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2015_Luzes-ApostoloPulchrum

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apóStoLo Do puLcHrum<br />

Revista Dr Plinio 202, Janeiro <strong>2015</strong><br />

O belo e o prático - I<br />

Paulo sande (CC 3.0)<br />

“Terreiro do Paço”<br />

Museu da Cidade,<br />

Lisboa, Portugal<br />

A Revolução, fundamentalmente materialista, propaga a ideia de<br />

que o importante é o lado prático das coisas, pois proporciona<br />

conforto para o corpo, enquanto que o belo nem deve ser<br />

considerado. Dr. Plinio desmonta esse sofisma.<br />

D<br />

iante de tantas coisas bonitas dos tempos<br />

antigos que foram sendo destroçadas, e tantas<br />

coisas hediondas instauradas nos dias de<br />

hoje em nome do prático, põe-se a pergunta: o prático<br />

não é um precursor da feiura e o belo um inimigo<br />

do prático?<br />

Grahamedown (CC 3.0)<br />

Darwininius (CC 3.0)<br />

Carfax2 (CC 3.0)<br />

32


Rapidez e comodidade<br />

Para analisar esta questão, consideremos alguns meios<br />

de transporte.<br />

Toda coisa é perfeita na medida em que atinge o seu<br />

fim. Ora, o fim de uma carruagem, por exemplo, é transportar;<br />

e se ela transporta nas condições ideais, realizou<br />

a sua perfeição.<br />

Quais são as condições ideais do meio de transporte?<br />

Ele deve ser, entre outras coisas, rápido e cômodo. Entretanto,<br />

o conceito de cômodo é muito amplo, porque<br />

uma é a comodidade que se pode querer ter em um automóvel<br />

que transpõe a distância de alguns quarteirões;<br />

outra é a comodidade exigida desse veículo fazendo uma<br />

longa viagem. São distâncias muito diferentes em que o<br />

corpo e o próprio espírito humano pedem graus e modos<br />

de conforto diferentes.<br />

Há outras circunstâncias que condicionam a comodidade<br />

de um veículo, como, por exemplo: um molejo adequado<br />

para transitar em superfícies irregulares; arranque<br />

suave e silencioso do motor; estabilidade pela qual o passageiro<br />

sinta-se bem e seguro, mesmo em alta velocidade,<br />

etc.<br />

Chegamos, assim, à conclusão de que o espírito prático<br />

deve ser adaptado a várias circunstâncias.<br />

Beleza ou conforto?<br />

A beleza interna de um veículo é uma condição de<br />

conforto? Evidentemente sim. Porque tudo que lisonjeia<br />

os sentidos, de algum modo, é condição de conforto. É<br />

muito confortável viajar em uma carruagem e ver o sol<br />

entrando pelos cristais das janelas e incidindo sobre sedas,<br />

damascos, veludos, “brincando” naqueles tecidos de<br />

luxo. Portanto, estaria de acordo com o espírito prático<br />

— que deve procurar o conforto de um veículo — tornar<br />

bonito o interior de uma carruagem.<br />

Mas também deve estar de acordo com o espírito prático<br />

que um automóvel tenha um compartimento com<br />

um pequeno refrigerador contendo líquidos gelados para<br />

que, no auge do calor, sem ter de diminuir a velocidade<br />

do carro, o dono possa servir-se de um refresco.<br />

Havendo tudo isso, pode-se dizer que o espírito prático<br />

obteve uma vitória. Mas torna-se impossível fabricar<br />

uma bela carruagem com essas comodidades. Onde colocar<br />

a geladeira e as supermolas compatíveis com a supervelocidade?<br />

Onde instalar um mecanismo por onde baste<br />

apertar um botão para as janelas subirem e baixarem<br />

fazendo um ruído prestigioso? Essas coisas cabem nos<br />

produtos modernos, não nos antigos. Então, o que escolher:<br />

a beleza da carruagem ou o conforto do automóvel?<br />

Alma do homem e pulcritude<br />

Até pouco tempo atrás, os homens não tinham perdido<br />

a noção do belo, mesmo passando da era da bela<br />

carruagem para a do automóvel. Tomemos, por exemplo,<br />

automóveis do tipo Mercedes. Eram bonitos veículos,<br />

com cores lindas, reluzentes. O homem tinha a impressão<br />

de entrar em uma pedra preciosa, de tal maneira<br />

aquela lataria toda era ornada. Dentro havia couros<br />

de primeira ordem, espaço amplo, enfim, todos os agrados<br />

dos transportes de luxo se encontravam reunidos ali.<br />

Diversos modelos de<br />

carruagens inglesas<br />

Tony Hisgett (CC 3.0)<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

Dcoetzee (CC 3.0)<br />

Isso obedecia ao seguinte princípio: há uma<br />

razão para, tanto a carruagem quanto o automóvel,<br />

serem belos.<br />

Todos os argumentos dados até agora a favor<br />

do espírito prático valem para o corpo. Mas o homem<br />

tem só corpo? Ele é principalmente corpo?<br />

O homem não é principalmente alma? E se a alma<br />

é o elemento principal do ser humano, do que vale<br />

o belo para a alma? Neste caso, ter beleza não seria o<br />

principal componente que um transporte deveria possuir?<br />

Lindos cavalos, belas carruagens<br />

Dcoetzee (CC 3.0)<br />

O Bucentauro no<br />

Grande Canal de<br />

Veneza - Museu Pushkin,<br />

Moscou, Rússia e<br />

Museu Nacional de Arte,<br />

Copenhagen, Dinamarca<br />

Analisemos o papel do belo.<br />

Primeiramente, a pessoa que está em uma carruagem<br />

ou qualquer outro meio de transporte, ainda que seja<br />

simplesmente um cavalo, apresenta-se aos olhos do público<br />

de modo a chamar a atenção. Porque um indivíduo<br />

que atravessa uma rua dentro de um veículo ou montado<br />

em um animal, atrai muito mais a atenção do que<br />

quem vai a pé, e forma um todo psicológico e artístico<br />

aos olhos dos transeuntes.<br />

Ademais, o homem tem interesse em ser conhecido<br />

pelo que ele é, para que se lhe dê o valor ao qual tem direito.<br />

Se ele é um verdadeiro cavaleiro, descendente, por<br />

exemplo, dos cruzados, convém que monte um lindo cavalo<br />

de raça.<br />

E montar, não é estar sobre o animal como estaria um<br />

saco de batatas. É preciso cavalgar com elegância, altaneria<br />

e dignidade. O cavaleiro deve dar a impressão de<br />

tal domínio sobre o cavalo, que o oriente simplesmente<br />

pelo movimento das pernas. As rédeas servem mais como<br />

um elemento ornamental.<br />

Além disso, o animal<br />

precisa estar belamente ajaezado<br />

com uma bonita sela, belos<br />

arreios. Tudo isso forma a moldura com que o homem<br />

se apresenta em público.<br />

É de acordo com a dignidade do homem que ele queira<br />

cavalgar esplendidamente um lindo cavalo. Isso não é<br />

vaidade, mas o reto exercício do instinto de sociabilidade,<br />

não com pretensão, mas com a naturalidade com que<br />

uma pessoa quer mostrar o rosto limpo para os outros.<br />

Tratando-se de pessoas de uma condição inteiramente<br />

excepcional, como um rei e uma rainha, que ocupam no<br />

Estado e na sociedade o primeiro lugar, é natural que,<br />

por uma necessidade da alma, se façam ver e reverenciar<br />

pelo que eles são, utilizando uma carruagem à altura<br />

de seu cargo.<br />

Para eles, mais importante do que a grande velocidade<br />

e todas as comodidades é ter um coche, no qual se<br />

apresentem como dentro de uma linda moldura.<br />

Por isso as altas situações são tratadas pelos artistas —<br />

no caso concreto, pelos fabricantes de coches — de maneira<br />

a serem realçadas. A arte se empenha em apresentar<br />

o rei, a rainha, os príncipes da casa real, os nobres,<br />

os titulares de altas dignidades da Igreja, do Poder Judi-<br />

34


Peter Isotalo (CC 3.0)<br />

ciário, das Forças Armadas, etc. de modo a serem naturalmente<br />

respeitados, proporcionando-lhes outra modalidade<br />

de conforto: a comodidade de governar.<br />

Então, é uma vantagem do Estado que haja lindas<br />

carruagens. Quanta revolta é evitada, quanta guerra interna<br />

é poupada a um país porque o povo se habituou a<br />

respeitar quem o governa!<br />

O Bucentauro e a ponte sobre o Tâmisa<br />

A República de Veneza tinha um presidente do Conselho<br />

dos Nobres intitulado Doge, palavra derivada do<br />

vocábulo latino dux, chefe.<br />

Para navegar pelas águas fabulosas da Laguna de Veneza,<br />

o Doge dispunha de uma embarcação, toda esculpida,<br />

folheada a ouro, lindíssima, que por uma reminiscência<br />

mitológica chamava-se “O Bucentauro”.<br />

Na ocasião máxima do Estado Veneziano, o Doge<br />

partia no Bucentauro acompanhado de centenas de barcos,<br />

gôndolas com aquelas proas lindas, gente tocando<br />

instrumentos, cantando, etc., laguna adentro, até o Mar<br />

Adriático. E, quando estavam no alto mar, o Bucentauro<br />

parava e o Doge jogava nas águas um anel precioso: era<br />

o casamento de Veneza com o mar.<br />

Veneza era uma grande república comercial e dominava<br />

os mares naquele tempo, sendo, por isso riquíssima.<br />

O casamento da República de Veneza com o<br />

mar representava uma espécie de união entre o Estado<br />

veneziano e seu destino histórico.<br />

Evidentemente era útil para o Estado veneziano<br />

ter um barco assim.<br />

Portanto, nem sempre a beleza tem essa incompatibilidade<br />

com o prático que apresentávamos no início<br />

desta exposição. Para a vida da alma, para o intercâmbio<br />

de relações entre as almas, para a formação da política<br />

e da cultura de um povo, o belo tem uma importância<br />

maior do que o prático. E quando há incompatibilidade,<br />

quase sempre o belo prevalece sobre o prático.<br />

Dou um exemplo de nossos dias: o Rio Tâmisa, em<br />

Londres, com aquela ponte levadiça. Aquilo é lindo, mas<br />

já não necessário, porque com os meios modernos poder-se-ia<br />

construir uma ponte alta que substituísse aquela.<br />

Por que se mantém a ponte atual? Porque é bela!<br />

Há, portanto, um prático de categoria inferior que encontramos<br />

ao olhar automóveis bem equipados. Mas há<br />

um prático mais elevado que toma em consideração que<br />

o homem é mais espírito do que matéria, e que as coisas<br />

do espírito têm muito mais importância do que as da matéria.<br />

Por isso, deve-se dar mais valor ao belo do que ao<br />

prático.<br />

v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de 4/10/1986)<br />

McKarri (CC.3.0)<br />

Stefan.lefnaer (CC.3.0)<br />

Ponte da Torre<br />

Londres, Inglaterra<br />

Proa do Bucentauro<br />

35


Apóstolo do pulchrum<br />

Revista Dr Plinio 203, Fevereiro <strong>2015</strong><br />

Luca Boldrini (CC 3.0)<br />

O belo e o prático - II<br />

Na sociedade deve haver uma hierarquia harmônica e<br />

proporcionada, a qual se manifesta, entre outras coisas, nos meios<br />

de transporte, que precisam ser belos e práticos. As carruagens<br />

existentes no Museu Nacional dos Coches, em Portugal, são<br />

exemplos característicos dessa verdade.<br />

T<br />

endo sido exposta, de modo muito sumário, a doutrina<br />

sobre o prático e o belo, é o momento de comentarmos<br />

algumas carruagens 1 que se encontram<br />

no famoso Museu Nacional dos Coches, em Lisboa.<br />

A parte nobre do corpo do homem deve<br />

aparecer mais que a inferior<br />

Logo à primeira vista notamos como o chão dessa car-<br />

32


uagem tem uma superfície menor do que a do teto; este<br />

se alarga, enquanto o chão é estreito. De maneira que<br />

se considerarmos como chão apenas a parte onde está a<br />

porta central, ele é minúsculo em comparação com o teto.<br />

A razão de ser disto é que, em tudo quanto o homem<br />

faz, há uma vantagem para ele em que a parte nobre de<br />

seu corpo apareça mais, e a parte inferior apareça muito<br />

menos.<br />

Temos, assim, uma arquitetura que, para visar o belo,<br />

é altamente prática porque, a partir da parte baixa dos<br />

cristais até em cima, o que se vê do homem é a parte nobre,<br />

em que ele aparece como um busto. Imaginem que<br />

este carro não tivesse na parte de baixo o quadro pintado<br />

na porta, nem esses ornatos, mas tudo fosse vidro até<br />

embaixo. Perderia enormemente.<br />

Porque ver pernas cruzadas, pés trançados que se agitam<br />

nervosamente, tudo isto é muito menos bonito do<br />

que ver os bustos elevados, a cabeça alta, do homem ou<br />

da dama, em atitude monumental, escultural.<br />

Harmonia entre as diversas<br />

partes da carruagem<br />

O carro tem duas partes bem diversas: uma é a que<br />

transporta, e outra a que é transportada. A parte que<br />

transporta são as rodas e a boleia onde senta o condutor.<br />

Atrás, entre as rodas grandes, há uma espécie de chãozinho<br />

para ficarem de pé os dois lacaios, de maneira que<br />

quando o carro para, imediatamente eles descem e vão<br />

correndo abrir as portas e pôr um banquinho<br />

embaixo — que já vem dentro do<br />

próprio carro —, para que o passageiro<br />

não seja obrigado a dar um pulo. Já pensaram como<br />

ficaria feio uma rainha idosa dando um pulo de lá para<br />

baixo?<br />

Os lacaios, vestidos em geral de damascos, sedas, com<br />

chapéus de veludo com penas, já sabem fazer uma cortesia<br />

muito grande com a porta aberta; e, não havendo um<br />

fidalgo para dar a mão à senhora que desce, o lacaio lhe<br />

oferece o braço. Ela desce de um modo elegante, e sai.<br />

Com o carro aberto pode-se olhar dentro e ver as sedas<br />

e os damascos nos assentos. Esta é a parte dos que<br />

são transportados.<br />

Notem a diferença de construção das rodas da frente<br />

com as de trás. As rodas da frente são pequenas e mais<br />

robustas. As rodas de trás são mais leves, altas e elegantes.<br />

A razão disso está ligada ao equilíbrio e conforto dos<br />

passageiros. Desde a boleia até a cabine, de ambos os lados,<br />

há umas peças que suspendem e mantêm a carroceria<br />

alta, garantindo o equilíbrio entre a parte de trás e<br />

a da frente enquanto o carro sobe ou desce, de maneira<br />

que os passageiros não sejam jogados para frente ou para<br />

trás. Sem dúvida, fica muito elegante. É uma série de<br />

providências práticas que são muito belas.<br />

Tuvalkin (CC 3.0)<br />

Victor Toniolo<br />

Tuvalkin (CC 3.0)<br />

Victor Toniolo<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

O prático disfarçado pela beleza<br />

Está posta uma situação digna de nota, em que o prático<br />

existe desde que se preste atenção, mas é preciso saber<br />

vê-lo, porque ele está de tal maneira disfarçado pela<br />

beleza, que quem observa não diz: “Oh, que sabedoria<br />

prática!”, mas exclama “Oh, que beleza!”<br />

As molas mantêm a cabine numa posição tal que ela<br />

não se inclina demais e, sobretudo, não toma solavancos<br />

do solo, o que poderia tornar mais desagradável o trajeto.<br />

Até mesmo a altura que vai do piso da carruagem ao<br />

calçamento está calculada para a perfeita comodidade<br />

das pessoas que se encontram no interior da cabine.<br />

Em geral, cabem seis passageiros nesse carro, dispostos<br />

frente a frente nas poltronas. Encostado à porta, há<br />

o banquinho utilizado quando as pessoas descem. Estas,<br />

conforme o caso, farão o percurso em silêncio e numa<br />

atitude de grande solenidade, ou conversando amavelmente.<br />

O povo tem o direito de vê-las numa dessas atitudes,<br />

e faz parte do dever delas apresentar esta beleza,<br />

pois as instituições políticas devem ornar os povos. O<br />

mais belo ornato de um povo é a sua instituição política.<br />

As carruagens e a hierarquia<br />

existente numa sociedade<br />

Analisemos agora outro veículo que é, sem dúvida, inferior<br />

ao anterior. Entretanto, não se pode dizer que seja<br />

um carro feio. É um carro bonito. Ele é lindo?<br />

Em comparação com as coisas de hoje, ele é lindo,<br />

mas se comparado com o primeiro carro, não; ele é apenas<br />

bonito.<br />

Pergunto: Então é uma baixa de nível fazer<br />

um carro assim?<br />

Não, porque toda sociedade, qualquer<br />

que seja a forma de governo, deve ter uma<br />

hierarquia. E é preciso que essa hierarquia<br />

seja harmônica; quer dizer, não haja um<br />

tombo entre o primeiro carro e depois apenas<br />

liteiras. Convém que essa hierarquia seja<br />

por degraus. Este não é um carro para rei,<br />

mas para príncipes.<br />

Por causa disto, ele é distinto, mas notem<br />

que a presença do ouro nele é muito menos<br />

abundante: o teto dele é muito menos ornado<br />

e de uma cor comum. As formas das janelas<br />

são muito menos fantasiosas e mais retilíneas,<br />

mas a justaposição de vermelho e ouro<br />

é bonita. Esse carro tem tudo o que o outro<br />

possui, mas de modo menos excelente.<br />

Essas carruagens são do museu dos coches<br />

da corte, mas se houvesse um museu dos coches<br />

da burguesia, outro dos coches do clero,<br />

etc., simplesmente pelos coches teríamos uma<br />

ideia da ordem hierárquica daquela sociedade.<br />

Até as liteiras bem mais modestas, que mães de famílias<br />

da classe popular tinham para se fazer transportar,<br />

eram interessantes. É a hierarquia social em que cada<br />

elo ama o elo de cima, e se faz respeitar pelo elo de baixo.<br />

E constitui uma boa organização social.<br />

Vale a pena, a esse respeito, ler os discursos famosos<br />

de Pio XII sobre a nobreza e o patriciado romanos, para<br />

se ter uma ideia do que se deve pensar a este respeito.<br />

Ósculo entre o belo e o prático<br />

Carlos Luis M C da Cruz(CC.3.0)<br />

Ricardo Tulio Gandelman (CC.3.0)<br />

Considerem um pouco o prédio do<br />

museu e notem como a sala dos coches<br />

é muito bem calculada. Vistas num conjunto,<br />

todas as coisas belas apresentam<br />

uma beleza maior do que a simples soma<br />

delas. E por isso é bonito ver os coches<br />

no seu conjunto. Então foi feito<br />

um salão bem alto, com uma grande galeria<br />

em cima, para que o conhecedor<br />

possa percorrer os vários lados e analisar<br />

os coches no seu conjunto.<br />

Para guardar bonitos coches tudo<br />

foi bem preparado. Quadros a óleo,<br />

provavelmente do tempo, representando<br />

cenas que se passaram neste ou<br />

naquele coche. O teto todo pintado e<br />

trabalhado. Tem-se vontade de haver<br />

ali no fundo, onde há uma cortina, um<br />

34


Aspectos do Museu Nacional dos<br />

Coches - Lisboa, Portugal<br />

Igor Zyx (CC.3.0)<br />

órgão para serem tocadas músicas extraordinárias,<br />

celebrando o passado de Portugal.<br />

Vamos terminar pelo lado “pedestre”: foi gasto<br />

muito com esses coches. Eu pergunto: Não é um<br />

elemento de grande valor para o prestígio atual<br />

de Portugal? Notem que é uma glória de Portugal.<br />

Em geral, as nações que foram colônias se revoltam<br />

contra as metrópoles, e rompem à mão armada.<br />

