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<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 1
“BEIJO TÉCNICO.” REPRESENTAÇÃO DE UM COLAPSO<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 2
“Estamos aqui contando sobre nossas culpas, uma a uma exatamente na vez e momento<br />
em que aceitamos tais erros, tantos de nós certos de que temos agora o que germinamos;<br />
e mesmo que ainda tão longe do Natural a que somos destinados, ou do que seja preciso<br />
ao prevalecer da realidade, dessa vez estamos muito mais esperançosos pela cura da Luz.<br />
É tempo de agradecer tantas oportunidades, e que assim se torne um hábito. Seguimos<br />
nessa espreita da Vida, rogamos ser nossa cerne cada vez mais justa, lutando em prol do<br />
Amor e expansão dos desígnios divinos.”<br />
As histórias de <strong>Atos</strong> juntas formam o aviso, a derrocada e uma restauração para o gênero<br />
humano encarnado na Terra. Elas se subdividem em folhas soltas contendo cenas,<br />
conceitos, contos, depoimentos, diálogos, excertos, inscrições, letras, pichações, placas,<br />
poemas, prosas, reportagens, roteiros, sonhos e muitas frases estampadas em camisas, além<br />
de pequenos livros que enfim formam este volume que hoje lhe é presenteado. A primeira<br />
tiragem conta com 107 deles, admitidos dentro da cronologia que se inicia em <strong>Atos</strong> I com<br />
“Prelúdio para uma infância”, um compêndio à visualização da paz desde pequenos; depois<br />
passamos para “Diálogos, Roteiros e O que acontece”, mostrando os tropeços da vida que<br />
poderíamos ter se não nos fecharmos em negativismos; depois em <strong>Atos</strong> <strong>II</strong> passamos pelas<br />
advertências e a poesia das “Portarias tristes”, que espalham as notícias da crise e do abalo<br />
natural que sofre o planeta. Vemos a seguir a grande quebra da unidade e consequente<br />
tentativa de sobrevivência dos grupos de pessoas no livro “<strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong>”. Logo após com<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong>I vislumbramos as mensagens místicas de “Futuro progressivo”, e chegamos a um<br />
reordenamento social e espiritual de nossa espécie; como livro adicional deixo o duplo<br />
livro “Sim e não”. Que a paz esteja conosco, o amor volta!<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 3
PERSONAGENS. EM ORDEM DE APARIÇÃO OU OPORTUNIDADE<br />
O narrador<br />
A repórter<br />
Um operador de câmera<br />
O pai<br />
Donatela ............... mãe<br />
Magali ................. a do meio<br />
Nana ................... 4 anos<br />
Kia .................... primeira<br />
Ancião chateado ........ esbravejante<br />
Grisalho com cara fofa<br />
O Mediador ............. que os guiará de volta<br />
Vozes do bar geral ... das bebidas que sobraram<br />
Moborg ................. cidadão chato<br />
Espelhada<br />
Selena<br />
Maitê ......... tal esvoaçante<br />
A órfã ........ quita a imersão<br />
Cuya .......... a bela<br />
Jonh .......... enxotando Adorno<br />
Lares<br />
A diretora<br />
Aflições ........ levanta o copo destilado!<br />
“Sombra do Deserto” .... e seu extenso conselho<br />
A senhora distinta<br />
Um homem à irmã<br />
Maldonado<br />
A velha mãe .... avó de tantos ali<br />
Marienete<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 4
A menina Pereira<br />
Juliana<br />
Ágata, Ária, Ama<br />
Rouco<br />
