaram como<br />
ficaria feio uma rainha idosa dando um pulo de lá para<br />
baixo?<br />
Os lacaios, vestidos em geral de damascos, sedas, com<br />
chapéus de veludo com penas, já sabem fazer uma cortesia<br />
muito grande com a porta aberta; e, não havendo um<br />
fidalgo para dar a mão à senhora que desce, o lacaio lhe<br />
oferece o braço. Ela desce de um modo elegante, e sai.<br />
Com o carro aberto pode-se olhar dentro e ver as sedas<br />
e os damascos nos assentos. Esta é a parte dos que<br />
são transportados.<br />
Notem a diferença de construção das rodas da frente<br />
com as de trás. As rodas da frente são pequenas e mais<br />
robustas. As rodas de trás são mais leves, altas e elegantes.<br />
A razão disso está ligada ao equilíbrio e conforto dos<br />
passageiros. Desde a boleia até a cabine, de ambos os lados,<br />
há umas peças que suspendem e mantêm a carroceria<br />
alta, garantindo o equilíbrio entre a parte de trás e<br />
a da frente enquanto o carro sobe ou desce, de maneira<br />
que os passageiros não sejam jogados para frente ou para<br />
trás. Sem dúvida, fica muito elegante. É uma série de<br />
providências práticas que são muito belas.<br />
Tuvalkin (CC 3.0)<br />
Victor Toniolo<br />
Tuvalkin (CC 3.0)<br />
Victor Toniolo<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
O prático disfarçado pela beleza<br />
Está posta uma situação digna de nota, em que o prático<br />
existe desde que se preste atenção, mas é preciso saber<br />
vê-lo, porque ele está de tal maneira disfarçado pela<br />
beleza, que quem observa não diz: “Oh, que sabedoria<br />
prática!”, mas exclama “Oh, que beleza!”<br />
As molas mantêm a cabine numa posição tal que ela<br />
não se inclina demais e, sobretudo, não toma solavancos<br />
do solo, o que poderia tornar mais desagradável o trajeto.<br />
Até mesmo a altura que vai do piso da carruagem ao<br />
calçamento está calculada para a perfeita comodidade<br />
das pessoas que se encontram no interior da cabine.<br />
Em geral, cabem seis passageiros nesse carro, dispostos<br />
frente a frente nas poltronas. Encostado à porta, há<br />
o banquinho utilizado quando as pessoas descem. Estas,<br />
conforme o caso, farão o percurso em silêncio e numa<br />
atitude de grande solenidade, ou conversando amavelmente.<br />
O povo tem o direito de vê-las numa dessas atitudes,<br />
e faz parte do dever delas apresentar esta beleza,<br />
pois as instituições políticas devem ornar os povos. O<br />
mais belo ornato de um povo é a sua instituição política.<br />
As carruagens e a hierarquia<br />
existente numa sociedade<br />
Analisemos agora outro veículo que é, sem dúvida, inferior<br />
ao anterior. Entretanto, não se pode dizer que seja<br />
um carro feio. É um carro bonito. Ele é lindo?<br />
Em comparação com as coisas de hoje, ele é lindo,<br />
mas se comparado com o primeiro carro, não; ele é apenas<br />
bonito.<br />
Pergunto: Então é uma baixa de nível fazer<br />
um carro assim?<br />
Não, porque toda sociedade, qualquer<br />
que seja a forma de governo, deve ter uma<br />
hierarquia. E é preciso que essa hierarquia<br />
seja harmônica; quer dizer, não haja um<br />
tombo entre o primeiro carro e depois apenas<br />
liteiras. Convém que essa hierarquia seja<br />
por degraus. Este não é um carro para rei,<br />
mas para príncipes.<br />
Por causa disto, ele é distinto, mas notem<br />
que a presença do ouro nele é muito menos<br />
abundante: o teto dele é muito menos ornado<br />
e de uma cor comum. As formas das janelas<br />
são muito menos fantasiosas e mais retilíneas,<br />
mas a justaposição de vermelho e ouro<br />
é bonita. Esse carro tem tudo o que o outro<br />
possui, mas de modo menos excelente.<br />
Essas carruagens são do museu dos coches<br />
da corte, mas se houvesse um museu dos coches<br />
da burguesia, outro dos coches do clero,<br />
etc., simplesmente pelos coches teríamos uma<br />
ideia da ordem hierárquica daquela sociedade.<br />
Até as liteiras bem mais modestas, que mães de famílias<br />
da classe popular tinham para se fazer transportar,<br />
eram interessantes. É a hierarquia social em que cada<br />
elo ama o elo de cima, e se faz respeitar pelo elo de baixo.<br />
E constitui uma boa organização social.<br />
Vale a pena, a esse respeito, ler os discursos famosos<br />
de Pio XII sobre a nobreza e o patriciado romanos, para<br />
se ter uma ideia do que se deve pensar a este respeito.<br />
Ósculo entre o belo e o prático<br />
Carlos Luis M C da Cruz(CC.3.0)<br />
Ricardo Tulio Gandelman (CC.3.0)<br />
Considerem um pouco o prédio do<br />
museu e notem como a sala dos coches<br />
é muito bem calculada. Vistas num conjunto,<br />
todas as coisas belas apresentam<br />
uma beleza maior do que a simples soma<br />
delas. E por isso é bonito ver os coches<br />
no seu conjunto. Então foi feito<br />
um salão bem alto, com uma grande galeria<br />
em cima, para que o conhecedor<br />
possa percorrer os vários lados e analisar<br />
os coches no seu conjunto.<br />
Para guardar bonitos coches tudo<br />
foi bem preparado. Quadros a óleo,<br />
provavelmente do tempo, representando<br />
cenas que se passaram neste ou<br />
naquele coche. O teto todo pintado e<br />
trabalhado. Tem-se vontade de haver<br />
ali no fundo, onde há uma cortina, um<br />
34
Aspectos do Museu Nacional dos<br />
Coches - Lisboa, Portugal<br />
Igor Zyx (CC.3.0)<br />
órgão para serem tocadas músicas extraordinárias,<br />
celebrando o passado de Portugal.<br />
Vamos terminar pelo lado “pedestre”: foi gasto<br />
muito com esses coches. Eu pergunto: Não é um<br />
elemento de grande valor para o prestígio atual<br />
de Portugal? Notem que é uma glória de Portugal.<br />
Em geral, as nações que foram colônias se revoltam<br />
contra as metrópoles, e rompem à mão armada.<br />
Portugal até hoje tem, em Angola e Moçambique,<br />
gente que está lutando para que essas nações<br />
voltem à união com Portugal. Eu lhes garanto que<br />
muitos angolanos, moçambicanos que visitaram<br />
esse museu, levando álbuns com visões de coisas<br />
destas para Angola e Moçambique, deram o sabor<br />
da cultura portuguesa, e concorreram para esta<br />
união de Portugal com os seus súditos. Nós, de<br />
origem portuguesa, nos alegramos em dizer isto<br />
aqui. Mais uma vez o belo e o prático se osculam,<br />
se encontram. Era preciso termos chegado a este<br />
século descabelado e sujo para que se imaginasse<br />
esse dissídio entre o belo e o prático. v<br />
(Extraído de conferência de 4/10/1986)<br />
1) As fotografias que ilustram esta seção não são as<br />
mesmas comentadas por Dr. Plinio.<br />
Luca Boldrini (CC.3.0)<br />
35
LuzeS Da civiLização criStã<br />
Revista Dr Plinio 204, Março <strong>2015</strong><br />
Esplendor do equilíbrio<br />
Interpretando falsamente o princípio de que a virtude<br />
está no meio, muitas pessoas chegam a defender os<br />
erros mais crassos, contrários à Doutrina Católica.<br />
Dr. Plinio elucida sapiencialmente esse tema, com<br />
base na razão e apresentando belíssimos exemplos.<br />
Catedral de<br />
São Basílio<br />
Moscou, Rússia<br />
São Francisco de Sales, grande Doutor da Igreja,<br />
chegou a identificar o equilíbrio com a virtude, dizendo<br />
que a virtude está no meio. Ora, o meio é<br />
exatamente o equilíbrio entre dois extremos, a considerar<br />
as coisas do ponto de vista geométrico. Assim, se a<br />
virtude está no meio, chegamos à conclusão de que a verdade<br />
se encontra no equilíbrio. Portanto, não há razão<br />
para julgar o equilíbrio como sendo algo insípido, estúpido;<br />
nele deve estar a verdadeira sabedoria.<br />
Noção de equilíbrio<br />
Petar Milošević<br />
Contudo, é preciso ver bem o que nas conotações da<br />
palavra “equilíbrio”, na linguagem brasileira, entra de<br />
fundamentalmente sem sabor, fazendo com que uma<br />
coisa tão eminente como o equilíbrio possa dar uma impressão<br />
tão desagradável.<br />
O equilíbrio, afinal, o que é? É uma excelência das<br />
coisas por onde elas — nos seus aspectos contrários — se<br />
compensam, se harmonizam, de maneira tal que se reúnem<br />
em torno de uma nota suprema, a qual abarca uma<br />
porção de notas colaterais. Poderíamos dizer, por exem-<br />
30
Nesta página e nas seguintes,<br />
aspectos do Castelo de<br />
Cheverny - França<br />
Sanchezn (CC 3.0)<br />
Catedral de Notre-Dame - Paris, França<br />
plo, que um edifício, com uma torre no centro e duas alas<br />
iguais de uma amplitude harmônica com o tamanho da<br />
torre — ou seja, quanto mais alta a torre, mais largas as<br />
alas —, tem equilíbrio. Essa ideia de equilíbrio abrange<br />
uma grande variedade de aspectos, e nós começamos a<br />
entrever através disso, de um modo mais vivencial, quanto<br />
o equilíbrio é uma coisa boa.<br />
Entretanto, no Brasil se chama homem equilibrado,<br />
não aquele que tem uma ideia ou princípio central, em<br />
torno do qual ele traça a circunferência de todos os aspectos<br />
possíveis, mas um simplório que não tem nenhuma<br />
ideia central; e sempre que é atormentado por dois<br />
extremos opostos, o equilibrado se coloca simplesmente<br />
no meio-termo, pensando que com isso resolveu as coisas.<br />
Por exemplo, entre um comunista e um fascista, o<br />
equilibrado seria um burguês. Entre um indivíduo que<br />
quer o divórcio e outro que deseja o amor livre, o equilibrado<br />
quereria um divórcio muito evoluído; entre um<br />
homem que é favor da alopatia e outro da homeopatia,<br />
o equilibrado gostaria de uma mistura sem sentido entre<br />
essas duas coisas incompatíveis. E daí para a frente.<br />
Pensamento seletivo, ordenativo, vigoroso<br />
Então, o verdadeiro equilíbrio não é uma mistura<br />
ininteligente de coisas incongruentes, mas a força de um<br />
pensamento central, com o leque das consequências que<br />
em todos os sentidos dele se podem tirar.<br />
Assim, toda beleza é necessariamente equilibrada.<br />
Mas há certas formas de pulcritude nas quais o que brilha<br />
à primeira vista não é o equilíbrio, mas é quase o desequilíbrio.<br />
Tomem a Catedral de São Basílio, em Moscou, por<br />
exemplo, com aquelas torres pequenas — encimadas por<br />
cúpulas em forma de cebola — que sobem com uma espécie<br />
de ascensão frenética para o céu: a nota daquilo é<br />
de um misticismo que parece não dar lugar ao bom senso<br />
e à razão. Em substância dá, mas parece que não. É uma<br />
nobre e pseudounilateralidade, no fundo da qual existe<br />
um equilíbrio.<br />
Encontraremos, assim, várias formas de beleza. Mas a<br />
forma de beleza francesa — sobretudo nos áureos tempos<br />
da França, na Catedral de Notre-Dame, por exemplo<br />
— é o equilíbrio.<br />
Lieven Smits (CC 3.0)<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Mas é um equilíbrio cheio de gosto, de sabor,<br />
de classe, de estilo — não o equilíbrio abobado<br />
entre duas opiniões das quais, tratando-<br />
-se irenisticamente, se obtém o meio-termo pro<br />
bono pacis 1 —, porque é um pensamento seletivo,<br />
ordenativo, forte, vigoroso, que agrupa em<br />
torno de si os respectivos elementos, e faz disso<br />
propriamente uma maravilha.<br />
Francisco Lecaros<br />
O equilíbrio francês cheio de sabores<br />
Temos um exemplo neste panorama que vemos<br />
aqui. Eu o considero de uma alta categoria. Onde<br />
está a beleza do quadro que contemplamos?<br />
Analisem elemento por elemento. A grama é<br />
de um verde-esmeralda que nos nossos trópicos<br />
não se encontra. No meio da grama, a coisa mais<br />
comum do mundo: um caminho inteiramente reto.<br />
Bem no fundo, um castelo.<br />
O que tem esse castelo propriamente de maravilhoso?<br />
Na fachada, não se vê uma estátua e quase<br />
nenhum ornato. Não se nota no castelo nada que deslumbre.<br />
Não é uma construção cara; custa preço alto apenas<br />
porque é grande, tem muito tijolo, material com que<br />
se faz qualquer casa. Entretanto, eu acho que seria um<br />
absurdo não reconhecer a isto a nota do equilíbrio, do<br />
maravilhoso. Mas qual é o maravilhoso? É o maravilhoso<br />
do equilíbrio, da coisa bem pensada, bem estudada, e<br />
feita com categoria: aqui está o esplendor do equilíbrio.<br />
E é o equilíbrio francês, cheio de toda espécie de sabores.<br />
Observem primeiramente o prédio, depois o resto.<br />
A graça dominando a força<br />
O prédio é composto de uma espécie de torreão central,<br />
que não é uma coisa bojudona, fazendo assim o papel<br />
de um tórax, de um abdômen, perto do qual o resto<br />
são duas asinhas. Pelo contrário: é uma coisa fininha, esguia,<br />
terminada, para acentuar a ideia do fino, por um<br />
teto pontudo. Mais ainda, de um lado e de outro há duas<br />
chaminés altas que realçam ainda mais a ideia do pontudo,<br />
porque elas terminam em ponta; e no alto uma espécie<br />
de campanariozinho — um mirantezinho, uma pequena<br />
cúpula — suportado por coluninhas. E essa ponta<br />
termina numa janela com uma ponta, tendo do lado duas<br />
pontas. Essa parte central do prédio é toda leve, esguia,<br />
fininha; mas está de tal maneira no centro, é tão<br />
bem pensada, que ela não faz o papel de raquítica, de nenhum<br />
modo, em relação aos dois extremos atarracadões<br />
e bojudos que se encontram num ponto e no outro.<br />
O governo, a linha rectrix do prédio está bem no centro.<br />
É a graça dominando a força, Jacó reprimindo Esaú,<br />
Manfred Heyde (CC 3.0)<br />
32
Benh LIEU SONG (CC 3.0)<br />
as coisas pesadas coordenadas em torno<br />
da leve.<br />
Não sei se percebem o alto pensamento,<br />
a afirmação da superioridade<br />
do espírito que há por detrás disso: é o<br />
triunfo da graça sobre a força, a faculdade<br />
ordenante da inteligência sobre as<br />
coisas da matéria.<br />
Alta categoria<br />
Entretanto este contraste entre a parte<br />
central e os dois extremos é equilibrado<br />
— porque todo contraste equilibrado<br />
deve possuir termos intermediários harmônicos<br />
— por dois corpos de edifícios<br />
iguais, nem tão esguios nem tão bojudos,<br />
mas que ficam entre uma coisa e outra,<br />
preparando a transição. As fachadas laterais<br />
são mais largas que a central, os cimos<br />
mais esparramados e não terminam<br />
em ponta, mas em cones truncados. No alto, há uma janela<br />
só no centro, e três janelas nas partes laterais.<br />
Usa-se nas gerações mais novas uma expressão um<br />
pouco popular, mas que às vezes tem uma certa força de<br />
significado: “Que coisa bem craniada!” Porque é preciso<br />
ter crânio para fazer isso.<br />
Esse castelo não foi feito por bobo, nem para bobo,<br />
porque é muito discreto. É como quem diz: “Se tu não<br />
me percebes, eu não te digo. Sou para quem tem quilate;<br />
diante de mim há mata-burro.” Ou então: “Se tu me<br />
julgas banal, eu te julgo trivial. Os eleitos, os seletos venham<br />
a mim. Eu sou feito para poucos.”<br />
Vemos que tudo isso é de alta categoria, realizado por<br />
cabeça superiormente orientada.<br />
O gênio francês<br />
Nos extremos, observamos a coisa curiosa. Esses corpos<br />
de edifícios são atarracadões; não tanto atarracados<br />
porque possuem três janelas — porque os laterais também<br />
têm —, mas devido ao espaço maior entre as janelas,<br />
e, sobretudo, pelo teto pesadão e grandão, que constitui<br />
uma tampona. Mas o muito pesadão horrifica o gênio<br />
francês, e por causa disso, no meio do pesadão há algumas<br />
coisas que o equilibram.<br />
Imaginem que pesadelo seria essa tampa grande se<br />
não houvesse essas janelinhas pequenas em cima, redondinhas!<br />
Como elas dão um sorriso que compensa a carranca<br />
dessa imensidade de ardósia do teto! Por detrás,<br />
as chaminezinhas e os campanariozinhos evitam que isto<br />
tome a aparência de um calcanhar achatando a ala do<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Ziegler175 (CC 3.0)<br />
Ziegler175 (CC 3.0)<br />
www.delcampe.net (CC 3.0)<br />
castelo. Apesar de tudo, isso é pesadão, a parte intermédia<br />
é meio leve, e o centro é levíssimo.<br />
A altivez do castelo está no que ele tem de mais gracioso.<br />
É como quem diz: “Forte eu sou, mas, sobretudo,<br />
eu me prezo de ser inteligente. Em última análise, eu sou<br />
completo, porque tenho tudo. Tenho muita força, mas<br />
tanta inteligência que, em mim, a inteligência domina a<br />
força. Eu sou equilibrado.”<br />
Isso é um equilíbrio de primeira categoria, é degustação,<br />
porque se degusta isso como um prato saboroso! Isso<br />
é turismo! Viajar pela Europa quer dizer ir percebendo<br />
essas coisas. Não basta ouvir o que um guia fala, mas<br />
é preciso ver o que o artista diz, o que o ambiente que<br />
inspirou esse artista tinha a sofreguidão de contemplar.<br />
Vemos aqui uma aplicação da noção de equilíbrio.<br />
Quando São Francisco de Sales afirma que no meio está<br />
a virtude, pensem nesse torreãozinho e encontrarão<br />
a explicação. Não é um equilíbrio<br />
sensaborão, mas sim cheio<br />
de sal; é o gênio francês.<br />
Esse gênio francês, muito<br />
discretamente, se faz sentir<br />
noutra coisa: é o quadro.<br />
O castelo é, talvez, um pouco<br />
discreto demais. Então,<br />
ele é realçado pela perspectiva:<br />
um grande parque. Ele é<br />
tão simples nas suas linhas e<br />
nos seus enfeites que, se houvesse<br />