Portugal até hoje tem, em Angola e Moçambique,<br />

gente que está lutando para que essas nações<br />

voltem à união com Portugal. Eu lhes garanto que<br />

muitos angolanos, moçambicanos que visitaram<br />

esse museu, levando álbuns com visões de coisas<br />

destas para Angola e Moçambique, deram o sabor<br />

da cultura portuguesa, e concorreram para esta<br />

união de Portugal com os seus súditos. Nós, de<br />

origem portuguesa, nos alegramos em dizer isto<br />

aqui. Mais uma vez o belo e o prático se osculam,<br />

se encontram. Era preciso termos chegado a este<br />

século descabelado e sujo para que se imaginasse<br />

esse dissídio entre o belo e o prático. v<br />

(Extraído de conferência de 4/10/1986)<br />

1) As fotografias que ilustram esta seção não são as<br />

mesmas comentadas por Dr. Plinio.<br />

Luca Boldrini (CC.3.0)<br />

35


LuzeS Da civiLização criStã<br />

Revista Dr Plinio 204, Março <strong>2015</strong><br />

Esplendor do equilíbrio<br />

Interpretando falsamente o princípio de que a virtude<br />

está no meio, muitas pessoas chegam a defender os<br />

erros mais crassos, contrários à Doutrina Católica.<br />

Dr. Plinio elucida sapiencialmente esse tema, com<br />

base na razão e apresentando belíssimos exemplos.<br />

Catedral de<br />

São Basílio<br />

Moscou, Rússia<br />

São Francisco de Sales, grande Doutor da Igreja,<br />

chegou a identificar o equilíbrio com a virtude, dizendo<br />

que a virtude está no meio. Ora, o meio é<br />

exatamente o equilíbrio entre dois extremos, a considerar<br />

as coisas do ponto de vista geométrico. Assim, se a<br />

virtude está no meio, chegamos à conclusão de que a verdade<br />

se encontra no equilíbrio. Portanto, não há razão<br />

para julgar o equilíbrio como sendo algo insípido, estúpido;<br />

nele deve estar a verdadeira sabedoria.<br />

Noção de equilíbrio<br />

Petar Milošević<br />

Contudo, é preciso ver bem o que nas conotações da<br />

palavra “equilíbrio”, na linguagem brasileira, entra de<br />

fundamentalmente sem sabor, fazendo com que uma<br />

coisa tão eminente como o equilíbrio possa dar uma impressão<br />

tão desagradável.<br />

O equilíbrio, afinal, o que é? É uma excelência das<br />

coisas por onde elas — nos seus aspectos contrários — se<br />

compensam, se harmonizam, de maneira tal que se reúnem<br />

em torno de uma nota suprema, a qual abarca uma<br />

porção de notas colaterais. Poderíamos dizer, por exem-<br />

30


Nesta página e nas seguintes,<br />

aspectos do Castelo de<br />

Cheverny - França<br />

Sanchezn (CC 3.0)<br />

Catedral de Notre-Dame - Paris, França<br />

plo, que um edifício, com uma torre no centro e duas alas<br />

iguais de uma amplitude harmônica com o tamanho da<br />

torre — ou seja, quanto mais alta a torre, mais largas as<br />

alas —, tem equilíbrio. Essa ideia de equilíbrio abrange<br />

uma grande variedade de aspectos, e nós começamos a<br />

entrever através disso, de um modo mais vivencial, quanto<br />

o equilíbrio é uma coisa boa.<br />

Entretanto, no Brasil se chama homem equilibrado,<br />

não aquele que tem uma ideia ou princípio central, em<br />

torno do qual ele traça a circunferência de todos os aspectos<br />

possíveis, mas um simplório que não tem nenhuma<br />

ideia central; e sempre que é atormentado por dois<br />

extremos opostos, o equilibrado se coloca simplesmente<br />

no meio-termo, pensando que com isso resolveu as coisas.<br />

Por exemplo, entre um comunista e um fascista, o<br />

equilibrado seria um burguês. Entre um indivíduo que<br />

quer o divórcio e outro que deseja o amor livre, o equilibrado<br />

quereria um divórcio muito evoluído; entre um<br />

homem que é favor da alopatia e outro da homeopatia,<br />

o equilibrado gostaria de uma mistura sem sentido entre<br />

essas duas coisas incompatíveis. E daí para a frente.<br />

Pensamento seletivo, ordenativo, vigoroso<br />

Então, o verdadeiro equilíbrio não é uma mistura<br />

ininteligente de coisas incongruentes, mas a força de um<br />

pensamento central, com o leque das consequências que<br />

em todos os sentidos dele se podem tirar.<br />

Assim, toda beleza é necessariamente equilibrada.<br />

Mas há certas formas de pulcritude nas quais o que brilha<br />

à primeira vista não é o equilíbrio, mas é quase o desequilíbrio.<br />

Tomem a Catedral de São Basílio, em Moscou, por<br />

exemplo, com aquelas torres pequenas — encimadas por<br />

cúpulas em forma de cebola — que sobem com uma espécie<br />

de ascensão frenética para o céu: a nota daquilo é<br />

de um misticismo que parece não dar lugar ao bom senso<br />

e à razão. Em substância dá, mas parece que não. É uma<br />

nobre e pseudounilateralidade, no fundo da qual existe<br />

um equilíbrio.<br />

Encontraremos, assim, várias formas de beleza. Mas a<br />

forma de beleza francesa — sobretudo nos áureos tempos<br />

da França, na Catedral de Notre-Dame, por exemplo<br />

— é o equilíbrio.<br />

Lieven Smits (CC 3.0)<br />

31


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Mas é um equilíbrio cheio de gosto, de sabor,<br />

de classe, de estilo — não o equilíbrio abobado<br />

entre duas opiniões das quais, tratando-<br />

-se irenisticamente, se obtém o meio-termo pro<br />

bono pacis 1 —, porque é um pensamento seletivo,<br />

ordenativo, forte, vigoroso, que agrupa em<br />

torno de si os respectivos elementos, e faz disso<br />

propriamente uma maravilha.<br />

Francisco Lecaros<br />

O equilíbrio francês cheio de sabores<br />

Temos um exemplo neste panorama que vemos<br />

aqui. Eu o considero de uma alta categoria. Onde<br />

está a beleza do quadro que contemplamos?<br />

Analisem elemento por elemento. A grama é<br />

de um verde-esmeralda que nos nossos trópicos<br />

não se encontra. No meio da grama, a coisa mais<br />

comum do mundo: um caminho inteiramente reto.<br />

Bem no fundo, um castelo.<br />

O que tem esse castelo propriamente de maravilhoso?<br />

Na fachada, não se vê uma estátua e quase<br />

nenhum ornato. Não se nota no castelo nada que deslumbre.<br />

Não é uma construção cara; custa preço alto apenas<br />

porque é grande, tem muito tijolo, material com que<br />

se faz qualquer casa. Entretanto, eu acho que seria um<br />

absurdo não reconhecer a isto a nota do equilíbrio, do<br />

maravilhoso. Mas qual é o maravilhoso? É o maravilhoso<br />

do equilíbrio, da coisa bem pensada, bem estudada, e<br />

feita com categoria: aqui está o esplendor do equilíbrio.<br />

E é o equilíbrio francês, cheio de toda espécie de sabores.<br />

Observem primeiramente o prédio, depois o resto.<br />

A graça dominando a força<br />

O prédio é composto de uma espécie de torreão central,<br />

que não é uma coisa bojudona, fazendo assim o papel<br />

de um tórax, de um abdômen, perto do qual o resto<br />

são duas asinhas. Pelo contrário: é uma coisa fininha, esguia,<br />

terminada, para acentuar a ideia do fino, por um<br />

teto pontudo. Mais ainda, de um lado e de outro há duas<br />

chaminés altas que realçam ainda mais a ideia do pontudo,<br />

porque elas terminam em ponta; e no alto uma espécie<br />

de campanariozinho — um mirantezinho, uma pequena<br />

cúpula — suportado por coluninhas. E essa ponta<br />

termina numa janela com uma ponta, tendo do lado duas<br />

pontas. Essa parte central do prédio é toda leve, esguia,<br />

fininha; mas está de tal maneira no centro, é tão<br />

bem pensada, que ela não faz o papel de raquítica, de nenhum<br />

modo, em relação aos dois extremos atarracadões<br />

e bojudos que se encontram num ponto e no outro.<br />

O governo, a linha rectrix do prédio está bem no centro.<br />

É a graça dominando a força, Jacó reprimindo Esaú,<br />

Manfred Heyde (CC 3.0)<br />

32


Benh LIEU SONG (CC 3.0)<br />

as coisas pesadas coordenadas em torno<br />

da leve.<br />

Não sei se percebem o alto pensamento,<br />

a afirmação da superioridade<br />

do espírito que há por detrás disso: é o<br />

triunfo da graça sobre a força, a faculdade<br />

ordenante da inteligência sobre as<br />

coisas da matéria.<br />

Alta categoria<br />

Entretanto este contraste entre a parte<br />

central e os dois extremos é equilibrado<br />

— porque todo contraste equilibrado<br />

deve possuir termos intermediários harmônicos<br />

— por dois corpos de edifícios<br />

iguais, nem tão esguios nem tão bojudos,<br />

mas que ficam entre uma coisa e outra,<br />

preparando a transição. As fachadas laterais<br />

são mais largas que a central, os cimos<br />

mais esparramados e não terminam<br />

em ponta, mas em cones truncados. No alto, há uma janela<br />

só no centro, e três janelas nas partes laterais.<br />

Usa-se nas gerações mais novas uma expressão um<br />

pouco popular, mas que às vezes tem uma certa força de<br />

significado: “Que coisa bem craniada!” Porque é preciso<br />

ter crânio para fazer isso.<br />

Esse castelo não foi feito por bobo, nem para bobo,<br />

porque é muito discreto. É como quem diz: “Se tu não<br />

me percebes, eu não te digo. Sou para quem tem quilate;<br />

diante de mim há mata-burro.” Ou então: “Se tu me<br />

julgas banal, eu te julgo trivial. Os eleitos, os seletos venham<br />

a mim. Eu sou feito para poucos.”<br />

Vemos que tudo isso é de alta categoria, realizado por<br />

cabeça superiormente orientada.<br />

O gênio francês<br />

Nos extremos, observamos a coisa curiosa. Esses corpos<br />

de edifícios são atarracadões; não tanto atarracados<br />

porque possuem três janelas — porque os laterais também<br />

têm —, mas devido ao espaço maior entre as janelas,<br />

e, sobretudo, pelo teto pesadão e grandão, que constitui<br />

uma tampona. Mas o muito pesadão horrifica o gênio<br />

francês, e por causa disso, no meio do pesadão há algumas<br />

coisas que o equilibram.<br />

Imaginem que pesadelo seria essa tampa grande se<br />

não houvesse essas janelinhas pequenas em cima, redondinhas!<br />

Como elas dão um sorriso que compensa a carranca<br />

dessa imensidade de ardósia do teto! Por detrás,<br />

as chaminezinhas e os campanariozinhos evitam que isto<br />

tome a aparência de um calcanhar achatando a ala do<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Ziegler175 (CC 3.0)<br />

Ziegler175 (CC 3.0)<br />

www.delcampe.net (CC 3.0)<br />

castelo. Apesar de tudo, isso é pesadão, a parte intermédia<br />

é meio leve, e o centro é levíssimo.<br />

A altivez do castelo está no que ele tem de mais gracioso.<br />

É como quem diz: “Forte eu sou, mas, sobretudo,<br />

eu me prezo de ser inteligente. Em última análise, eu sou<br />

completo, porque tenho tudo. Tenho muita força, mas<br />

tanta inteligência que, em mim, a inteligência domina a<br />

força. Eu sou equilibrado.”<br />

Isso é um equilíbrio de primeira categoria, é degustação,<br />

porque se degusta isso como um prato saboroso! Isso<br />

é turismo! Viajar pela Europa quer dizer ir percebendo<br />

essas coisas. Não basta ouvir o que um guia fala, mas<br />

é preciso ver o que o artista diz, o que o ambiente que<br />

inspirou esse artista tinha a sofreguidão de contemplar.<br />

Vemos aqui uma aplicação da noção de equilíbrio.<br />

Quando São Francisco de Sales afirma que no meio está<br />

a virtude, pensem nesse torreãozinho e encontrarão<br />

a explicação. Não é um equilíbrio<br />

sensaborão, mas sim cheio<br />

de sal; é o gênio francês.<br />

Esse gênio francês, muito<br />

discretamente, se faz sentir<br />

noutra coisa: é o quadro.<br />

O castelo é, talvez, um pouco<br />

discreto demais. Então,<br />

ele é realçado pela perspectiva:<br />

um grande parque. Ele é<br />

tão simples nas suas linhas e<br />

nos seus enfeites que, se houvesse<br />

canteiros com muitas<br />

flores e esguichos, ele ficava<br />

pobre; então, ele tem um simples,<br />

mas esplêndido tapete de esmeralda para lhe servir<br />

de apresentação, e arvoredos formando, um pouco longe<br />

dele, moldura. Dir-se-ia que ele sai de dentro de um<br />

mundo de delícias e de mistérios que essas árvores encobrem;<br />

ou a clareza e a lógica cercadas de imponderáveis.<br />

Outra forma de equilíbrio. Eu acho isso maravilhoso.<br />

Perceber essas maravilhas é um<br />

dos prazeres da vida<br />

Os caçadores! Notem a posição deles! Tenho a impressão<br />

de que é uma fotografia tirada espontaneamente,<br />

mas a pessoa que fotografou o fez tão bem, que se um<br />

encenador devesse colocar esses caçadores numa posição<br />

bonita, ele os poria assim. Querem uma coisa mais<br />

sem graça do que, por exemplo, todos andando na mesma<br />

linha? Estragaria o quadro. Ou um cavaleiro aqui,<br />

outro ali, outro lá, outro acolá,<br />

etc., seis manchas de vermelho,<br />

sem sentido... Aqui<br />

não. Há um misto de distância<br />

e proximidade, fantasia<br />

e ordem dentro da distribuição<br />

deles, que faz com que<br />

sejam deliciosos de ver.<br />

Observem, por outro lado,<br />

o estilo. Os caçadores<br />

estão parados, tranquilos,<br />

de uma tranquilidade pronta<br />

para a ação. E a ideia da<br />

efervescência da caçada<br />

não é dada pelos homens,<br />

34


Christophe.Finot (CC 3.0)<br />

mas pela cachorrada: um ferver de cães famintos, dispostos<br />

para correr. E os caçadores sólidos, mas elegantes —<br />

porque são homens elegantes —, montados em cavalos<br />

que não têm nada de espetacular, mas espetacularmente<br />

proporcionados ao conjunto. Com toda a distância psíquica<br />

2 , os homens se preparam para uma caçada que vai<br />

ser feroz, por vales e por montes, tocando cornetas etc.; a<br />

demarragem é equilibrada.<br />

Não é verdade que para degustar um dos prazeres da<br />

vida, que tornam a existência humana digna de ser cristãmente<br />

vivida, é preciso perceber essas coisas? Mas perceber<br />

com o rumo ao Céu.<br />

Reflexo da Igreja Católica<br />

Esses valores de espírito são assim porque essa civilização<br />

foi cristã. Porque há o precioso Sangue de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, a graça, o Batismo, a Igreja Católica<br />

dentro disso. Isso é, no fundo, um reflexo da Igreja<br />

Católica. Se não fossem as virtudes cristãs, isto não teria<br />

sido assim.<br />

Então não é um puro gáudio dos olhos, nem da inteligência<br />

que se tira daí, mas acima disso é um gáudio superior<br />

do espírito, considerando uma ordem transcendente<br />

de coisas, onde existe um Deus pessoal, sobrenatural,<br />

que nós contemplaremos face a face, e no qual todas<br />

as formas desse equilíbrio se realizam de um modo<br />

tal que isto é uma imagem do Criador. Mas Deus é tão<br />

mais do que isto, que Ele até não é nem um pouco assim.<br />

Isto se encontra n’Ele de um modo insondável e incapaz<br />

de ser imaginado por qualquer criatura. Assim é<br />

a Terra como a bênção de Deus a fez, como a civilização<br />

cristã a modelou. Esta é a figura do Céu para o qual<br />

nós vamos.<br />

Temos aqui um termo religioso para uma meditação<br />

sobre uma coisa profana.<br />

Alguém me diria: “Dr. Plinio, falta um cruzeiro diante<br />

desse castelo para ele ter a nota cristã.” Eu responderia:<br />

Em todos os lugares onde se queira colocar um cruzeiro,<br />

eu exulto. Mas dizer que a coisa fica falha sem cruzeiro,<br />

não concordo. O espírito católico está aí até sem o cruzeiro.<br />

Esse castelo é católico em si; tal equilíbrio sem a<br />

graça não se consegue. É uma tradição constituída por<br />

homens que em certo momento receberam a graça e tiveram<br />

esses valores. Aqui está o equilíbrio católico. v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 12/5/1969)<br />

1) Do latim: para o bem da paz.<br />

2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma<br />

fundamental, temperante, que confere ao homem a capacidade<br />

de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.<br />

35


Apóstolo do pulchrum<br />

Revista Dr Plinio 205, Abril <strong>2015</strong><br />

De requinte em requinte<br />

Sendo um estilo artístico expressão da mentalidade de<br />

um povo ou de uma área de civilização em determinada<br />

época, pode ele sofrer variações, ser copiado ou substituído<br />

por outro? Dr. Plinio aborda estas e outras interessantes<br />

questões em torno do tema “arte”.<br />

Se houvesse uma arte moderna, contemporânea,<br />

boa, teria propósito restaurar as coisas coloniais?<br />

Não é legítimo que, artisticamente falando, as coisas<br />

evoluam e que cada época tenha o estilo que lhe é próprio?<br />

Não é isso uma coisa adequada, conveniente? Nós<br />

não vemos cada país ter seu estilo próprio? Não notamos<br />

como, na civilização ocidental, o gótico foi substituído pela<br />

arte da Renascença e depois por outras formas artísticas<br />

sucessivas? Então, se cada época criou um estilo próprio,<br />

por que haveremos de rejeitar um estilo suposto bom de<br />

nossa própria época? Isso pareceria ser uma coisa antinatural,<br />

um conservantismo levado ao excesso.<br />

Distinção entre os estilos e os seus matizes<br />

Imaginemos uma construtora que fizesse casas de estilo<br />

antigo, bonitas, confortáveis, porém, que se prestassem<br />

à seguinte crítica de caráter artístico e não funcional:<br />

são cópias, em nossos dias, de um estilo que não é de<br />

hoje. Portanto, um estilo morto. Ora, copiar é intrinsecamente<br />

uma falta de originalidade. É até uma coisa artificial<br />

copiar algo que morreu. E nesse sentido, essa ação<br />

conservadora é um mal.<br />

Parece-me que é preciso fazer uma distinção entre o estilo<br />

e os matizes dentro do mesmo estilo. Quer dizer, o estilo pode<br />

continuar igual a si mesmo, passando por matizes, por variantes.<br />

Mas ele é sempre o mesmo estilo. Então, a pergunta<br />

se desdobra: Primeiro, o estilo deve variar? Em segundo lugar,<br />

ele deve mudar em seus matizes internos? Em terceiro<br />

lugar, um povo, uma civilização devem variar de estilo?<br />

Seria mais interessante tratar da questão da variação<br />

de estilo para depois abordar a mudança de matizes, que<br />

é um assunto menos importante e que se resolve dentro<br />

da questão da variação de estilo.<br />

Todo estilo é o produto de um estado de espírito. E eu<br />

chamo estado de espírito um conjunto de verdades fundamentais<br />

ou de princípios — às vezes não verdadeiros<br />

—, a partir dos quais uma determinada civilização vê o<br />

A Grande Esfinge<br />

e a pirâmide de<br />

Quéops - Planalto<br />

de Guizé, Egito<br />

Hedwig Storch (CC 3.0)