A baixinha divertida<br />
Miado<br />
Pío<br />
Marlene ........... aquela fofoqueira desde o bairro<br />
Ella<br />
Gentil ............ um habitante local<br />
A idosa angustiada<br />
Saulo Viegas ....... e suas perguntas<br />
Mofana<br />
O Muca ............ o jardineiro, o Muca, poxa!<br />
Marta<br />
Koko<br />
Gi, e mais pessoas aleatórias!<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 5
ATO UM<br />
[Abre o pano e o NARRADOR está de pé, veste uma roupa branca, apenas um microfone<br />
à sua frente no meio do palco simples. Ele se adianta e começa a falar.]<br />
NARRADOR<br />
(sereno, para a plateia)<br />
Estamos aqui contando sobre nossas culpas, uma a uma exatamente na vez<br />
e momento em que aceitamos tais erros, tantos de nós certos de que<br />
temos agora o que germinamos; e mesmo que ainda tão longe do Natural<br />
a que somos destinados, ou do que seja preciso ao prevalecer da realidade,<br />
dessa vez estamos muito mais esperançosos pela cura da Luz. É tempo de<br />
agradecer tantas oportunidades, e que assim se torne um hábito. Seguimos<br />
nessa espreita da Vida, rogamos ser nossa cerne cada vez mais justa,<br />
lutando em prol do Amor e expansão dos desígnios divinos.<br />
[Terminada a narração, uma profusão se imagens é projetada no palco, são muitas cenas<br />
contendo desastres naturais, guerras, e algo da miséria humana; uma música tensa vêm<br />
junto. O narrador se curva em reverência e fica no centro do palco, abaixado. Entra pela<br />
direita uma REPÓRTER e um CÂMERA carregando sua aparelhagem, eles passam pelo<br />
narrador como se ele nem estivesse ali. A voz da Repórter é apreensiva. As projeções<br />
cobrem os três.]<br />
REPÓRTER<br />
(inquieta, para a plateia)<br />
A paralisação do núcleo do planeta foi desastrosa porque ela proporciona<br />
a deterioração do magnetismo terrestre e, consequentemente, da<br />
atmosfera. Devido a essa... parada de movimentação dos materiais<br />
presentes no interior do núcleo da Terra, houve um enfraquecimento do<br />
campo magnético, visto que ele depende da movimentação de suas cargas<br />
para existir. Com isso, começaram a acontecer fenômenos como<br />
tempestades magnéticas e auroras. Além disso, os equipamentos<br />
eletrônicos pararam de funcionar, algumas pessoas suscetíveis a eles... com<br />
seus marca-passos... morreram<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 6
(pausa) até mesmo as aves começaram a cair! Nosso ar já não seria o<br />
mesmo... Mas espere! Acabo de receber uma notícia<br />
[Sem tempo para completar sua frase, o pano desce e separa os atores da plateia. As<br />
projeções e a música tensa cessam.]<br />
FIM DO ATO UM<br />
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ATO DOIS<br />
[O pano reabre e entra o Pai pela esquerda até o centro do palco, há pouca luz sobre ele.<br />
Apenas uma projeção obscurecida do interior da gruta está ali.]<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Agora acabou a brincadeira, não tem como fugir, vejo que a supremacia<br />
bem relevante, a nossa humana mesma, essa deu errado e essa saiu pelos<br />
eixos zoados. Não há nem “se” ou “poderia” nas minhas palavras, só o<br />
que presenciamos; quem dera eu anunciar algo melhor.<br />
[O Pai começa a fala enquanto caminha por uma gruta irregular projetada no palco. Seu<br />
olhar é firme e o tom confessional. Aos poucos a figura dele toma forma com mais luz<br />