canteiros com muitas<br />
flores e esguichos, ele ficava<br />
pobre; então, ele tem um simples,<br />
mas esplêndido tapete de esmeralda para lhe servir<br />
de apresentação, e arvoredos formando, um pouco longe<br />
dele, moldura. Dir-se-ia que ele sai de dentro de um<br />
mundo de delícias e de mistérios que essas árvores encobrem;<br />
ou a clareza e a lógica cercadas de imponderáveis.<br />
Outra forma de equilíbrio. Eu acho isso maravilhoso.<br />
Perceber essas maravilhas é um<br />
dos prazeres da vida<br />
Os caçadores! Notem a posição deles! Tenho a impressão<br />
de que é uma fotografia tirada espontaneamente,<br />
mas a pessoa que fotografou o fez tão bem, que se um<br />
encenador devesse colocar esses caçadores numa posição<br />
bonita, ele os poria assim. Querem uma coisa mais<br />
sem graça do que, por exemplo, todos andando na mesma<br />
linha? Estragaria o quadro. Ou um cavaleiro aqui,<br />
outro ali, outro lá, outro acolá,<br />
etc., seis manchas de vermelho,<br />
sem sentido... Aqui<br />
não. Há um misto de distância<br />
e proximidade, fantasia<br />
e ordem dentro da distribuição<br />
deles, que faz com que<br />
sejam deliciosos de ver.<br />
Observem, por outro lado,<br />
o estilo. Os caçadores<br />
estão parados, tranquilos,<br />
de uma tranquilidade pronta<br />
para a ação. E a ideia da<br />
efervescência da caçada<br />
não é dada pelos homens,<br />
34
Christophe.Finot (CC 3.0)<br />
mas pela cachorrada: um ferver de cães famintos, dispostos<br />
para correr. E os caçadores sólidos, mas elegantes —<br />
porque são homens elegantes —, montados em cavalos<br />
que não têm nada de espetacular, mas espetacularmente<br />
proporcionados ao conjunto. Com toda a distância psíquica<br />
2 , os homens se preparam para uma caçada que vai<br />
ser feroz, por vales e por montes, tocando cornetas etc.; a<br />
demarragem é equilibrada.<br />
Não é verdade que para degustar um dos prazeres da<br />
vida, que tornam a existência humana digna de ser cristãmente<br />
vivida, é preciso perceber essas coisas? Mas perceber<br />
com o rumo ao Céu.<br />
Reflexo da Igreja Católica<br />
Esses valores de espírito são assim porque essa civilização<br />
foi cristã. Porque há o precioso Sangue de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo, a graça, o Batismo, a Igreja Católica<br />
dentro disso. Isso é, no fundo, um reflexo da Igreja<br />
Católica. Se não fossem as virtudes cristãs, isto não teria<br />
sido assim.<br />
Então não é um puro gáudio dos olhos, nem da inteligência<br />
que se tira daí, mas acima disso é um gáudio superior<br />
do espírito, considerando uma ordem transcendente<br />
de coisas, onde existe um Deus pessoal, sobrenatural,<br />
que nós contemplaremos face a face, e no qual todas<br />
as formas desse equilíbrio se realizam de um modo<br />
tal que isto é uma imagem do Criador. Mas Deus é tão<br />
mais do que isto, que Ele até não é nem um pouco assim.<br />
Isto se encontra n’Ele de um modo insondável e incapaz<br />
de ser imaginado por qualquer criatura. Assim é<br />
a Terra como a bênção de Deus a fez, como a civilização<br />
cristã a modelou. Esta é a figura do Céu para o qual<br />
nós vamos.<br />
Temos aqui um termo religioso para uma meditação<br />
sobre uma coisa profana.<br />
Alguém me diria: “Dr. Plinio, falta um cruzeiro diante<br />
desse castelo para ele ter a nota cristã.” Eu responderia:<br />
Em todos os lugares onde se queira colocar um cruzeiro,<br />
eu exulto. Mas dizer que a coisa fica falha sem cruzeiro,<br />
não concordo. O espírito católico está aí até sem o cruzeiro.<br />
Esse castelo é católico em si; tal equilíbrio sem a<br />
graça não se consegue. É uma tradição constituída por<br />
homens que em certo momento receberam a graça e tiveram<br />
esses valores. Aqui está o equilíbrio católico. v<br />
(Extraído de conferência<br />
de 12/5/1969)<br />
1) Do latim: para o bem da paz.<br />
2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma<br />
fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade<br />
de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.<br />
35
Apóstolo do pulchrum<br />
Revista Dr Plinio 205, Abril <strong>2015</strong><br />
De requinte em requinte<br />
Sendo um estilo artístico expressão da mentalidade de<br />
um povo ou de uma área de civilização em determinada<br />
época, pode ele sofrer variações, ser copiado ou substituído<br />
por outro? Dr. Plinio aborda estas e outras interessantes<br />
questões em torno do tema “arte”.<br />
Se houvesse uma arte moderna, contemporânea,<br />
boa, teria propósito restaurar as coisas coloniais?<br />
Não é legítimo que, artisticamente falando, as coisas<br />
evoluam e que cada época tenha o estilo que lhe é próprio?<br />
Não é isso uma coisa adequada, conveniente? Nós<br />
não vemos cada país ter seu estilo próprio? Não notamos<br />
como, na civilização ocidental, o gótico foi substituído pela<br />
arte da Renascença e depois por outras formas artísticas<br />
sucessivas? Então, se cada época criou um estilo próprio,<br />
por que haveremos de rejeitar um estilo suposto bom de<br />
nossa própria época? Isso pareceria ser uma coisa antinatural,<br />
um conservantismo levado ao excesso.<br />
Distinção entre os estilos e os seus matizes<br />
Imaginemos uma construtora que fizesse casas de estilo<br />
antigo, bonitas, confortáveis, porém, que se prestassem<br />
à seguinte crítica de caráter artístico e não funcional:<br />
são cópias, em nossos dias, de um estilo que não é de<br />
hoje. Portanto, um estilo morto. Ora, copiar é intrinsecamente<br />
uma falta de originalidade. É até uma coisa artificial<br />
copiar algo que morreu. E nesse sentido, essa ação<br />
conservadora é um mal.<br />
Parece-me que é preciso fazer uma distinção entre o estilo<br />
e os matizes dentro do mesmo estilo. Quer dizer, o estilo pode<br />
continuar igual a si mesmo, passando por matizes, por variantes.<br />
Mas ele é sempre o mesmo estilo. Então, a pergunta<br />
se desdobra: Primeiro, o estilo deve variar? Em segundo lugar,<br />
ele deve mudar em seus matizes internos? Em terceiro<br />
lugar, um povo, uma civilização devem variar de estilo?<br />
Seria mais interessante tratar da questão da variação<br />
de estilo para depois abordar a mudança de matizes, que<br />
é um assunto menos importante e que se resolve dentro<br />
da questão da variação de estilo.<br />
Todo estilo é o produto de um estado de espírito. E eu<br />
chamo estado de espírito um conjunto de verdades fundamentais<br />
ou de princípios — às vezes não verdadeiros<br />
—, a partir dos quais uma determinada civilização vê o<br />
A Grande Esfinge<br />
e a pirâmide de<br />
Quéops - Planalto<br />
de Guizé, Egito<br />
Hedwig Storch (CC 3.0)
homem e o universo, e o estado temperamental com que<br />
a civilização adota essa vivência.<br />
Mentalidade e estilo<br />
Tomemos, por exemplo, o estilo egípcio. É evidente<br />
que ele comporta uns tantos princípios que não são puramente<br />
artísticos, mas filosóficos; e filosóficos do mais alto<br />
porte porque metafísicos.<br />
É evidente também que, a partir desses princípios metafísicos,<br />
os egípcios elaboraram uma visão do universo,<br />
de toda a realidade material, e modelaram essa visão de<br />
acordo com aqueles princípios metafísicos.<br />
As múmias, os desenhos, as esculturas são compostos<br />
de figuras hieráticas, mas muitas delas não o são: representam<br />
o egípcio na vida quotidiana. E há qualquer coisa<br />
de uma placidez profunda, meditativa e ativa na coisa<br />
egípcia, incubada de mistério, que constitui propriamente<br />
a mentalidade do egípcio. Ora, o estilo egípcio foi uma<br />
expressão dessa mentalidade.<br />
E o estilo medieval, o gótico, foi igualmente uma expressão<br />
da mentalidade católica.<br />
Então, se o estilo é a consequência necessária de uma<br />
mentalidade, a questão sobre se o estilo deve ser mudado importa<br />
em perguntar se precisa ser mudada a mentalidade.<br />
Dennis Jarvis (CC 3.0)<br />
Mudança de matizes<br />
Se fôssemos apelar para o exemplo da História, seríamos<br />
levados a dizer que todos os grandes povos que surgem<br />
e definem a sua mentalidade, de certo modo, constituem<br />
um estilo e não saem mais dele, e esse estilo não<br />
decai, não degenera. Ele continua a produzir obras boas<br />
e dignas indefinidamente, até que um fator extrínseco<br />
derruba uma determinada ordem de coisas.<br />
Por exemplo, o estilo chinês nasceu desde quando? Com<br />
variantes, é evidente, formou-se ao longo de quantos séculos?<br />
Nós não podemos dizer que o estilo chinês esteja moribundo.<br />
Se os ocidentais não tivessem entrado na China e<br />
derrubado certas barreiras culturais, não tivessem feito imposições,<br />
o estilo chinês teria continuado indefinidamente.<br />
E as obras chinesas elaboradas, mesmo no século XIX, de<br />
modo ainda artesanal não eram dominadas pela preocupação<br />
de produzir para trazer dinheiro, e eram de muito boa<br />
cultura e de muito bom quilate. Não se pode falar de uma arte<br />
chinesa de decadência. Isso se pode dizer do Egito, de Roma,<br />
da Grécia, da Pérsia, dos assírios, enfim de todos os povos<br />
antigos. Então, a conclusão seria a seguinte: é preciso não<br />
mudar de mentalidade e, portanto, não variar de estilo. Um<br />
povo elabora esse estilo, fica com este estilo até o fim.<br />
Contudo, toda mentalidade, mesmo quando continua<br />
igual a si mesma, muda de matizes. Um homem, confor-<br />
Monumentos chineses<br />
Dennis Jarvis (CC 3.0)<br />
© CEphoto, Uwe Aranas (CC 3.0)<br />
33
Apóstolo do pulchrum<br />
Victor Toniolo<br />
me o estado de espírito, o dia, as circunstâncias, varia de<br />
matizes. Então, poder-se-ia dizer que um estilo pode ser<br />
matizado, mas não propriamente mudar. Matizar-se sim,<br />
mudar fundamentalmente não.<br />
Essa conclusão de que, sendo um estilo o produto de<br />
uma mentalidade que não deve variar nunca, consequentemente<br />
ele jamais deve mudar dentro de um mesmo povo,<br />
por mais antipática que seja a certos feitios temperamentais,<br />
e por mais evidente que possa parecer a certos<br />
espíritos lógicos, de fato não me parece inteiramente<br />
acertada, e tenho reservas sérias quanto a ela.<br />
O progresso só surgiu com a<br />
Civilização Católica<br />
As reservas procedem do seguinte: essa imobilidade<br />
dos estilos pagãos, dos estilos antigos, resulta, é verdade,<br />
de uma mentalidade muito definida, amadurecida. Mas há<br />
outro aspecto a ser considerado. Todos os povos antigos<br />
estavam sujeitos a uma lei, que poderíamos chamar “lei<br />
da limitação do progresso”. Quer dizer, todos eles chegavam<br />
a certo auge, até relativamente depressa, mas depois<br />
paravam e não progrediam mais. E não se pode dizer que<br />
um povo antigo tenha progredido mais do que outro, por<br />
exemplo, os romanos em relação aos egípcios. Aqueles<br />
eram muito superiores aos egípcios em muitas coisas. Mas<br />
em outras os egípcios eram muito superiores aos romanos.<br />
Não havia o que nós chamamos de progresso, quer dizer,<br />
um povo que aparece, incorpora a si todas as coisas boas<br />
de uma civilização antecedente e vai indo para a frente.<br />
O progresso propriamente dito apareceu com a Civilização<br />
Católica. Foi uma mobilidade, uma elasticidade,<br />
uma vitalidade que a sociedade humana tomou batizando-<br />
-se, e que lhe deu exatamente a possibilidade de modificação<br />
que nós notamos na melhor parte da História católica.<br />
Igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora<br />
do Carmo - Mariana, Minas Gerais, Brasil<br />
Interior da Catedral de Santiago de Compostela, Espanha<br />
Os estilos devem suceder-se<br />
à maneira de requinte<br />
A elaboração, a partir do estilo romano, do românico<br />
foi uma mudança. Representou uma mudança de caráter<br />
contrarrevolucionário — se podemos usar assim esta palavra<br />
— porque o estilo românico é muito mais sacral, mais<br />
hierárquico e mais simpático à alma verdadeiramente católica,<br />
do que o estilo romano. Mais ainda: do românico<br />
se destilou, pelo bafejo da Igreja, o gótico, estilo já então<br />
profundamente diferente do românico. De maneira que a<br />
vitalidade da Igreja produziu uma mudança de estilo.<br />
Por conseguinte, deveríamos dizer que não se devem<br />
copiar os estilos, e sim modificá-los.<br />
É bem verdade, portanto, que os estilos devem suceder-<br />
-se uns aos outros. Mas esse suceder-se não pode ser à maneira<br />
do estilo moderno em relação ao colonial, ou outro<br />
estilo, com uma ruptura e uma aceitação brutal do contrário,<br />
e nem pode ser uma mera diversificação. Porque também<br />
a diferença de estilo não é só para variar, mas deve<br />
ser um particular progresso no requintar o que um estilo,<br />
a mentalidade de um povo têm de bom; fazem-se coisas<br />
que são diferentes, mas à maneira de requinte, como o gótico<br />
é o requinte do românico.<br />
34
Pom² (CC 3.0)<br />
José Luis Filpo Cabana (CC 3.0)<br />
Coro da Catedral Sainte-Cecile<br />
Albi, França<br />
© CEphoto, Uwe Aranas (CC 3.0)<br />
Fachada da Catedral de Notre-Dame<br />
de Amiens, França<br />
Catedral de Santo Egídio<br />
Cheadle, Inglaterra<br />
Portanto, a sucessão deve ser feita de requinte<br />
em requinte, que é a linha de progresso e de variedade<br />
do estilo, posta em algo fundamentalmente<br />
conservador no essencial, enquanto é no acessório<br />
muito livre.<br />
A resposta à pergunta inicial é a seguinte: ficar<br />
no mero colonial, em princípio e em condições normais,<br />
seria um mal. Deixá-lo para fazer um estilo<br />
simplesmente diferente, seria igualmente um mal,<br />
porque teria sido necessário requintá-lo. Isso me<br />
parece inteiramente lógico.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 24/5/1967)<br />
Gustavo Kralj<br />
35
Revista Dr Plinio<br />
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Revista Dr Plinio 206, Maio <strong>2015</strong><br />
O órgão, o vitral, a ogiva<br />
Três luzes emanadas da Civilização Cristã que,<br />
sendo representações sensíveis de Deus, elevam as<br />
almas a uma atmosfera celestial.<br />
Oórgão tem esta coisa maravilhosa: é uma “penumbra<br />
sonora”, feita exatamente de som e silêncio.<br />
Porque, ainda que soe com todos os registros,<br />
o órgão tem dentro de si qualquer coisa de aveludado<br />
e silencioso, que é um dos seus melhores charmes, e<br />
que mais casam com a penumbra visível da Igreja. Assim<br />
é o misto de silêncio e som que há no órgão.<br />
O instrumento de todas as inocências<br />
Entretanto, o órgão quase não comporta a descontinuidade<br />
sonora total. Aquele som vai e vai... Sempre mantendo<br />
uma harmoniosa ligação com os sons anteriores.<br />
A pessoa que, a partir de um instrumento rudimentar,<br />
deu ao órgão as características que conhecemos hoje, poderia<br />
ser chamada de “profeta” em matéria de música.<br />
A meu ver, o órgão tem isto de fabuloso: há nele registros<br />
que remetem diretamente para o mais admirável da<br />
inocência e que fazem dele, quando bem tocado, o instrumento<br />
de todas as inocências.<br />
Se fôssemos falar propriamente da inocência na sua<br />
maior abertura de asas, deveríamos imaginá-la como um<br />
órgão. Ela transforma a alma do homem num instrumento<br />
capaz de tocar todas as músicas, à maneira do órgão.<br />
Assim, enquanto não conseguirmos fazer sair das profundidades<br />
de nosso ser, não a catedral engloutie 1 , mas o<br />
órgão englouti, não teremos feito nada.<br />
Toda alma tem, com variantes, um “órgão metafísico”<br />
para tocar em função do universo, e a descoberta desse<br />
“órgão” é o fim da nossa vida. Quando descobrirmos isso,<br />
estaremos prontos para o Céu. Isso se refere, inclusive,<br />
ao escopo da vida de piedade.<br />
Representações sensíveis de Deus<br />
A Santa Igreja tem algo por onde ela relaciona os homens<br />
à maneira dos tubos de um órgão. Por isso, a Igreja<br />
Católica, bem constituída e vista na sua inteira normalidade,<br />
pode ser comparada a um imenso órgão ou a um<br />
imenso vitral, porque o vitral faz com as cores o que o órgão<br />
realiza com os sons; é o mesmo princípio aplicado<br />
em matéria cromática.<br />
Trata-se, portanto, de formar uma visão da ordem<br />
temporal sacral, dentro da ordem do universo na qual<br />
o homem se encaixa, iluminado por este lumen uno da<br />
Igreja, que ela soube exprimir através do órgão e do vitral,<br />
mas que é um estado de alma, uma supravirtude,<br />
uma superposição de temperamento, que eu tenho a impressão<br />
de que é uma das graças, das mais genuínas, do<br />
Espírito Santo.<br />
Em Pentecostes uma chama baixou e depois se dividiu<br />
em várias línguas de fogo. Assim também, o unum dessa<br />
graça estaria nessa chama originária, que depois se transformou<br />
nos vários tubos de um órgão ou nas várias cores<br />
de um vitral. É a regra da reversibilidade entre unidade<br />
e variedade que está aqui refletida. Variedade levada até<br />
quase ao infinito, partindo de uma unidade que se desdobra<br />
em guirlandas sem se depauperar em nada.<br />
E, a bem dizer, com uma semelhança estupenda com<br />
Deus, que sem Se empobrecer e sem Se cansar em nada,<br />