homem e o universo, e o estado temperamental com que<br />

a civilização adota essa vivência.<br />

Mentalidade e estilo<br />

Tomemos, por exemplo, o estilo egípcio. É evidente<br />

que ele comporta uns tantos princípios que não são puramente<br />

artísticos, mas filosóficos; e filosóficos do mais alto<br />

porte porque metafísicos.<br />

É evidente também que, a partir desses princípios metafísicos,<br />

os egípcios elaboraram uma visão do universo,<br />

de toda a realidade material, e modelaram essa visão de<br />

acordo com aqueles princípios metafísicos.<br />

As múmias, os desenhos, as esculturas são compostos<br />

de figuras hieráticas, mas muitas delas não o são: representam<br />

o egípcio na vida quotidiana. E há qualquer coisa<br />

de uma placidez profunda, meditativa e ativa na coisa<br />

egípcia, incubada de mistério, que constitui propriamente<br />

a mentalidade do egípcio. Ora, o estilo egípcio foi uma<br />

expressão dessa mentalidade.<br />

E o estilo medieval, o gótico, foi igualmente uma expressão<br />

da mentalidade católica.<br />

Então, se o estilo é a consequência necessária de uma<br />

mentalidade, a questão sobre se o estilo deve ser mudado importa<br />

em perguntar se precisa ser mudada a mentalidade.<br />

Dennis Jarvis (CC 3.0)<br />

Mudança de matizes<br />

Se fôssemos apelar para o exemplo da História, seríamos<br />

levados a dizer que todos os grandes povos que surgem<br />

e definem a sua mentalidade, de certo modo, constituem<br />

um estilo e não saem mais dele, e esse estilo não<br />

decai, não degenera. Ele continua a produzir obras boas<br />

e dignas indefinidamente, até que um fator extrínseco<br />

derruba uma determinada ordem de coisas.<br />

Por exemplo, o estilo chinês nasceu desde quando? Com<br />

variantes, é evidente, formou-se ao longo de quantos séculos?<br />

Nós não podemos dizer que o estilo chinês esteja moribundo.<br />

Se os ocidentais não tivessem entrado na China e<br />

derrubado certas barreiras culturais, não tivessem feito imposições,<br />

o estilo chinês teria continuado indefinidamente.<br />

E as obras chinesas elaboradas, mesmo no século XIX, de<br />

modo ainda artesanal não eram dominadas pela preocupação<br />

de produzir para trazer dinheiro, e eram de muito boa<br />

cultura e de muito bom quilate. Não se pode falar de uma arte<br />

chinesa de decadência. Isso se pode dizer do Egito, de Roma,<br />

da Grécia, da Pérsia, dos assírios, enfim de todos os povos<br />

antigos. Então, a conclusão seria a seguinte: é preciso não<br />

mudar de mentalidade e, portanto, não variar de estilo. Um<br />

povo elabora esse estilo, fica com este estilo até o fim.<br />

Contudo, toda mentalidade, mesmo quando continua<br />

igual a si mesma, muda de matizes. Um homem, confor-<br />

Monumentos chineses<br />

Dennis Jarvis (CC 3.0)<br />

© CEphoto, Uwe Aranas (CC 3.0)<br />

33


Apóstolo do pulchrum<br />

Victor Toniolo<br />

me o estado de espírito, o dia, as circunstâncias, varia de<br />

matizes. Então, poder-se-ia dizer que um estilo pode ser<br />

matizado, mas não propriamente mudar. Matizar-se sim,<br />

mudar fundamentalmente não.<br />

Essa conclusão de que, sendo um estilo o produto de<br />

uma mentalidade que não deve variar nunca, consequentemente<br />

ele jamais deve mudar dentro de um mesmo povo,<br />

por mais antipática que seja a certos feitios temperamentais,<br />

e por mais evidente que possa parecer a certos<br />

espíritos lógicos, de fato não me parece inteiramente<br />

acertada, e tenho reservas sérias quanto a ela.<br />

O progresso só surgiu com a<br />

Civilização Católica<br />

As reservas procedem do seguinte: essa imobilidade<br />

dos estilos pagãos, dos estilos antigos, resulta, é verdade,<br />

de uma mentalidade muito definida, amadurecida. Mas há<br />

outro aspecto a ser considerado. Todos os povos antigos<br />

estavam sujeitos a uma lei, que poderíamos chamar “lei<br />

da limitação do progresso”. Quer dizer, todos eles chegavam<br />

a certo auge, até relativamente depressa, mas depois<br />

paravam e não progrediam mais. E não se pode dizer que<br />

um povo antigo tenha progredido mais do que outro, por<br />

exemplo, os romanos em relação aos egípcios. Aqueles<br />

eram muito superiores aos egípcios em muitas coisas. Mas<br />

em outras os egípcios eram muito superiores aos romanos.<br />

Não havia o que nós chamamos de progresso, quer dizer,<br />

um povo que aparece, incorpora a si todas as coisas boas<br />

de uma civilização antecedente e vai indo para a frente.<br />

O progresso propriamente dito apareceu com a Civilização<br />

Católica. Foi uma mobilidade, uma elasticidade,<br />

uma vitalidade que a sociedade humana tomou batizando-<br />

-se, e que lhe deu exatamente a possibilidade de modificação<br />

que nós notamos na melhor parte da História católica.<br />

Igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora<br />

do Carmo - Mariana, Minas Gerais, Brasil<br />

Interior da Catedral de Santiago de Compostela, Espanha<br />

Os estilos devem suceder-se<br />

à maneira de requinte<br />

A elaboração, a partir do estilo romano, do românico<br />

foi uma mudança. Representou uma mudança de caráter<br />

contrarrevolucionário — se podemos usar assim esta palavra<br />

— porque o estilo românico é muito mais sacral, mais<br />

hierárquico e mais simpático à alma verdadeiramente católica,<br />

do que o estilo romano. Mais ainda: do românico<br />

se destilou, pelo bafejo da Igreja, o gótico, estilo já então<br />

profundamente diferente do românico. De maneira que a<br />

vitalidade da Igreja produziu uma mudança de estilo.<br />

Por conseguinte, deveríamos dizer que não se devem<br />

copiar os estilos, e sim modificá-los.<br />

É bem verdade, portanto, que os estilos devem suceder-<br />

-se uns aos outros. Mas esse suceder-se não pode ser à maneira<br />

do estilo moderno em relação ao colonial, ou outro<br />

estilo, com uma ruptura e uma aceitação brutal do contrário,<br />

e nem pode ser uma mera diversificação. Porque também<br />

a diferença de estilo não é só para variar, mas deve<br />

ser um particular progresso no requintar o que um estilo,<br />

a mentalidade de um povo têm de bom; fazem-se coisas<br />

que são diferentes, mas à maneira de requinte, como o gótico<br />

é o requinte do românico.<br />

34


Pom² (CC 3.0)<br />

José Luis Filpo Cabana (CC 3.0)<br />

Coro da Catedral Sainte-Cecile<br />

Albi, França<br />

© CEphoto, Uwe Aranas (CC 3.0)<br />

Fachada da Catedral de Notre-Dame<br />

de Amiens, França<br />

Catedral de Santo Egídio<br />

Cheadle, Inglaterra<br />

Portanto, a sucessão deve ser feita de requinte<br />

em requinte, que é a linha de progresso e de variedade<br />

do estilo, posta em algo fundamentalmente<br />

conservador no essencial, enquanto é no acessório<br />

muito livre.<br />

A resposta à pergunta inicial é a seguinte: ficar<br />

no mero colonial, em princípio e em condições normais,<br />

seria um mal. Deixá-lo para fazer um estilo<br />

simplesmente diferente, seria igualmente um mal,<br />

porque teria sido necessário requintá-lo. Isso me<br />

parece inteiramente lógico.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 24/5/1967)<br />

Gustavo Kralj<br />

35


Revista Dr Plinio<br />

<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Revista Dr Plinio 206, Maio <strong>2015</strong><br />

O órgão, o vitral, a ogiva<br />

Três luzes emanadas da Civilização Cristã que,<br />

sendo representações sensíveis de Deus, elevam as<br />

almas a uma atmosfera celestial.<br />

Oórgão tem esta coisa maravilhosa: é uma “penumbra<br />

sonora”, feita exatamente de som e silêncio.<br />

Porque, ainda que soe com todos os registros,<br />

o órgão tem dentro de si qualquer coisa de aveludado<br />

e silencioso, que é um dos seus melhores charmes, e<br />

que mais casam com a penumbra visível da Igreja. Assim<br />

é o misto de silêncio e som que há no órgão.<br />

O instrumento de todas as inocências<br />

Entretanto, o órgão quase não comporta a descontinuidade<br />

sonora total. Aquele som vai e vai... Sempre mantendo<br />

uma harmoniosa ligação com os sons anteriores.<br />

A pessoa que, a partir de um instrumento rudimentar,<br />

deu ao órgão as características que conhecemos hoje, poderia<br />

ser chamada de “profeta” em matéria de música.<br />

A meu ver, o órgão tem isto de fabuloso: há nele registros<br />

que remetem diretamente para o mais admirável da<br />

inocência e que fazem dele, quando bem tocado, o instrumento<br />

de todas as inocências.<br />

Se fôssemos falar propriamente da inocência na sua<br />

maior abertura de asas, deveríamos imaginá-la como um<br />

órgão. Ela transforma a alma do homem num instrumento<br />

capaz de tocar todas as músicas, à maneira do órgão.<br />

Assim, enquanto não conseguirmos fazer sair das profundidades<br />

de nosso ser, não a catedral engloutie 1 , mas o<br />

órgão englouti, não teremos feito nada.<br />

Toda alma tem, com variantes, um “órgão metafísico”<br />

para tocar em função do universo, e a descoberta desse<br />

“órgão” é o fim da nossa vida. Quando descobrirmos isso,<br />

estaremos prontos para o Céu. Isso se refere, inclusive,<br />

ao escopo da vida de piedade.<br />

Representações sensíveis de Deus<br />

A Santa Igreja tem algo por onde ela relaciona os homens<br />

à maneira dos tubos de um órgão. Por isso, a Igreja<br />

Católica, bem constituída e vista na sua inteira normalidade,<br />

pode ser comparada a um imenso órgão ou a um<br />

imenso vitral, porque o vitral faz com as cores o que o órgão<br />

realiza com os sons; é o mesmo princípio aplicado<br />

em matéria cromática.<br />

Trata-se, portanto, de formar uma visão da ordem<br />

temporal sacral, dentro da ordem do universo na qual<br />

o homem se encaixa, iluminado por este lumen uno da<br />

Igreja, que ela soube exprimir através do órgão e do vitral,<br />

mas que é um estado de alma, uma supravirtude,<br />

uma superposição de temperamento, que eu tenho a impressão<br />

de que é uma das graças, das mais genuínas, do<br />

Espírito Santo.<br />

Em Pentecostes uma chama baixou e depois se dividiu<br />

em várias línguas de fogo. Assim também, o unum dessa<br />

graça estaria nessa chama originária, que depois se transformou<br />

nos vários tubos de um órgão ou nas várias cores<br />

de um vitral. É a regra da reversibilidade entre unidade<br />

e variedade que está aqui refletida. Variedade levada até<br />

quase ao infinito, partindo de uma unidade que se desdobra<br />

em guirlandas sem se depauperar em nada.<br />

E, a bem dizer, com uma semelhança estupenda com<br />

Deus, que sem Se empobrecer e sem Se cansar em nada,<br />

no fulgor de sua glória, cria. Também esse unum não se<br />

exaure, não empobrece, até se alegra em emitir de dentro<br />

de si as mais valiosas variedades, sem sofrer o menor<br />

abalo. Quase o motor imóvel de tudo o que ele mesmo<br />

pôs em movimento.<br />

Este é o unum do órgão, que é o mesmo do vitral: são<br />

representações sensíveis de Deus, motor imóvel.<br />

O órgão tem uma forma de beleza própria à polifonia,<br />

diversa da beleza austera do cantochão. Entretanto,<br />

o canto gregoriano e o órgão não se contradizem, ambos<br />

são sublimes. Enquanto o gregoriano afirma: “vaidade<br />

das vaidades, tudo não é senão vaidade” 2 , o órgão parece<br />

dizer: “harmonia das harmonias, tudo não é senão<br />

harmonia”.<br />

32


Catedral de Estrasburgo,<br />

França<br />

Claude Truong-Ngoc (CC 3.0)<br />

Edelseider (CC 3.0)<br />

Tango7174 (CC 3.0)<br />

Órgão da Catedral Saint-Gatien<br />

Tours, França<br />

Órgão da Igreja de São Paulo<br />

Estrasburgo, França<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Ddalbiez (CC 3.0)<br />

Órgão da Catedral Notre-Dame<br />

de Bayonne, França<br />

José Luiz Bernardes Ribeiro (CC 3.0)<br />

Acima, coro e órgão da Catedral<br />

de Toledo, Espanha<br />

Órgão da Catedral de Santo Estêvão<br />

Passau, Alemanha<br />

Tobi 87 (CC 3.0)<br />

Por outro lado, vejo no órgão o mesmo que na ogiva e<br />

em outras coisas da Idade Média: uma ordem magnífica.<br />

O sublime, o paradisíaco e o alcandorado<br />

Nem tudo o que é humano, nesta Terra, é sublime,<br />

mas o órgão seleciona, dentre os sons humanos e terrenos,<br />

os sublimes, procurando elevá-los a um estado paradisíaco.<br />

O estilo gótico, por sua vez, busca o mesmo em<br />

matéria de arquitetura.<br />

Poderíamos dizer que metade do espaço ocupado pelo<br />

gótico e pelo órgão é sublime, e a outra metade é paradisíaca.<br />

Na ponta transparece o alcandorado e a esperança<br />

do Reino de Maria.<br />

Já a coexistência tão ordenada desses três valores —<br />

o sublime, o paradisíaco e o alcandorado — dá uma plenitude<br />

muito repousante e que prepara para o alcândor.<br />

O gótico é uma espécie de santa preparação para chegar<br />

ao alcândor. Reúne tudo quanto nossa natureza é capaz<br />

de pegar e vai ordenando para perceber a ponta do sublime,<br />

e é nisto que me parece estar o mais belo do gótico.<br />

Vemos, assim, o equilíbrio com que devemos pensar<br />

no alcândor do Reino de Maria, que não desprezará nem<br />

o sublime nem o paradisíaco. Mas assim como Nosso Senhor<br />

subiu, caminhando com seus pés divinos, até o alto<br />

do Monte das Oliveiras para ali operar sua Ascensão<br />

aos céus 3 , na qual já não necessitaria empregar a força de<br />

seus membros, também no Reino de Maria se ordenarão<br />

34


Mbzt (CC 3.0)<br />

Hans-Jörg Gemeinholzer (CC 3.0)<br />

Órgão da Catedral Notre-Dame<br />

de Paris, França<br />

Ao lado: Órgão da Catedral<br />

de Córdoba, Espanha<br />

Ao fundo: Igreja de Saint-Eustache<br />

Paris, França<br />

David Iliff (CC 3.0)<br />

esses valores sublimes e paradisíacos para, a partir dessa<br />

elevação, ascender-se ao alcandorado.<br />

Lembro-me da primeira vez em que eu vi uma ogiva<br />

em estilo gótico flamboyant. Exclamei: “Ah, que maravilha!<br />

Era o que faltava e que eu não tinha talento para<br />

imaginar. Que coisa estupenda, maravilhosa!”<br />

Depois ouvi alguém criticá-la, mostrando o que ali havia<br />

de transição revolucionária para a Renascença. Pensei:<br />

“Lá vem o famoso mau espírito demolidor, a tal acusação<br />

seca e destruidora do bom espírito.” Mas depois<br />

compreendi que a pessoa tinha razão, pois no modo daquela<br />

chama se agitar já entrava algo da Renascença.<br />

Porém, em si, o princípio de que a ogiva tão bonita floresceria<br />

numa ordem que a transcenderia, me encantou.<br />

Era algo que subia para o alcandorado, cujo voo a pré-<br />

-Renascença desfigurava.<br />

v<br />

(Extraído de conferências<br />

de 6/4/1978 e 16/11/1979)<br />

1) Do francês: submersa. Referência a uma lenda bretã segundo<br />

a qual os sinos de uma catedral submersa no mar faziam<br />

ouvir seu bimbalhar, em certas ocasiões, trazendo à tona a<br />

memória do magnífico templo e da belíssima cidade onde<br />

ele fora erigido.<br />

2) Cf. Ecl 1, 2.<br />

3) Cf. At 1, 12.<br />

35


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Revista Dr Plinio 207, Junho <strong>2015</strong><br />