sobre o palco, e ele encontra ainda mais palavras pelo seu ziguezaguear. Está apreensivo, e<br />
não se detém.]<br />
PAI<br />
Nosso, o meu, sim, vejam como<br />
(pausa) todo este mundo está indo pelos ares, é uma convulsão. Fomos<br />
pescados neste exato lance, o anzol funcionou como deveria. Este recanto<br />
de maravilhas e amores que veio antes da gente, a Terra<br />
(pausa) pois vai sabe-se lá a quê<br />
(tom) se complicou. Quem lembrará de meu país, minha gente, e minha<br />
família<br />
(pausa) ou mesmo<br />
(tom) eu? Que soco no estômago!!!<br />
Faz três dias que a Hilaria rachou! Uma confusão de vulcões emergiu,<br />
tremeu, espirrou e fumaçou o precioso ar que furtamos. É o que vejo. Por<br />
todos os cantos nosso lar desfaleceu, é até incrível como isso tudo se<br />
passou durante algumas horas. Nos dias seguintes acompanhamos seu<br />
desenlace<br />
(pausa) já em fuga. Fica a impressão de que já há muito estava na borda.<br />
No final do terceiro dia, ou o que havia deste, vimos as enormes e<br />
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irreparáveis tremeduras nos continentes. Estamos no quarto dia, quase não<br />
deu para se livrar; quem dirá de passar despercebido ou isento. Ninguém.<br />
Estamos é na mesma. Por essas valas volvia muita lava, rios e mares<br />
(pausa) não tem mais! Só vemos<br />
(tom) antes. Esqueçam suas desculpas!<br />
Peguei minha esposa e filhas e sumi, nem pensei direto. Era o que dava<br />
para pensar naquele contexto<br />
(pausa) Varamos a estrada ainda no segundo dia com tudo que podíamos<br />
dentro de um carro reforçado e seguimos nosso grupo disperso. Um<br />
amigo tinha a pista desse bom recanto para ficarmos por uns tempos com<br />
os mantimentos que arrecadamos nos mercados saqueados<br />
(tom) se é que isso fosse possível, digo, se manter. Não tinha escolha,<br />
vazamos todos! Peço perdão pela forma como ponho tudo isso, aos<br />
trancos, mas vejam como me encontro!<br />
Seria muita canalhice dizer que fora sorte o que nos fez viver nos últimos<br />
anos perto de região alta; quem não se impressionava com os boatos sobre<br />
o fim do mundo? Ainda mais depois da virada do século e com todas as<br />
mudanças climáticas e essas novas doenças que dia a dia pediam nomes.<br />
Só não sabemos se há esperanças, ou por onde começar<br />
(pausa) como saber mais à frente? Está difícil. Mesmo assim, em uma<br />
sucessão como essa, na precisa hora que mais deveríamos nos unir<br />
(tom) precisando de carinho e amor, o que se vê lá fora é o desespero<br />
total: contemplem em seus pesares! A Raça Pensante, a das canções da<br />
Liberdade e mundos alcançados, esta clama por salvação, ou mesmo uma<br />
atençãozinha do Cosmo. Quer milagres, quer tanto de volta, e que seja<br />
rápido. Mas seria justo não assumirmos a culpa nesse susto?<br />
Ainda não veio resolução alguma, mas Deus sabe o que faz; nós humanos<br />
conjecturamos. Estamos ansiosos, tem muito tempo desde a última<br />
comoção mundial! Se acontecer, digo, o fim mesmo, estamos aqui<br />
(pausa) correndo de um lado ao outro, utilizando apenas do escroto, vil e<br />
pavoroso amor-próprio. Que nos ouçam! Esquecemos como é a união...<br />
Muitos não gostam do salve-se-quem-puder. Ah, escrota, devota<br />
(pausa) besta, terna, ah<br />
(tom) evolução, aonde nos leva? Que tanto ignora? Se o estrago não foi<br />