no fulgor de sua glória, cria. Também esse unum não se<br />
exaure, não empobrece, até se alegra em emitir de dentro<br />
de si as mais valiosas variedades, sem sofrer o menor<br />
abalo. Quase o motor imóvel de tudo o que ele mesmo<br />
pôs em movimento.<br />
Este é o unum do órgão, que é o mesmo do vitral: são<br />
representações sensíveis de Deus, motor imóvel.<br />
O órgão tem uma forma de beleza própria à polifonia,<br />
diversa da beleza austera do cantochão. Entretanto,<br />
o canto gregoriano e o órgão não se contradizem, ambos<br />
são sublimes. Enquanto o gregoriano afirma: “vaidade<br />
das vaidades, tudo não é senão vaidade” 2 , o órgão parece<br />
dizer: “harmonia das harmonias, tudo não é senão<br />
harmonia”.<br />
32
Catedral de Estrasburgo,<br />
França<br />
Claude Truong-Ngoc (CC 3.0)<br />
Edelseider (CC 3.0)<br />
Tango7174 (CC 3.0)<br />
Órgão da Catedral Saint-Gatien<br />
Tours, França<br />
Órgão da Igreja de São Paulo<br />
Estrasburgo, França<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Ddalbiez (CC 3.0)<br />
Órgão da Catedral Notre-Dame<br />
de Bayonne, França<br />
José Luiz Bernardes Ribeiro (CC 3.0)<br />
Acima, coro e órgão da Catedral<br />
de Toledo, Espanha<br />
Órgão da Catedral de Santo Estêvão<br />
Passau, Alemanha<br />
Tobi 87 (CC 3.0)<br />
Por outro lado, vejo no órgão o mesmo que na ogiva e<br />
em outras coisas da Idade Média: uma ordem magnífica.<br />
O sublime, o paradisíaco e o alcandorado<br />
Nem tudo o que é humano, nesta Terra, é sublime,<br />
mas o órgão seleciona, dentre os sons humanos e terrenos,<br />
os sublimes, procurando elevá-los a um estado paradisíaco.<br />
O estilo gótico, por sua vez, busca o mesmo em<br />
matéria de arquitetura.<br />
Poderíamos dizer que metade do espaço ocupado pelo<br />
gótico e pelo órgão é sublime, e a outra metade é paradisíaca.<br />
Na ponta transparece o alcandorado e a esperança<br />
do Reino de Maria.<br />
Já a coexistência tão ordenada desses três valores —<br />
o sublime, o paradisíaco e o alcandorado — dá uma plenitude<br />
muito repousante e que prepara para o alcândor.<br />
O gótico é uma espécie de santa preparação para chegar<br />
ao alcândor. Reúne tudo quanto nossa natureza é capaz<br />
de pegar e vai ordenando para perceber a ponta do sublime,<br />
e é nisto que me parece estar o mais belo do gótico.<br />
Vemos, assim, o equilíbrio com que devemos pensar<br />
no alcândor do Reino de Maria, que não desprezará nem<br />
o sublime nem o paradisíaco. Mas assim como Nosso Senhor<br />
subiu, caminhando com seus pés divinos, até o alto<br />
do Monte das Oliveiras para ali operar sua Ascensão<br />
aos céus 3 , na qual já não necessitaria empregar a força de<br />
seus membros, também no Reino de Maria se ordenarão<br />
34
Mbzt (CC 3.0)<br />
Hans-Jörg Gemeinholzer (CC 3.0)<br />
Órgão da Catedral Notre-Dame<br />
de Paris, França<br />
Ao lado: Órgão da Catedral<br />
de Córdoba, Espanha<br />
Ao fundo: Igreja de Saint-Eustache<br />
Paris, França<br />
David Iliff (CC 3.0)<br />
esses valores sublimes e paradisíacos para, a partir dessa<br />
elevação, ascender-se ao alcandorado.<br />
Lembro-me da primeira vez em que eu vi uma ogiva<br />
em estilo gótico flamboyant. Exclamei: “Ah, que maravilha!<br />
Era o que faltava e que eu não tinha talento para<br />
imaginar. Que coisa estupenda, maravilhosa!”<br />
Depois ouvi alguém criticá-la, mostrando o que ali havia<br />
de transição revolucionária para a Renascença. Pensei:<br />
“Lá vem o famoso mau espírito demolidor, a tal acusação<br />
seca e destruidora do bom espírito.” Mas depois<br />
compreendi que a pessoa tinha razão, pois no modo daquela<br />
chama se agitar já entrava algo da Renascença.<br />
Porém, em si, o princípio de que a ogiva tão bonita floresceria<br />
numa ordem que a transcenderia, me encantou.<br />
Era algo que subia para o alcandorado, cujo voo a pré-<br />
-Renascença desfigurava.<br />
v<br />
(Extraído de conferências<br />
de 6/4/1978 e 16/11/1979)<br />
1) Do francês: submersa. Referência a uma lenda bretã segundo<br />
a qual os sinos de uma catedral submersa no mar faziam<br />
ouvir seu bimbalhar, em certas ocasiões, trazendo à tona a<br />
memória do magnífico templo e da belíssima cidade onde<br />
ele fora erigido.<br />
2) Cf. Ecl 1, 2.<br />
3) Cf. At 1, 12.<br />
35
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Revista Dr Plinio 207, Junho <strong>2015</strong><br />
Roma sparita<br />
A Roma dos Papas não tinha a monotonia das<br />
grandes cidades modernas, mas possuía muita<br />
fisionomia, porque as pessoas, ao fazerem suas<br />
residências, comunicavam-lhes seu caráter, seu<br />
modo de ser, com o pitoresco que causa o sorriso.<br />
V<br />
ou expor o que era a Roma papal, para termos<br />
um pouco a ideia de que tipo de cidade se tratava,<br />
e depois iremos considerar algumas fotografias<br />
selecionadas de um álbum chamado “Roma sparita”,<br />
ou seja, “Roma desaparecida”. Quer dizer, a Roma<br />
papal que foi demolida pelas reformas nela introduzidas<br />
pela Casa de Sabóia, a qual unificou a Península Italiana<br />
e se tornou a única dominadora da Cidade de Roma, onde<br />
estabeleceu a sua capital, transformando-a, de cidade<br />
antiga que era, numa grande cidade do tipo moderno.<br />
Cidade não planejada, com muita fisionomia<br />
O que vem a ser a Roma do tempo dos Papas? É, ao<br />
mesmo tempo, uma Roma medieval com todas as características<br />
da vida medieval, um tanto reformada no tempo<br />
do período do Ancien Régime 1 , e uma cidade eminentemente<br />
eclesiástica.<br />
Quando falo de uma cidade medieval, o que eu quero<br />
indicar? Era uma cidade raras vezes planejada de antemão.<br />
Por exemplo, se tomarmos, em São Paulo, o bairro<br />
Higienópolis, perceberemos que o traçado das ruas não<br />
foi espontâneo: as casas não foram se acrescentando umas<br />
às outras normalmente, mas houve uma empresa que planejou<br />
e fez o loteamento do bairro, devido ao qual todas<br />
as ruas são em linha reta e se cortam em ângulo reto, fazendo<br />
do bairro uma espécie de tabuleiro de xadrez. O<br />
mesmo se poderia dizer do bairro do Pacaembu, que foi<br />
urbanizado por uma grande empresa norte-americana.<br />
Na época em que o Pacaembu foi urbanizado, o urbanismo<br />
tipo Higienópolis estava fora de moda. Tinha-se<br />
considerado que as avenidas retilíneas, cortando-se em<br />
ângulo reto e formando quarteirões quadrados, eram monótonas.<br />
Então fizeram zigue-zagues e curvas no Pacaembu,<br />
que existem também em outros bairros de São Paulo:<br />
Pinheiros, Jardim América, Jardim Europa, em que não<br />
se usa mais a linha reta, mas as grandes curvas macias.<br />
Porém o que nos interessa no momento é o fato de<br />
que as ruas não foram feitas por cada morador, que colocou<br />
sua casa onde queria, portanto, um pouco mais recuada<br />
da rua, ou um pouco mais para a frente, e dando<br />
à via pública um gráfico todo casual, fortuito; aquilo foi<br />
planejado de antemão.<br />
Também as construções eram menos planejadas do<br />
que se tornaram depois. Uma família construía uma casa;<br />
nascia um filho, mandava construir um quarto no teto<br />
da residência; nascia outro filho, colocava dois quartos.<br />
De repente um velho, que morava num quarto<br />
da casa, começava a ter reumatismo: abria-<br />
-se uma janela no lugar onde devia entrar sol<br />
para o ancião se aquecer. Não se incomodavam<br />
em saber se a casa ficava simétrica ou assimétrica,<br />
bonita ou feia. Era uma necessidade<br />
do velho para não ficar reumático. O idoso<br />
ficava muito pouco consolado com a ideia de<br />
sentir seu reumatismo, para evitar que quem<br />
passasse fora achasse feia a janela que ele ia<br />
abrir. Ele queria o sol sobre a perna ou o braço<br />
doente. Quer dizer, circunstâncias imprevistas<br />
foram formando essas cidades.<br />
Por causa disso, elas não tiveram a monotonia<br />
das grandes cidades modernas e possuíam<br />
muita fisionomia: porque<br />
as pessoas que iam fazendo<br />
essas construções imprevistas<br />
comunicavam seu<br />
caráter, seu modo de ser,<br />
sua fisionomia às casas que<br />
estavam sendo construídas.<br />
De onde Roma, como todas<br />
as cidades desse tipo,<br />
era uma cidade com fisionomia.<br />
A esse dote de ter fisionomia,<br />
nós poderíamos cha-<br />
32
mar, em certo sentido, de pitoresco. O pitoresco é a fisionomia<br />
quando, pelo imprevisto, ela faz sorrir um pouco.<br />
O Panteon e o túmulo de Adriano<br />
Há outra coisa que se acrescentava à Roma: ela era<br />
uma cidade velhíssima, nascida mitologicamente de Rômulo<br />
e Remo. Portanto, uns sete, oito séculos antes de Jesus<br />
Cristo. E com aquele senso de conservação existente<br />
na Europa, do qual nós, brasileiros, não temos uma ideia.<br />
Até hoje certos prédios do tempo dos remotos romanos<br />
são utilizados para uso comum. O Panteon de Roma era o<br />
templo onde adoravam todos os deuses gentílicos antigos.<br />
E, para a Roma de antigamente, era uma igreja bem grande.<br />
O Panteon esteve franqueado ao culto pagão até o momento<br />
em que Constantino mandou fechá-lo. Quando o<br />
Imperador deu a ordem de fechar, não pensem que, à moderna,<br />
derrubaram o Panteon; ele mandou instalar uma<br />
igreja católica ali. E o Panteon é hoje uma paróquia. As<br />
pessoas se casam, são batizadas, confessam-se lá, e a igreja<br />
funciona como qualquer outra. Ali, há séculos, Júpiter era<br />
adorado, e agora é adorado Nosso Senhor Jesus Cristo. E<br />
o prédio ainda se conserva.<br />
A sepultura do Imperador Adriano foi aproveitada: é<br />
uma torre cilíndrica de pouca altura e imenso diâmetro.<br />
Foi utilizada, durante a Idade Média, para fortaleza. Depois,<br />
uma parte dessa fortaleza foi aproveitada para palácio.<br />
O túmulo de Adriano não existe mais. Mas podem-<br />
-se visitar as muralhas da fortaleza e o palácio, que agora<br />
é museu. De maneira que houve a seguinte mutação:<br />
de sepultura de Adriano para fortaleza, de fortaleza para<br />
palácio, de palácio a museu.<br />
Em Roma havia mais de 400 igrejas<br />
Vejamos, agora, as fotografias.<br />
Eis um pórtico, um arco numa rua no gueto de Roma.<br />
A rua existe para uma casa que está em cima.<br />
Ali, uma rua popular, com a roupa lavada, estendida<br />
e gotejando em cima de quem passa; duas velhas comentam<br />
qualquer coisa. É a pequena vida caseira que sai<br />
da casa e se espraia pela rua afora. Reconheçamos que é<br />
bem diferente da Avenida Paulista 2 .<br />
Observem um recanto da velha Roma. Uma casa,<br />
o alinhamento caprichoso da rua, uma bonita torre no<br />
meio de casarões velhos, que eu quase chamaria leprosos.<br />
Um dossel sobre a imagem talvez de Nossa Senhora<br />
com o Menino Jesus. Nichos com imagens de Santos assim<br />
eram frequentes na Roma daquele tempo.<br />
Vejam a escadaria que perfura uma casa a qual já<br />
foi construída assim. A rua é uma escadaria que passa<br />
no meio da velha casa, sem eira nem beira, tem um bonito<br />
balcão de alguma família nobre ou rica que mora<br />
aqui. E isso é uma coisa muito comum até hoje na Itália.<br />
Metade da casa é cortiço, a outra metade é um palácio<br />
de nobres.<br />
Duas irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo, com<br />
seus lindos chapéus bretões, andando numa espécie de<br />
praça de terra, sem calçamento, da velha Roma, com uma<br />
magnífica palmeira se espraiando suavemente no clima<br />
romano. Uma nobre torre antiga e mais adiante outra torre.<br />
Roma era uma cidade com mais de 400 igrejas.<br />
Cidade das fontes<br />
Fotos: Reprodução<br />
Esse terreno foi rebaixado para a construção das casas.<br />
Mas aqui, por qualquer razão, o dono não quis que<br />
rebaixasse e ficou alto. E permaneceu a árvore que se<br />
eleva de modo pitoresco aqui. Um muro, uma água parada<br />
e uma bela igreja ao fundo.<br />
Pormenor da vida do tempo: um cachorro, que procura<br />
comida pela rua. É um cão sem dono, na infeliz situação<br />
dos cachorros sem dono.<br />
Uma senhora conduzindo o filho para passear. A<br />
criança está vendo o cachorro, mas ela está tocando uma<br />
espécie de corneta para ver o que o cão faz. Manifestação<br />
musical do gênero italiano. O cachorro é utilitário e<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
está se preocupando exclusivamente com a comida. Não<br />
liga para nada.<br />
Aqui o reboco da casa caiu, mas ela pode durar mais<br />
mil anos. Não pensem que a escada é para escorar a casa;<br />
está encostada do lado de fora para qualquer coisa.<br />
Um cavalo bem lustroso e bonito, uma porta com um nobre<br />
arco, um pátio cimentado de pedras, mas sem qualquer<br />
regularidade.<br />
Outra viela romana. Nas cidades medievais as ruas<br />
eram muito estreitas para caber tudo dentro das muralhas.<br />
A iluminação pública já havia começado. Aqui há<br />
um poste com iluminação a gás, que era o grande progresso<br />
do momento. Também significava progresso a placa<br />
com o nome da rua.<br />
Está chovendo, duas senhoras passam abrigadas num<br />
guarda-chuva insuficiente, e aqui há uma comerciante<br />
oferecendo algum produto. Notem a desigualdade<br />
do solo, como é tudo feito mais ou menos ao acaso.<br />
Isso não se vê de jeito nenhum em rua moderna:<br />
um arco comunicando uma casa com a outra. Eu não<br />
sei por que se condena isso, que é uma coisa que pode<br />
prestar muito serviço.<br />
Uma bela torre. Está mal cuidada e velha, mas é<br />
nobre como uma velha marquesa que conserva sua<br />
nobreza, apesar de todas as devastações do tempo e<br />
do dinheiro.<br />
Numa praça pública, um homem dança, e outro<br />
não presta atenção na dança. Esse aqui parece um<br />
aleijado apoiado num bordão, e vai andando com<br />
uma sacola e uma caixa de música. Essas cidades<br />
eram todas muito musicais. Cantava-se, tocava-se<br />
violino, dançava-se mais ou menos em todos os lugares<br />
e ouvia-se música sair de todas as janelas, com a<br />
voz bonita e o senso melódico tão frequente na Itália.<br />
Cena pitoresca mais uma vez. O burrico puxado<br />
pelo homem, carregado, que vai devagarzinho pela cidade.<br />
Provavelmente um vendedor ambulante.<br />
Aqui, uma como que pequena coluna, e dali brota<br />
água. Roma é a cidade das fontes, em geral com água<br />
muito límpida, muito boa.<br />
Significado da palavra ”pitoresco”<br />
Uma torre que foi fortaleza durante a Idade Média.<br />
Tudo caiu, mas ao lado foi construído um pitoresco jardim<br />
suspenso. Um dos pitorescos em Roma são os terraços<br />
como esse, onde se colocam guarda-sóis grandes e<br />
há restaurantes no local. Um homem toca violino para os<br />
que comem e bebem, e ficam olhando o movimento da<br />
rua, onde se vê um monge dominicano atravessando-a. A<br />
cidade dos Papas era a cidade dos frades.<br />
34
Esse menino tem um lado pitoresco. É um menino<br />
de rua que não teve nenhuma educação e, portanto, está<br />
deitado na carroça como estaria em sua casa. Se ele<br />
estivesse de bruços na cama, tentando pegar um rato no<br />
quarto dele, sua atitude não seria diferente. Apesar disso,<br />
o gesto todo dele não deixa de ter certa harmonia e<br />
muita naturalidade. Não é um gesto feio. Tem certa harmonia<br />
de posição e de atitude, e a naturalidade de uma<br />
pessoa que se sente completamente à vontade na cidade.<br />
É a cidade dele, feita para ele, na qual ele está em casa<br />
como em sua residência particular.<br />
Esse inteiro laissez faire 3 faz parte do pitoresco da atitude<br />
do menino. Alguém diria que isso não deveria ser<br />
assim, e que ele não é um menino educado. Não é verdade.<br />
A educação tem vários graus. Ele possui essa forma<br />
principal e mínima de educação, que é a virtude. Ele<br />
está composto, direito, porque é um menino que teve<br />
uma educação pura. A pureza é o principal da educação,<br />
e não as maneiras. Maneiras ele não tem, mas possui a<br />
compostura do menino direito. É o essencial.<br />
A ideia que eu tenho de pitoresco é imaginar morando<br />
ali gente que são os pais e tios desse menino e desse<br />
outro que está atrás. Talvez esse casal e esses dois homens<br />
sejam moradores aqui. E gente do povinho, inteligente<br />
como é habitualmente o italiano, gente que mora<br />
nos casebres, mas que se pôs numa situação muito pitoresca:<br />
tendo sempre diante dos olhos esse templo, a torre<br />
e o Tibre milenários, e que presencia tudo isso como de<br />
um terraço. O cenário é magnífico: encostado num templo<br />
pagão, uma torre do fim da Idade Média, olhando o<br />
rio romano passar como quem vê a vida fluir com toda a<br />
navegação do Tibre.<br />
Isso é pitoresco porque forma quadros. A palavra “pitoresco”<br />
vem de pintura: pictus, pintado. O pitoresco está no<br />
homem do povinho, com sua inteligência, sua vivacidade,<br />
inalando tudo isso sem saber bem o que é, e vivendo aqui à<br />
romana. Quer dizer, à noite, fazendo um jantar entre o parapeito<br />
e a casa, comendo uma polenta, bebendo vinho<br />
quente e tocando num instrumento de corda que talvez tenha<br />
uma corda ou duas a menos, e cantando a plena voz numa<br />