Roma sparita<br />

A Roma dos Papas não tinha a monotonia das<br />

grandes cidades modernas, mas possuía muita<br />

fisionomia, porque as pessoas, ao fazerem suas<br />

residências, comunicavam-lhes seu caráter, seu<br />

modo de ser, com o pitoresco que causa o sorriso.<br />

V<br />

ou expor o que era a Roma papal, para termos<br />

um pouco a ideia de que tipo de cidade se tratava,<br />

e depois iremos considerar algumas fotografias<br />

selecionadas de um álbum chamado “Roma sparita”,<br />

ou seja, “Roma desaparecida”. Quer dizer, a Roma<br />

papal que foi demolida pelas reformas nela introduzidas<br />

pela Casa de Sabóia, a qual unificou a Península Italiana<br />

e se tornou a única dominadora da Cidade de Roma, onde<br />

estabeleceu a sua capital, transformando-a, de cidade<br />

antiga que era, numa grande cidade do tipo moderno.<br />

Cidade não planejada, com muita fisionomia<br />

O que vem a ser a Roma do tempo dos Papas? É, ao<br />

mesmo tempo, uma Roma medieval com todas as características<br />

da vida medieval, um tanto reformada no tempo<br />

do período do Ancien Régime 1 , e uma cidade eminentemente<br />

eclesiástica.<br />

Quando falo de uma cidade medieval, o que eu quero<br />

indicar? Era uma cidade raras vezes planejada de antemão.<br />

Por exemplo, se tomarmos, em São Paulo, o bairro<br />

Higienópolis, perceberemos que o traçado das ruas não<br />

foi espontâneo: as casas não foram se acrescentando umas<br />

às outras normalmente, mas houve uma empresa que planejou<br />

e fez o loteamento do bairro, devido ao qual todas<br />

as ruas são em linha reta e se cortam em ângulo reto, fazendo<br />

do bairro uma espécie de tabuleiro de xadrez. O<br />

mesmo se poderia dizer do bairro do Pacaembu, que foi<br />

urbanizado por uma grande empresa norte-americana.<br />

Na época em que o Pacaembu foi urbanizado, o urbanismo<br />

tipo Higienópolis estava fora de moda. Tinha-se<br />

considerado que as avenidas retilíneas, cortando-se em<br />

ângulo reto e formando quarteirões quadrados, eram monótonas.<br />

Então fizeram zigue-zagues e curvas no Pacaembu,<br />

que existem também em outros bairros de São Paulo:<br />

Pinheiros, Jardim América, Jardim Europa, em que não<br />

se usa mais a linha reta, mas as grandes curvas macias.<br />

Porém o que nos interessa no momento é o fato de<br />

que as ruas não foram feitas por cada morador, que colocou<br />

sua casa onde queria, portanto, um pouco mais recuada<br />

da rua, ou um pouco mais para a frente, e dando<br />

à via pública um gráfico todo casual, fortuito; aquilo foi<br />

planejado de antemão.<br />

Também as construções eram menos planejadas do<br />

que se tornaram depois. Uma família construía uma casa;<br />

nascia um filho, mandava construir um quarto no teto<br />

da residência; nascia outro filho, colocava dois quartos.<br />

De repente um velho, que morava num quarto<br />

da casa, começava a ter reumatismo: abria-<br />

-se uma janela no lugar onde devia entrar sol<br />

para o ancião se aquecer. Não se incomodavam<br />

em saber se a casa ficava simétrica ou assimétrica,<br />

bonita ou feia. Era uma necessidade<br />

do velho para não ficar reumático. O idoso<br />

ficava muito pouco consolado com a ideia de<br />

sentir seu reumatismo, para evitar que quem<br />

passasse fora achasse feia a janela que ele ia<br />

abrir. Ele queria o sol sobre a perna ou o braço<br />

doente. Quer dizer, circunstâncias imprevistas<br />

foram formando essas cidades.<br />

Por causa disso, elas não tiveram a monotonia<br />

das grandes cidades modernas e possuíam<br />

muita fisionomia: porque<br />

as pessoas que iam fazendo<br />

essas construções imprevistas<br />

comunicavam seu<br />

caráter, seu modo de ser,<br />

sua fisionomia às casas que<br />

estavam sendo construídas.<br />

De onde Roma, como todas<br />

as cidades desse tipo,<br />

era uma cidade com fisionomia.<br />

A esse dote de ter fisionomia,<br />

nós poderíamos cha-<br />

32


mar, em certo sentido, de pitoresco. O pitoresco é a fisionomia<br />

quando, pelo imprevisto, ela faz sorrir um pouco.<br />

O Panteon e o túmulo de Adriano<br />

Há outra coisa que se acrescentava à Roma: ela era<br />

uma cidade velhíssima, nascida mitologicamente de Rômulo<br />

e Remo. Portanto, uns sete, oito séculos antes de Jesus<br />

Cristo. E com aquele senso de conservação existente<br />

na Europa, do qual nós, brasileiros, não temos uma ideia.<br />

Até hoje certos prédios do tempo dos remotos romanos<br />

são utilizados para uso comum. O Panteon de Roma era o<br />

templo onde adoravam todos os deuses gentílicos antigos.<br />

E, para a Roma de antigamente, era uma igreja bem grande.<br />

O Panteon esteve franqueado ao culto pagão até o momento<br />

em que Constantino mandou fechá-lo. Quando o<br />

Imperador deu a ordem de fechar, não pensem que, à moderna,<br />

derrubaram o Panteon; ele mandou instalar uma<br />

igreja católica ali. E o Panteon é hoje uma paróquia. As<br />

pessoas se casam, são batizadas, confessam-se lá, e a igreja<br />

funciona como qualquer outra. Ali, há séculos, Júpiter era<br />

adorado, e agora é adorado Nosso Senhor Jesus Cristo. E<br />

o prédio ainda se conserva.<br />

A sepultura do Imperador Adriano foi aproveitada: é<br />

uma torre cilíndrica de pouca altura e imenso diâmetro.<br />

Foi utilizada, durante a Idade Média, para fortaleza. Depois,<br />

uma parte dessa fortaleza foi aproveitada para palácio.<br />

O túmulo de Adriano não existe mais. Mas podem-<br />

-se visitar as muralhas da fortaleza e o palácio, que agora<br />

é museu. De maneira que houve a seguinte mutação:<br />

de sepultura de Adriano para fortaleza, de fortaleza para<br />

palácio, de palácio a museu.<br />

Em Roma havia mais de 400 igrejas<br />

Vejamos, agora, as fotografias.<br />

Eis um pórtico, um arco numa rua no gueto de Roma.<br />

A rua existe para uma casa que está em cima.<br />

Ali, uma rua popular, com a roupa lavada, estendida<br />

e gotejando em cima de quem passa; duas velhas comentam<br />

qualquer coisa. É a pequena vida caseira que sai<br />

da casa e se espraia pela rua afora. Reconheçamos que é<br />

bem diferente da Avenida Paulista 2 .<br />

Observem um recanto da velha Roma. Uma casa,<br />

o alinhamento caprichoso da rua, uma bonita torre no<br />

meio de casarões velhos, que eu quase chamaria leprosos.<br />

Um dossel sobre a imagem talvez de Nossa Senhora<br />

com o Menino Jesus. Nichos com imagens de Santos assim<br />

eram frequentes na Roma daquele tempo.<br />

Vejam a escadaria que perfura uma casa a qual já<br />

foi construída assim. A rua é uma escadaria que passa<br />

no meio da velha casa, sem eira nem beira, tem um bonito<br />

balcão de alguma família nobre ou rica que mora<br />

aqui. E isso é uma coisa muito comum até hoje na Itália.<br />

Metade da casa é cortiço, a outra metade é um palácio<br />

de nobres.<br />

Duas irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo, com<br />

seus lindos chapéus bretões, andando numa espécie de<br />

praça de terra, sem calçamento, da velha Roma, com uma<br />

magnífica palmeira se espraiando suavemente no clima<br />

romano. Uma nobre torre antiga e mais adiante outra torre.<br />

Roma era uma cidade com mais de 400 igrejas.<br />

Cidade das fontes<br />

Fotos: Reprodução<br />

Esse terreno foi rebaixado para a construção das casas.<br />

Mas aqui, por qualquer razão, o dono não quis que<br />

rebaixasse e ficou alto. E permaneceu a árvore que se<br />

eleva de modo pitoresco aqui. Um muro, uma água parada<br />

e uma bela igreja ao fundo.<br />

Pormenor da vida do tempo: um cachorro, que procura<br />

comida pela rua. É um cão sem dono, na infeliz situação<br />

dos cachorros sem dono.<br />

Uma senhora conduzindo o filho para passear. A<br />

criança está vendo o cachorro, mas ela está tocando uma<br />

espécie de corneta para ver o que o cão faz. Manifestação<br />

musical do gênero italiano. O cachorro é utilitário e<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

está se preocupando exclusivamente com a comida. Não<br />

liga para nada.<br />

Aqui o reboco da casa caiu, mas ela pode durar mais<br />

mil anos. Não pensem que a escada é para escorar a casa;<br />

está encostada do lado de fora para qualquer coisa.<br />

Um cavalo bem lustroso e bonito, uma porta com um nobre<br />

arco, um pátio cimentado de pedras, mas sem qualquer<br />

regularidade.<br />

Outra viela romana. Nas cidades medievais as ruas<br />

eram muito estreitas para caber tudo dentro das muralhas.<br />

A iluminação pública já havia começado. Aqui há<br />

um poste com iluminação a gás, que era o grande progresso<br />

do momento. Também significava progresso a placa<br />

com o nome da rua.<br />

Está chovendo, duas senhoras passam abrigadas num<br />

guarda-chuva insuficiente, e aqui há uma comerciante<br />

oferecendo algum produto. Notem a desigualdade<br />

do solo, como é tudo feito mais ou menos ao acaso.<br />

Isso não se vê de jeito nenhum em rua moderna:<br />

um arco comunicando uma casa com a outra. Eu não<br />

sei por que se condena isso, que é uma coisa que pode<br />

prestar muito serviço.<br />

Uma bela torre. Está mal cuidada e velha, mas é<br />

nobre como uma velha marquesa que conserva sua<br />

nobreza, apesar de todas as devastações do tempo e<br />

do dinheiro.<br />

Numa praça pública, um homem dança, e outro<br />

não presta atenção na dança. Esse aqui parece um<br />

aleijado apoiado num bordão, e vai andando com<br />

uma sacola e uma caixa de música. Essas cidades<br />

eram todas muito musicais. Cantava-se, tocava-se<br />

violino, dançava-se mais ou menos em todos os lugares<br />

e ouvia-se música sair de todas as janelas, com a<br />

voz bonita e o senso melódico tão frequente na Itália.<br />

Cena pitoresca mais uma vez. O burrico puxado<br />

pelo homem, carregado, que vai devagarzinho pela cidade.<br />

Provavelmente um vendedor ambulante.<br />

Aqui, uma como que pequena coluna, e dali brota<br />

água. Roma é a cidade das fontes, em geral com água<br />

muito límpida, muito boa.<br />

Significado da palavra ”pitoresco”<br />

Uma torre que foi fortaleza durante a Idade Média.<br />

Tudo caiu, mas ao lado foi construído um pitoresco jardim<br />

suspenso. Um dos pitorescos em Roma são os terraços<br />

como esse, onde se colocam guarda-sóis grandes e<br />

há restaurantes no local. Um homem toca violino para os<br />

que comem e bebem, e ficam olhando o movimento da<br />

rua, onde se vê um monge dominicano atravessando-a. A<br />

cidade dos Papas era a cidade dos frades.<br />

34


Esse menino tem um lado pitoresco. É um menino<br />

de rua que não teve nenhuma educação e, portanto, está<br />

deitado na carroça como estaria em sua casa. Se ele<br />

estivesse de bruços na cama, tentando pegar um rato no<br />

quarto dele, sua atitude não seria diferente. Apesar disso,<br />

o gesto todo dele não deixa de ter certa harmonia e<br />

muita naturalidade. Não é um gesto feio. Tem certa harmonia<br />

de posição e de atitude, e a naturalidade de uma<br />

pessoa que se sente completamente à vontade na cidade.<br />

É a cidade dele, feita para ele, na qual ele está em casa<br />

como em sua residência particular.<br />

Esse inteiro laissez faire 3 faz parte do pitoresco da atitude<br />

do menino. Alguém diria que isso não deveria ser<br />

assim, e que ele não é um menino educado. Não é verdade.<br />

A educação tem vários graus. Ele possui essa forma<br />

principal e mínima de educação, que é a virtude. Ele<br />

está composto, direito, porque é um menino que teve<br />

uma educação pura. A pureza é o principal da educação,<br />

e não as maneiras. Maneiras ele não tem, mas possui a<br />

compostura do menino direito. É o essencial.<br />

A ideia que eu tenho de pitoresco é imaginar morando<br />

ali gente que são os pais e tios desse menino e desse<br />

outro que está atrás. Talvez esse casal e esses dois homens<br />

sejam moradores aqui. E gente do povinho, inteligente<br />

como é habitualmente o italiano, gente que mora<br />

nos casebres, mas que se pôs numa situação muito pitoresca:<br />

tendo sempre diante dos olhos esse templo, a torre<br />

e o Tibre milenários, e que presencia tudo isso como de<br />

um terraço. O cenário é magnífico: encostado num templo<br />

pagão, uma torre do fim da Idade Média, olhando o<br />

rio romano passar como quem vê a vida fluir com toda a<br />

navegação do Tibre.<br />

Isso é pitoresco porque forma quadros. A palavra “pitoresco”<br />

vem de pintura: pictus, pintado. O pitoresco está no<br />

homem do povinho, com sua inteligência, sua vivacidade,<br />

inalando tudo isso sem saber bem o que é, e vivendo aqui à<br />

romana. Quer dizer, à noite, fazendo um jantar entre o parapeito<br />

e a casa, comendo uma polenta, bebendo vinho<br />

quente e tocando num instrumento de corda que talvez tenha<br />

uma corda ou duas a menos, e cantando a plena voz numa<br />

noite enluarada de Roma. Isso é pitoresco. v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de 29/1/1977)<br />

Fotos: Reprodução<br />

1) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático<br />

em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.<br />

2) Extensa via pública localizada entre as zonas centro-sul,<br />

central e oeste da cidade de São Paulo.<br />

3) Do francês: deixai fazer. Aqui tem o sentido de distender-se.<br />

35


Revista Dr Plinio 208, Julho <strong>2015</strong><br />

<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Fotos: Reprodução<br />

Roma sparita<br />

Ambientes que favorecem o desenvolvimento das características<br />

individuais radicadas na índole de cada povo, onde as pessoas<br />

não constituem multidões de anônimos, mas aprimoram sua<br />

personalidade vivendo tranquilas nos braços da Fé que triunfou<br />

sobre o paganismo: eis a Europa feérica amada por Dr. Plinio.<br />

N<br />

os templos romanos e, aliás, nos gregos também,<br />

distinguimos duas<br />

partes: uma espécie de<br />

cilindro, às vezes um quadrilátero,<br />

sem janelas, com as portas constantemente<br />

abertas — em cima havia<br />

janelinhas muitas vezes — de maneira<br />

que a ventilação se fazia continuamente;<br />

e em torno, talvez para<br />

abrigar as pessoas que iam oferecer<br />

seus sacrifícios idolátricos, um telhado<br />

que ia além do templo e que<br />

era sustentado por colunas em forma<br />

de círculo, formando, portanto,<br />

dois corpos de edifício, um interno<br />

e outro externo.<br />

Na Roma pagã havia um<br />

templo em louvor da pureza<br />

Há qualquer coisa de imponderável<br />

no edifício, que dá a ideia de que<br />

os telhados, que provavelmente não datam do tempo dos<br />

romanos, já estão tão velhos que as<br />

telhas quase se encolheram e estão<br />

trêmulas de velhice, se bem que as<br />

pedras não enruguem nem sequem.<br />

Pode-se dizer que as pedras dessa<br />

coluna estariam para o que eram<br />

quando foram construídas, como<br />

uma uva-passa está para uma uva<br />

fresca. Elas estão todas ressequidas<br />

de tanto tempo que passou em cima<br />

delas, vento que bateu, chuvas, toda<br />

espécie de coisas, e elas ficaram<br />

ressequidas. Nem se nota muito o<br />

retilíneo delas, porque o eixo é reto,<br />

mas a circunferência está tão trabalhada<br />

que nem se tem a ideia dos<br />

como que cilindros majestosos que<br />

houve aqui antigamente. Tudo isso<br />

dá ideia de um povoado que não é<br />

só velho, mas mumificado, que não<br />

dá mais nada, um passado reduzido<br />

32


a esqueleto; isso é muito mais o esqueleto de um<br />

prédio do que um prédio propriamente dito.<br />

Ora, é bonito notar que essa foto mostra o único<br />

templo erguido na antiga Roma em louvor da<br />

pureza. Segundo a mitologia, Vesta era uma deusa<br />

virgem, que só poderia ser cultuada por virgens<br />

as quais deveriam manter o tempo inteiro um fogo<br />

aceso diante dela, como homenagem. As vestais<br />

— era o nome delas — eram mulheres que deveriam<br />

ser elas mesmas virgens. Se alguma delas fosse<br />

apanhada em pecado contra a castidade, era enterrada<br />

viva. E também era enterrada viva a vestal<br />

que, designada para guardar o fogo durante a noite,<br />

deixasse que este se apagasse. Era uma responsabilidade<br />

grande ficar a noite toda, no silêncio de<br />

Roma daquele tempo, vigiando para que o<br />

fogo não se extinguisse. Eram estas as únicas<br />

obrigações exigidas delas: serem virgens<br />

e não permitir que a chama se apagasse.<br />

Ali se instalou depois uma igreja católica,<br />

e é uma paróquia na qual as beatas vão<br />

rezar o terço, fazer Via Sacra, onde havia,<br />

até há pouco, bênção do Santíssimo Sacramento,<br />

muito tempo depois do culto a essa<br />

deusa ter ali cessado. Então, no local de<br />

culto usado por seus perseguidores, a Igreja<br />

Católica harmoniosamente instalou um<br />

templo da Religião verdadeira, em nome da<br />

qual o sangue dos mártires foi derramado.<br />

Altaneira, sempre com vitalidade, a torre<br />

medieval que se eleva aqui mostra a vitória,<br />

na Idade Média, sobre o mundo pagão<br />

romano: a vitória da Igreja sobre a gentilidade<br />

e todos os seus adversários.<br />

Ninguém é inteiramente<br />

anônimo para o outro<br />

Ao lado desses dois monumentos tão expressivos<br />

e tão notáveis pelo seu contraste, está o povinho<br />

tranquilo que vive nos braços da História<br />

e nos braços da Fé, com a naturalidade de quem<br />

vive a existência de todos os dias. Perto disso, o<br />

magnífico Rio Tibre, o qual nesse contexto parece<br />

representar o curso da História que vai passando,<br />

lembra ao povinho como as coisas mudam ao<br />

longo do tempo. Mas “stat Crux dum volvitur orbis<br />

— a Cruz está de pé, enquanto o mundo inteiro<br />

se vira e revira”; onde a Igreja deitou a sua mão<br />

sagrada, ali ela continua.<br />

A senhora dessa outra pintura é uma espécie<br />

de governanta, e não a dona da casa. As do-<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

para ninguém ver. Ela coloca à vista de todo mundo. De<br />

outro lado, ela está aqui, eu quase diria como um professor<br />

numa cátedra, um juiz num tribunal ou, amesquinhando<br />

muito, uma rainha num trono. Há qualquer coisa<br />

de pitoresco teatral italiano dentro disso. Está presente<br />

aí um verniz italiano. Nota-se alma dentro disso a mais<br />

não poder; vivacidade!<br />

O latino e o germânico<br />

nas de casa não usavam esse avental. É<br />

uma criada muito graduada que foi fazer<br />

compras com o menino da casa. O<br />

menino, vestido à século XIX: chapéu<br />

de marinheiro, com uma borlazinha, um<br />

pompom em cima, e uma golazinha.<br />

Nota-se nessa cena que algumas das<br />

pessoas se conhecem, outras até estão<br />

conversando. Mas não há nenhum indício<br />

de que todas se conheçam. Então, em que<br />

sentido se pode dizer que não são desconhecidas,<br />

como por exemplo, a multidão<br />

que passa pelo Viaduto do Chá 1 , onde as<br />

pessoas ignoram umas as outras?<br />

Embora os personagens estampados<br />

nessas figuras sejam desconhecidos, a<br />

cidade é tal que cada pessoa que passa<br />

sabe mais ou menos que categoria tem a<br />

outra, qual sua profissão, quais seus hábitos,<br />

qual seu estilo de vida. Por exemplo,<br />

essa mulher, por sua atitude, dá a entender que se<br />

considera muito superior àqueles outros e leva uma vida<br />

mais ordenada e mais limpa do que eles. E estes, indiretamente,<br />

respondem para ela que, sem negar que ela<br />

seja mais, eles têm um vidão livre, solto e à vontade que<br />

acham bem gostoso. Porque estão todos bem satisfeitos.<br />

Esses homens podem não saber o nome da senhora,<br />

mas sabem como ela é, como ela vive. É uma cidade pequena,<br />

com categorias e estilos de vida definidos, onde<br />

ninguém é inteiramente anônimo para outro. É diferente<br />

da avalanche de anônimos do Viaduto do Chá.<br />

Nessa cena do gueto, há algo de italiano na desordem<br />

com uma forma de pitoresco que o italiano sabe pôr e<br />

que outros não sabem. É um predicado italiano. Essa<br />

mulher cozinhando tem um pitoresco italiano no espalhafato.<br />

Normalmente, uma pessoa que faz isso, esconde<br />

Sem dúvida, há uma grande diferença entre esta desordem<br />

e a ordem do povo alemão, por uma razão muito<br />

simples: isso toca na índole do povo.<br />

O italiano é exuberante, sente, pensa e tem vontade<br />

de dizer tanta coisa, que não<br />

encontra tempo para arrumar<br />

muito as coisas.<br />

Mais ainda, isso tem muita<br />

relação com o modo de ser do<br />

brasileiro, não pela grande imigração<br />

italiana em São Paulo,<br />

porque o Brasil todo é assim,<br />

até no Nordeste, zona muito<br />

pouco italianizada; e o nordestino<br />

é mais ainda do que o brasileiro<br />

do Sul, nesse sentido.<br />

Nós, latinos, pensamos muitas<br />

vezes falando, e, se não temos<br />

ocasião de falar, não chegamos<br />

a completar o nosso pensamento.<br />

A extroversão é um<br />

modo de ser nosso para concluir<br />

o nosso pensamento. Nossos<br />

caros espanhóis falam muito<br />

e também completam muito<br />

o pensamento quando falam.<br />

O alemão é o contrário: para completar o pensamento,<br />

ele precisa recolher-se. E daí resulta que o latino tanto fala<br />

que não tem muito tempo para se arranjar. E o alemão<br />

tanto se recolhe que pensa enquanto arranja as coisas.<br />

Então, ele está pondo em ordem um papel, arranjando<br />

uma cortina, regando o gerânio, etc., e enquanto faz<br />

isso está filosofando, em todos os graus possíveis da Filosofia:<br />

desde a mais alta até a mais popular.<br />

O latino está sempre elucubrando uma coisa para o<br />

conhecimento do mundo. O alemão está elucubrando<br />

para si, depois para seus próximos, posteriormente para<br />

um clã que ele forma e com o qual ele vai pressionar<br />

outros, e depois com a nação com a qual ele pressiona o<br />

mundo. Mas a propagação da influência, para os latinos,<br />

se faz à maneira do azeite; e para os alemães, à maneira<br />

do gládio. São formas diferentes.<br />

34


Eu sou um grande admirador da Alemanha. Sou um<br />

grande admirador da Europa, mais do que de cada país<br />

europeu, mesmo da França. A Europa vale muito mais<br />

do que a França, porque o bonito da Europa é o conglomerado<br />

desses povos esplêndidos e diferentes que formam<br />

um todo mais bonito do que cada elemento.<br />

É bonito, na Europa, ver o alemão levando aquela vida<br />

nas aldeiazinhas de marzipã, esplendidamente arranjadas,<br />

e o italiano cantando a plenos pulmões na baía de<br />

Nápoles, ou à beira do Arno, ou guiando uma gôndola<br />

em Veneza. A Espanha com suas castanholas e suas touradas,<br />

e daí para fora… O fado português, a Torre de Belém,<br />

a Abadia de Westminster… É a Europa feérica. É<br />

dela que nós gostamos.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 29/1/1977)<br />