total, deu um grande tranco na galera, uma boa e merecida lição. Bem,<br />
ainda me fio que a Natureza realmente sabe o que faz, e como produzir<br />
(pausa) e reproduzir, claro. Quem dera outros pensassem o mesmo. Mas<br />
também me condenam por escapar! Sou pai, o que mais poderia fazer por<br />
amor?<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 9
[Neste momento, o Pai se detém de seu ziguezague e para diante do público para dizer<br />
tudo o que precisa desabafar. Também a projeção se fixa em um ponto do relevo da gruta.]<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Pois os vulcões continuam, me disseram os que duraram vivos, também.<br />
Acabaram as reservas de gelo seco em outros locais. Há tanta fumaça pela<br />
Hilaria inteira; nosso país já era; muitos já sabem o que vai dar<br />
(pausa) antes fosse só um colossal banho de água fria, um sermão. A gente<br />
esperava algo menos drástico. Mesmo assim, sendo a Vida uma eterna e<br />
complexa reação em cadeia, melhor se recolocar. É o que concluo<br />
(tom) dentro do medo. A onda então é se refugiar pelas tocas que ver<br />
primeiro, dizem, mas... poxa, amigos<br />
(pausa) aqui mesmo, se estamos, e vamos em um grupo de mais ou menos<br />
quarenta<br />
(tom) seria suficiente? É pouco o que sei.<br />
Há quem tenha ficado ainda mais cego de susto, e, nossa, outros como eu<br />
que cantam e esperam. Quem aqui já lidou com tanta dificuldade?<br />
Praticamente ninguém. Sabe o porquê!? A vida em sociedade é<br />
preguiçosa. Me incluo nesse pesar, espero a resposta da Grande Mãe, ela<br />
que é sábia e certeira.<br />
(pausa) Esta que sempre fora justa mesmo dentro de sua estranheza; os<br />
humanos inventaram esse termo. Fazer o quê, resmungar? Não, pelo<br />
menos tenho minha dignidade. Procriamos arrogâncias e perdemos de<br />
vista a magnificência e força humana. Poxa, Mãe, Natureza e incitante<br />
feminina, a Senhora é a verdadeira matriz, e, como tal matriarca, relegada<br />
à visitinha rápida ocasional para festividades.<br />
(pausa) Que descuido, não foi, impecável Natureza?<br />
Mas sendo pai, em que foi que eu pequei? Seria bom entender. Que ar<br />
podia oferecer desde uma cobertura de concreto? Não vivi na era das<br />
pedras lascadas, não tive condição financeira para ir morar no campo e<br />
cultivar meus próprios alimentos<br />
(tom) minha época era a industrializada, infelizmente.<br />
É, o que direi aos tantos aqui nesse buraco? Que ficaremos um tempão<br />
ainda enfiados nessa? Para terem esperança ou que saiam e vejam por si<br />
sós o circo sem vídeo transmissão acima das cabeças? Muitos já<br />
desesperam e choram asneiras do tipo: “Eiii, qual foi? Apareçam de<br />
alguma forma, diz, diz aí tudo de espiritual... Se é algo, ou se for algo.” Eu<br />
respiro fundo ouvindo tudo isso, é lamentável, é de pouca fé; eu tento<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 10
dizer que devem respirar comigo. Meus amigos, todos nós estamos com<br />
uma imensa carga nas costas, é a intuição que incita!<br />
Mas direi contudo que estamos em cheque; direi que bem espantados e à<br />
mercê do ciclo<br />
(tom) é preciso se acalmar para refletir direito. O dia de amanhã nunca foi<br />
certeza de nada mesmo<br />
(pausa) nem aqui nem em qualquer parte dessa colônia achada, ou<br />
qualquer pedaço de terra renomeada; o que mudou na real é essa<br />