noite enluarada de Roma. Isso é pitoresco. v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de 29/1/1977)<br />
Fotos: Reprodução<br />
1) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático<br />
em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.<br />
2) Extensa via pública localizada entre as zonas centro-sul,<br />
central e oeste da cidade de São Paulo.<br />
3) Do francês: deixai fazer. Aqui tem o sentido de distender-se.<br />
35
Revista Dr Plinio 208, Julho <strong>2015</strong><br />
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Fotos: Reprodução<br />
Roma sparita<br />
Ambientes que favorecem o desenvolvimento das características<br />
individuais radicadas na índole de cada povo, onde as pessoas<br />
não constituem multidões de anônimos, mas aprimoram sua<br />
personalidade vivendo tranquilas nos braços da Fé que triunfou<br />
sobre o paganismo: eis a Europa feérica amada por Dr. Plinio.<br />
N<br />
os templos romanos e, aliás, nos gregos também,<br />
distinguimos duas<br />
partes: uma espécie de<br />
cilindro, às vezes um quadrilátero,<br />
sem janelas, com as portas constantemente<br />
abertas — em cima havia<br />
janelinhas muitas vezes — de maneira<br />
que a ventilação se fazia continuamente;<br />
e em torno, talvez para<br />
abrigar as pessoas que iam oferecer<br />
seus sacrifícios idolátricos, um telhado<br />
que ia além do templo e que<br />
era sustentado por colunas em forma<br />
de círculo, formando, portanto,<br />
dois corpos de edifício, um interno<br />
e outro externo.<br />
Na Roma pagã havia um<br />
templo em louvor da pureza<br />
Há qualquer coisa de imponderável<br />
no edifício, que dá a ideia de que<br />
os telhados, que provavelmente não datam do tempo dos<br />
romanos, já estão tão velhos que as<br />
telhas quase se encolheram e estão<br />
trêmulas de velhice, se bem que as<br />
pedras não enruguem nem sequem.<br />
Pode-se dizer que as pedras dessa<br />
coluna estariam para o que eram<br />
quando foram construídas, como<br />
uma uva-passa está para uma uva<br />
fresca. Elas estão todas ressequidas<br />
de tanto tempo que passou em cima<br />
delas, vento que bateu, chuvas, toda<br />
espécie de coisas, e elas ficaram<br />
ressequidas. Nem se nota muito o<br />
retilíneo delas, porque o eixo é reto,<br />
mas a circunferência está tão trabalhada<br />
que nem se tem a ideia dos<br />
como que cilindros majestosos que<br />
houve aqui antigamente. Tudo isso<br />
dá ideia de um povoado que não é<br />
só velho, mas mumificado, que não<br />
dá mais nada, um passado reduzido<br />
32
a esqueleto; isso é muito mais o esqueleto de um<br />
prédio do que um prédio propriamente dito.<br />
Ora, é bonito notar que essa foto mostra o único<br />
templo erguido na antiga Roma em louvor da<br />
pureza. Segundo a mitologia, Vesta era uma deusa<br />
virgem, que só poderia ser cultuada por virgens<br />
as quais deveriam manter o tempo inteiro um fogo<br />
aceso diante dela, como homenagem. As vestais<br />
— era o nome delas — eram mulheres que deveriam<br />
ser elas mesmas virgens. Se alguma delas fosse<br />
apanhada em pecado contra a castidade, era enterrada<br />
viva. E também era enterrada viva a vestal<br />
que, designada para guardar o fogo durante a noite,<br />
deixasse que este se apagasse. Era uma responsabilidade<br />
grande ficar a noite toda, no silêncio de<br />
Roma daquele tempo, vigiando para que o<br />
fogo não se extinguisse. Eram estas as únicas<br />
obrigações exigidas delas: serem virgens<br />
e não permitir que a chama se apagasse.<br />
Ali se instalou depois uma igreja católica,<br />
e é uma paróquia na qual as beatas vão<br />
rezar o terço, fazer Via Sacra, onde havia,<br />
até há pouco, bênção do Santíssimo Sacramento,<br />
muito tempo depois do culto a essa<br />
deusa ter ali cessado. Então, no local de<br />
culto usado por seus perseguidores, a Igreja<br />
Católica harmoniosamente instalou um<br />
templo da Religião verdadeira, em nome da<br />
qual o sangue dos mártires foi derramado.<br />
Altaneira, sempre com vitalidade, a torre<br />
medieval que se eleva aqui mostra a vitória,<br />
na Idade Média, sobre o mundo pagão<br />
romano: a vitória da Igreja sobre a gentilidade<br />
e todos os seus adversários.<br />
Ninguém é inteiramente<br />
anônimo para o outro<br />
Ao lado desses dois monumentos tão expressivos<br />
e tão notáveis pelo seu contraste, está o povinho<br />
tranquilo que vive nos braços da História<br />
e nos braços da Fé, com a naturalidade de quem<br />
vive a existência de todos os dias. Perto disso, o<br />
magnífico Rio Tibre, o qual nesse contexto parece<br />
representar o curso da História que vai passando,<br />
lembra ao povinho como as coisas mudam ao<br />
longo do tempo. Mas “stat Crux dum volvitur orbis<br />
— a Cruz está de pé, enquanto o mundo inteiro<br />
se vira e revira”; onde a Igreja deitou a sua mão<br />
sagrada, ali ela continua.<br />
A senhora dessa outra pintura é uma espécie<br />
de governanta, e não a dona da casa. As do-<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
para ninguém ver. Ela coloca à vista de todo mundo. De<br />
outro lado, ela está aqui, eu quase diria como um professor<br />
numa cátedra, um juiz num tribunal ou, amesquinhando<br />
muito, uma rainha num trono. Há qualquer coisa<br />
de pitoresco teatral italiano dentro disso. Está presente<br />
aí um verniz italiano. Nota-se alma dentro disso a mais<br />
não poder; vivacidade!<br />
O latino e o germânico<br />
nas de casa não usavam esse avental. É<br />
uma criada muito graduada que foi fazer<br />
compras com o menino da casa. O<br />
menino, vestido à século XIX: chapéu<br />
de marinheiro, com uma borlazinha, um<br />
pompom em cima, e uma golazinha.<br />
Nota-se nessa cena que algumas das<br />
pessoas se conhecem, outras até estão<br />
conversando. Mas não há nenhum indício<br />
de que todas se conheçam. Então, em que<br />
sentido se pode dizer que não são desconhecidas,<br />
como por exemplo, a multidão<br />
que passa pelo Viaduto do Chá 1 , onde as<br />
pessoas ignoram umas as outras?<br />
Embora os personagens estampados<br />
nessas figuras sejam desconhecidos, a<br />
cidade é tal que cada pessoa que passa<br />
sabe mais ou menos que categoria tem a<br />
outra, qual sua profissão, quais seus hábitos,<br />
qual seu estilo de vida. Por exemplo,<br />
essa mulher, por sua atitude, dá a entender que se<br />
considera muito superior àqueles outros e leva uma vida<br />
mais ordenada e mais limpa do que eles. E estes, indiretamente,<br />
respondem para ela que, sem negar que ela<br />
seja mais, eles têm um vidão livre, solto e à vontade que<br />
acham bem gostoso. Porque estão todos bem satisfeitos.<br />
Esses homens podem não saber o nome da senhora,<br />
mas sabem como ela é, como ela vive. É uma cidade pequena,<br />
com categorias e estilos de vida definidos, onde<br />
ninguém é inteiramente anônimo para outro. É diferente<br />
da avalanche de anônimos do Viaduto do Chá.<br />
Nessa cena do gueto, há algo de italiano na desordem<br />
com uma forma de pitoresco que o italiano sabe pôr e<br />
que outros não sabem. É um predicado italiano. Essa<br />
mulher cozinhando tem um pitoresco italiano no espalhafato.<br />
Normalmente, uma pessoa que faz isso, esconde<br />
Sem dúvida, há uma grande diferença entre esta desordem<br />
e a ordem do povo alemão, por uma razão muito<br />
simples: isso toca na índole do povo.<br />
O italiano é exuberante, sente, pensa e tem vontade<br />
de dizer tanta coisa, que não<br />
encontra tempo para arrumar<br />
muito as coisas.<br />
Mais ainda, isso tem muita<br />
relação com o modo de ser do<br />
brasileiro, não pela grande imigração<br />
italiana em São Paulo,<br />
porque o Brasil todo é assim,<br />
até no Nordeste, zona muito<br />
pouco italianizada; e o nordestino<br />
é mais ainda do que o brasileiro<br />
do Sul, nesse sentido.<br />
Nós, latinos, pensamos muitas<br />
vezes falando, e, se não temos<br />
ocasião de falar, não chegamos<br />
a completar o nosso pensamento.<br />
A extroversão é um<br />
modo de ser nosso para concluir<br />
o nosso pensamento. Nossos<br />
caros espanhóis falam muito<br />
e também completam muito<br />
o pensamento quando falam.<br />
O alemão é o contrário: para completar o pensamento,<br />
ele precisa recolher-se. E daí resulta que o latino tanto fala<br />
que não tem muito tempo para se arranjar. E o alemão<br />
tanto se recolhe que pensa enquanto arranja as coisas.<br />
Então, ele está pondo em ordem um papel, arranjando<br />
uma cortina, regando o gerânio, etc., e enquanto faz<br />
isso está filosofando, em todos os graus possíveis da Filosofia:<br />
desde a mais alta até a mais popular.<br />
O latino está sempre elucubrando uma coisa para o<br />
conhecimento do mundo. O alemão está elucubrando<br />
para si, depois para seus próximos, posteriormente para<br />
um clã que ele forma e com o qual ele vai pressionar<br />
outros, e depois com a nação com a qual ele pressiona o<br />
mundo. Mas a propagação da influência, para os latinos,<br />
se faz à maneira do azeite; e para os alemães, à maneira<br />
do gládio. São formas diferentes.<br />
34
Eu sou um grande admirador da Alemanha. Sou um<br />
grande admirador da Europa, mais do que de cada país<br />
europeu, mesmo da França. A Europa vale muito mais<br />
do que a França, porque o bonito da Europa é o conglomerado<br />
desses povos esplêndidos e diferentes que formam<br />
um todo mais bonito do que cada elemento.<br />
É bonito, na Europa, ver o alemão levando aquela vida<br />
nas aldeiazinhas de marzipã, esplendidamente arranjadas,<br />
e o italiano cantando a plenos pulmões na baía de<br />
Nápoles, ou à beira do Arno, ou guiando uma gôndola<br />
em Veneza. A Espanha com suas castanholas e suas touradas,<br />
e daí para fora… O fado português, a Torre de Belém,<br />
a Abadia de Westminster… É a Europa feérica. É<br />
dela que nós gostamos.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 29/1/1977)<br />
1) Situado na região central da cidade de São Paulo.<br />
35
<strong>Luzes</strong> LuzeS da Da civiLização Civilização criStã Cristã<br />
Ornato e<br />
simplicidade<br />
Revista Dr Plinio 209, Agosto <strong>2015</strong><br />
Juniorpetjua (CC 3.0)<br />
Nesta página e na seguinte:<br />
Igreja do Carmo - Olinda, Brasil<br />
As igrejas do Brasil colonial eram bonitas, nobres<br />
e muito dignas. Manifestavam o contraste entre a<br />
intensa ornamentação e a simplicidade, causando<br />
aos olhos uma impressão agradável.<br />
Adiferença entre York 1 e Olinda<br />
é manifesta. É quase<br />
um pouco desconcertante!<br />
Mas a igreja de<br />
Olinda, construída no<br />
século XVII, tem<br />
isso de agradável:<br />
sente-se melhor<br />
a doçura e<br />
a suavidade do<br />
“à vontade” do<br />
matagal brasileiro.<br />
Ela emerge<br />
toda branquinha,<br />
muito aprazível,<br />
desta abundância<br />
de verde, que<br />
no fundo é provavelmente<br />
o mato. A localização,<br />
portanto, é muito bonita.<br />
Juniorpetjua (CC 3.0)<br />
Não é fácil fazer um comentário sobre<br />
esta igreja, porque todos nós<br />
conhecemos uma porção de<br />
igrejas parecidas com ela.<br />
Nunca se copiam, são<br />
sempre diferentes,<br />
mas o mais possível<br />
iguais. O que<br />
comentar a este<br />
respeito?<br />
Atmosfera<br />
de grandeza<br />
Ela possui duas<br />
torres. No corpo<br />
central alguma coisa<br />
é vagamente à maneira<br />
de um triângulo, com três janelas.<br />
E, por assim dizer, em cada<br />
30
Juniorpetjua (CC 3.0)<br />
andar da torre uma janela também. A fachada muito cuidada,<br />
mas a parte lateral da igreja meio lambida e sem nenhum<br />
ornato por fora; em geral, as igrejas deste estilo são<br />
muito bonitas por dentro. Não tem mais nada para comentar,<br />
exceto isto: há uma certa cor local, um certo ambiente<br />
de brasilidade, sobre o qual chamo a atenção para dois<br />
pontos.<br />
Quando consideramos este edifício, temos a impressão<br />
de algo que, em comparação com a Catedral de York, é<br />
muito primitivo; e notamos que a igreja é bonitinha. Entretanto,<br />
fica por detrás uma atmosfera de grandeza que<br />
talvez não saibamos definir, e que julgo resultar da conjunção<br />
muito discreta de dois elementos: todo esse verde<br />
dessas árvores dá uma ideia da enorme fecundidade do solo,<br />
e de um país com uma natureza rica, generosa, dir-se-<br />
-ia quase agressiva. A produção jorra de dentro do solo!<br />
Percebe-se que ninguém trabalhou muito para que isso<br />
fosse assim... Qualquer grão que se joga na terra já<br />
disputa com outros o espaço vital, e lá vai germinando e<br />
crescendo, como uma promessa enorme de uma grandeza<br />
vindoura!<br />
Por outro lado, vemos no fundo o mar imenso, de um<br />
colorido lindíssimo! Nesse ponto não percebo que esteja<br />
picotado por nenhuma ilha, por nenhum recife, por nada:<br />
é o mar, o mar, o mar! Duas grandezas juntas: vastidão<br />
e a ideia de grandeza.<br />
O tempo pode adornar e<br />
proporcionar certa dignidade<br />
A Igreja de Nossa Senhora das Neves, no convento de<br />
São Francisco, em Olinda, é a construção mais antiga dos<br />
franciscanos no Brasil.<br />
Assim são os grandes e<br />
os pequenos na Terra:<br />
completam-se aos pés<br />
de Deus. Como o mundo<br />
seria árido e sem graça<br />
se só existissem grandes!<br />
Como ele é vulgar quando<br />
só há pequenos!<br />
Há algo de imponderável aqui, ao menos para meu<br />
gosto, e que dá muito sabor a isto. Se essas telhas fossem<br />
todas vermelhinhas e novinhas, isto não perderia algo?<br />
Observem que é uma telharia velha e manchada. O<br />
que tem isto que, se fosse novinho, perderia? Se esta torre<br />
tivesse sido recentemente caiada, mas de tal maneira<br />
que desse ilusão de uma torrezinha novazinha em folha,<br />
não perderia também? O que há de beleza em uma<br />
coisa, quando sobre ela passa o tempo, para que, em última<br />
análise, o tempo a adorne, até mesmo quando ela fique<br />
estragada?<br />
Vejam, por exemplo, essas pedras da torre. Em alguns<br />
lugares tem-se impressão que o tempo manchou,<br />
as intempéries mancharam. Calores de arrebentar, chuvas<br />
violentas, frescor nunca, pedra trabalhada, corroída,<br />
torrada pelo sol, mas íntegra! Percebe-se que o tempo<br />
passou sobre ela e lhe deu uma doçura, uma dignidade,<br />
um ar assim pensativo do ancião ou da anciã que<br />
está na cadeira de balanço, pensando e dizendo: “Fugite<br />
irreparabile tempus! Como eu, quando era jovem, não<br />
Juniorpetjua (CC 3.0)<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Adam63 (CC 3.0)<br />
Juniorpetjua (CC 3.0)<br />
gostava disso! Mas o tempo fugiu mesmo...”<br />
Tem sua poesia.<br />
Como poesia tem, a meu ver, esse tufo de<br />
palmeira que está embaixo.<br />
Orações, sacrifícios, tentações, vitórias<br />
As palmeiras são muito bonitas e não impedem<br />
que se veja esta espécie de portal, de uma<br />
linha um pouco fantasiosa, mas elegante e bonito,<br />
que esta aí. Não se pode ter uma ideia inteira<br />
dele. Quanto à fachada do convento, pode-se<br />
dizer que qualquer casa de fazenda do interior<br />
tem exatamente isto. É uma residência<br />
de fazendeiro antigo, com janela de guilhotina:<br />
três janelas embaixo, três janelas em cima. Dir-<br />
-se-ia uma caixa, na qual alguém recortou à tesoura as janelas,<br />
e está feito o plano da casa.<br />
Alguém dirá: “Apreciação severa!”<br />
Não. Ela é feita para que nós compreendamos o que<br />
é o sabor das antigas eras. Como nós sabemos que aqui<br />
não residiu uma família, mas há bastante tempo mora<br />
uma Ordem Religiosa — que durante muitos séculos foi<br />
uma Ordem recolhida, de pobreza, impregnada pela doçura<br />
do Poverello —, podemos imaginar a continuidade,<br />
a sucessão de frades que se revezavam ao longo das décadas<br />
nesse convento, sempre servindo, sempre rezando,<br />
sempre trabalhando, sempre afastados das coisas da<br />
Terra. E começa-se a pensar: “Através de cada uma dessas<br />
janelas, que mundo de orações, que mundo de sacrifícios…”<br />
Não nos iludamos: que mundo de tentações, que<br />
mundo de vitórias, que mundo de ação de graças, que<br />
provações, que doenças, que preocupações!<br />
Aí está a expressão que se desprende desse edifício.<br />
Convento de São Francisco e<br />
Igreja Nossa Senhora das Neves - Olinda, Brasil<br />
A palmeira aristocrática e as<br />
plantinhas completam-se<br />
Consideremos a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres<br />
dos Montes Guararapes. O nome diz tudo! Nós não temos<br />
que acrescentar nada.<br />
A fotografia situa num ângulo muito agradável e muito<br />
poético a igreja. Mas precisamos reconhecer que ela<br />
quase teve mais a preocupação de dar a moldura verde<br />
da igreja, do que a igreja propriamente dita. A moldura é<br />
muito agradável.<br />
Eu nunca estive lá, mas tenho a impressão que embaixo<br />
deve haver um valo e um cursozinho de água qualquer ali.<br />
O elemento indispensável da paisagem brasileira, e sobretudo<br />
da paisagem nordestina, está presente: as palmeiras.<br />
prefeituradeolinda (CC 3.0)<br />
32
Josue121 (CC 3.0)<br />
Tetraktyrs (CC 3.0)<br />
Igreja Nossa Senhora dos Prazeres - Montes Guararapes,<br />