1) Situado na região central da cidade de São Paulo.<br />

35


<strong>Luzes</strong> LuzeS da Da civiLização Civilização criStã Cristã<br />

Ornato e<br />

simplicidade<br />

Revista Dr Plinio 209, Agosto <strong>2015</strong><br />

Juniorpetjua (CC 3.0)<br />

Nesta página e na seguinte:<br />

Igreja do Carmo - Olinda, Brasil<br />

As igrejas do Brasil colonial eram bonitas, nobres<br />

e muito dignas. Manifestavam o contraste entre a<br />

intensa ornamentação e a simplicidade, causando<br />

aos olhos uma impressão agradável.<br />

Adiferença entre York 1 e Olinda<br />

é manifesta. É quase<br />

um pouco desconcertante!<br />

Mas a igreja de<br />

Olinda, construída no<br />

século XVII, tem<br />

isso de agradável:<br />

sente-se melhor<br />

a doçura e<br />

a suavidade do<br />

“à vontade” do<br />

matagal brasileiro.<br />

Ela emerge<br />

toda branquinha,<br />

muito aprazível,<br />

desta abundância<br />

de verde, que<br />

no fundo é provavelmente<br />

o mato. A localização,<br />

portanto, é muito bonita.<br />

Juniorpetjua (CC 3.0)<br />

Não é fácil fazer um comentário sobre<br />

esta igreja, porque todos nós<br />

conhecemos uma porção de<br />

igrejas parecidas com ela.<br />

Nunca se copiam, são<br />

sempre diferentes,<br />

mas o mais possível<br />

iguais. O que<br />

comentar a este<br />

respeito?<br />

Atmosfera<br />

de grandeza<br />

Ela possui duas<br />

torres. No corpo<br />

central alguma coisa<br />

é vagamente à maneira<br />

de um triângulo, com três janelas.<br />

E, por assim dizer, em cada<br />

30


Juniorpetjua (CC 3.0)<br />

andar da torre uma janela também. A fachada muito cuidada,<br />

mas a parte lateral da igreja meio lambida e sem nenhum<br />

ornato por fora; em geral, as igrejas deste estilo são<br />

muito bonitas por dentro. Não tem mais nada para comentar,<br />

exceto isto: há uma certa cor local, um certo ambiente<br />

de brasilidade, sobre o qual chamo a atenção para dois<br />

pontos.<br />

Quando consideramos este edifício, temos a impressão<br />

de algo que, em comparação com a Catedral de York, é<br />

muito primitivo; e notamos que a igreja é bonitinha. Entretanto,<br />

fica por detrás uma atmosfera de grandeza que<br />

talvez não saibamos definir, e que julgo resultar da conjunção<br />

muito discreta de dois elementos: todo esse verde<br />

dessas árvores dá uma ideia da enorme fecundidade do solo,<br />

e de um país com uma natureza rica, generosa, dir-se-<br />

-ia quase agressiva. A produção jorra de dentro do solo!<br />

Percebe-se que ninguém trabalhou muito para que isso<br />

fosse assim... Qualquer grão que se joga na terra já<br />

disputa com outros o espaço vital, e lá vai germinando e<br />

crescendo, como uma promessa enorme de uma grandeza<br />

vindoura!<br />

Por outro lado, vemos no fundo o mar imenso, de um<br />

colorido lindíssimo! Nesse ponto não percebo que esteja<br />

picotado por nenhuma ilha, por nenhum recife, por nada:<br />

é o mar, o mar, o mar! Duas grandezas juntas: vastidão<br />

e a ideia de grandeza.<br />

O tempo pode adornar e<br />

proporcionar certa dignidade<br />

A Igreja de Nossa Senhora das Neves, no convento de<br />

São Francisco, em Olinda, é a construção mais antiga dos<br />

franciscanos no Brasil.<br />

Assim são os grandes e<br />

os pequenos na Terra:<br />

completam-se aos pés<br />

de Deus. Como o mundo<br />

seria árido e sem graça<br />

se só existissem grandes!<br />

Como ele é vulgar quando<br />

só há pequenos!<br />

Há algo de imponderável aqui, ao menos para meu<br />

gosto, e que dá muito sabor a isto. Se essas telhas fossem<br />

todas vermelhinhas e novinhas, isto não perderia algo?<br />

Observem que é uma telharia velha e manchada. O<br />

que tem isto que, se fosse novinho, perderia? Se esta torre<br />

tivesse sido recentemente caiada, mas de tal maneira<br />

que desse ilusão de uma torrezinha novazinha em folha,<br />

não perderia também? O que há de beleza em uma<br />

coisa, quando sobre ela passa o tempo, para que, em última<br />

análise, o tempo a adorne, até mesmo quando ela fique<br />

estragada?<br />

Vejam, por exemplo, essas pedras da torre. Em alguns<br />

lugares tem-se impressão que o tempo manchou,<br />

as intempéries mancharam. Calores de arrebentar, chuvas<br />

violentas, frescor nunca, pedra trabalhada, corroída,<br />

torrada pelo sol, mas íntegra! Percebe-se que o tempo<br />

passou sobre ela e lhe deu uma doçura, uma dignidade,<br />

um ar assim pensativo do ancião ou da anciã que<br />

está na cadeira de balanço, pensando e dizendo: “Fugite<br />

irreparabile tempus! Como eu, quando era jovem, não<br />

Juniorpetjua (CC 3.0)<br />

31


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Adam63 (CC 3.0)<br />

Juniorpetjua (CC 3.0)<br />

gostava disso! Mas o tempo fugiu mesmo...”<br />

Tem sua poesia.<br />

Como poesia tem, a meu ver, esse tufo de<br />

palmeira que está embaixo.<br />

Orações, sacrifícios, tentações, vitórias<br />

As palmeiras são muito bonitas e não impedem<br />

que se veja esta espécie de portal, de uma<br />

linha um pouco fantasiosa, mas elegante e bonito,<br />

que esta aí. Não se pode ter uma ideia inteira<br />

dele. Quanto à fachada do convento, pode-se<br />

dizer que qualquer casa de fazenda do interior<br />

tem exatamente isto. É uma residência<br />

de fazendeiro antigo, com janela de guilhotina:<br />

três janelas embaixo, três janelas em cima. Dir-<br />

-se-ia uma caixa, na qual alguém recortou à tesoura as janelas,<br />

e está feito o plano da casa.<br />

Alguém dirá: “Apreciação severa!”<br />

Não. Ela é feita para que nós compreendamos o que<br />

é o sabor das antigas eras. Como nós sabemos que aqui<br />

não residiu uma família, mas há bastante tempo mora<br />

uma Ordem Religiosa — que durante muitos séculos foi<br />

uma Ordem recolhida, de pobreza, impregnada pela doçura<br />

do Poverello —, podemos imaginar a continuidade,<br />

a sucessão de frades que se revezavam ao longo das décadas<br />

nesse convento, sempre servindo, sempre rezando,<br />

sempre trabalhando, sempre afastados das coisas da<br />

Terra. E começa-se a pensar: “Através de cada uma dessas<br />

janelas, que mundo de orações, que mundo de sacrifícios…”<br />

Não nos iludamos: que mundo de tentações, que<br />

mundo de vitórias, que mundo de ação de graças, que<br />

provações, que doenças, que preocupações!<br />

Aí está a expressão que se desprende desse edifício.<br />

Convento de São Francisco e<br />

Igreja Nossa Senhora das Neves - Olinda, Brasil<br />

A palmeira aristocrática e as<br />

plantinhas completam-se<br />

Consideremos a Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres<br />

dos Montes Guararapes. O nome diz tudo! Nós não temos<br />

que acrescentar nada.<br />

A fotografia situa num ângulo muito agradável e muito<br />

poético a igreja. Mas precisamos reconhecer que ela<br />

quase teve mais a preocupação de dar a moldura verde<br />

da igreja, do que a igreja propriamente dita. A moldura é<br />

muito agradável.<br />

Eu nunca estive lá, mas tenho a impressão que embaixo<br />

deve haver um valo e um cursozinho de água qualquer ali.<br />

O elemento indispensável da paisagem brasileira, e sobretudo<br />

da paisagem nordestina, está presente: as palmeiras.<br />

prefeituradeolinda (CC 3.0)<br />

32


Josue121 (CC 3.0)<br />

Tetraktyrs (CC 3.0)<br />

Igreja Nossa Senhora dos Prazeres - Montes Guararapes,<br />

Recife, Brasil<br />

Batalha de Guararapes - Museu de Belas Artes,<br />

Rio de Janeiro, Brasil<br />

Chamo a atenção particularmente para aquela palmeira<br />

esguia, tendo no alto um mundo de folhas que<br />

o vento está sacudindo em todas as direções. Isso nos<br />

dá um pouquinho a ideia da hierarquia na criação botânica.<br />

Há plantinhas mais comuns do que estas que se veem<br />

ali? Tenho a impressão de que, desde quando o mundo<br />

foi criado, há plantas destas. Como elas são vulgarezinhas,<br />

comunzinhas, apagadas em comparação com a palmeira<br />

aristocrática, esguia que ostenta as suas folhas como<br />

se fossem um brasão!<br />

É inegável que, batidas pelo sol, consideradas no seu<br />

conjunto, estas plantinhas dão uma ideia de pujança, de<br />

fertilidade, de variedade, de grandeza, são indispensáveis<br />

para o panorama! Se imaginássemos que houvesse<br />

só palmeiras aqui, como o panorama<br />

seria nada! Se não houvesse palmeiras,<br />

mas só estas plantinhas, não havia panorama!<br />

Assim são os grandes e os pequenos<br />

na Terra: completam-se aos pés de<br />

Deus. Como o mundo seria árido e sem<br />

graça se só existissem grandes! Como ele<br />

é vulgar quando só há pequenos! Pequenos<br />

e grandes conjugados dão a ordem<br />

que Deus quis.<br />

Fato concreto é este: se alguém me<br />

sugerisse abater tudo isto, fazer um gramado<br />

lindo nas duas margens desse córrego,<br />

passar asfalto por debaixo do córrego para ficar bonito,<br />

eu diria: “Você não entendeu nada! Deixe assim, e<br />

acabou se!”<br />

Lembrando as batalhas dos Guararapes<br />

Em frente à Igreja de Nossa Senhora dos Guararapes<br />

vemos o clássico Cruzeiro. A igreja tem uma nota que<br />

não é de qualquer igreja do tempo colonial. Nessa época,<br />

as igrejas, com certa frequência, visam ao horizontal,<br />

não ao esguio, ao alto. Esta tem isto, que é para mim um<br />

grande mérito: ela visa ao esguio, ao alto!<br />

Notem que ela é um pouco estreita em comparação<br />

com sua altura. As janelas dela também são de uma altura<br />

um pouco maior do que o comum, e um pouco desproporcionadas,<br />

mas no sentido louvável da palavra, em<br />

relação à altura de cada janela. E aquele ornato central,<br />

também todo ele se volta especialmente para o alto. Dir-<br />

-se-ia que há uma sede do esguio, do ascético, do voltado<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

para o Céu e para as realidades de além desta Terra, que<br />

aposta corrida com as duas palmeiras que se veem do outro<br />

lado, e que não conseguem ter a altura da igreja.<br />

No chão, é preciso bem reconhecer que não existe<br />

apenas a mãe natureza, mas existe o “pai relaxamento”.<br />

É uma tristeza, mas é assim.<br />

O todo esguio da igreja é mais propício a lembrar as<br />

batalhas dos Guararapes, a ascese, os heróis, a luta religiosa,<br />

etc., do que se fosse uma igreja atarracada e mais<br />

dada para as comodidades dos grandes domingos tranquilos.<br />

Vejam que belo ladrilho reveste as torres! Ladrilho,<br />

uma arte dos portugueses – dos espanhóis também. Em<br />

Portugal especialmente atingiu uma beleza excepcional,<br />

e esses ladrilhos vinham de Portugal. Mas no Brasil também<br />

se começou a fazer ladrilhos, por vezes bem bonitos.<br />

Os jogos de cores desse ladrilho, sobretudo, me parecem<br />

muito agradáveis.<br />

Observem o desenho. Parece uma coroa, e no alto tendo<br />

uma espécie de coroazinha. E coroando tudo isto, a<br />

Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />

Altaneira, ascética e com senhorio<br />

Considerem também o arvoredo e a ideia de pujança<br />

da natureza que se tem aí. É o velho convento beneditino,<br />

muito simpático, respeitável, antigo da cidade de<br />

Olinda. Mas este é mais dado ao horizontal.<br />

A Igreja São Pedro dos Clérigos, antiga catedral de<br />

Recife, levou o esguio até onde se podia levar. Agrada-<br />

-me muito a arquitetura dela: é altaneira, ascética, tem<br />

senhorio…<br />

A Igreja de São Cosme e Damião está<br />

precisando muito de uma renovação,<br />

pois se encontra muito mal tratada.<br />

Aqui o tempo fugiu muito irreparavelmente!<br />

Ela é venerável, mas para ser bela<br />

precisava de uns retoques!<br />

Não há muito comentário a fazer<br />

sobre o interior da Igreja de São Pedro<br />

dos Clérigos. Vemos que o esguio e o<br />

esbelto ali se mantêm. Notem como a<br />

parte equivalente ao presbitério é profunda,<br />

alta e esguia. E toda a igreja é<br />

muito alta. Poder-se-ia dizer que tem<br />

Igreja de São Pedro dos Clérigos<br />

Recife, Brasil<br />

Tetraktyrs (CC 3.0)<br />

Juniorpetjua (CC 3.0)<br />

34


três andares. O restante corresponde à configuração<br />

bonita, nobre, muito digna das igrejas<br />

antigas do Brasil.<br />

Contraste entre o entalhado e o liso<br />

Também conheço o Mosteiro de São Bento,<br />

em Olinda. Vemos aí o contraste que a arquitetura<br />

desse tempo às vezes explorava de modo<br />

muito feliz, entre o altar todo muito carregado<br />

e a simplicidade das paredes caiadas. Depois,<br />

estalas de novo muito carregadas. E esta<br />

justaposição do extremamente carregado e do<br />

extremamente simples causa para os olhos uma<br />

impressão agradável. Essa impressão é visada e<br />

atingida pelo artista que fez isto!<br />

Está primorosamente conservada. Chão muito<br />

limpo, muito bem arranjado, e tudo muito<br />

bem adornado.<br />

Chamo a atenção para a beleza dessas cômodas,<br />

com enormes gavetas de ambos os lados,<br />

para guardar paramentos, e que toma toda<br />

a parede. Provavelmente tomam as quatro<br />

paredes da sacristia. Quadros muito interessantes,<br />

encaixados na própria boiserie, e não só acima<br />

das cômodas, mas no teto, como é o estilo.<br />

Vê-se um quadro no teto. Deve haver mais<br />

de um quadro, ao longo da imensa sala.<br />

Uma mesa esguia, elegante se deixa ver<br />

ali, e um grande candelabro. Realmente uma<br />

bela peça.<br />

Um púlpito. Os púlpitos naquele tempo ficavam<br />

bem altos e muito mais para o centro<br />

da igreja. Porque, como não havia esses aparelhos<br />

de som, o pregador tinha que ficar o mais<br />

alto possível para a sua voz alcançar de modo<br />

cômodo, ou relativamente cômodo, todo o<br />

edifício sagrado. Mas o púlpito alto dava outra<br />

majestade ao pregador, que ficava pairando<br />

nas nuvens, por assim dizer, para pregar o<br />

seu sermão.<br />

O púlpito é todo muito trabalhado, revestido<br />

de ouro e com uma parede por detrás, caiada e<br />

extremamente lisa. Podemos sentir aqui melhor,<br />

talvez, o agrado do contraste entre esses<br />

dois elementos: o entalhado e o liso. v<br />

(Extraído de conferência de 22/5/1985)<br />

Tetraktyrs (CC 3.0)<br />

Valdiney Pimenta (CC 3.0)<br />

Juniorpetjua (CC 3.0)<br />

1) Referência aos comentários à Catedral de York.<br />

Ver Revista Dr. Plinio n. 161, p. 32-35.<br />

Igreja e Mosteiro de São Bento - Olinda, Brasil<br />

35


Revista Dr Plinio 210, Setembro <strong>2015</strong><br />

<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

A beleza da luta - I<br />

Reprodução<br />

Os contrarrevolucionários, que travam a guerra de<br />

Nossa Senhora contra o demônio,<br />

precisam compreender a beleza da luta.<br />

Devemos fazer algumas considerações à vista de<br />

ilustrações representando cenas de batalhas<br />

medievais, desenhadas pelo famoso desenhista<br />

francês do século XIX, Gustavo Doré.<br />

Porém, antes de fazer o comentário, eu queria apontar<br />

bem do que se trata, para podermos apreciar adequadamente<br />

o assunto.<br />

A paz é a tranquilidade da ordem<br />

Gustavo Doré é um dos maiores desenhistas do século<br />

XIX. Ele fez desenhos extraordinários, por exemplo, ilustrando<br />

a “Divina Comédia”. Quer dizer, a passagem de<br />

Dante, guiado por Virgilio, pelo Inferno, depois pelo Purgatório<br />

e até pelo Céu. E seus desenhos ficaram famosos.<br />

São desenhos da escola romântica, com os defeitos<br />

desta escola, mas também com algumas qualidades que<br />

existem nela. Os defeitos consistem em que ele apela demais<br />

para o sentimento. Doré procura impressionar a<br />

fundo — porque, afinal, causar impressão é próprio de<br />

uma obra de arte —, mas a impressão é tão viva que chega<br />

a apagar um pouco o papel da razão. A pessoa se deixa<br />

levar apenas pela impressão.<br />

De outro lado, entretanto, ele tem uma grande seriedade<br />

em seus desenhos e, como tal, é capaz de inspirar,<br />

elevar as cogitações dos homens a um plano superior. É<br />

o que acontece com as batalhas medievais.<br />

Os combatentes medievais ele sabe exprimir, manifestando<br />

aquilo em que o homem da Idade Média era muito<br />

sensível, que era o pulchrum do combate. Como o combate<br />

é belo, como em sua beleza se sente a nobreza e o<br />

valor moral da luta e, portanto, o combate como um dos<br />

estados de alma do católico, em que a virtude católica se<br />

faz sentir de um modo excelente.<br />

Nisso tudo há um contraste com a mentalidade contemporânea,<br />

essencialmente pacifista, mas pacifista de<br />

um modo exagerado e, sobretudo, em obediência a um<br />

conceito errado de paz.<br />

Com efeito, Santo Agostinho definiu prodigiosamente<br />

bem a paz, e São Tomás retoma essa definição: a paz é<br />

32


a tranquilidade da ordem. Quando as coisas estão em ordem,<br />

reina então entre elas uma harmonia. Essa harmonia<br />

é a paz.<br />

Não é, portanto, qualquer tranquilidade que é paz,<br />

mas a tranquilidade da ordem. Se entrarmos, por exemplo,<br />

numa sala onde se fuma maconha, e há quinze, vinte<br />

pessoas inebriadas e largadas em sofás, ninguém dirá:<br />

“Que paz!”, porque aquilo é uma desordem. E aquela<br />

desordem não proporciona a verdadeira paz.<br />

A tranquilidade da desordem é o contrário<br />

da verdadeira paz<br />

Deve-se ser pacifista? Sim, se se quer esta paz, isto é,<br />

a ordem, e se se tem a alegria na tranquilidade da ordem.<br />

Mas a desordem também tem tranquilidade. E a tranquilidade<br />

da desordem é nojenta, porque é o contrário da<br />

paz verdadeira e incute desprezo.<br />

Por exemplo, o que se passou no Vietnam, em 1975.<br />

Na véspera da chegada dos comunistas a Saigon, os bares<br />

dos grandes hotéis dessa cidade estavam cheios de gente<br />

bebericando, conversando, se divertindo. Houve festas.<br />

Um repórter notou que numa loja, no dia anterior à invasão<br />

comunista, ainda um pintor estava pintando os batentes<br />

das portas do estabelecimento, para atrair mais os<br />

clientes no dia seguinte. A “paz” inteira reinava em Saigon.<br />

Quando os comunistas entraram, por volta das 10, 11<br />

horas da manhã, tiveram a sagacidade de mandar alguns<br />

caminhões com o que havia de mais jovem no exército<br />

comunista. Eram meninotes. Os caminhões ficaram parados<br />

em alguns pontos da cidade de Saigon, esperando<br />

ordens superiores.<br />

Os vietnamitas do Sul passavam por lá e davam risada:<br />

“Olha aqui o que vai ser essa ocupação! Ocupação de<br />

meninos! Isso é uma tirania de brincadeira. Nossa vida<br />

vai continuar na mesma.”<br />

Num clube de luxo, um sujeito tranquilo numa piscina<br />

gritou para o barman: “Traga-me uma champagne!”<br />

O garçon trouxe, ofereceu, e um jornalista perguntou a<br />

quem bebia a champagne:<br />

— Mas o senhor está festejando o quê?<br />

Ele respondeu:<br />

— Eu estou festejando minha última champagne. Os<br />

comunistas vão entrar, não vou ter mais champagne. Não<br />

sei o que vai ser feito de mim. Deixe-me, pelo menos, beber<br />

minha última champagne na paz!<br />

Essa é a tranquilidade da desordem, e causa nojo.<br />

Nós devemos distinguir no mundo de hoje o pacifismo<br />

que visa a tranquilidade da ordem. Busca a ordem por<br />

amor de Deus, porque ela é a semelhança com o Criador<br />

e, por isso, tem a paz de tudo quanto é de Deus. Mas a<br />

paz não é o fim supremo; é um fruto aprazível da ordem<br />

que amamos, porque amamos o Altíssimo.<br />

Dou outro exemplo. Num prédio de apartamentos,<br />

mora-se embaixo do apartamento de um casal e nunca<br />

se ouve barulhos de uma briga. Como não há encrenca,<br />

chega-se à conclusão de que existe paz. De fato, marido e<br />

mulher estão brigados e nunca se dirigem a palavra. Então<br />

não há discussões; mas isso não é paz! É uma caricatura<br />

nojenta da paz, é a cristalização, a fixação, a consolidação<br />

de uma desordem: marido e mulher estão brigados,<br />

quando deveriam estar unidos.<br />

O verdadeiro heroísmo é um dos garbos<br />

da Idade Média<br />

Há situações em que a luta, por mais que seja perigosa<br />

e traga frutos tristes, é preferível à falsa paz. E às vezes<br />

luta-se de modo terrível para conseguir a paz!<br />

Por exemplo, se está entrando um ladrão numa casa,<br />

que pode quebrar objetos, meter fogo na residência, matar<br />

os chefes da família, o filho já moço avança e se atraca<br />

com o ladrão; isso é uma briga na casa, mas em favor da<br />

ordem. Essa luta é meritória. A isso se chama heroísmo!<br />

Os medievais tinham alta ideia disso. E, portanto, eles<br />

celebravam a beleza da luta. Às vezes combates entre cavaleiros<br />

em que cada um dos lados luta de boa-fé, embora<br />

um esteja errado e outro não.<br />

Por exemplo, questão de limites entre um feudo e outro<br />

depende da interpretação de tratados que, por vezes,<br />

são muito complicados. Pode ser que nos dois lados haja<br />

boa-fé. Mas um julga que tem direito a uma terra, e o outro<br />

não está de acordo. Então se combatem.<br />

Há um modo nobre de combater de ambos os lados<br />

que torna essa luta nobre em si, em que toda a beleza<br />

do combate é realçada pelo mútuo respeito daqueles<br />

que lutam. Aquele que combate admite que o outro<br />

esteja de boa-fé, mas nem por isso permitirá que roube<br />

uma terra que ele considera sua. Se o invasor avança<br />

é preciso contê-lo, mas com respeito, porque ele está<br />

de boa-fé.<br />

Portanto, não é como quem avança em cima de um<br />

bandido. É um cavaleiro que investe contra outro cavaleiro,<br />

ambos aguerridos. Não raras vezes se saudavam<br />

antes da luta, reconhecendo a boa-fé do outro lado. Mas<br />

não tem remédio: vão para a guerra!<br />

E na luta conduzida nesse espírito para a defesa de um<br />

ideal, da Religião Católica, o homem desdobra qualidades<br />

de heroísmo, de força de corpo e de alma em que, no fundo,<br />

é a varonilidade de um que se choca com a do outro.<br />

Mas como do choque de duas pedras muito duras parte<br />

uma centelha, assim, do choque de dois homens muito<br />

duros, pode partir uma chama, uma labareda que é a ma-<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