dramaticidade, a violência dos fatos. Os atos não mentem, ao atos<br />
mostram. Hilaria é nossa devida sepultura, nossos destinos aqui se unem,<br />
que será que nos trouxe à esta Terra? Algo para corrigirmos? Provável.<br />
Muito dissertaram<br />
(pausa) mas não passou de falação, afinal, e me arrisco a dizer que em vão;<br />
claro, porque caímos é num buraco incongruente. Temo pelo ar. Não<br />
posso sufocar e deixar minha gente à mercê, à beira da loucura dentro<br />
desta gruta. Então rezo a Deus que me dê garra, não só para mim mas<br />
para essa gente toda. Nos bastamos como seres racionais para relegarmos<br />
esse desfecho? Ah, que isso! E aí, vai lá, quem pensa nisso? Mesmo se<br />
sobrevivemos, vamos nos repovoar sem pensar em nada? Tropeçar<br />
igualzinho?<br />
[Aos poucos outras pessoas chegam ao palco pela esquerda e direita, são as filhas e a esposa<br />
do Pai e outros que, como ele, estão refugiados naquele ambiente. Eles se entreolham,<br />
estão visivelmente esgotados.]<br />
PAI<br />
(aliviado, para os outros atores)<br />
Por fim chego ao meu destino, vejo essas pessoas, vocês, e agora vocês<br />
também me veem da mesma forma. Peço a todos que se calem, e nos<br />
calamos. “Estamos aqui dividindo a companhia, meus irmãos e irmãs.<br />
Minha família.” “Sei que vocês agora ouvem mas não sem antes me<br />
analisar em seus pesares; quem é esse que fala? Mas não é mesmo?<br />
Quero falar com vocês, conversar. Acredito e venho como um ente<br />
querido, alguém para a necessidade, alguém que se preocupa e pensa<br />
alto.”<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 11
[As pessoas se entreolham novamente. Alguns têm a atenção do Pai, outros ouvem porque<br />
estão ali, mas sua vista está perdida pelo palco. As crianças se seguram nos braços de<br />
Donatela, sua mãe.]<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
O fio está quase arrebentando, que tensão. Achei que seria mais fácil.<br />
Respiro fundo. Volto a falar, cada vez mais firme, não posso perder a<br />
mão. “Estamos reunidos, nos vemos daqui para frente como amigos e<br />
amigas. Somos um bloco, podemos, viemos do mesmo confim<br />
(pausa) Chamam de raça! Somos a humanidade, somos almas!”<br />
Eu ganho um pouco mais de fôlego para terminar, vamos terminar a<br />
caminhada que empreendemos. Minha visão perpassa o ambiente,<br />
venham. “E que seja dócil nossa passagem de volta.”<br />
Uns choram, outros se abraçam. Sorte ter esta família grande!<br />
[O pano fecha lentamente, os atores ficam nas mesmas posições.]<br />
FIM DO ATO DOIS<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 12
ATO TRÊS<br />
[O pano é aberto e os atores estão praticamente nas mesmas posições, mas são<br />
surpreendidos por uma nova figura. É um ANCIÃO, e está bem chateado. Ele vem de<br />
forma abrupta, pela direita, olhando para todos os lados. Outro ângulo da gruta é projetado<br />
por cima dos atores.]<br />
ANCIÃO CHATEADO<br />
(esbravejando, para a plateia)<br />
Este é um feitiço contra feiticeiros, piada babaca que se volta contra a<br />
gente!<br />
PAI<br />
(para Donatela)<br />
Qual é mesmo a idade dele?? Apenas para comentar. Os que perdem a<br />
linha atrapalham qualquer desenvolvimento, será que vale a pena? Não,<br />
né.<br />
DONATELA<br />
(confusa, para o Pai)<br />
De verdade que nem sei o que dizer.<br />
[O ancião é olhado por todos como que deslizando à frente deles, e ele some, vai tão rápido<br />