Recife, Brasil<br />
Batalha de Guararapes - Museu de Belas Artes,<br />
Rio de Janeiro, Brasil<br />
Chamo a atenção particularmente para aquela palmeira<br />
esguia, tendo no alto um mundo de folhas que<br />
o vento está sacudindo em todas as direções. Isso nos<br />
dá um pouquinho a ideia da hierarquia na criação botânica.<br />
Há plantinhas mais comuns do que estas que se veem<br />
ali? Tenho a impressão de que, desde quando o mundo<br />
foi criado, há plantas destas. Como elas são vulgarezinhas,<br />
comunzinhas, apagadas em comparação com a palmeira<br />
aristocrática, esguia que ostenta as suas folhas como<br />
se fossem um brasão!<br />
É inegável que, batidas pelo sol, consideradas no seu<br />
conjunto, estas plantinhas dão uma ideia de pujança, de<br />
fertilidade, de variedade, de grandeza, são indispensáveis<br />
para o panorama! Se imaginássemos que houvesse<br />
só palmeiras aqui, como o panorama<br />
seria nada! Se não houvesse palmeiras,<br />
mas só estas plantinhas, não havia panorama!<br />
Assim são os grandes e os pequenos<br />
na Terra: completam-se aos pés de<br />
Deus. Como o mundo seria árido e sem<br />
graça se só existissem grandes! Como ele<br />
é vulgar quando só há pequenos! Pequenos<br />
e grandes conjugados dão a ordem<br />
que Deus quis.<br />
Fato concreto é este: se alguém me<br />
sugerisse abater tudo isto, fazer um gramado<br />
lindo nas duas margens desse córrego,<br />
passar asfalto por debaixo do córrego para ficar bonito,<br />
eu diria: “Você não entendeu nada! Deixe assim, e<br />
acabou se!”<br />
Lembrando as batalhas dos Guararapes<br />
Em frente à Igreja de Nossa Senhora dos Guararapes<br />
vemos o clássico Cruzeiro. A igreja tem uma nota que<br />
não é de qualquer igreja do tempo colonial. Nessa época,<br />
as igrejas, com certa frequência, visam ao horizontal,<br />
não ao esguio, ao alto. Esta tem isto, que é para mim um<br />
grande mérito: ela visa ao esguio, ao alto!<br />
Notem que ela é um pouco estreita em comparação<br />
com sua altura. As janelas dela também são de uma altura<br />
um pouco maior do que o comum, e um pouco desproporcionadas,<br />
mas no sentido louvável da palavra, em<br />
relação à altura de cada janela. E aquele ornato central,<br />
também todo ele se volta especialmente para o alto. Dir-<br />
-se-ia que há uma sede do esguio, do ascético, do voltado<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
para o Céu e para as realidades de além desta Terra, que<br />
aposta corrida com as duas palmeiras que se veem do outro<br />
lado, e que não conseguem ter a altura da igreja.<br />
No chão, é preciso bem reconhecer que não existe<br />
apenas a mãe natureza, mas existe o “pai relaxamento”.<br />
É uma tristeza, mas é assim.<br />
O todo esguio da igreja é mais propício a lembrar as<br />
batalhas dos Guararapes, a ascese, os heróis, a luta religiosa,<br />
etc., do que se fosse uma igreja atarracada e mais<br />
dada para as comodidades dos grandes domingos tranquilos.<br />
Vejam que belo ladrilho reveste as torres! Ladrilho,<br />
uma arte dos portugueses – dos espanhóis também. Em<br />
Portugal especialmente atingiu uma beleza excepcional,<br />
e esses ladrilhos vinham de Portugal. Mas no Brasil também<br />
se começou a fazer ladrilhos, por vezes bem bonitos.<br />
Os jogos de cores desse ladrilho, sobretudo, me parecem<br />
muito agradáveis.<br />
Observem o desenho. Parece uma coroa, e no alto tendo<br />
uma espécie de coroazinha. E coroando tudo isto, a<br />
Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Altaneira, ascética e com senhorio<br />
Considerem também o arvoredo e a ideia de pujança<br />
da natureza que se tem aí. É o velho convento beneditino,<br />
muito simpático, respeitável, antigo da cidade de<br />
Olinda. Mas este é mais dado ao horizontal.<br />
A Igreja São Pedro dos Clérigos, antiga catedral de<br />
Recife, levou o esguio até onde se podia levar. Agrada-<br />
-me muito a arquitetura dela: é altaneira, ascética, tem<br />
senhorio…<br />
A Igreja de São Cosme e Damião está<br />
precisando muito de uma renovação,<br />
pois se encontra muito mal tratada.<br />
Aqui o tempo fugiu muito irreparavelmente!<br />
Ela é venerável, mas para ser bela<br />
precisava de uns retoques!<br />
Não há muito comentário a fazer<br />
sobre o interior da Igreja de São Pedro<br />
dos Clérigos. Vemos que o esguio e o<br />
esbelto ali se mantêm. Notem como a<br />
parte equivalente ao presbitério é profunda,<br />
alta e esguia. E toda a igreja é<br />
muito alta. Poder-se-ia dizer que tem<br />
Igreja de São Pedro dos Clérigos<br />
Recife, Brasil<br />
Tetraktyrs (CC 3.0)<br />
Juniorpetjua (CC 3.0)<br />
34
três andares. O restante corresponde à configuração<br />
bonita, nobre, muito digna das igrejas<br />
antigas do Brasil.<br />
Contraste entre o entalhado e o liso<br />
Também conheço o Mosteiro de São Bento,<br />
em Olinda. Vemos aí o contraste que a arquitetura<br />
desse tempo às vezes explorava de modo<br />
muito feliz, entre o altar todo muito carregado<br />
e a simplicidade das paredes caiadas. Depois,<br />
estalas de novo muito carregadas. E esta<br />
justaposição do extremamente carregado e do<br />
extremamente simples causa para os olhos uma<br />
impressão agradável. Essa impressão é visada e<br />
atingida pelo artista que fez isto!<br />
Está primorosamente conservada. Chão muito<br />
limpo, muito bem arranjado, e tudo muito<br />
bem adornado.<br />
Chamo a atenção para a beleza dessas cômodas,<br />
com enormes gavetas de ambos os lados,<br />
para guardar paramentos, e que toma toda<br />
a parede. Provavelmente tomam as quatro<br />
paredes da sacristia. Quadros muito interessantes,<br />
encaixados na própria boiserie, e não só acima<br />
das cômodas, mas no teto, como é o estilo.<br />
Vê-se um quadro no teto. Deve haver mais<br />
de um quadro, ao longo da imensa sala.<br />
Uma mesa esguia, elegante se deixa ver<br />
ali, e um grande candelabro. Realmente uma<br />
bela peça.<br />
Um púlpito. Os púlpitos naquele tempo ficavam<br />
bem altos e muito mais para o centro<br />
da igreja. Porque, como não havia esses aparelhos<br />
de som, o pregador tinha que ficar o mais<br />
alto possível para a sua voz alcançar de modo<br />
cômodo, ou relativamente cômodo, todo o<br />
edifício sagrado. Mas o púlpito alto dava outra<br />
majestade ao pregador, que ficava pairando<br />
nas nuvens, por assim dizer, para pregar o<br />
seu sermão.<br />
O púlpito é todo muito trabalhado, revestido<br />
de ouro e com uma parede por detrás, caiada e<br />
extremamente lisa. Podemos sentir aqui melhor,<br />
talvez, o agrado do contraste entre esses<br />
dois elementos: o entalhado e o liso. v<br />
(Extraído de conferência de 22/5/1985)<br />
Tetraktyrs (CC 3.0)<br />
Valdiney Pimenta (CC 3.0)<br />
Juniorpetjua (CC 3.0)<br />
1) Referência aos comentários à Catedral de York.<br />
Ver Revista Dr. Plinio n. 161, p. 32-35.<br />
Igreja e Mosteiro de São Bento - Olinda, Brasil<br />
35
Revista Dr Plinio 210, Setembro <strong>2015</strong><br />
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
A beleza da luta - I<br />
Reprodução<br />
Os contrarrevolucionários, que travam a guerra de<br />
Nossa Senhora contra o demônio,<br />
precisam compreender a beleza da luta.<br />
Devemos fazer algumas considerações à vista de<br />
ilustrações representando cenas de batalhas<br />
medievais, desenhadas pelo famoso desenhista<br />
francês do século XIX, Gustavo Doré.<br />
Porém, antes de fazer o comentário, eu queria apontar<br />
bem do que se trata, para podermos apreciar adequadamente<br />
o assunto.<br />
A paz é a tranquilidade da ordem<br />
Gustavo Doré é um dos maiores desenhistas do século<br />
XIX. Ele fez desenhos extraordinários, por exemplo, ilustrando<br />
a “Divina Comédia”. Quer dizer, a passagem de<br />
Dante, guiado por Virgilio, pelo Inferno, depois pelo Purgatório<br />
e até pelo Céu. E seus desenhos ficaram famosos.<br />
São desenhos da escola romântica, com os defeitos<br />
desta escola, mas também com algumas qualidades que<br />
existem nela. Os defeitos consistem em que ele apela demais<br />
para o sentimento. Doré procura impressionar a<br />
fundo — porque, afinal, causar impressão é próprio de<br />
uma obra de arte —, mas a impressão é tão viva que chega<br />
a apagar um pouco o papel da razão. A pessoa se deixa<br />
levar apenas pela impressão.<br />
De outro lado, entretanto, ele tem uma grande seriedade<br />
em seus desenhos e, como tal, é capaz de inspirar,<br />
elevar as cogitações dos homens a um plano superior. É<br />
o que acontece com as batalhas medievais.<br />
Os combatentes medievais ele sabe exprimir, manifestando<br />
aquilo em que o homem da Idade Média era muito<br />
sensível, que era o pulchrum do combate. Como o combate<br />
é belo, como em sua beleza se sente a nobreza e o<br />
valor moral da luta e, portanto, o combate como um dos<br />
estados de alma do católico, em que a virtude católica se<br />
faz sentir de um modo excelente.<br />
Nisso tudo há um contraste com a mentalidade contemporânea,<br />
essencialmente pacifista, mas pacifista de<br />
um modo exagerado e, sobretudo, em obediência a um<br />
conceito errado de paz.<br />
Com efeito, Santo Agostinho definiu prodigiosamente<br />
bem a paz, e São Tomás retoma essa definição: a paz é<br />
32
a tranquilidade da ordem. Quando as coisas estão em ordem,<br />
reina então entre elas uma harmonia. Essa harmonia<br />
é a paz.<br />
Não é, portanto, qualquer tranquilidade que é paz,<br />
mas a tranquilidade da ordem. Se entrarmos, por exemplo,<br />
numa sala onde se fuma maconha, e há quinze, vinte<br />
pessoas inebriadas e largadas em sofás, ninguém dirá:<br />
“Que paz!”, porque aquilo é uma desordem. E aquela<br />
desordem não proporciona a verdadeira paz.<br />
A tranquilidade da desordem é o contrário<br />
da verdadeira paz<br />
Deve-se ser pacifista? Sim, se se quer esta paz, isto é,<br />
a ordem, e se se tem a alegria na tranquilidade da ordem.<br />
Mas a desordem também tem tranquilidade. E a tranquilidade<br />
da desordem é nojenta, porque é o contrário da<br />
paz verdadeira e incute desprezo.<br />
Por exemplo, o que se passou no Vietnam, em 1975.<br />
Na véspera da chegada dos comunistas a Saigon, os bares<br />
dos grandes hotéis dessa cidade estavam cheios de gente<br />
bebericando, conversando, se divertindo. Houve festas.<br />
Um repórter notou que numa loja, no dia anterior à invasão<br />
comunista, ainda um pintor estava pintando os batentes<br />
das portas do estabelecimento, para atrair mais os<br />
clientes no dia seguinte. A “paz” inteira reinava em Saigon.<br />
Quando os comunistas entraram, por volta das 10, 11<br />
horas da manhã, tiveram a sagacidade de mandar alguns<br />
caminhões com o que havia de mais jovem no exército<br />
comunista. Eram meninotes. Os caminhões ficaram parados<br />
em alguns pontos da cidade de Saigon, esperando<br />
ordens superiores.<br />
Os vietnamitas do Sul passavam por lá e davam risada:<br />
“Olha aqui o que vai ser essa ocupação! Ocupação de<br />
meninos! Isso é uma tirania de brincadeira. Nossa vida<br />
vai continuar na mesma.”<br />
Num clube de luxo, um sujeito tranquilo numa piscina<br />
gritou para o barman: “Traga-me uma champagne!”<br />
O garçon trouxe, ofereceu, e um jornalista perguntou a<br />
quem bebia a champagne:<br />
— Mas o senhor está festejando o quê?<br />
Ele respondeu:<br />
— Eu estou festejando minha última champagne. Os<br />
comunistas vão entrar, não vou ter mais champagne. Não<br />
sei o que vai ser feito de mim. Deixe-me, pelo menos, beber<br />
minha última champagne na paz!<br />
Essa é a tranquilidade da desordem, e causa nojo.<br />
Nós devemos distinguir no mundo de hoje o pacifismo<br />
que visa a tranquilidade da ordem. Busca a ordem por<br />
amor de Deus, porque ela é a semelhança com o Criador<br />
e, por isso, tem a paz de tudo quanto é de Deus. Mas a<br />
paz não é o fim supremo; é um fruto aprazível da ordem<br />
que amamos, porque amamos o Altíssimo.<br />
Dou outro exemplo. Num prédio de apartamentos,<br />
mora-se embaixo do apartamento de um casal e nunca<br />
se ouve barulhos de uma briga. Como não há encrenca,<br />
chega-se à conclusão de que existe paz. De fato, marido e<br />
mulher estão brigados e nunca se dirigem a palavra. Então<br />
não há discussões; mas isso não é paz! É uma caricatura<br />
nojenta da paz, é a cristalização, a fixação, a consolidação<br />
de uma desordem: marido e mulher estão brigados,<br />
quando deveriam estar unidos.<br />
O verdadeiro heroísmo é um dos garbos<br />
da Idade Média<br />
Há situações em que a luta, por mais que seja perigosa<br />
e traga frutos tristes, é preferível à falsa paz. E às vezes<br />
luta-se de modo terrível para conseguir a paz!<br />
Por exemplo, se está entrando um ladrão numa casa,<br />
que pode quebrar objetos, meter fogo na residência, matar<br />
os chefes da família, o filho já moço avança e se atraca<br />
com o ladrão; isso é uma briga na casa, mas em favor da<br />
ordem. Essa luta é meritória. A isso se chama heroísmo!<br />
Os medievais tinham alta ideia disso. E, portanto, eles<br />
celebravam a beleza da luta. Às vezes combates entre cavaleiros<br />
em que cada um dos lados luta de boa-fé, embora<br />
um esteja errado e outro não.<br />
Por exemplo, questão de limites entre um feudo e outro<br />
depende da interpretação de tratados que, por vezes,<br />
são muito complicados. Pode ser que nos dois lados haja<br />
boa-fé. Mas um julga que tem direito a uma terra, e o outro<br />
não está de acordo. Então se combatem.<br />
Há um modo nobre de combater de ambos os lados<br />
que torna essa luta nobre em si, em que toda a beleza<br />
do combate é realçada pelo mútuo respeito daqueles<br />
que lutam. Aquele que combate admite que o outro<br />
esteja de boa-fé, mas nem por isso permitirá que roube<br />
uma terra que ele considera sua. Se o invasor avança<br />
é preciso contê-lo, mas com respeito, porque ele está<br />
de boa-fé.<br />
Portanto, não é como quem avança em cima de um<br />
bandido. É um cavaleiro que investe contra outro cavaleiro,<br />
ambos aguerridos. Não raras vezes se saudavam<br />
antes da luta, reconhecendo a boa-fé do outro lado. Mas<br />
não tem remédio: vão para a guerra!<br />
E na luta conduzida nesse espírito para a defesa de um<br />
ideal, da Religião Católica, o homem desdobra qualidades<br />
de heroísmo, de força de corpo e de alma em que, no fundo,<br />
é a varonilidade de um que se choca com a do outro.<br />
Mas como do choque de duas pedras muito duras parte<br />
uma centelha, assim, do choque de dois homens muito<br />
duros, pode partir uma chama, uma labareda que é a ma-<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
nifestação do heroísmo de ambos. Esse heroísmo desinteressado,<br />
nobre é um dos garbos da Idade Média.<br />
Gustavo Doré soube representar<br />
a beleza do heroísmo<br />
Os desenhos de Gustavo Doré representam a beleza<br />
da luta, a beleza da guerra, a beleza do heroísmo.<br />
É muito importante que os contrarrevolucionários, os<br />
que travam a guerra de Nossa Senhora contra o demônio,<br />
compreendam seriamente a beleza da luta.<br />
Nessa perspectiva, então, vamos examinar alguns desenhos<br />
de Gustavo Doré.<br />
Vemos numa ilustração um exército pronto para a batalha.<br />
Na primeira fileira se discernem mais facilmente<br />
os soldados de infantaria revestidos de couraças, capacetes,<br />
espadas, escudos contendo, em geral, emblemas religiosos<br />
que mostrassem por que eles lutavam.<br />
Embaixo, estão os homens jogados por terra, mostrando<br />
bem a que está sujeito quem trava uma batalha. Tem-<br />
-se a impressão de que o guerreiro que está na primeira<br />
fila, com um escudo quase inteiramente redondo e com<br />
uma espada na mão, acabou de prostrar por terra aquele<br />
combatente; e que esse exército deu um primeiro choque,<br />
reduzindo a primeira linha do adversário a trapos, e<br />
está avançando sobre cadáveres.<br />
O campo de batalha é representando num dia bonito<br />
e de aspecto até risonho. Num campo de batalha assim,<br />
uma grande tragédia se desenvolve. Mas uma tragédia<br />
que é, sobretudo, um lance de dedicação e de coragem.<br />
Daí não resulta choradeira, e sim a glória.<br />
A batalha, na Idade Media, tinha dois estágios: o primeiro<br />
é o da bataille rangée, e depois, da bataille mellée.<br />
A bataille rangée era em filas. Antes de começar a<br />
luta, os dois lados se mantinham em filas e, muitas vezes,<br />
um arauto ia para a frente e cantava as razões pelas<br />
quais eles combatiam, julgando que estavam com o direito.<br />
Depois o opositor mandava outro arauto refutar. E<br />
quando os arautos se retiravam, iniciava, com todo o furor,<br />
o ataque de cavalaria de lado a lado.<br />
Episódio culminante da tomada de<br />
Jerusalém pelos cruzados<br />
Em outra ilustração, observamos um ataque de cavalaria<br />
e um cavalo que se ergue com grandeza, num belo<br />
Fotos : Reprodução<br />
34
movimento. Ali está um homem que quis atentar contra<br />
o cavaleiro e está sendo jogado no chão. Outros homens<br />
já estão caídos no solo, e os cavalos avançam. O cavaleiro,<br />
com a espada na mão, mata na defesa de seu ideal.<br />