nifestação do heroísmo de ambos. Esse heroísmo desinteressado,<br />

nobre é um dos garbos da Idade Média.<br />

Gustavo Doré soube representar<br />

a beleza do heroísmo<br />

Os desenhos de Gustavo Doré representam a beleza<br />

da luta, a beleza da guerra, a beleza do heroísmo.<br />

É muito importante que os contrarrevolucionários, os<br />

que travam a guerra de Nossa Senhora contra o demônio,<br />

compreendam seriamente a beleza da luta.<br />

Nessa perspectiva, então, vamos examinar alguns desenhos<br />

de Gustavo Doré.<br />

Vemos numa ilustração um exército pronto para a batalha.<br />

Na primeira fileira se discernem mais facilmente<br />

os soldados de infantaria revestidos de couraças, capacetes,<br />

espadas, escudos contendo, em geral, emblemas religiosos<br />

que mostrassem por que eles lutavam.<br />

Embaixo, estão os homens jogados por terra, mostrando<br />

bem a que está sujeito quem trava uma batalha. Tem-<br />

-se a impressão de que o guerreiro que está na primeira<br />

fila, com um escudo quase inteiramente redondo e com<br />

uma espada na mão, acabou de prostrar por terra aquele<br />

combatente; e que esse exército deu um primeiro choque,<br />

reduzindo a primeira linha do adversário a trapos, e<br />

está avançando sobre cadáveres.<br />

O campo de batalha é representando num dia bonito<br />

e de aspecto até risonho. Num campo de batalha assim,<br />

uma grande tragédia se desenvolve. Mas uma tragédia<br />

que é, sobretudo, um lance de dedicação e de coragem.<br />

Daí não resulta choradeira, e sim a glória.<br />

A batalha, na Idade Media, tinha dois estágios: o primeiro<br />

é o da bataille rangée, e depois, da bataille mellée.<br />

A bataille rangée era em filas. Antes de começar a<br />

luta, os dois lados se mantinham em filas e, muitas vezes,<br />

um arauto ia para a frente e cantava as razões pelas<br />

quais eles combatiam, julgando que estavam com o direito.<br />

Depois o opositor mandava outro arauto refutar. E<br />

quando os arautos se retiravam, iniciava, com todo o furor,<br />

o ataque de cavalaria de lado a lado.<br />

Episódio culminante da tomada de<br />

Jerusalém pelos cruzados<br />

Em outra ilustração, observamos um ataque de cavalaria<br />

e um cavalo que se ergue com grandeza, num belo<br />

Fotos : Reprodução<br />

34


movimento. Ali está um homem que quis atentar contra<br />

o cavaleiro e está sendo jogado no chão. Outros homens<br />

já estão caídos no solo, e os cavalos avançam. O cavaleiro,<br />

com a espada na mão, mata na defesa de seu ideal.<br />

Tem-se pena de quem está no chão, mas não é o aspecto<br />

principal do quadro. O aspecto principal da cena é<br />

a admiração, portanto a coragem, a glória.<br />

Nesta gravura veem-se nuvens de fumaça de todos os<br />

lados. Trata-se de um episódio culminante da tomada de<br />

Jerusalém pelos cruzados. Os guerreiros cristãos aproximaram<br />

dos muros de Jerusalém torres de madeira sobre<br />

estrados com rodas, que eles deslocavam de um lado para<br />

outro e, em certo momento, encostavam na muralha e<br />

saltavam para dentro da fortaleza. Algumas dessas torres<br />

estão pegando fogo, e um cruzado, na primeira fila, de espada<br />

na mão, está lutando e descendo magnificamente.<br />

No lance aqui representado, os maometanos que dominavam<br />

Jerusalém tinham ateado fogo na torre de Godofredo<br />

de Bouillon, e a fumaça sufocava os cruzados.<br />

Mas houve um determinado momento onde, por disposição<br />

da Providência, o vento soprou de outro lado, e a fumaça<br />

passou a sufocar os maometanos. Então, imediatamente,<br />

os cruzados aproveitaram a ocasião e avançaram.<br />

Este que vemos descer numa atitude magnífica é Godofredo<br />

de Bouillon, chefiando o ataque, avançando em<br />

primeiro lugar.<br />

Na guerra moderna, os generais não avançam. Eles ficam<br />

na retaguarda, jogando xadrez com a vida dos outros.<br />

Quer dizer, vai tal corpo para cá, aquele corpo para<br />

lá, e eles ficam sentados, numa tenda.<br />

Aqui não. Eles se expunham em primeiro lugar. E o<br />

resultado é esse: a Santa Sé ofereceu a Godofredo de<br />

Bouillon o título de Rei de Jerusalém. E ele declarou que<br />

não queria cingir a coroa de rei no lugar onde Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo tinha cingido uma coroa de espinhos.<br />

E que a ele bastava ter o título de Barão do Santo<br />

Sepulcro. Ele usava, então, uma coroa de espinhos feita<br />

de ouro.<br />

v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de 19/3/1988)<br />

35


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Revista Dr Plinio 211, Outubro <strong>2015</strong><br />

A beleza da luta - II<br />

Do alto da Cruz, Nosso Senhor teve um consolo ao contemplar<br />

misticamente a epopeia das Cruzadas, que lutaram pela<br />

libertação da Terra Santa. E até hoje a palavra “cruzado” evoca<br />

nos corações algo de especial, luminoso e belo.<br />

Outro desenho de Gustavo Doré representa Ricardo<br />

Coração de Leão desembarcando, com suas<br />

tropas, em São João d’Acre.<br />

Vemos uma pequena elevação de terreno. É uma batalha<br />

em pleno curso, não de cavalaria, porque esta não<br />

podia subir ali. São os soldados de infantaria que atacam.<br />

Trata-se da bataille mellée, porque se misturaram os de<br />

um lado com os de outro completamente. Usando um<br />

termo corriqueiro de hoje em dia, estão engalfinhados<br />

uns nos outros.<br />

Anjos de combate que<br />

parecem ser feitos<br />

de cristal<br />

Os cruzados, com risco enorme<br />

da vida, estão subindo e rechaçando<br />

os inimigos da Fé. Na<br />

guerra medieval, estar em cima<br />

fornecia muita vantagem, porque<br />

quem se encontrava por<br />

baixo era mais sujeito a golpes.<br />

Ao contrário das guerras<br />

de hoje, onde quem se afunda<br />

numa trincheira tem vantagem.<br />

É que em nossos dias há vantagem<br />

para quem desce. Naquele<br />

tempo havia vantagem para<br />

quem subia.<br />

O efeito dramático Gustavo<br />

Doré obtém magnificamente<br />

com essas velas altas, que parecem<br />

furar o céu, e o entrelaçamento<br />

dos homens: os católicos<br />

defendem a Fé e os ímpios,<br />

que não querem aceitar a<br />

Reprodução<br />

Fé, estão querendo matar os católicos. Por detrás está um<br />

bispo com uma cruz.<br />

A gravura seguinte representa uma legião de Anjos,<br />

mandada por Maria para socorrer os cruzados.<br />

Eu queria chamar a atenção para o senso fino de interpretação<br />

de Gustavo Doré, a propósito desses Anjos.<br />

Eles parecem feitos de cristal, voam como Anjos podem<br />

voar, e vêm numa revoada gloriosa. Porém, são Anjos<br />

de combate! E que, quando pousarem, vão dizimar<br />

os inimigos da Fé que, provavelmente, já os viram antes<br />

de eles pousarem, e saíram na<br />

disparada.<br />

Ali vem representado, de<br />

costas e na primeira fileira,<br />

um cruzado que viu a legião<br />

celeste e que, brandindo<br />

sua espada, aclama os Anjos<br />

que vão baixando. Pensem<br />

nisso quando estiverem<br />

em meio aos castigos previstos<br />

por Nossa Senhora em Fátima,<br />

e digam: Regina angelorum,<br />

succurre nos! 1<br />

Consolação de Nosso<br />

Senhor no alto da Cruz<br />

Eis, nesta outra cena, a cidade<br />

de Jerusalém com suas<br />

muralhas fortíssimas, e o ataque<br />

que se desenrola. Também<br />

aqui os guerreiros estão<br />

aproximando uma das tais<br />

torres de madeira, quase da<br />

altura da grande torre quadrangular<br />

da muralha.<br />

32


Os cruzados escalam as muralhas<br />

da cidade subindo por uma escada, enquanto os<br />

maometanos estão fazendo o possível para derrubá-los.<br />

Os combatentes cristãos querem descer, mas vejam a dificuldade<br />

para saltar por cima dessas lanças e pedras…<br />

Isso é o característico da guerra medieval: os maometanos<br />

eram censuráveis debaixo de todos os pontos<br />

de vista, os cruzados eram admiráveis. Pois bem, mas a<br />

guerra se desenvolvia de tal modo que se acaba tendo<br />

certo respeito por ambos os lados, pela coragem manifestada<br />

pelos contendores.<br />

Neste outro lance os cruzados estão entrando e tomando<br />

conta da cidade.<br />

Vê-se um bispo que caminha debaixo do pálio. Há<br />

quanto tempo não se via isto: um bispo da Santa Igreja<br />

Católica Apostólica Romana desfilando na cidade onde<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo morreu! Eles entravam cantando,<br />

com certeza, músicas sacras. É a vitória de Nossa<br />

Senhora!<br />

O bispo parece conduzir o Santíssimo Sacramento. Ao<br />

menos é a interpretação que eu dou.<br />

Os cruzados entraram em Jerusalém numa Sexta-Feira<br />

Santa, às três da tarde, hora em que Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo morreu.<br />

O Redentor, que conhecia o passado, o presente e o<br />

futuro, do alto da Cruz conheceu isso e teve a consolação<br />

de ver que, se os discípulos d’Ele — que estiveram com<br />

Ele naquela intimidade do Horto das Oliveiras — dormiram,<br />

séculos depois vieram esses heróis que por amor a<br />

Ele morreram. Isso é supremamente belo!<br />

Quem não combate o<br />

mal atraiçoa<br />

a Causa de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo<br />

Este é um elemento integrante<br />

da psicologia do católico.<br />

O verdadeiro católico<br />

deve saber ser assim.<br />

Distingamos, contudo, entre<br />

ser e fazer. “Fazer” será<br />

quando Nossa Senhora der<br />

as ocasiões e que for lícito, de<br />

acordo com a Moral católica.<br />

Entretanto, devemos ser já.<br />

É assim que nos preparamos<br />

para as lutas da vida.<br />

É preciso amar ser assim<br />

e pedir a Nossa Senhora,<br />

noite e dia, a graça de sê-lo.<br />

Então seremos contrarrevolucionários,<br />

filhos de Nossa<br />

Senhora, de alma e corpo<br />

inteiros.<br />

Alguém poderia preparar sua alma para amar isso,<br />

aplicando a esta temática o método lógico sugerido por<br />

Santo Inácio, em seus Exercícios Espirituais:<br />

Esta guerra é lícita? Sim, e até uma obrigação.<br />

O que acontecerá se eu não combater? Tais consequências.<br />

O que acontecerá se eu combater? Glória para Nossa<br />

Senhora e tais outras consequências.<br />

Eu tenho o direito de não querer combater? Não, porque<br />

atraiçoo a Causa de Nosso Senhor Jesus Cristo, meu<br />

Rei, e de Nossa Senhora, minha Rainha, se eu não cumprir<br />

o meu dever.<br />

A pessoa imagina-se, então, no dia seguinte, jogado<br />

num campo de batalha ou levado de volta, estropiado.<br />

Tomou uma pancada na cabeça e ficou cego, inutilizado,<br />

portanto. Mas contente porque perdeu a visão por amor<br />

a Nosso Senhor e a Nossa Senhora, e porque a batalha<br />

apenas mudou de campo: ele terá agora um combate interior.<br />

Dia e noite estará em presença da privação tremenda,<br />

a que ficou sujeito por toda a vida.<br />

Entretanto, dia e noite se recusará a entristecer-<br />

-se, lutará contra a invasão do desânimo e dirá: “Meu<br />

Deus, pelas mãos de vossa Mãe, eu Vos ofereço de novo<br />

a pancada que sofri. Se Vós me restituísseis a vista,<br />

por um milagre, e eu tivesse de perdê-la novamente por<br />

Vós, de bom grado eu a sacrificaria!”<br />

Quando um homem assim morresse de velho, teria<br />

vencido mil Cruzadas!<br />

Reprodução<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

O suavíssimo São Francisco de Sales<br />

estimulou uma Cruzada<br />

A vitória dos europeus sobre os maometanos se consolidou<br />

depois da Batalha de Lepanto. Mas já bem antes<br />

dela era improvável que os maometanos conseguissem<br />

dominar a Europa. Por duas vezes chegaram até as portas<br />

de Viena, e até conseguiram tomar esta cidade, mas<br />

veio o Rei João Sobieski, da Polônia, e expulsou-os, restituindo<br />

Viena ao Imperador.<br />

Mas eram invasões que não tinham comparação com<br />

aquelas avalanches de muçulmanos, que invadiram a Europa<br />

no tempo da Reconquista ou por ocasião de Carlos<br />

Martel.<br />

Com isso, espalhou-se pelo Ocidente um sentimento<br />

legítimo de segurança. As Cruzadas quebraram o ímpeto<br />

dos povos maometanos.<br />

Por outro lado, a Europa cresceu muito,<br />

tornou-se mais rica, desenvolveu-se<br />

intelectualmente, ficou capaz<br />

de elaborar táticas de guerra<br />

muito mais eficazes. De<br />

maneira que, por efeito<br />

da Civilização Cristã<br />

— portanto, da graça<br />

de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo e das<br />

preces de Maria<br />

—, a Europa estava<br />

gozando de uma<br />

explicável segurança.<br />

Essa segurança<br />

era a paz de Cristo no<br />

reino de Cristo.<br />

Pronunciou-se com isso<br />

uma dulcificação dos costumes.<br />

O homem medieval ainda<br />

era muito rude. O pós-medieval<br />

começou a lutar contra essa rudeza, que<br />

já não se enquadrava com a doçura da<br />

vitória. E com isso houve uma insistência<br />

muito grande nas virtudes doces, suaves.<br />

E uma insistência menor nas virtudes bélicas, militares.<br />

Então, por exemplo, São Francisco de Sales. A Filotéia,<br />

a Introdução à Vida Devota, e outras obras de São<br />

Francisco de Sales são admiráveis, de uma doçura maravilhosa!<br />

Era já a época da douceur de vivre 2 que começava<br />

a invadir a Europa, e a coroa de glória posta na fronte<br />

da Europa. E isso estava justo.<br />

Contudo, para se compreender o equilíbrio que deve<br />

haver nisso é preciso tomar em consideração o seguinte.<br />

Jean-Pol GRANDMONT(CC 3.0)<br />

Vitória do Rei João III Sobieski<br />

contra os turcos na batalha de<br />

Viena - Museus Vaticanos<br />

São Francisco de Sales era Bispo de Genebra, cidade<br />

da Suíça que, naquele tempo, constituía o foco de irradiação<br />

do calvinismo protestante. Mas ele não era apenas<br />

bispo, mas também o Príncipe de Genebra, porque,<br />

pelos estatutos, o Bispo de Genebra era, de direito, o<br />

príncipe que governava a cidade. E São Francisco de Sales<br />

foi expulso de Genebra.<br />

Tendo obtido o apoio do Duque de Savóia, cujas terras<br />

eram contíguas a Genebra, e de outros nobres da zona,<br />

armou uma Cruzada contra os genebrinos.<br />

Quando visitei Genebra, um líder católico mostrou-<br />

-me a parte da velha muralha, precisamente onde os protestantes<br />

conseguiram derrotar São Francisco de Sales.<br />

Ele, o Doutor suavíssimo, o Doutor boníssimo, ideou,<br />

desenvolveu a manobra diplomática necessária e estimulou<br />

que fosse feita uma Cruzada, para esse bispo perfeito<br />

reconquistar sua diocese na ponta da lança, da alabarda<br />

e da espada, com mosquetão e tudo o mais!<br />

Esta era a doçura deste Santo.<br />

Deformações<br />

provocadas pela<br />

”heresia branca”<br />

Mas depois veio a<br />

deformação da “heresia<br />

branca” 3 , segundo<br />

a qual suavidade<br />

corresponde<br />

a entrega, a capitulação<br />

diante do<br />

adversário.<br />

Dou um exemplo<br />

do feitio da piedade<br />

“heresia branca”.<br />

O martírio de São Sebastião<br />

é enormemente venerável.<br />

Ele era chefe da guarda responsável<br />

pela segurança do imperador e, portanto,<br />

um grande combatente romano.<br />

O imperador, descobrindo que ele tinha<br />

se tornado católico, ficou indignado<br />

e mandou executá-lo mediante flechadas.<br />

Esse homem que era chefe de uma guarnição do exército<br />

que dominava o mundo, que tinha conquistado toda<br />

a bacia do Mediterrâneo, é apresentado por certo estilo<br />

de iconografia como um mocinho rosadinho, com cara<br />

de quem está levantando da cama; atado a um tronco,<br />

com uma perninha para frente, a outra para o lado, como<br />

quem está se distraindo em ver os passarinhos voarem<br />

e cantarem em árvores hipotéticas. Aquelas flechas<br />

parecem não fazê-lo sofrer em nada. Escorre um pou-<br />

34


Reprodução<br />

Roberto da Normandia na tomada<br />

de Antioquia (1097-1098)<br />

quinho de sangue, mas ele tem ar de quem não está padecendo.<br />

A “heresia branca” também não gosta que se fale de<br />

Cruzadas.<br />

Eu ainda alcancei a época em que associações religiosas<br />

chamavam-se “Cruzadas”. Então, por exemplo,<br />

“Cruzada Eucarística Infantil”, “Cruzados do Santíssimo<br />

Sacramento”. A palavra “Cruzada” era usada para certas<br />

coisas religiosas. Depois, isso foi abolido completamente.<br />

Contudo, há certas glórias sagradas na História que<br />

não se apagam, e cujo flash os livros não transmitem<br />

mais, mas se transmitem de geração em geração por uma<br />

espécie de milagre: uma é a glória de Carlos Magno, outra<br />

a das Cruzadas; e outras ainda são a glória do Sacro<br />

Império Romano Alemão, da Reconquista espanhola, da<br />

Reconquista portuguesa, que foram Cruzadas na Espanha<br />

e em Portugal.<br />

Essas glórias conservam algo na imaginação e na Fé de<br />

todas as camadas do povo, e isso se transmite ao longo dos<br />

séculos, um pouco misteriosamente, de maneira que todos<br />

ficam com essa ideia da palavra “cruzado” como querendo<br />

representar alguma coisa luminosa, especial, bela.<br />

Este é o legado que, com ou sem as deformações sentimentais<br />

posteriores, existe no consciente ou no subconsciente<br />

de incontáveis católicos. Por onde, se o católico<br />

comum é posto em confrontação com uma representação<br />

muito viva do heroísmo que se notou nas Cruzadas,<br />

o cruzado que “dorme” em sua alma se levanta e<br />

uma chama se acende.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 19/3/1988)<br />