como chegou, o corpo se arrastando como se desabando nas bases, mais confuso do que<br />
antes.]<br />
PAI<br />
(desacreditado, para Donatela)<br />
Vai saber se vamos nos cruzar mais vezes. Ficamos então pensativos.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 13
DONATELA<br />
(pensativa, para a plateia)<br />
As horas seguem, quase nada chama a atenção de verdade.<br />
MAGALI<br />
(interrompendo)<br />
Pai, me dá um pedaço de carne.<br />
Eu lhe dou.<br />
PAI<br />
(para Magali)<br />
Obrigada.<br />
MAGALI<br />
(para o Pai)<br />
PAI<br />
(para Magali)<br />
De nada, filha. Viu como agora tudo é estranho, quebradiço, acabo<br />
desconfiando; mas não é o que quero! Ora, cansa tudo isso, acho que fui<br />
longe demais nas preocupações. Toma mais alguns biscoitos, pega.<br />
[Magali ri. Pai e filha se olham. Nana brinca por perto, Donatela e Kia se abraçam.]<br />
MAGALI<br />
(para o Pai)<br />
Um pequeno gesto que vale tanto, poxa vida. Sorrir.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 14
PAI<br />
(para Magali)<br />
Você sempre foi uma menina com o dom espelhar e rechaçar minhas<br />
posturas defensivas, desde miudinha. “Você só tem que sorrir”, eu lembro<br />
de você dizendo. Pois te pergunto a seguir: “Vai comer tudo agora?”<br />
MAGALI<br />
(para o Pai)<br />
Não sei, acho que perdi a fome. Melhor guardar para depois.<br />
PAI<br />
(para Magali)<br />
Olha, gordinha, eu também. Tem razão.<br />
Pai, ninguém, ãhn!?<br />
MAGALI<br />
(para o Pai)<br />
[Magali encara fixamente seu pai. Os dois agora ficam sozinhos, pois Donatela, Kia e Nana<br />
saem de cena com uma garrafa de água vazia. Os demais coadjuvantes estão espalhados<br />
pelo palco.]<br />
PAI<br />
(para Magali)<br />
Sei não, querida. Nem é tão diferente assim de antes, vivíamos dessa<br />
forma equivocada, apenas criamos muitas distrações. Não havia essa<br />
preocupação com o porvir, já falamos disso. Passamos de seres dispersos<br />
por aí para saciados reclusos e acuados dentro de (...)<br />
Lares. Eu sei.<br />
MAGALI<br />
(para o Pai)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 15
PAI<br />
(para Magali)<br />
Isso, filha. Hunnf. Pedimos muita quentura<br />
(pausa) branda, tola (...)<br />
Joguinhos também!<br />
MAGALI<br />
(enfática, para o Pai)<br />
PAI<br />
(sorrindo para Magali)<br />
Você sabe do que falo, sempre fui um chato na hora de discutirmos sobre<br />
jogatinas, aplicativos e coisa e tal. Tadinha, mas dessa vez só quis gracejar.<br />
Nem um celular funciona nessa conjuntura. Você que é jovem deve estar<br />
entediada.<br />
MAGALI<br />
(dando de ombros, para o Pai)<br />
Eu tinha um monte de troços, pai. Nada mais liga.<br />
[Magali pausa sua resposta. Deve estar formulando algo, sua expressão hesitante demonstra<br />
isso, mas nem demora muito e abre a expressão, terminando de dizer.]<br />
MAGALI<br />
(rindo, para o Pai)<br />
Nem faz falta, sério. Mas enfim, pior não fica!<br />
PAI<br />
(alisando o cabelo da filha)<br />
Você é uma boa menina, tem isso de alegrar e deixar contente quem te<br />
tem por perto; é como uma explosão, tem que saber apreciar<br />
(tom) deve ser esse sorriso que não te deixa. A gente que se choca em<br />
sentimentos, filha; gostamos demais de viver, eu e você, gordinha. E, sabe<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 16