Tem-se pena de quem está no chão, mas não é o aspecto<br />
principal do quadro. O aspecto principal da cena é<br />
a admiração, portanto a coragem, a glória.<br />
Nesta gravura veem-se nuvens de fumaça de todos os<br />
lados. Trata-se de um episódio culminante da tomada de<br />
Jerusalém pelos cruzados. Os guerreiros cristãos aproximaram<br />
dos muros de Jerusalém torres de madeira sobre<br />
estrados com rodas, que eles deslocavam de um lado para<br />
outro e, em certo momento, encostavam na muralha e<br />
saltavam para dentro da fortaleza. Algumas dessas torres<br />
estão pegando fogo, e um cruzado, na primeira fila, de espada<br />
na mão, está lutando e descendo magnificamente.<br />
No lance aqui representado, os maometanos que dominavam<br />
Jerusalém tinham ateado fogo na torre de Godofredo<br />
de Bouillon, e a fumaça sufocava os cruzados.<br />
Mas houve um determinado momento onde, por disposição<br />
da Providência, o vento soprou de outro lado, e a fumaça<br />
passou a sufocar os maometanos. Então, imediatamente,<br />
os cruzados aproveitaram a ocasião e avançaram.<br />
Este que vemos descer numa atitude magnífica é Godofredo<br />
de Bouillon, chefiando o ataque, avançando em<br />
primeiro lugar.<br />
Na guerra moderna, os generais não avançam. Eles ficam<br />
na retaguarda, jogando xadrez com a vida dos outros.<br />
Quer dizer, vai tal corpo para cá, aquele corpo para<br />
lá, e eles ficam sentados, numa tenda.<br />
Aqui não. Eles se expunham em primeiro lugar. E o<br />
resultado é esse: a Santa Sé ofereceu a Godofredo de<br />
Bouillon o título de Rei de Jerusalém. E ele declarou que<br />
não queria cingir a coroa de rei no lugar onde Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo tinha cingido uma coroa de espinhos.<br />
E que a ele bastava ter o título de Barão do Santo<br />
Sepulcro. Ele usava, então, uma coroa de espinhos feita<br />
de ouro.<br />
v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de 19/3/1988)<br />
35
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Revista Dr Plinio 211, Outubro <strong>2015</strong><br />
A beleza da luta - II<br />
Do alto da Cruz, Nosso Senhor teve um consolo ao contemplar<br />
misticamente a epopeia das Cruzadas, que lutaram pela<br />
libertação da Terra Santa. E até hoje a palavra “cruzado” evoca<br />
nos corações algo de especial, luminoso e belo.<br />
Outro desenho de Gustavo Doré representa Ricardo<br />
Coração de Leão desembarcando, com suas<br />
tropas, em São João d’Acre.<br />
Vemos uma pequena elevação de terreno. É uma batalha<br />
em pleno curso, não de cavalaria, porque esta não<br />
podia subir ali. São os soldados de infantaria que atacam.<br />
Trata-se da bataille mellée, porque se misturaram os de<br />
um lado com os de outro completamente. Usando um<br />
termo corriqueiro de hoje em dia, estão engalfinhados<br />
uns nos outros.<br />
Anjos de combate que<br />
parecem ser feitos<br />
de cristal<br />
Os cruzados, com risco enorme<br />
da vida, estão subindo e rechaçando<br />
os inimigos da Fé. Na<br />
guerra medieval, estar em cima<br />
fornecia muita vantagem, porque<br />
quem se encontrava por<br />
baixo era mais sujeito a golpes.<br />
Ao contrário das guerras<br />
de hoje, onde quem se afunda<br />
numa trincheira tem vantagem.<br />
É que em nossos dias há vantagem<br />
para quem desce. Naquele<br />
tempo havia vantagem para<br />
quem subia.<br />
O efeito dramático Gustavo<br />
Doré obtém magnificamente<br />
com essas velas altas, que parecem<br />
furar o céu, e o entrelaçamento<br />
dos homens: os católicos<br />
defendem a Fé e os ímpios,<br />
que não querem aceitar a<br />
Reprodução<br />
Fé, estão querendo matar os católicos. Por detrás está um<br />
bispo com uma cruz.<br />
A gravura seguinte representa uma legião de Anjos,<br />
mandada por Maria para socorrer os cruzados.<br />
Eu queria chamar a atenção para o senso fino de interpretação<br />
de Gustavo Doré, a propósito desses Anjos.<br />
Eles parecem feitos de cristal, voam como Anjos podem<br />
voar, e vêm numa revoada gloriosa. Porém, são Anjos<br />
de combate! E que, quando pousarem, vão dizimar<br />
os inimigos da Fé que, provavelmente, já os viram antes<br />
de eles pousarem, e saíram na<br />
disparada.<br />
Ali vem representado, de<br />
costas e na primeira fileira,<br />
um cruzado que viu a legião<br />
celeste e que, brandindo<br />
sua espada, aclama os Anjos<br />
que vão baixando. Pensem<br />
nisso quando estiverem<br />
em meio aos castigos previstos<br />
por Nossa Senhora em Fátima,<br />
e digam: Regina angelorum,<br />
succurre nos! 1<br />
Consolação de Nosso<br />
Senhor no alto da Cruz<br />
Eis, nesta outra cena, a cidade<br />
de Jerusalém com suas<br />
muralhas fortíssimas, e o ataque<br />
que se desenrola. Também<br />
aqui os guerreiros estão<br />
aproximando uma das tais<br />
torres de madeira, quase da<br />
altura da grande torre quadrangular<br />
da muralha.<br />
32
Os cruzados escalam as muralhas<br />
da cidade subindo por uma escada, enquanto os<br />
maometanos estão fazendo o possível para derrubá-los.<br />
Os combatentes cristãos querem descer, mas vejam a dificuldade<br />
para saltar por cima dessas lanças e pedras…<br />
Isso é o característico da guerra medieval: os maometanos<br />
eram censuráveis debaixo de todos os pontos<br />
de vista, os cruzados eram admiráveis. Pois bem, mas a<br />
guerra se desenvolvia de tal modo que se acaba tendo<br />
certo respeito por ambos os lados, pela coragem manifestada<br />
pelos contendores.<br />
Neste outro lance os cruzados estão entrando e tomando<br />
conta da cidade.<br />
Vê-se um bispo que caminha debaixo do pálio. Há<br />
quanto tempo não se via isto: um bispo da Santa Igreja<br />
Católica Apostólica Romana desfilando na cidade onde<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo morreu! Eles entravam cantando,<br />
com certeza, músicas sacras. É a vitória de Nossa<br />
Senhora!<br />
O bispo parece conduzir o Santíssimo Sacramento. Ao<br />
menos é a interpretação que eu dou.<br />
Os cruzados entraram em Jerusalém numa Sexta-Feira<br />
Santa, às três da tarde, hora em que Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo morreu.<br />
O Redentor, que conhecia o passado, o presente e o<br />
futuro, do alto da Cruz conheceu isso e teve a consolação<br />
de ver que, se os discípulos d’Ele — que estiveram com<br />
Ele naquela intimidade do Horto das Oliveiras — dormiram,<br />
séculos depois vieram esses heróis que por amor a<br />
Ele morreram. Isso é supremamente belo!<br />
Quem não combate o<br />
mal atraiçoa<br />
a Causa de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo<br />
Este é um elemento integrante<br />
da psicologia do católico.<br />
O verdadeiro católico<br />
deve saber ser assim.<br />
Distingamos, contudo, entre<br />
ser e fazer. “Fazer” será<br />
quando Nossa Senhora der<br />
as ocasiões e que for lícito, de<br />
acordo com a Moral católica.<br />
Entretanto, devemos ser já.<br />
É assim que nos preparamos<br />
para as lutas da vida.<br />
É preciso amar ser assim<br />
e pedir a Nossa Senhora,<br />
noite e dia, a graça de sê-lo.<br />
Então seremos contrarrevolucionários,<br />
filhos de Nossa<br />
Senhora, de alma e corpo<br />
inteiros.<br />
Alguém poderia preparar sua alma para amar isso,<br />
aplicando a esta temática o método lógico sugerido por<br />
Santo Inácio, em seus Exercícios Espirituais:<br />
Esta guerra é lícita? Sim, e até uma obrigação.<br />
O que acontecerá se eu não combater? Tais consequências.<br />
O que acontecerá se eu combater? Glória para Nossa<br />
Senhora e tais outras consequências.<br />
Eu tenho o direito de não querer combater? Não, porque<br />
atraiçoo a Causa de Nosso Senhor Jesus Cristo, meu<br />
Rei, e de Nossa Senhora, minha Rainha, se eu não cumprir<br />
o meu dever.<br />
A pessoa imagina-se, então, no dia seguinte, jogado<br />
num campo de batalha ou levado de volta, estropiado.<br />
Tomou uma pancada na cabeça e ficou cego, inutilizado,<br />
portanto. Mas contente porque perdeu a visão por amor<br />
a Nosso Senhor e a Nossa Senhora, e porque a batalha<br />
apenas mudou de campo: ele terá agora um combate interior.<br />
Dia e noite estará em presença da privação tremenda,<br />
a que ficou sujeito por toda a vida.<br />
Entretanto, dia e noite se recusará a entristecer-<br />
-se, lutará contra a invasão do desânimo e dirá: “Meu<br />
Deus, pelas mãos de vossa Mãe, eu Vos ofereço de novo<br />
a pancada que sofri. Se Vós me restituísseis a vista,<br />
por um milagre, e eu tivesse de perdê-la novamente por<br />
Vós, de bom grado eu a sacrificaria!”<br />
Quando um homem assim morresse de velho, teria<br />
vencido mil Cruzadas!<br />
Reprodução<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
O suavíssimo São Francisco de Sales<br />
estimulou uma Cruzada<br />
A vitória dos europeus sobre os maometanos se consolidou<br />
depois da Batalha de Lepanto. Mas já bem antes<br />
dela era improvável que os maometanos conseguissem<br />
dominar a Europa. Por duas vezes chegaram até as portas<br />
de Viena, e até conseguiram tomar esta cidade, mas<br />
veio o Rei João Sobieski, da Polônia, e expulsou-os, restituindo<br />
Viena ao Imperador.<br />
Mas eram invasões que não tinham comparação com<br />
aquelas avalanches de muçulmanos, que invadiram a Europa<br />
no tempo da Reconquista ou por ocasião de Carlos<br />
Martel.<br />
Com isso, espalhou-se pelo Ocidente um sentimento<br />
legítimo de segurança. As Cruzadas quebraram o ímpeto<br />
dos povos maometanos.<br />
Por outro lado, a Europa cresceu muito,<br />
tornou-se mais rica, desenvolveu-se<br />
intelectualmente, ficou capaz<br />
de elaborar táticas de guerra<br />
muito mais eficazes. De<br />
maneira que, por efeito<br />
da Civilização Cristã<br />
— portanto, da graça<br />
de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo e das<br />
preces de Maria<br />
—, a Europa estava<br />
gozando de uma<br />
explicável segurança.<br />
Essa segurança<br />
era a paz de Cristo no<br />
reino de Cristo.<br />
Pronunciou-se com isso<br />
uma dulcificação dos costumes.<br />
O homem medieval ainda<br />
era muito rude. O pós-medieval<br />
começou a lutar contra essa rudeza, que<br />
já não se enquadrava com a doçura da<br />
vitória. E com isso houve uma insistência<br />
muito grande nas virtudes doces, suaves.<br />
E uma insistência menor nas virtudes bélicas, militares.<br />
Então, por exemplo, São Francisco de Sales. A Filotéia,<br />
a Introdução à Vida Devota, e outras obras de São<br />
Francisco de Sales são admiráveis, de uma doçura maravilhosa!<br />
Era já a época da douceur de vivre 2 que começava<br />
a invadir a Europa, e a coroa de glória posta na fronte<br />
da Europa. E isso estava justo.<br />
Contudo, para se compreender o equilíbrio que deve<br />
haver nisso é preciso tomar em consideração o seguinte.<br />
Jean-Pol GRANDMONT(CC 3.0)<br />
Vitória do Rei João III Sobieski<br />
contra os turcos na batalha de<br />
Viena - Museus Vaticanos<br />
São Francisco de Sales era Bispo de Genebra, cidade<br />
da Suíça que, naquele tempo, constituía o foco de irradiação<br />
do calvinismo protestante. Mas ele não era apenas<br />
bispo, mas também o Príncipe de Genebra, porque,<br />
pelos estatutos, o Bispo de Genebra era, de direito, o<br />
príncipe que governava a cidade. E São Francisco de Sales<br />
foi expulso de Genebra.<br />
Tendo obtido o apoio do Duque de Savóia, cujas terras<br />
eram contíguas a Genebra, e de outros nobres da zona,<br />
armou uma Cruzada contra os genebrinos.<br />
Quando visitei Genebra, um líder católico mostrou-<br />
-me a parte da velha muralha, precisamente onde os protestantes<br />
conseguiram derrotar São Francisco de Sales.<br />
Ele, o Doutor suavíssimo, o Doutor boníssimo, ideou,<br />
desenvolveu a manobra diplomática necessária e estimulou<br />
que fosse feita uma Cruzada, para esse bispo perfeito<br />
reconquistar sua diocese na ponta da lança, da alabarda<br />
e da espada, com mosquetão e tudo o mais!<br />
Esta era a doçura deste Santo.<br />
Deformações<br />
provocadas pela<br />
”heresia branca”<br />
Mas depois veio a<br />
deformação da “heresia<br />
branca” 3 , segundo<br />
a qual suavidade<br />
corresponde<br />
a entrega, a capitulação<br />
diante do<br />
adversário.<br />
Dou um exemplo<br />
do feitio da piedade<br />
“heresia branca”.<br />
O martírio de São Sebastião<br />
é enormemente venerável.<br />
Ele era chefe da guarda responsável<br />
pela segurança do imperador e, portanto,<br />
um grande combatente romano.<br />
O imperador, descobrindo que ele tinha<br />
se tornado católico, ficou indignado<br />
e mandou executá-lo mediante flechadas.<br />
Esse homem que era chefe de uma guarnição do exército<br />
que dominava o mundo, que tinha conquistado toda<br />
a bacia do Mediterrâneo, é apresentado por certo estilo<br />
de iconografia como um mocinho rosadinho, com cara<br />
de quem está levantando da cama; atado a um tronco,<br />
com uma perninha para frente, a outra para o lado, como<br />
quem está se distraindo em ver os passarinhos voarem<br />
e cantarem em árvores hipotéticas. Aquelas flechas<br />
parecem não fazê-lo sofrer em nada. Escorre um pou-<br />
34
Reprodução<br />
Roberto da Normandia na tomada<br />
de Antioquia (1097-1098)<br />
quinho de sangue, mas ele tem ar de quem não está padecendo.<br />
A “heresia branca” também não gosta que se fale de<br />
Cruzadas.<br />
Eu ainda alcancei a época em que associações religiosas<br />
chamavam-se “Cruzadas”. Então, por exemplo,<br />
“Cruzada Eucarística Infantil”, “Cruzados do Santíssimo<br />
Sacramento”. A palavra “Cruzada” era usada para certas<br />
coisas religiosas. Depois, isso foi abolido completamente.<br />
Contudo, há certas glórias sagradas na História que<br />
não se apagam, e cujo flash os livros não transmitem<br />
mais, mas se transmitem de geração em geração por uma<br />
espécie de milagre: uma é a glória de Carlos Magno, outra<br />
a das Cruzadas; e outras ainda são a glória do Sacro<br />
Império Romano Alemão, da Reconquista espanhola, da<br />
Reconquista portuguesa, que foram Cruzadas na Espanha<br />
e em Portugal.<br />
Essas glórias conservam algo na imaginação e na Fé de<br />
todas as camadas do povo, e isso se transmite ao longo dos<br />
séculos, um pouco misteriosamente, de maneira que todos<br />
ficam com essa ideia da palavra “cruzado” como querendo<br />
representar alguma coisa luminosa, especial, bela.<br />
Este é o legado que, com ou sem as deformações sentimentais<br />
posteriores, existe no consciente ou no subconsciente<br />
de incontáveis católicos. Por onde, se o católico<br />
comum é posto em confrontação com uma representação<br />
muito viva do heroísmo que se notou nas Cruzadas,<br />
o cruzado que “dorme” em sua alma se levanta e<br />
uma chama se acende.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 19/3/1988)<br />
1) Do latim: Rainha dos Anjos, socorrei-nos!<br />
2) Do francês: doçura de viver.<br />
3) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a<br />
mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na<br />
cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam<br />
moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como<br />
a tudo que signifique esplendor.<br />
35
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Revista Dr Plinio 212, Novembro 215<br />
Sacralidade beneditina<br />
Ao contrário da agitação existente em certos ambientes<br />
do mundo atual, em Subiaco sentem-se refrigério, luz<br />
e paz. Os monges, que se deixam imbuir pelo espírito<br />
de São Bento, levam ali uma vida despretensiosa,<br />
temperante, pura e cheia de uma alegria cândida.<br />
Fracisco Lecaros<br />
Apropósito de algumas fotografias<br />
tiradas de Subiaco, eu<br />
gostaria de tecer comentários<br />
que não se limitam à análise<br />
dos ambientes e costumes,<br />
mas visam aprofundar impressões<br />
causadas por aqueles<br />
lugares na alma de quem<br />
os contempla.<br />
Subiaco e estação de<br />
metrô: extremos opostos<br />
Nesta primeira foto vemos uma pequena<br />
porta que conduz a uma escadaria estreita.<br />
Em rigor, essa passagem assim apertada poderia<br />
ser a porta de uma masmorra, através da qual passa o<br />
carcereiro para levar pão e água a algum prisioneiro nas<br />
horas estipuladas.<br />
Considerada, por assim dizer, “anatomicamente”, esta<br />
parte do edifício poderia servir para isso. Entretanto,<br />
não é nem um pouco a impressão que nos dá. Ao subirmos<br />
por esta escadinha, não sentiríamos medo ou qualquer<br />
outra sensação própria a quem ingressa em uma<br />
masmorra. Pelo contrário, tem-se a impressão de um<br />
ambiente recolhido, com uma penumbra que sucede à<br />
grande luz do dia, com algo de aconchegado, de cômodo.<br />
Jose Afonso Aguiar<br />
Poder-se-ia bem imaginar um monge<br />
beneditino dos antigos tempos subindo<br />
esses degraus, passo a passo,<br />
enquanto recita um salmo<br />
ou reza uma dezena do Rosário.<br />
Em uma palavra, quanta<br />
bênção há aí! É uma bênção<br />
de paz que se faz sentir por<br />
um jogo de luz e sombra.<br />
Se compararmos isso com<br />
a atmosfera de uma estação de<br />
metrô, perceberemos como o metrô<br />
e Subiaco são extremos opostos,<br />
de um modo até berrante: um está inserido<br />