1) Do latim: Rainha dos Anjos, socorrei-nos!<br />

2) Do francês: doçura de viver.<br />

3) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a<br />

mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na<br />

cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam<br />

moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como<br />

a tudo que signifique esplendor.<br />

35


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Revista Dr Plinio 212, Novembro 215<br />

Sacralidade beneditina<br />

Ao contrário da agitação existente em certos ambientes<br />

do mundo atual, em Subiaco sentem-se refrigério, luz<br />

e paz. Os monges, que se deixam imbuir pelo espírito<br />

de São Bento, levam ali uma vida despretensiosa,<br />

temperante, pura e cheia de uma alegria cândida.<br />

Fracisco Lecaros<br />

Apropósito de algumas fotografias<br />

tiradas de Subiaco, eu<br />

gostaria de tecer comentários<br />

que não se limitam à análise<br />

dos ambientes e costumes,<br />

mas visam aprofundar impressões<br />

causadas por aqueles<br />

lugares na alma de quem<br />

os contempla.<br />

Subiaco e estação de<br />

metrô: extremos opostos<br />

Nesta primeira foto vemos uma pequena<br />

porta que conduz a uma escadaria estreita.<br />

Em rigor, essa passagem assim apertada poderia<br />

ser a porta de uma masmorra, através da qual passa o<br />

carcereiro para levar pão e água a algum prisioneiro nas<br />

horas estipuladas.<br />

Considerada, por assim dizer, “anatomicamente”, esta<br />

parte do edifício poderia servir para isso. Entretanto,<br />

não é nem um pouco a impressão que nos dá. Ao subirmos<br />

por esta escadinha, não sentiríamos medo ou qualquer<br />

outra sensação própria a quem ingressa em uma<br />

masmorra. Pelo contrário, tem-se a impressão de um<br />

ambiente recolhido, com uma penumbra que sucede à<br />

grande luz do dia, com algo de aconchegado, de cômodo.<br />

Jose Afonso Aguiar<br />

Poder-se-ia bem imaginar um monge<br />

beneditino dos antigos tempos subindo<br />

esses degraus, passo a passo,<br />

enquanto recita um salmo<br />

ou reza uma dezena do Rosário.<br />

Em uma palavra, quanta<br />

bênção há aí! É uma bênção<br />

de paz que se faz sentir por<br />

um jogo de luz e sombra.<br />

Se compararmos isso com<br />

a atmosfera de uma estação de<br />

metrô, perceberemos como o metrô<br />

e Subiaco são extremos opostos,<br />

de um modo até berrante: um está inserido<br />

dentro da civilização industrial e outro na<br />

nascente da Idade Média.<br />

Viver entre pedras e pouca vegetação,<br />

pensando no Céu<br />

Na outra fotografia vemos ruazinhas muito estreitas e,<br />

como tudo está construído em meio a montanhas, há diversos<br />

patamares aos quais se tem acesso, às vezes, por<br />

escadinhas como essa.<br />

Sente-se ter vivido aqui gente habituada a uma vida<br />

despretensiosa, temperante, pura e cheia de uma alegria<br />

cândida.<br />

32


David Domingues<br />

Jose Afonso Aguiar<br />

David Domingues<br />

Notem como a escadinha está toda modelada pelo<br />

passo humano. Séculos e séculos de subir e descer de homens<br />

que consagraram a vida a Deus, renunciando a todas<br />

as alegrias e pompas do mundo para viverem entre<br />

essas pedras, pensando no Céu.<br />

Imaginemos, durante o dia, abrir-se aquela janela com<br />

vitrais elaborados à maneira de fundos de garrafa, e aparecer<br />

por detrás um monge com capuz, braços cruzados<br />

debaixo do escapulário, e olhando...<br />

Nas margens desse caminho nada foi plantando pelo<br />

homem, tudo está como a natureza pôs. No primeiro dia,<br />

quando esse solo saiu das mãos de Deus, era possível que<br />

fosse mais ou menos assim.<br />

Veem-se pedras por toda parte entre as quais nasce<br />

uma vegetação que se agarra como pode a um pouco de<br />

terra, e viceja onde consegue.<br />

Aquele arbusto que aparece ali, com seus galhos contorcidos,<br />

parece ter esgares de fome. Não é o fértil chão<br />

brasileiro com seus jacarandás e jequitibás, nem o solo<br />

norte-americano com suas sequóias; nada disso. Essa é<br />

uma árvore brotada em terra árida e pedregosa.<br />

Há, entretanto, uma intimidade entre quem passa por<br />

esta pequena via e a vegetação que a ladeia, cujo exalar<br />

de vida nada interrompe, dando-nos a impressão de existir<br />

uma íntima amizade com todo esse mundo vegetal rumo<br />

ao céu azul que se entrevê lá no fundo, e faz até pensar<br />

no Céu da eternidade.<br />

Sente-se uma paz nesse ambiente! Uma pessoa que ali<br />

entrasse cheia de torcidas e de preocupações, e seguisse<br />

por essa estradinha, chegaria ao outro lado inteiramente<br />

tranquilizada.<br />

O que isso tem de lindo? Viveu ali um Santo, o Patriarca<br />

dos monges do Ocidente, isto é, o primeiro de toda<br />

a gloriosa coorte de monges, o qual teve como filhos<br />

espirituais, nesse lugar, homens canonizados, além de<br />

David Domingues<br />

quantos outros que, embora não canonizados, também<br />

estão no Céu. É o ambiente próprio do homem à procura<br />

da santidade; eis a bênção que São Bento deixou.<br />

Ambiente simples, mas repleto<br />

de beleza espiritual<br />

Para ingressar na via da qual falávamos, a pessoa<br />

passa por esse arco que aparece nesta outra foto.<br />

É uma ogiva despretensiosa, bonita e séria. Não<br />

tem uma escultura, nem qualquer outro adorno.<br />

É apenas uma ogiva feita de pedra, mas<br />

com toda a beleza das ogivas, como se fossem<br />

duas mãos postas para rezar.<br />

Pode haver coisa que recolha mais<br />

o espírito e favoreça mais a oração,<br />

as grandes reflexões a respeito<br />

dos grandes temas? Assim<br />

a alma de um homem se forma!<br />

Mas, por quê? Porque há uma<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Reprodução<br />

bênção presente no ambiente e que envolve e penetra<br />

quem nele se adentra.<br />

Se alguém me perguntasse: Isto é lindo?<br />

Eu diria: Não, de nenhum modo.<br />

Entretanto, sob outro aspecto, se outrem me indagasse:<br />

Isto é lindíssimo?<br />

Eu responderia: Sim!<br />

No sentido de uma beleza espiritual.<br />

Essa paisagem é agradável de ver, mas não é linda,<br />

materialmente falando. Contudo, a beleza espiritual torna<br />

isso lindíssimo.<br />

Eis uma bonita fotografia bem dentro da linha do que<br />

vínhamos falando. Vemos a vegetação e o alto de uma<br />

construção que parece ser uma capelinha com uma rosácea,<br />

com todo o encanto das rosáceas medievais. Aquilo<br />

é tipicamente medieval. Têm-se esse misto de pedra<br />

e folhagem: reino mineral e reino vegetal juntos, entrando<br />

em harmonia, para que o expectador possa exclamar:<br />

“Como Deus é grande!”<br />

São Bento: olhar<br />

contemplativo, todo<br />

voltado para as<br />

coisas de Deus<br />

Ali contemplamos um<br />

afresco de São Bento. O<br />

pintor representou-o de<br />

uma maneira singular.<br />

Ele está com uma espécie<br />

de capuz sobre a cabeça,<br />

mas este tem um pouco<br />

a forma da parte baixa<br />

de sua face. De maneira<br />

que o desenho da maçã<br />

do rosto até o queixo tem<br />

a forma do capuz pontudo. E dá a impressão de uma face<br />

concebida numa moldura de duas pontas: uma para baixo<br />

e outra para cima. Rosto muito fino, nariz comprido,<br />

barba não muito crescida, na transição do grisalho para o<br />

branco; as sobrancelhas, ainda escuras, representam um<br />

homem que ainda está no vigor de seu pensamento e de<br />

sua ação.<br />

Notem a força moral com que a sua mão segura o báculo,<br />

símbolo do poder do Abade.<br />

Olhar sério, até com alguma coisa de severo, mas no<br />

qual há um mundo, um céu! Se um de nós o encontrasse,<br />

teria vontade de ajoelhar-se diante dele e pedir: “Pai, dizei-me<br />

no que pensais!”<br />

Imagino que ele responderia sem olhar para quem pediu,<br />

desfiando o seu pensamento inteiro, com um tim-<br />

bre de voz partindo do fundo de sua laringe<br />

possante, num pescoço alto, como se fosse<br />

o tocar de um sino.<br />

São Luís Orione achava o olhar de São<br />

Pio X tão puro, que se confessava sempre<br />

antes de falar com este Santo Pontífice.<br />

Não é verdade que teríamos vontade de<br />

nos confessar, antes de falar com São Bento?<br />

Olhar reto, puro, todo voltado para as coisas<br />

de Deus, contemplativo e sério!<br />

Se eu lhe perguntasse no que estava pensando,<br />

e ele me dissesse:<br />

— Agora não posso explicar.<br />

Eu pediria:<br />

— Permiti, então, que eu fique vos olhando!<br />

São Francisco de Assis, grande<br />

admirador e devoto de São Bento<br />

Aqui temos uma pintura representando<br />

São Francisco de Assis, que viveu séculos depois de São<br />

Bento, mas por ser grande admirador e devoto deste Santo<br />

Abade, resolveu ir a Subiaco para venerá-lo. Ali ele viu,<br />

junto à gruta de São Bento, um carrascal de espinhos onde<br />

o Santo Abade tinha rolado para combater uma tentação<br />

contra a pureza, vencendo-a. O demônio fugiu diante da<br />

admirável penitência de São Bento. São Francisco plantou<br />

naquele local uma roseira, e até hoje as rosas e o carrascal<br />

de espinhos vivem juntos, entrelaçados.<br />

Em São Francisco contempla-se um tipo de santidade diferente;<br />

mas que maravilha! Essa pintura representa um homem<br />

muito mais jovem do que é figurado São Bento na outra.<br />

Não sei se calculo mal, mas suponho que esse homem<br />

esteja na casa dos trinta anos.<br />

Sua atitude é muito serena, calma,<br />

mas com uma determinação de<br />

vontade que se vê muito pelo modo<br />

do rosto estar implantado sobre<br />

o pescoço. Todos os traços distendidos,<br />

mas não moles. É alguém que<br />

está, no fundo do olhar azul, pensando<br />

e contemplando algo e querendo<br />

com toda a força da vontade<br />

o objeto de sua contemplação.<br />

É de uma pureza impressionante!<br />

Um homem casto, temperante<br />

por excelência e vigoroso.<br />

São Bento também o era, mas o<br />

pintor de São Francisco deixou<br />

ver essas virtudes mais inteiramente<br />

do que o de São Bento.<br />

Reprodução<br />

34


Carlos Aguirre<br />

David Domingues<br />

Compreende-se que o Poverello de Assis gostasse de<br />

ler para os seus noviços as histórias de Cavalaria, pois<br />

antes de abraçar a vida contemplativa pensou em ser cavaleiro.<br />

Nesta representação, a sua mão direita segura ligeiramente<br />

o braço esquerdo. Vejam a lógica das linhas e a<br />

força dessa mão!<br />

Se a São Bento eu pediria: “Dizei o que pensais!”; a<br />

este eu rogaria: “Não digais, pois eu vejo. Deixai apenas<br />

que eu olhe para vós!”<br />

Tem-se a impressão de que<br />

São Bento está presente<br />

Tendo analisado tudo quanto vimos de Subiaco, nasce<br />

a pergunta: O que há dentro disso?<br />

A resposta que vem ao espírito é esta: a sacralidade beneditina.<br />

É uma paz, não a da modorra de um comodista,<br />

mas uma paz de algo que tem vida intensa dentro de si.<br />

Vida, por sua vez, não agitada, espancada, surrada,<br />

mas com refrigério, luz e paz que se sentem naquele lugar<br />

não se sabe bem no quê, e dá a impressão de estar<br />

São Bento presente ali.<br />

Há lugares sagrados que conservam uma como que<br />

impregnação dos personagens e dos fatos ali ocorridos.<br />

Aquele ambiente fica mais ou menos marcado, fazendo-<br />

-nos sentir algo do que ali se passou.<br />

Por causa disso, a grande alma de um Santo pode se<br />

fazer sentir por séculos e séculos, no lugar onde ele viveu<br />

e praticou a virtude. É, pois, a grande alma de São Bento<br />

que sentimos ali.<br />

Vem-me à memória um episódio encantador da vida<br />

desse Santo:<br />

A governanta de São Bento — termo um pouco anacrônico,<br />

pois não se usava naquele tempo, mas de fato<br />

corresponderia a uma governanta atualmente — deixou<br />

cair uma vasilha emprestada, que se desfez em cacos.<br />

Já é uma coisa aborrecida romper algo que nos pertence,<br />

quanto mais quebrar um objeto emprestado de outra<br />

pessoa; é uma espécie de vexame.<br />

Ela ficou muito aflita e São Bento a viu chorar.<br />

Desejando, então, restabelecer a paz de alma daquela<br />

senhora, São Bento se ajoelhou, rezou e a vasilha se recompôs<br />

miraculosamente. Ele voltou-se com naturalidade<br />

para a mulher, sem excitação nem angústia, e disse:<br />

“Aqui está a vasilha!”<br />

Quem está tão em presença de Deus, e paira tanto acima<br />

dos acontecimentos, sabe que a Providência resolverá<br />

para ele os casos; esse não tem aflição.<br />

São Bento caminha sério, recolhido, severo até — como<br />

ele é representado no afresco que vimos há pouco —,<br />

de uma severidade admirável, e tem rumo para tudo; confia<br />

em Deus, ainda quando ele não saiba qual será a solução<br />

do problema. Deus lhe dará confiança. E por isso os<br />

vendavais torpes da vida não sopram sobre ele. Ele avança<br />

majestoso, bondoso, com a alma firme, e sacralizando tudo<br />

pela sua presença.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de 6/7/1985)<br />