(pausa) cada ser é um molde; cada ser é um átomo distinto e complacente<br />
dentro da Matéria. Preenchemos. Daí a beleza de colaborar ao Todo, e<br />
você é uma partezona!<br />
MAGALI<br />
(para o Pai)<br />
Minha cara eufórica vence! É esse magnetismo, pai.<br />
Me zoa. Deixa.<br />
PAI<br />
(para Magali)<br />
Continua.<br />
MAGALI<br />
(para o Pai)<br />
PAI<br />
(para Magali)<br />
Vejo no teu rosto que é você que devia novamente desbravar esse planeta<br />
(pausa) sei lá, talvez de outra maneira.<br />
(pausa) Apagar tudo<br />
(tom) o que tinha, e tínhamos. Vai, limpa, usa essa delicadeza; o resto já<br />
foi ao lugar devido, foi largado. O planeta está varrendo a sujeira. Talvez<br />
esse seja um processo comum, já deve inclusive ter acontecido tantas<br />
vezes.<br />
[A menina ri do Pai. E fala, mudando um pouco o foco da conversa. Enquanto isso,<br />
algumas mulheres acendem velas.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 17
MAGALI<br />
(calma, para o Pai)<br />
As pessoas criavam tranqueiras, eu sei. Tinha muita tela<br />
(pausa) nem ia tanto para as vias brincar<br />
(rindo) é que viciava à vera, né!<br />
PAI<br />
(para Magali)<br />
Eu lembro, filha. E o que me deixa encucado é que ainda somos<br />
construtores<br />
(tom) demais, exagerados. Não vale a pena.<br />
Exagero é ruim, então.<br />
MAGALI<br />
(para o Pai)<br />
Acho.<br />
PAI<br />
(para Magali)<br />
MAGALI<br />
(para o Pai)<br />
Apreciar, honrar, ter fé. Eu também sinto.<br />
Isso, minha querida.<br />
PAI<br />
(para Magali)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 18
MAGALI<br />
(para a plateia)<br />
Não se culpe por toda essa gente. Ajudar é o correto, mas ninguém tem<br />
que forçar ninguém. O senhor mesmo uma vez disse que quem salta de<br />
paraquedas tem que aceitar que vai aterrissar em um chão.<br />
[E ficam olhando um para o outro, pai e filha, amplamente iluminados por causa das velas<br />
estendidas.]<br />
PAI<br />
(para Magali)<br />
Que bom, pensamos juntos. Isso é legal.<br />
[Passa a pequena Nana vinda de outro lado, pega um pouco de água de uma garrafinha e<br />
bebe. Admira nós dois.]<br />
Isso é legal.<br />
NANA<br />
(para Magali)<br />
MAGALI<br />
(para Nana)<br />
Sim, maninha! Água cura, muito bem.<br />
Siiim!<br />
NANA<br />
(para Magali)<br />
PAI<br />
(rindo, para as duas)<br />
Vocês são lindas, que bom que puxaram sua mãe!<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 19
[Magali fixa sua vista nos alimentos, fica de olhos paralisados, mas a seguir vira o rosto para<br />
o lado, como se a comida já nem fosse tão essencial. Sua mãe já volta com as garrafas d’água<br />
cheias.]<br />
MAGALI<br />
(olhando para a comida)<br />
Ainda aqui!! Talvez seja útil mesmo esse trambolho.<br />
DONATELA<br />
(para Magali)<br />
Não fale assim, foi Deus que nos deu essa comida. Ela vai ser necessária.<br />
PAI<br />
(complementando, para Donatela)<br />
Tomara. Olha, fiquem aqui que eu vou atrás de Kia.<br />
[Depois da saída do Pai, os outros atores também saem do palco e a projeção é desligada.<br />
Fecha o pano após isso.]<br />
FIM DO ATO TRÊS<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 20
ATO QUATRO<br />
[Abre o pano e o Pai está ali de pé.]<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Veja, se você estivesse contando a história de uma desgraçada, faria no<br />
presente ou no passado??? E ficaria pelas horas se confundindo?<br />