dentro da civilização industrial e outro na<br />
nascente da Idade Média.<br />
Viver entre pedras e pouca vegetação,<br />
pensando no Céu<br />
Na outra fotografia vemos ruazinhas muito estreitas e,<br />
como tudo está construído em meio a montanhas, há diversos<br />
patamares aos quais se tem acesso, às vezes, por<br />
escadinhas como essa.<br />
Sente-se ter vivido aqui gente habituada a uma vida<br />
despretensiosa, temperante, pura e cheia de uma alegria<br />
cândida.<br />
32
David Domingues<br />
Jose Afonso Aguiar<br />
David Domingues<br />
Notem como a escadinha está toda modelada pelo<br />
passo humano. Séculos e séculos de subir e descer de homens<br />
que consagraram a vida a Deus, renunciando a todas<br />
as alegrias e pompas do mundo para viverem entre<br />
essas pedras, pensando no Céu.<br />
Imaginemos, durante o dia, abrir-se aquela janela com<br />
vitrais elaborados à maneira de fundos de garrafa, e aparecer<br />
por detrás um monge com capuz, braços cruzados<br />
debaixo do escapulário, e olhando...<br />
Nas margens desse caminho nada foi plantando pelo<br />
homem, tudo está como a natureza pôs. No primeiro dia,<br />
quando esse solo saiu das mãos de Deus, era possível que<br />
fosse mais ou menos assim.<br />
Veem-se pedras por toda parte entre as quais nasce<br />
uma vegetação que se agarra como pode a um pouco de<br />
terra, e viceja onde consegue.<br />
Aquele arbusto que aparece ali, com seus galhos contorcidos,<br />
parece ter esgares de fome. Não é o fértil chão<br />
brasileiro com seus jacarandás e jequitibás, nem o solo<br />
norte-americano com suas sequóias; nada disso. Essa é<br />
uma árvore brotada em terra árida e pedregosa.<br />
Há, entretanto, uma intimidade entre quem passa por<br />
esta pequena via e a vegetação que a ladeia, cujo exalar<br />
de vida nada interrompe, dando-nos a impressão de existir<br />
uma íntima amizade com todo esse mundo vegetal rumo<br />
ao céu azul que se entrevê lá no fundo, e faz até pensar<br />
no Céu da eternidade.<br />
Sente-se uma paz nesse ambiente! Uma pessoa que ali<br />
entrasse cheia de torcidas e de preocupações, e seguisse<br />
por essa estradinha, chegaria ao outro lado inteiramente<br />
tranquilizada.<br />
O que isso tem de lindo? Viveu ali um Santo, o Patriarca<br />
dos monges do Ocidente, isto é, o primeiro de toda<br />
a gloriosa coorte de monges, o qual teve como filhos<br />
espirituais, nesse lugar, homens canonizados, além de<br />
David Domingues<br />
quantos outros que, embora não canonizados, também<br />
estão no Céu. É o ambiente próprio do homem à procura<br />
da santidade; eis a bênção que São Bento deixou.<br />
Ambiente simples, mas repleto<br />
de beleza espiritual<br />
Para ingressar na via da qual falávamos, a pessoa<br />
passa por esse arco que aparece nesta outra foto.<br />
É uma ogiva despretensiosa, bonita e séria. Não<br />
tem uma escultura, nem qualquer outro adorno.<br />
É apenas uma ogiva feita de pedra, mas<br />
com toda a beleza das ogivas, como se fossem<br />
duas mãos postas para rezar.<br />
Pode haver coisa que recolha mais<br />
o espírito e favoreça mais a oração,<br />
as grandes reflexões a respeito<br />
dos grandes temas? Assim<br />
a alma de um homem se forma!<br />
Mas, por quê? Porque há uma<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Reprodução<br />
bênção presente no ambiente e que envolve e penetra<br />
quem nele se adentra.<br />
Se alguém me perguntasse: Isto é lindo?<br />
Eu diria: Não, de nenhum modo.<br />
Entretanto, sob outro aspecto, se outrem me indagasse:<br />
Isto é lindíssimo?<br />
Eu responderia: Sim!<br />
No sentido de uma beleza espiritual.<br />
Essa paisagem é agradável de ver, mas não é linda,<br />
materialmente falando. Contudo, a beleza espiritual torna<br />
isso lindíssimo.<br />
Eis uma bonita fotografia bem dentro da linha do que<br />
vínhamos falando. Vemos a vegetação e o alto de uma<br />
construção que parece ser uma capelinha com uma rosácea,<br />
com todo o encanto das rosáceas medievais. Aquilo<br />
é tipicamente medieval. Têm-se esse misto de pedra<br />
e folhagem: reino mineral e reino vegetal juntos, entrando<br />
em harmonia, para que o expectador possa exclamar:<br />
“Como Deus é grande!”<br />
São Bento: olhar<br />
contemplativo, todo<br />
voltado para as<br />
coisas de Deus<br />
Ali contemplamos um<br />
afresco de São Bento. O<br />
pintor representou-o de<br />
uma maneira singular.<br />
Ele está com uma espécie<br />
de capuz sobre a cabeça,<br />
mas este tem um pouco<br />
a forma da parte baixa<br />
de sua face. De maneira<br />
que o desenho da maçã<br />
do rosto até o queixo tem<br />
a forma do capuz pontudo. E dá a impressão de uma face<br />
concebida numa moldura de duas pontas: uma para baixo<br />
e outra para cima. Rosto muito fino, nariz comprido,<br />
barba não muito crescida, na transição do grisalho para o<br />
branco; as sobrancelhas, ainda escuras, representam um<br />
homem que ainda está no vigor de seu pensamento e de<br />
sua ação.<br />
Notem a força moral com que a sua mão segura o báculo,<br />
símbolo do poder do Abade.<br />
Olhar sério, até com alguma coisa de severo, mas no<br />
qual há um mundo, um céu! Se um de nós o encontrasse,<br />
teria vontade de ajoelhar-se diante dele e pedir: “Pai, dizei-me<br />
no que pensais!”<br />
Imagino que ele responderia sem olhar para quem pediu,<br />
desfiando o seu pensamento inteiro, com um tim-<br />
bre de voz partindo do fundo de sua laringe<br />
possante, num pescoço alto, como se fosse<br />
o tocar de um sino.<br />
São Luís Orione achava o olhar de São<br />
Pio X tão puro, que se confessava sempre<br />
antes de falar com este Santo Pontífice.<br />
Não é verdade que teríamos vontade de<br />
nos confessar, antes de falar com São Bento?<br />
Olhar reto, puro, todo voltado para as coisas<br />
de Deus, contemplativo e sério!<br />
Se eu lhe perguntasse no que estava pensando,<br />
e ele me dissesse:<br />
— Agora não posso explicar.<br />
Eu pediria:<br />
— Permiti, então, que eu fique vos olhando!<br />
São Francisco de Assis, grande<br />
admirador e devoto de São Bento<br />
Aqui temos uma pintura representando<br />
São Francisco de Assis, que viveu séculos depois de São<br />
Bento, mas por ser grande admirador e devoto deste Santo<br />
Abade, resolveu ir a Subiaco para venerá-lo. Ali ele viu,<br />
junto à gruta de São Bento, um carrascal de espinhos onde<br />
o Santo Abade tinha rolado para combater uma tentação<br />
contra a pureza, vencendo-a. O demônio fugiu diante da<br />
admirável penitência de São Bento. São Francisco plantou<br />
naquele local uma roseira, e até hoje as rosas e o carrascal<br />
de espinhos vivem juntos, entrelaçados.<br />
Em São Francisco contempla-se um tipo de santidade diferente;<br />
mas que maravilha! Essa pintura representa um homem<br />
muito mais jovem do que é figurado São Bento na outra.<br />
Não sei se calculo mal, mas suponho que esse homem<br />
esteja na casa dos trinta anos.<br />
Sua atitude é muito serena, calma,<br />
mas com uma determinação de<br />
vontade que se vê muito pelo modo<br />
do rosto estar implantado sobre<br />
o pescoço. Todos os traços distendidos,<br />
mas não moles. É alguém que<br />
está, no fundo do olhar azul, pensando<br />
e contemplando algo e querendo<br />
com toda a força da vontade<br />
o objeto de sua contemplação.<br />
É de uma pureza impressionante!<br />
Um homem casto, temperante<br />
por excelência e vigoroso.<br />
São Bento também o era, mas o<br />
pintor de São Francisco deixou<br />
ver essas virtudes mais inteiramente<br />
do que o de São Bento.<br />
Reprodução<br />
34
Carlos Aguirre<br />
David Domingues<br />
Compreende-se que o Poverello de Assis gostasse de<br />
ler para os seus noviços as histórias de Cavalaria, pois<br />
antes de abraçar a vida contemplativa pensou em ser cavaleiro.<br />
Nesta representação, a sua mão direita segura ligeiramente<br />
o braço esquerdo. Vejam a lógica das linhas e a<br />
força dessa mão!<br />
Se a São Bento eu pediria: “Dizei o que pensais!”; a<br />
este eu rogaria: “Não digais, pois eu vejo. Deixai apenas<br />
que eu olhe para vós!”<br />
Tem-se a impressão de que<br />
São Bento está presente<br />
Tendo analisado tudo quanto vimos de Subiaco, nasce<br />
a pergunta: O que há dentro disso?<br />
A resposta que vem ao espírito é esta: a sacralidade beneditina.<br />
É uma paz, não a da modorra de um comodista,<br />
mas uma paz de algo que tem vida intensa dentro de si.<br />
Vida, por sua vez, não agitada, espancada, surrada,<br />
mas com refrigério, luz e paz que se sentem naquele lugar<br />
não se sabe bem no quê, e dá a impressão de estar<br />
São Bento presente ali.<br />
Há lugares sagrados que conservam uma como que<br />
impregnação dos personagens e dos fatos ali ocorridos.<br />
Aquele ambiente fica mais ou menos marcado, fazendo-<br />
-nos sentir algo do que ali se passou.<br />
Por causa disso, a grande alma de um Santo pode se<br />
fazer sentir por séculos e séculos, no lugar onde ele viveu<br />
e praticou a virtude. É, pois, a grande alma de São Bento<br />
que sentimos ali.<br />
Vem-me à memória um episódio encantador da vida<br />
desse Santo:<br />
A governanta de São Bento — termo um pouco anacrônico,<br />
pois não se usava naquele tempo, mas de fato<br />
corresponderia a uma governanta atualmente — deixou<br />
cair uma vasilha emprestada, que se desfez em cacos.<br />
Já é uma coisa aborrecida romper algo que nos pertence,<br />
quanto mais quebrar um objeto emprestado de outra<br />
pessoa; é uma espécie de vexame.<br />
Ela ficou muito aflita e São Bento a viu chorar.<br />
Desejando, então, restabelecer a paz de alma daquela<br />
senhora, São Bento se ajoelhou, rezou e a vasilha se recompôs<br />
miraculosamente. Ele voltou-se com naturalidade<br />
para a mulher, sem excitação nem angústia, e disse:<br />
“Aqui está a vasilha!”<br />
Quem está tão em presença de Deus, e paira tanto acima<br />
dos acontecimentos, sabe que a Providência resolverá<br />
para ele os casos; esse não tem aflição.<br />
São Bento caminha sério, recolhido, severo até — como<br />
ele é representado no afresco que vimos há pouco —,<br />
de uma severidade admirável, e tem rumo para tudo; confia<br />
em Deus, ainda quando ele não saiba qual será a solução<br />
do problema. Deus lhe dará confiança. E por isso os<br />
vendavais torpes da vida não sopram sobre ele. Ele avança<br />
majestoso, bondoso, com a alma firme, e sacralizando tudo<br />
pela sua presença.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 6/7/1985)<br />
35
Revista Dr Plinio 213, Dezembro <strong>2015</strong><br />
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Estilo “condeano”:<br />
força e leveza<br />
Condé e Turenne foram brilhantes generais franceses<br />
do século XVII, que se caracterizaram por modos de ser<br />
bastante diferentes. O primeiro era intuitivo e fazia reflexões<br />
rapidíssimas e fulgurantes. Turenne, um homem que<br />
meditava e planejava. O feitio de inteligência do brasileiro é<br />
dado muitíssimo mais para Condé do que para Turenne.<br />
H<br />
ouve um Rei da França, Luís XIII, que passou<br />
à História com o bonito nome de Luís, o Casto,<br />
por sua enorme pureza de costumes. Era<br />
casado, aliás, com uma das mais nobres e belas princesas<br />
da Europa do seu tempo, Ana d’Áustria, Infanta da Espanha,<br />
Arquiduquesa d’Áustria e Rainha da França —<br />
não se pode possuir mais altos títulos!<br />
— e dela teve dois filhos:<br />
Luís XIV e Gaston d’Orléans.<br />
Versailles e Chantilly<br />
Além disso, era um bom general<br />
e homem valente na guerra.<br />
Não só capaz na direção das tropas,<br />
mas desses homens que se expõem,<br />
lutam e sabem ser os primeiros<br />
na hora do perigo, dando<br />
com isso exemplo aos seus soldados.<br />
É muito bela a conjunção dessas<br />
duas virtudes: a castidade e o<br />
heroísmo. A maior beleza dessa<br />
união de virtudes nós a temos em<br />
Santa Joana d’Arc, a virgem guerreira<br />
heroica, nascida na Lorena.<br />
A castidade é uma virtude cheia<br />
de delicadeza e de fragilidade. A<br />
coragem é uma virtude plena de<br />
fortaleza e de intrepidez. A jun-<br />
Siren Com (CC 3.0)<br />
Casamento de Luís XIII com<br />
Ana de Habsburg - Museu dos<br />
Agostinianos, Toulouse, França<br />
ção desses opostos forma uma verdadeira maravilha! São<br />
como duas partes de uma ogiva que se unem para constituir<br />
um todo harmônico muito bonito.<br />
No dia 13 de maio de 1643, esse rei, ainda relativamente<br />
jovem, estava prestes a falecer, vítima da tuberculose,<br />
quando viu, perto de sua cama, em pé, um parente<br />
muito próximo: o Príncipe de<br />
Condé.<br />
Os Condé constituíam um ramo<br />
colateral da Casa Real francesa.<br />
Um ramo que se caracterizou,<br />
até sua extinção no século<br />
XIX, pelo esplendor da vida e<br />
pela coragem. Para termos ideia<br />
do esplendor da vida consideremos<br />
o seguinte: Os reis da França,<br />
pertencentes ao ramo primogênito<br />
da Casa Real francesa, tinham<br />
muitos castelos magníficos, cada<br />
um melhor do que o outro. Basta<br />
pensar em Versailles para compreender<br />
a magnificência em que<br />
vivia o ramo primogênito da Casa<br />
Real francesa.<br />
Naturalmente, o ramo dos<br />
Condé, que era um ramo de príncipes,<br />
mas colateral, tinha como<br />
castelo de grande importância<br />
apenas um: o castelo de Chantilly.<br />
No tempo de Luís XIV, o Prínci-<br />
30
pe de Condé estava construindo<br />
este edifício, o qual estava ficando<br />
tão bonito que Luís XIV mandou<br />
dizer a ele que recomendava<br />
não embelezá-lo ainda mais, porque<br />
poderia fazer sombra ao ramo<br />
principal da Casa Real. Com<br />
um castelo só, eles sabiam elevar-<br />
-se e dignificar-se tanto que o ramo<br />
primogênito da Casa Real sentiu-se<br />
como que em xeque, para<br />
não dizer xeque-mate, se a beleza<br />
de Chantilly continuasse a se aprimorar.<br />
Quando conheci Chantilly, a<br />
primeira coisa que me veio ao espírito<br />
foi esse temor de Luís XIV.<br />
Eu já tinha visitado Versailles, conhecia<br />
o Louvre, Fontainebleau, os<br />
principais castelos reais da França.<br />
Sem dúvida nenhuma, se aprimorassem<br />
ainda mais Chantilly, era<br />
um xeque-mate para a Casa Real.<br />
Batalha do ”Rochedo do Rei”<br />
Reprodução<br />
Compreendemos, então, o valor desse ramo colateral<br />
que com menos recursos sabia se valorizar até se elevar<br />
a esse ponto. Mas sem uma rivalidade baixa com o<br />
ramo primogênito. Pelo contrário, servindo-o sempre<br />
muito bem, a tal ponto que, quando em fins do século<br />
XVIII arrebentou a Revolução Francesa, o Príncipe<br />
de Condé, seu filho, o Duque de Bourbon, e seu neto,<br />
o Duque d’Enghien, lutaram como leões a favor do ramo<br />
primogênito. E extinguiu-se essa Casa porque o Duque<br />
d’Enghien, o mais moço da linha, foi morto por Napoleão.<br />
Como dizíamos, durante sua agonia Luís XIII notou,<br />
junto à sua cama, o Príncipe de Condé que assistia<br />
à morte do Rei. O monarca voltou-se, então, para o primo<br />
e disse:<br />
— Monseigneur, eu sei que o inimigo penetrou em<br />
nosso território com um grande e poderoso exército.<br />
Mas vosso filho rechaçará o ataque e acalmará a nossa<br />
ansiedade.<br />
Realmente, a França acabava de ser invadida e era<br />
um problema saber como conter o adversário que tinha<br />
transposto as fronteiras do país, mas ninguém prestou<br />
atenção ao delírio de um moribundo.<br />
No dia seguinte, portanto em 14 de maio, Luís XIII<br />
morreu e sua profecia tornou-se realidade. Cinco dias<br />
depois, o Duque d’Enghien, filho primogênito do Príncipe<br />
de Condé — todos os primogênitos<br />
dos Príncipes de Condé tomavam<br />
o título de Duque d’Enghien<br />
—, com 22 anos de idade, derrotava<br />
as forças espanholas, sob o comando<br />
de Francisco de Melo.<br />
A batalha teve lugar em Rocroi,<br />
uma comuna das Ardenas, em território<br />
francês, a duas milhas de<br />
distância do que é hoje o litoral belga,<br />
e cujo nome significa “Rochedo<br />
do Rei”. As tropas espanholas entraram<br />
pela Bélgica para invadir a<br />
França.<br />
Turenne: um monumento<br />
de reflexão<br />
A França teve, no século XVII,<br />
dois grandes generais: um era o<br />
Visconde de Turenne<br />
Príncipe de Condé 1 e o outro, o<br />
Visconde de Turenne. Este não era<br />
da Casa Real francesa, mas de uma<br />
família de nobres de categoria um pouco menor.<br />
Os memorialistas do tempo e os analistas da História<br />
francesa descrevem o modo dos dois combaterem, caracteristicamente.<br />
Turenne era um homem que meditava e<br />
planejava os cercos dele, até o último ponto. Quer se tratasse<br />
de estar cercado pelo adversário, ou de cercá-lo, ele<br />
era um espírito frio, lúcido, calmo, meticuloso, que preparava<br />
com muita antecedência todos os pormenores,<br />
para não acontecer nada na batalha que ele não tivesse<br />
previsto, à maneira de um jogo de xadrez impecável. Ele<br />
era um verdadeiro monumento de reflexão calma, madura,<br />
forte, mas inteiramente militar, técnica e científica.<br />
Turenne morreu já velho. Era protestante e converteu-se<br />