35


Revista Dr Plinio 213, Dezembro <strong>2015</strong><br />

<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

Estilo “condeano”:<br />

força e leveza<br />

Condé e Turenne foram brilhantes generais franceses<br />

do século XVII, que se caracterizaram por modos de ser<br />

bastante diferentes. O primeiro era intuitivo e fazia reflexões<br />

rapidíssimas e fulgurantes. Turenne, um homem que<br />

meditava e planejava. O feitio de inteligência do brasileiro é<br />

dado muitíssimo mais para Condé do que para Turenne.<br />

H<br />

ouve um Rei da França, Luís XIII, que passou<br />

à História com o bonito nome de Luís, o Casto,<br />

por sua enorme pureza de costumes. Era<br />

casado, aliás, com uma das mais nobres e belas princesas<br />

da Europa do seu tempo, Ana d’Áustria, Infanta da Espanha,<br />

Arquiduquesa d’Áustria e Rainha da França —<br />

não se pode possuir mais altos títulos!<br />

— e dela teve dois filhos:<br />

Luís XIV e Gaston d’Orléans.<br />

Versailles e Chantilly<br />

Além disso, era um bom general<br />

e homem valente na guerra.<br />

Não só capaz na direção das tropas,<br />

mas desses homens que se expõem,<br />

lutam e sabem ser os primeiros<br />

na hora do perigo, dando<br />

com isso exemplo aos seus soldados.<br />

É muito bela a conjunção dessas<br />

duas virtudes: a castidade e o<br />

heroísmo. A maior beleza dessa<br />

união de virtudes nós a temos em<br />

Santa Joana d’Arc, a virgem guerreira<br />

heroica, nascida na Lorena.<br />

A castidade é uma virtude cheia<br />

de delicadeza e de fragilidade. A<br />

coragem é uma virtude plena de<br />

fortaleza e de intrepidez. A jun-<br />

Siren Com (CC 3.0)<br />

Casamento de Luís XIII com<br />

Ana de Habsburg - Museu dos<br />

Agostinianos, Toulouse, França<br />

ção desses opostos forma uma verdadeira maravilha! São<br />

como duas partes de uma ogiva que se unem para constituir<br />

um todo harmônico muito bonito.<br />

No dia 13 de maio de 1643, esse rei, ainda relativamente<br />

jovem, estava prestes a falecer, vítima da tuberculose,<br />

quando viu, perto de sua cama, em pé, um parente<br />

muito próximo: o Príncipe de<br />

Condé.<br />

Os Condé constituíam um ramo<br />

colateral da Casa Real francesa.<br />

Um ramo que se caracterizou,<br />

até sua extinção no século<br />

XIX, pelo esplendor da vida e<br />

pela coragem. Para termos ideia<br />

do esplendor da vida consideremos<br />

o seguinte: Os reis da França,<br />

pertencentes ao ramo primogênito<br />

da Casa Real francesa, tinham<br />

muitos castelos magníficos, cada<br />

um melhor do que o outro. Basta<br />

pensar em Versailles para compreender<br />

a magnificência em que<br />

vivia o ramo primogênito da Casa<br />

Real francesa.<br />

Naturalmente, o ramo dos<br />

Condé, que era um ramo de príncipes,<br />

mas colateral, tinha como<br />

castelo de grande importância<br />

apenas um: o castelo de Chantilly.<br />

No tempo de Luís XIV, o Prínci-<br />

30


pe de Condé estava construindo<br />

este edifício, o qual estava ficando<br />

tão bonito que Luís XIV mandou<br />

dizer a ele que recomendava<br />

não embelezá-lo ainda mais, porque<br />

poderia fazer sombra ao ramo<br />

principal da Casa Real. Com<br />

um castelo só, eles sabiam elevar-<br />

-se e dignificar-se tanto que o ramo<br />

primogênito da Casa Real sentiu-se<br />

como que em xeque, para<br />

não dizer xeque-mate, se a beleza<br />

de Chantilly continuasse a se aprimorar.<br />

Quando conheci Chantilly, a<br />

primeira coisa que me veio ao espírito<br />

foi esse temor de Luís XIV.<br />

Eu já tinha visitado Versailles, conhecia<br />

o Louvre, Fontainebleau, os<br />

principais castelos reais da França.<br />

Sem dúvida nenhuma, se aprimorassem<br />

ainda mais Chantilly, era<br />

um xeque-mate para a Casa Real.<br />

Batalha do ”Rochedo do Rei”<br />

Reprodução<br />

Compreendemos, então, o valor desse ramo colateral<br />

que com menos recursos sabia se valorizar até se elevar<br />

a esse ponto. Mas sem uma rivalidade baixa com o<br />

ramo primogênito. Pelo contrário, servindo-o sempre<br />

muito bem, a tal ponto que, quando em fins do século<br />

XVIII arrebentou a Revolução Francesa, o Príncipe<br />

de Condé, seu filho, o Duque de Bourbon, e seu neto,<br />

o Duque d’Enghien, lutaram como leões a favor do ramo<br />

primogênito. E extinguiu-se essa Casa porque o Duque<br />

d’Enghien, o mais moço da linha, foi morto por Napoleão.<br />

Como dizíamos, durante sua agonia Luís XIII notou,<br />

junto à sua cama, o Príncipe de Condé que assistia<br />

à morte do Rei. O monarca voltou-se, então, para o primo<br />

e disse:<br />

— Monseigneur, eu sei que o inimigo penetrou em<br />

nosso território com um grande e poderoso exército.<br />

Mas vosso filho rechaçará o ataque e acalmará a nossa<br />

ansiedade.<br />

Realmente, a França acabava de ser invadida e era<br />

um problema saber como conter o adversário que tinha<br />

transposto as fronteiras do país, mas ninguém prestou<br />

atenção ao delírio de um moribundo.<br />

No dia seguinte, portanto em 14 de maio, Luís XIII<br />

morreu e sua profecia tornou-se realidade. Cinco dias<br />

depois, o Duque d’Enghien, filho primogênito do Príncipe<br />

de Condé — todos os primogênitos<br />

dos Príncipes de Condé tomavam<br />

o título de Duque d’Enghien<br />

—, com 22 anos de idade, derrotava<br />

as forças espanholas, sob o comando<br />

de Francisco de Melo.<br />

A batalha teve lugar em Rocroi,<br />

uma comuna das Ardenas, em território<br />

francês, a duas milhas de<br />

distância do que é hoje o litoral belga,<br />

e cujo nome significa “Rochedo<br />

do Rei”. As tropas espanholas entraram<br />

pela Bélgica para invadir a<br />

França.<br />

Turenne: um monumento<br />

de reflexão<br />

A França teve, no século XVII,<br />

dois grandes generais: um era o<br />

Visconde de Turenne<br />

Príncipe de Condé 1 e o outro, o<br />

Visconde de Turenne. Este não era<br />

da Casa Real francesa, mas de uma<br />

família de nobres de categoria um pouco menor.<br />

Os memorialistas do tempo e os analistas da História<br />

francesa descrevem o modo dos dois combaterem, caracteristicamente.<br />

Turenne era um homem que meditava e<br />

planejava os cercos dele, até o último ponto. Quer se tratasse<br />

de estar cercado pelo adversário, ou de cercá-lo, ele<br />

era um espírito frio, lúcido, calmo, meticuloso, que preparava<br />

com muita antecedência todos os pormenores,<br />

para não acontecer nada na batalha que ele não tivesse<br />

previsto, à maneira de um jogo de xadrez impecável. Ele<br />

era um verdadeiro monumento de reflexão calma, madura,<br />

forte, mas inteiramente militar, técnica e científica.<br />

Turenne morreu já velho. Era protestante e converteu-se<br />

à Religião Católica, e dele disse Bossuet esta frase<br />

famosa: “Na juventude, ele tinha a maturidade de espírito<br />

de um adulto; maduro, ele conservava a força e o verdor<br />

da juventude.” É a teoria da soma das idades. Até o<br />

fim da vida, ele foi assim.<br />

A conversão dele foi difícil, porque sua família era<br />

convictamente protestante. Eles faziam parte dos chefes<br />

do grupo protestante na França. A mulher e a mãe dele<br />

fizeram tudo para ele não se converter. Mas a partir do<br />

momento em que ele se convenceu de que a Religião Católica<br />

era verdadeira, não houve quem o segurasse. Ele<br />

se converteu mesmo e disse para a mulher: “Querendo,<br />

vá embora. Eu agora sou católico.” A mulher cedeu, mas<br />

morreu sem se ter convertido.<br />

Vemos nisso o feitio do espírito deste general. Ele, para<br />

se converter, analisou a Religião, fez, por assim dizer,<br />

31


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

o cerco da Religião como faria o cerco de uma fortaleza;<br />

percebendo que era verdadeira, entrou nela e se submeteu<br />

filialmente.<br />

Condé poderia ser comparado a uma águia<br />

Condé tinha um feitio de alma completamente diferente.<br />

Era muito vivo e podia ser comparado a uma<br />

águia. Muito esguio, esbelto, com um grande nariz curvo,<br />

adunco, característico da Casa de Condé. Até no momento<br />

da batalha, ele parecia um homem que pensava<br />

em outra coisa.<br />

Quando chegava na hora da luta, ele se apresentava,<br />

tomava conhecimento, tinha um olhar de relance da situação,<br />

e jogava-se como uma águia no ponto principal<br />

com um ímpeto tal que ele desbaratava. Em pouco tempo<br />

ele obtinha suas vitórias.<br />

O Príncipe de Condé era um homem muito refletido,<br />

mas com reflexões rapidíssimas. Pela forma de talento<br />

dele, a reflexão fazia-se no momento, e não lentamente.<br />

Cada um desses dois modos de ser tem seu mérito. É<br />

brilhante acertar de maneira fulgurante. Mas é brilhante<br />

também ver o espírito montar, peça por peça, o aspecto<br />

geral da verdade, e demonstrar. São duas modalidades,<br />

ambas criadas por Deus, para refletir a suprema e inatingível<br />

perfeição d’Ele, que é, ao mesmo tempo, o modelo<br />

de toda reflexão e de toda subtaneidade na facilidade<br />

divina e completa com que Ele cogita. Aí é a perfeição<br />

absoluta.<br />

A intuição corresponde a uma reflexão rapidíssima,<br />

fulgurante. O feitio de inteligência do brasileiro é dado<br />

muitíssimo mais para Condé do que para Turenne.<br />

Temos, então, a explicação sobre como, aos 22 anos<br />

de idade, Condé — nessa ocasião Duque d’Enghien — já<br />

pudesse ser um tão grande general. Ele pertencia a uma<br />

família onde todo mundo tinha sido grande batalhador,<br />

grande guerreiro e, alguns, generais. Essa atmosfera militar<br />

impregnava o ambiente em que ele viveu, no qual se<br />

conversava sobre batalhas, planos estratégicos, como em<br />

famílias de hoje se conversa sobre automóvel, programas<br />

de rádio e televisão. O resultado é que ele já era todo<br />

modelado por isso.<br />

As famílias, naquele tempo, eram escolas de fazer o<br />

que tinham realizado os antepassados. Havia dinastias,<br />

famílias inteiras de profissões também plebeias. Família<br />

de sapateiro, de carpinteiro, de relojoeiro, de pintor. A<br />

família subia, porque cada nova geração acrescentava alguma<br />

coisa ao savoir faire, ao know how da geração anterior.<br />

A pessoa era modelada pelo ambiente.<br />

Por essa forma de reflexão fulgurante, aos 22 anos ele<br />

já era um grande general. E a tal ponto que as batalhas<br />

dele se estudam nas escolas militares do mundo inteiro,<br />

como se estudam, por exemplo, as de Turenne e as de<br />

Napoleão, de Hindenburg, de Ludendorff, etc. Ficaram<br />

no curso da História. De tal maneira eram batalhas fulgurantemente<br />

pensadas e executadas.<br />

Gesto de elegância militar<br />

Siren Com (CC 3.0)<br />

Feita a descrição do personagem, consideremo-lo<br />

nesse quadro que representa o final<br />

da mais célebre de suas batalhas: a de Rocroi.<br />

Vemos um panorama campestre. Ao<br />

fundo, corre um rio, mais adiante um campanário<br />

e uma aldeiazinha. O rio plácido e<br />

tranquilo, onde não se combateu, contrasta<br />

com o número de pessoas que se acotovelam<br />

nessa cena. Há dois grupos bem diversos:<br />

os franceses e os espanhóis. Estes<br />

últimos estão a pé.<br />

Notam-se, na primeira fila, alguns mortos,<br />

um tambor furado. Do outro lado,<br />

os franceses. O futuro Príncipe de Condé,<br />

no centro; mais para trás a figura de<br />

um guerreiro, homem perto dos 60 anos,<br />

mas de uma maturidade extraordinária,<br />

guerreando, combatendo, olhando para<br />

o Condé com muita atenção; o séquito<br />

francês que vem vindo atrás. No meio de<br />

uma poeira cheia de luz, uma mão que<br />

levanta uma espada. Na primeira fileira,<br />

32


Reprodução<br />

dois cavaleiros que se dirigem a Condé, e aos quais Condé<br />

faz um gesto com a mão.<br />

A batalha havia sido ganha pelos franceses, e os espanhóis<br />

tinham estabelecido um entendimento, uma espécie<br />

de armistício, quando se produziu nas hostes espanholas<br />

uma agitação, que alguns franceses interpretaram<br />

como sendo espanhóis que queriam romper o acordo e<br />

recomeçar o ataque. Então, os franceses se dispuseram<br />

a atacar. Condé recebeu a informação de se tratar de um<br />

engano, não passando de um movimento interno das tropas<br />

espanholas. Levado pelo respeito devido aos derrotados<br />

cavalheirescos e de boa-fé, e em particular ao exército<br />

espanhol, que na época era um dos primeiros da Europa,<br />

ele fez cessar imediatamente o ataque que os franceses<br />

iam perpetrar contra os vencidos, por um equívoco.<br />

Razão pela qual Condé faz um sinal tranquilizador. O<br />

gesto de mão é muito significativo nesse sentido. Nota-se<br />

também que, enquanto as tropas francesas vêm avançando,<br />

ele está freando o cavalo dele. Toda a sua atitude é de<br />

quem para o cavalo e contém o ataque da cavalaria francesa,<br />

e pacifica uma situação que poderia dar numa chacina.<br />

Esse é o bonito gesto de elegância militar que o pintor<br />

quis guardar.<br />

Por causa das tradições de Cavalaria, enigmaticamente<br />

representadas nesse quadro, os antigos tinham a preocupação<br />

de tratar sempre o vencido digno, com muita honra.<br />

Era uma vergonha para um vencedor esmagar o derrotado<br />

de um modo inumano e humilhá-lo. Batiam-se rudemente<br />

enquanto durava o combate. Cessado este, era a hora<br />

da cortesia, da reverência, da distinção de parte a parte.<br />

Aqui vemos, então, Condé cumprir esse dever de cavalheiro.<br />

Ele, vitorioso, contém os franceses e, com isso, salva<br />

os vencidos. É a velha Cavalaria que ainda se encontra aí.<br />

A manifestação enigmática da velha Cavalaria, para<br />

a qual eu não encontrei uma explicação, é uma figura<br />

medieval, completamente anacrônica, toda revestida de<br />

couraça medieval e de plumas, e que está meio fora do<br />

ambiente. Ninguém mais usava, nesse tempo, esse armamento.<br />

O personagem parece estar posto numa luz onde<br />

se tem um pouco a impressão de não se tratar de um ser<br />

vivo, mas de um fantasma. O que significará esse fantasma?<br />

Será a velha Cavalaria, símbolo que paira sobre essa<br />

cena cavalheiresca? Também não sei.<br />

Importância dos matizes<br />

Descrevi o quadro com todos os seus detalhes para<br />

ajudá-los a tomar o gosto pelo pormenor. O sabor de todas<br />

as coisas está no pormenor. Talleyrand dizia que a<br />

verdade está nos matizes. Todas as verdades são cheias<br />

33


<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />

de matizes. Saber matizar é saber pensar; e saber pensar<br />

é saber viver.<br />

Notem quantos matizes aparecem nessa cena! Vemos<br />

aflição nesses dois cavaleiros e, ao mesmo tempo, a inteira<br />

calma desse espanhol de pé, com um grande chapéu,<br />

camisa e ampla gola branca. Ele percebeu a distinção<br />

e a nobreza da atitude do Condé, fazendo sinal para<br />

seus compatriotas não atacarem, por se tratar de um mero<br />

equívoco. Outro atrás, vencido, aclama o gesto de fidelidade<br />

de Condé. Notamos aí a glória de Condé, a confiança<br />

e a admiração do vencido. Isso não está escrito,<br />

mas está expresso. É um quadro com um pensamento.<br />

Atrás de Condé vemos aquele velho cavaleiro francês.<br />

Notem o jeito dele. Sem dúvida nenhuma, é um nobre. É<br />

também um homem muito varonil, corpulento, e se percebe<br />

que passou a vida inteira batalhando. Ele tem no<br />

chapéu uma pluma branca que parece um pouco de névoa<br />

a flutuar nas dobras de seu chapéu, como se fosse<br />

um resto de glória da batalha da qual ele acaba de tomar<br />

parte. Ele usa uma capa azul-claro, com uma espécie<br />

de bordado dourado. Dir-se-ia até que um azul tão claro<br />

não fica bem para o traje militar de um homem. Entretanto,<br />

para esse homem não fica perfeitamente bem?<br />

Tão varonil é ele, que pode usar isso, e até o que ele poderia<br />

ter de um pouco rude demais é atenuado agradavelmente<br />

pelo azul-claro da capa por ele usada.<br />

Eis uma das características do senso de matiz do francês:<br />

veste o herói de azul bem claro. Um bobo diria:<br />

“Efeminado!” Mas dizer que esse homem é efeminado<br />

é ridículo. Ele é um patriarca, um senhor feudal de grande<br />

porte, presente na batalha. E assim como, no momento,<br />

encontra-se sereno, daqui a dois ou três minutos pode<br />

estar matando ou morrendo, porque está inteiramente<br />

disposto a tudo. É um leão!<br />

Fórmula francesa do heroísmo<br />

Essa é a fórmula francesa do heroísmo e da coragem.<br />

Há várias formas. Não é esta a única modalidade bonita.<br />

Há a fórmula alemã — lindíssima! —, a fórmula espanhola<br />

e tantas outras. A francesa é a do leão com rendas,<br />

enfeitado com cores claras. Alguém poderia estranhar.<br />

Se estranhar é porque não entendeu. E se não entendeu,<br />

é uma pena para ele. Porque é uma lástima alguém não<br />

entender isso.<br />

Vejam os contrastes finos apontados pelos matizes. Para<br />

dar uma ideia de até que ponto esse guerreiro é um homem<br />

varonil, concorre a espada que ele não está brandindo.<br />

Percebe-se que, quando ele a brande, é assim. Esse<br />

pormenor compõe o aspecto guerreiro do homem.<br />

Notem para onde ele está olhando. Não é para a batalha,<br />

mas para o Condé. Imagem da disciplina militar, ele<br />

olha para o chefe. O que este mandar, ele fará. Se o comandante<br />

disser: “Mate cinco mil, ou morra”, ele vai<br />

para a frente e morre, na tentativa de matar os cinco<br />

mil. Se, pelo contrário, o chefe disser: “Embainha tua<br />

espada”, ele a embainha. É a fidelidade feudal não apenas<br />

na vida civil, mas transposta para o terreno militar,<br />

e na sua perfeição. Ele olha para o Condé, porque o<br />

próprio do grande senhor é olhar para o príncipe, como<br />

o príncipe olha para o rei, como o rei olha para Deus. É<br />

a hierarquia das coisas.<br />

Chegou o momento de analisarmos o Condé. Notem,<br />

antes de tudo, suas feições. O enorme nariz, que<br />

se projeta decididamente para a frente, tem a forma<br />

e o gráfico da coragem. Ele é ainda muito moço, com<br />

as características de certo tipo de francês do Norte,<br />

mais chegado ao alemão: pele clara, corada,<br />

cabelos louros, longos e cacheados. Características<br />

da raça. É um tipo de herói<br />

que exprime a coragem e a força<br />

francesas.<br />

O soldado alemão, por exemplo,<br />

faz sentir a sua força pela sua<br />

corpulência atlética, pelo seu desassombro<br />

e pelo impulso físico<br />

e moral. O francês é muito mais<br />

esguio, fino. A sua capacidade<br />

de força não é dada tanto pela<br />

quantidade quanto pela qualidade<br />

dos músculos. São músculos<br />

que não precisam ser bolas<br />

para dobrar e quebrar o adversário.<br />

A etimologia da palavra<br />

“músculo” vem do latim, mus,<br />

que significa rato. Músculo é o diminutivo<br />

latino de rato, e quer dizer<br />

ratinho. Quando o músculo se<br />

contrai, forma à maneira de um ratinho<br />

debaixo da pele.<br />

O guerreiro francês não tem “ratinhos”<br />

por debaixo da pele, como teriam, por exemplo,<br />

certos atletas da escultura renascentista italiana. O Moisés<br />

de Michelangelo, por exemplo, é uma coleção de “ratos”.<br />

O francês não precisa disso. Possui nervos de aço<br />

que não formam bola, pois tudo nele é harmônico.<br />

O cavaleiro medieval exprime o grau<br />

de perfeição a que chegou a Cristandade<br />

No Condé percebemos uma característica muito bonita:<br />

na fragilidade dele, a intensidade de alma. Quando<br />

ele ataca, ninguém resiste.<br />

34


Chamo a atenção para o olhar: é um olhar dominador.<br />

Muito mais do que o nariz é o olhar, o qual se percebe<br />

pela atitude da cabeça. O que comanda o olhar é a posição<br />

da cabeça. Vejam a posição do pescoço e da cabeça<br />

dele. O pescoço está completamente ereto, mas não<br />

de um modo provocativo. É natural nele ser superior. A<br />

cabeça está posta de tal maneira que ele, naturalmente,<br />

fica de cima em relação a qualquer pessoa que ele olhe.<br />

De onde o gesto protetor é de uma bondade que deflui<br />

do alto. Ele está inteiramente seguro. Notem a mão dele<br />

com um dedo afastado do outro, com naturalidade, como<br />

quem diz: “Tranquilizem-se! Eu vou manter o pacto.<br />

Não há nada.” Mas com a bondade de um vencedor.<br />

Aqui está o cavaleiro perfeito.<br />

Um comentário sobre seu traje. É o gosto dos franceses<br />

de adornar a coragem com cores claras, ligeiras. Ele usa<br />

um paletó de um dourado muito claro e delicado, quase<br />

creme, que deixa transparecer perfeitamente o corpo dele<br />

bem delineado, com os ombros muito mais largos do que<br />

a bacia. Ele tem uma faixa azul da qual pende a insígnia<br />

da Ordem do Espírito Santo, e uma grande gola de renda.<br />

Sobre seu chapéu ele traz plumas muito mais magníficas<br />

do que as daquele personagem atrás dele. São plumas<br />

ligeiras, branquíssimas, formando uma espécie de rastro,<br />

como a dizer: “Ele passa, mas a glória deixa um sulco<br />

atrás dele. Ele meneia a cabeça e a glória esvoaça em torno<br />

dele.” Essas plumas brancas para um general são quase<br />

o que é uma auréola para um santo.<br />

O cavalo do Condé é uma perfeição, porque é no reino<br />

dos cavalos o que o Condé é no reino dos homens. É<br />

um cavalo de guerra francês. Quer dizer, raça apurada<br />

Augusto Ferrer (CC 3.0)<br />

pelos franceses. Não é desses cavalões. Não<br />

sei se conhecem um tipo de cavalo chamado<br />

percheron, para arrastar carga. Enormes patas,<br />

uma coisa fenomenal. Não deixa de ter<br />

sua graça. Mas não é isso. Esse é um cavalo<br />

ligeiro, feito para pular por cima dos adversários,<br />

muito mais do que para achatá-los; que<br />

mais vence voando do que esmagando. Mas<br />

cuja pata é certeira e cujos músculos são como<br />

os do Condé. Não há “ratinhos” ali, como<br />

terá talvez o percheron. A musculatura do<br />

cavalo do Condé é enxuta, simples, vigorosa.<br />

Vejam a vivacidade dele; é como a vivacidade<br />

do Condé!<br />

Compreendemos, assim, o estilo “condeano”<br />

de combater. A intuição está nele. O homem<br />

entra no campo de batalha, olha, intui<br />

e avança.<br />

Se eu tivesse que dar um título a este quadro,<br />

diria: Garbo é igual a força mais leveza.<br />

Força e leveza dão o “condeano”.<br />

O quadro tem espírito medieval no sentido de que<br />

afirma muito o esplendor da condição militar e seu caráter<br />

aristocrático e nobre. De maneira que até os plebeus<br />

presentes na cena têm algo de nobilitado pela condição<br />

militar. Essa glorificação da condição militar é uma característica<br />

medieval.<br />

Contudo, não possui o espírito medieval pelo fato de<br />

os principais personagens do quadro fazerem a guerra<br />

como se partissem daí para uma dança; eles estariam<br />

prontos para uma festa. Ora, para a morte a pessoa não<br />

se prepara assim. Há o Juízo, a grandeza do destino eterno<br />

do homem, a majestade infinita de Deus, a majestade<br />

da morte que roça por cada um na batalha, que suporia<br />

mais gravidade e, consequentemente, maior audácia e<br />

maior beleza também. Por isso, aquele personagem meio<br />

mítico colocado ali é, neste sentido, superior ao Condé,<br />

pois é mais religioso.<br />

O cavaleiro medieval, a meu ver, exprime o grau de<br />

perfeição a que foi dado à Cristandade chegar, até o momento.<br />

No Reino de Maria atingirá incomparavelmente<br />

mais alto, porque São Luís Grignion de Montfort diz que<br />

os Santos do Reino de Maria vão ser para os anteriores como<br />

os carvalhos em relação às graminhas. Então, as belezas<br />

da Cristandade serão como graminhas em comparação<br />

com as da Civilização Cristã do Reino de Maria. v<br />

(Extraído de conferência de 5/3/1977)<br />

1) Luís II de Bourbon, 4º Príncipe de Condé (*1621 - †1686), conhecido<br />

como “O Grande Condé”, que venceu a Batalha de Rocroi.<br />

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