à Religião Católica, e dele disse Bossuet esta frase<br />
famosa: “Na juventude, ele tinha a maturidade de espírito<br />
de um adulto; maduro, ele conservava a força e o verdor<br />
da juventude.” É a teoria da soma das idades. Até o<br />
fim da vida, ele foi assim.<br />
A conversão dele foi difícil, porque sua família era<br />
convictamente protestante. Eles faziam parte dos chefes<br />
do grupo protestante na França. A mulher e a mãe dele<br />
fizeram tudo para ele não se converter. Mas a partir do<br />
momento em que ele se convenceu de que a Religião Católica<br />
era verdadeira, não houve quem o segurasse. Ele<br />
se converteu mesmo e disse para a mulher: “Querendo,<br />
vá embora. Eu agora sou católico.” A mulher cedeu, mas<br />
morreu sem se ter convertido.<br />
Vemos nisso o feitio do espírito deste general. Ele, para<br />
se converter, analisou a Religião, fez, por assim dizer,<br />
31
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
o cerco da Religião como faria o cerco de uma fortaleza;<br />
percebendo que era verdadeira, entrou nela e se submeteu<br />
filialmente.<br />
Condé poderia ser comparado a uma águia<br />
Condé tinha um feitio de alma completamente diferente.<br />
Era muito vivo e podia ser comparado a uma<br />
águia. Muito esguio, esbelto, com um grande nariz curvo,<br />
adunco, característico da Casa de Condé. Até no momento<br />
da batalha, ele parecia um homem que pensava<br />
em outra coisa.<br />
Quando chegava na hora da luta, ele se apresentava,<br />
tomava conhecimento, tinha um olhar de relance da situação,<br />
e jogava-se como uma águia no ponto principal<br />
com um ímpeto tal que ele desbaratava. Em pouco tempo<br />
ele obtinha suas vitórias.<br />
O Príncipe de Condé era um homem muito refletido,<br />
mas com reflexões rapidíssimas. Pela forma de talento<br />
dele, a reflexão fazia-se no momento, e não lentamente.<br />
Cada um desses dois modos de ser tem seu mérito. É<br />
brilhante acertar de maneira fulgurante. Mas é brilhante<br />
também ver o espírito montar, peça por peça, o aspecto<br />
geral da verdade, e demonstrar. São duas modalidades,<br />
ambas criadas por Deus, para refletir a suprema e inatingível<br />
perfeição d’Ele, que é, ao mesmo tempo, o modelo<br />
de toda reflexão e de toda subtaneidade na facilidade<br />
divina e completa com que Ele cogita. Aí é a perfeição<br />
absoluta.<br />
A intuição corresponde a uma reflexão rapidíssima,<br />
fulgurante. O feitio de inteligência do brasileiro é dado<br />
muitíssimo mais para Condé do que para Turenne.<br />
Temos, então, a explicação sobre como, aos 22 anos<br />
de idade, Condé — nessa ocasião Duque d’Enghien — já<br />
pudesse ser um tão grande general. Ele pertencia a uma<br />
família onde todo mundo tinha sido grande batalhador,<br />
grande guerreiro e, alguns, generais. Essa atmosfera militar<br />
impregnava o ambiente em que ele viveu, no qual se<br />
conversava sobre batalhas, planos estratégicos, como em<br />
famílias de hoje se conversa sobre automóvel, programas<br />
de rádio e televisão. O resultado é que ele já era todo<br />
modelado por isso.<br />
As famílias, naquele tempo, eram escolas de fazer o<br />
que tinham realizado os antepassados. Havia dinastias,<br />
famílias inteiras de profissões também plebeias. Família<br />
de sapateiro, de carpinteiro, de relojoeiro, de pintor. A<br />
família subia, porque cada nova geração acrescentava alguma<br />
coisa ao savoir faire, ao know how da geração anterior.<br />
A pessoa era modelada pelo ambiente.<br />
Por essa forma de reflexão fulgurante, aos 22 anos ele<br />
já era um grande general. E a tal ponto que as batalhas<br />
dele se estudam nas escolas militares do mundo inteiro,<br />
como se estudam, por exemplo, as de Turenne e as de<br />
Napoleão, de Hindenburg, de Ludendorff, etc. Ficaram<br />
no curso da História. De tal maneira eram batalhas fulgurantemente<br />
pensadas e executadas.<br />
Gesto de elegância militar<br />
Siren Com (CC 3.0)<br />
Feita a descrição do personagem, consideremo-lo<br />
nesse quadro que representa o final<br />
da mais célebre de suas batalhas: a de Rocroi.<br />
Vemos um panorama campestre. Ao<br />
fundo, corre um rio, mais adiante um campanário<br />
e uma aldeiazinha. O rio plácido e<br />
tranquilo, onde não se combateu, contrasta<br />
com o número de pessoas que se acotovelam<br />
nessa cena. Há dois grupos bem diversos:<br />
os franceses e os espanhóis. Estes<br />
últimos estão a pé.<br />
Notam-se, na primeira fila, alguns mortos,<br />
um tambor furado. Do outro lado,<br />
os franceses. O futuro Príncipe de Condé,<br />
no centro; mais para trás a figura de<br />
um guerreiro, homem perto dos 60 anos,<br />
mas de uma maturidade extraordinária,<br />
guerreando, combatendo, olhando para<br />
o Condé com muita atenção; o séquito<br />
francês que vem vindo atrás. No meio de<br />
uma poeira cheia de luz, uma mão que<br />
levanta uma espada. Na primeira fileira,<br />
32
Reprodução<br />
dois cavaleiros que se dirigem a Condé, e aos quais Condé<br />
faz um gesto com a mão.<br />
A batalha havia sido ganha pelos franceses, e os espanhóis<br />
tinham estabelecido um entendimento, uma espécie<br />
de armistício, quando se produziu nas hostes espanholas<br />
uma agitação, que alguns franceses interpretaram<br />
como sendo espanhóis que queriam romper o acordo e<br />
recomeçar o ataque. Então, os franceses se dispuseram<br />
a atacar. Condé recebeu a informação de se tratar de um<br />
engano, não passando de um movimento interno das tropas<br />
espanholas. Levado pelo respeito devido aos derrotados<br />
cavalheirescos e de boa-fé, e em particular ao exército<br />
espanhol, que na época era um dos primeiros da Europa,<br />
ele fez cessar imediatamente o ataque que os franceses<br />
iam perpetrar contra os vencidos, por um equívoco.<br />
Razão pela qual Condé faz um sinal tranquilizador. O<br />
gesto de mão é muito significativo nesse sentido. Nota-se<br />
também que, enquanto as tropas francesas vêm avançando,<br />
ele está freando o cavalo dele. Toda a sua atitude é de<br />
quem para o cavalo e contém o ataque da cavalaria francesa,<br />
e pacifica uma situação que poderia dar numa chacina.<br />
Esse é o bonito gesto de elegância militar que o pintor<br />
quis guardar.<br />
Por causa das tradições de Cavalaria, enigmaticamente<br />
representadas nesse quadro, os antigos tinham a preocupação<br />
de tratar sempre o vencido digno, com muita honra.<br />
Era uma vergonha para um vencedor esmagar o derrotado<br />
de um modo inumano e humilhá-lo. Batiam-se rudemente<br />
enquanto durava o combate. Cessado este, era a hora<br />
da cortesia, da reverência, da distinção de parte a parte.<br />
Aqui vemos, então, Condé cumprir esse dever de cavalheiro.<br />
Ele, vitorioso, contém os franceses e, com isso, salva<br />
os vencidos. É a velha Cavalaria que ainda se encontra aí.<br />
A manifestação enigmática da velha Cavalaria, para<br />
a qual eu não encontrei uma explicação, é uma figura<br />
medieval, completamente anacrônica, toda revestida de<br />
couraça medieval e de plumas, e que está meio fora do<br />
ambiente. Ninguém mais usava, nesse tempo, esse armamento.<br />
O personagem parece estar posto numa luz onde<br />
se tem um pouco a impressão de não se tratar de um ser<br />
vivo, mas de um fantasma. O que significará esse fantasma?<br />
Será a velha Cavalaria, símbolo que paira sobre essa<br />
cena cavalheiresca? Também não sei.<br />
Importância dos matizes<br />
Descrevi o quadro com todos os seus detalhes para<br />
ajudá-los a tomar o gosto pelo pormenor. O sabor de todas<br />
as coisas está no pormenor. Talleyrand dizia que a<br />
verdade está nos matizes. Todas as verdades são cheias<br />
33
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
de matizes. Saber matizar é saber pensar; e saber pensar<br />
é saber viver.<br />
Notem quantos matizes aparecem nessa cena! Vemos<br />
aflição nesses dois cavaleiros e, ao mesmo tempo, a inteira<br />
calma desse espanhol de pé, com um grande chapéu,<br />
camisa e ampla gola branca. Ele percebeu a distinção<br />
e a nobreza da atitude do Condé, fazendo sinal para<br />
seus compatriotas não atacarem, por se tratar de um mero<br />
equívoco. Outro atrás, vencido, aclama o gesto de fidelidade<br />
de Condé. Notamos aí a glória de Condé, a confiança<br />
e a admiração do vencido. Isso não está escrito,<br />
mas está expresso. É um quadro com um pensamento.<br />
Atrás de Condé vemos aquele velho cavaleiro francês.<br />
Notem o jeito dele. Sem dúvida nenhuma, é um nobre. É<br />
também um homem muito varonil, corpulento, e se percebe<br />
que passou a vida inteira batalhando. Ele tem no<br />
chapéu uma pluma branca que parece um pouco de névoa<br />
a flutuar nas dobras de seu chapéu, como se fosse<br />
um resto de glória da batalha da qual ele acaba de tomar<br />
parte. Ele usa uma capa azul-claro, com uma espécie<br />
de bordado dourado. Dir-se-ia até que um azul tão claro<br />
não fica bem para o traje militar de um homem. Entretanto,<br />
para esse homem não fica perfeitamente bem?<br />
Tão varonil é ele, que pode usar isso, e até o que ele poderia<br />
ter de um pouco rude demais é atenuado agradavelmente<br />
pelo azul-claro da capa por ele usada.<br />
Eis uma das características do senso de matiz do francês:<br />
veste o herói de azul bem claro. Um bobo diria:<br />
“Efeminado!” Mas dizer que esse homem é efeminado<br />
é ridículo. Ele é um patriarca, um senhor feudal de grande<br />
porte, presente na batalha. E assim como, no momento,<br />
encontra-se sereno, daqui a dois ou três minutos pode<br />
estar matando ou morrendo, porque está inteiramente<br />
disposto a tudo. É um leão!<br />
Fórmula francesa do heroísmo<br />
Essa é a fórmula francesa do heroísmo e da coragem.<br />
Há várias formas. Não é esta a única modalidade bonita.<br />
Há a fórmula alemã — lindíssima! —, a fórmula espanhola<br />
e tantas outras. A francesa é a do leão com rendas,<br />
enfeitado com cores claras. Alguém poderia estranhar.<br />
Se estranhar é porque não entendeu. E se não entendeu,<br />
é uma pena para ele. Porque é uma lástima alguém não<br />
entender isso.<br />
Vejam os contrastes finos apontados pelos matizes. Para<br />
dar uma ideia de até que ponto esse guerreiro é um homem<br />
varonil, concorre a espada que ele não está brandindo.<br />
Percebe-se que, quando ele a brande, é assim. Esse<br />
pormenor compõe o aspecto guerreiro do homem.<br />
Notem para onde ele está olhando. Não é para a batalha,<br />
mas para o Condé. Imagem da disciplina militar, ele<br />
olha para o chefe. O que este mandar, ele fará. Se o comandante<br />
disser: “Mate cinco mil, ou morra”, ele vai<br />
para a frente e morre, na tentativa de matar os cinco<br />
mil. Se, pelo contrário, o chefe disser: “Embainha tua<br />
espada”, ele a embainha. É a fidelidade feudal não apenas<br />
na vida civil, mas transposta para o terreno militar,<br />
e na sua perfeição. Ele olha para o Condé, porque o<br />
próprio do grande senhor é olhar para o príncipe, como<br />
o príncipe olha para o rei, como o rei olha para Deus. É<br />
a hierarquia das coisas.<br />
Chegou o momento de analisarmos o Condé. Notem,<br />
antes de tudo, suas feições. O enorme nariz, que<br />
se projeta decididamente para a frente, tem a forma<br />
e o gráfico da coragem. Ele é ainda muito moço, com<br />
as características de certo tipo de francês do Norte,<br />
mais chegado ao alemão: pele clara, corada,<br />
cabelos louros, longos e cacheados. Características<br />
da raça. É um tipo de herói<br />
que exprime a coragem e a força<br />
francesas.<br />
O soldado alemão, por exemplo,<br />
faz sentir a sua força pela sua<br />
corpulência atlética, pelo seu desassombro<br />
e pelo impulso físico<br />
e moral. O francês é muito mais<br />
esguio, fino. A sua capacidade<br />
de força não é dada tanto pela<br />
quantidade quanto pela qualidade<br />
dos músculos. São músculos<br />
que não precisam ser bolas<br />
para dobrar e quebrar o adversário.<br />
A etimologia da palavra<br />
“músculo” vem do latim, mus,<br />
que significa rato. Músculo é o diminutivo<br />
latino de rato, e quer dizer<br />
ratinho. Quando o músculo se<br />
contrai, forma à maneira de um ratinho<br />
debaixo da pele.<br />
O guerreiro francês não tem “ratinhos”<br />
por debaixo da pele, como teriam, por exemplo,<br />
certos atletas da escultura renascentista italiana. O Moisés<br />
de Michelangelo, por exemplo, é uma coleção de “ratos”.<br />
O francês não precisa disso. Possui nervos de aço<br />
que não formam bola, pois tudo nele é harmônico.<br />
O cavaleiro medieval exprime o grau<br />
de perfeição a que chegou a Cristandade<br />
No Condé percebemos uma característica muito bonita:<br />
na fragilidade dele, a intensidade de alma. Quando<br />
ele ataca, ninguém resiste.<br />
34
Chamo a atenção para o olhar: é um olhar dominador.<br />
Muito mais do que o nariz é o olhar, o qual se percebe<br />
pela atitude da cabeça. O que comanda o olhar é a posição<br />
da cabeça. Vejam a posição do pescoço e da cabeça<br />
dele. O pescoço está completamente ereto, mas não<br />
de um modo provocativo. É natural nele ser superior. A<br />
cabeça está posta de tal maneira que ele, naturalmente,<br />
fica de cima em relação a qualquer pessoa que ele olhe.<br />
De onde o gesto protetor é de uma bondade que deflui<br />
do alto. Ele está inteiramente seguro. Notem a mão dele<br />
com um dedo afastado do outro, com naturalidade, como<br />
quem diz: “Tranquilizem-se! Eu vou manter o pacto.<br />
Não há nada.” Mas com a bondade de um vencedor.<br />
Aqui está o cavaleiro perfeito.<br />
Um comentário sobre seu traje. É o gosto dos franceses<br />
de adornar a coragem com cores claras, ligeiras. Ele usa<br />
um paletó de um dourado muito claro e delicado, quase<br />
creme, que deixa transparecer perfeitamente o corpo dele<br />
bem delineado, com os ombros muito mais largos do que<br />
a bacia. Ele tem uma faixa azul da qual pende a insígnia<br />
da Ordem do Espírito Santo, e uma grande gola de renda.<br />
Sobre seu chapéu ele traz plumas muito mais magníficas<br />
do que as daquele personagem atrás dele. São plumas<br />
ligeiras, branquíssimas, formando uma espécie de rastro,<br />
como a dizer: “Ele passa, mas a glória deixa um sulco<br />
atrás dele. Ele meneia a cabeça e a glória esvoaça em torno<br />
dele.” Essas plumas brancas para um general são quase<br />
o que é uma auréola para um santo.<br />
O cavalo do Condé é uma perfeição, porque é no reino<br />
dos cavalos o que o Condé é no reino dos homens. É<br />
um cavalo de guerra francês. Quer dizer, raça apurada<br />
Augusto Ferrer (CC 3.0)<br />
pelos franceses. Não é desses cavalões. Não<br />
sei se conhecem um tipo de cavalo chamado<br />
percheron, para arrastar carga. Enormes patas,<br />
uma coisa fenomenal. Não deixa de ter<br />
sua graça. Mas não é isso. Esse é um cavalo<br />
ligeiro, feito para pular por cima dos adversários,<br />
muito mais do que para achatá-los; que<br />
mais vence voando do que esmagando. Mas<br />
cuja pata é certeira e cujos músculos são como<br />
os do Condé. Não há “ratinhos” ali, como<br />
terá talvez o percheron. A musculatura do<br />
cavalo do Condé é enxuta, simples, vigorosa.<br />
Vejam a vivacidade dele; é como a vivacidade<br />
do Condé!<br />
Compreendemos, assim, o estilo “condeano”<br />
de combater. A intuição está nele. O homem<br />
entra no campo de batalha, olha, intui<br />
e avança.<br />
Se eu tivesse que dar um título a este quadro,<br />
diria: Garbo é igual a força mais leveza.<br />
Força e leveza dão o “condeano”.<br />
O quadro tem espírito medieval no sentido de que<br />
afirma muito o esplendor da condição militar e seu caráter<br />
aristocrático e nobre. De maneira que até os plebeus<br />
presentes na cena têm algo de nobilitado pela condição<br />
militar. Essa glorificação da condição militar é uma característica<br />
medieval.<br />
Contudo, não possui o espírito medieval pelo fato de<br />
os principais personagens do quadro fazerem a guerra<br />
como se partissem daí para uma dança; eles estariam<br />
prontos para uma festa. Ora, para a morte a pessoa não<br />
se prepara assim. Há o Juízo, a grandeza do destino eterno<br />
do homem, a majestade infinita de Deus, a majestade<br />
da morte que roça por cada um na batalha, que suporia<br />
mais gravidade e, consequentemente, maior audácia e<br />
maior beleza também. Por isso, aquele personagem meio<br />
mítico colocado ali é, neste sentido, superior ao Condé,<br />
pois é mais religioso.<br />
O cavaleiro medieval, a meu ver, exprime o grau de<br />
perfeição a que foi dado à Cristandade chegar, até o momento.<br />
No Reino de Maria atingirá incomparavelmente<br />
mais alto, porque São Luís Grignion de Montfort diz que<br />
os Santos do Reino de Maria vão ser para os anteriores como<br />
os carvalhos em relação às graminhas. Então, as belezas<br />
da Cristandade serão como graminhas em comparação<br />
com as da Civilização Cristã do Reino de Maria. v<br />
(Extraído de conferência de 5/3/1977)<br />
1) Luís II de Bourbon, 4º Príncipe de Condé (*1621 - †1686), conhecido<br />
como “O Grande Condé”, que venceu a Batalha de Rocroi.<br />
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