[Então alguns jovens passam pelo Pai, sua filha está com eles. São poucos anos maiores<br />
que ela, chegam da direita. Ela vê seu pai, acena e vai de encontro a ele; como sempre,<br />
falando e caminhando como se a situação fosse fantasia, como um filme ou seriado da<br />
moda.]<br />
KIA<br />
(para o Pai)<br />
Oi, pai. A gente só sacaneava tudo isso, da falta do computador, pai.<br />
PAI<br />
(ansioso, para Kia)<br />
Mas o tom da conversa era de tristeza ou quê!? Ah Kia, justo você e suas<br />
qualidades que raramente usa; dessas qualidades, incluo a força de<br />
vontade! Devia é estar contente de ter mais tempo livre, sem escola ou<br />
obrigações; tranquila para ouvir os sons e melodias do mundo com seus<br />
amigos, amplificando tudo; mas estamos aqui enfurnados, não é.<br />
Poxa! Diz em voz alta!!<br />
KIA<br />
(para o Pai)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 21
PAI<br />
(para Kia)<br />
É minha Kia, mocinha, vai crescendo ágil. A interdependência foi teu<br />
vírus, pequenininha. Que pense e seja uma maior fonte de rompimento<br />
de barreiras.<br />
KIA<br />
(para o Pai)<br />
Ai, pai, deixa isso de ser filósofo, fala direito. O mais provável é que<br />
vamos morrer.<br />
Quem disse?<br />
PAI<br />
(surpreso, para Kia)<br />
Quem nos garante?<br />
KIA<br />
(para o Pai)<br />
PAI<br />
(para Kia)<br />
Você é a primeira pessoa que vejo falar desse jeito; morrer é natural para<br />
todos mesmo.<br />
KIA<br />
(para o Pai)<br />
Sou tua cria, ué... Aprendi a ser realista.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 22
PAI<br />
(para Kia)<br />
Então meu trabalho não foi em vão, e posso repetir esses versos:<br />
“Tua beleza que não compete nem condiz com impaciências. Da mesma<br />
forma, há tamanha vicissitude teimosa; sentir só te leva a mais dores de<br />
cabeça. Deixa de lado o que no fundo resvala... Algo lhe diz, te parece à<br />
toa, todas as tendências dramáticas.”<br />
KIA<br />
(para o Pai)<br />
Relaxa, pai, nem deve ser tão ruim.<br />
Tem certeza?<br />
PAI<br />
(para Kia)<br />
Pai!!! Não me assusta mais...!<br />
KIA<br />
(para o Pai)<br />
Foi só para você ficar esperta.<br />
PAI<br />
(para Kia)<br />
KIA<br />
(para o Pai)<br />
Eu sou mais esperta, mais rápida, essas coisas, sabe.<br />
A Filosofia idem.<br />
PAI<br />
(para Kia)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 23
KIA<br />
(para o Pai)<br />
Nem é, pai.<br />
PAI<br />
(para Kia)<br />
Então quer pronta uma definição<br />
(tom) de morrer ou não?<br />
Quero.<br />
KIA<br />
(para o Pai)<br />
Eu não sei, filha.<br />
PAI<br />
(para Kia)<br />
Como não, logo você!?<br />
KIA<br />
(divertida, para o Pai)<br />
PAI<br />
(rindo, para Kia)<br />
Quem dera eu tivesse! Melhor seria só viver existindo.<br />
Doido.<br />
KIA<br />
(para o Pai)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 24
[E riem. Seu diálogo é direto e enfático.]<br />
KIA<br />
(para o Pai)<br />
Nada de lerdeza. Vê!? Heim, pai, se liga. Já eu, sou muito complexa,<br />
penso rapidão e faço muito!!<br />
PAI<br />
(divertido, para Kia)<br />
Isso aí, filha. E questiona mais.<br />
Pai, falando sério.<br />
KIA<br />
(mudando de tom, para o Pai)<br />
Eu falo sério!<br />
PAI<br />
(para Kia)<br />
KIA<br />
(entre sorrisos, para o Pai)<br />
De que adiantou inventar tanto se ao primeiro “abalo mundial”, só assim<br />
nas aspas, ficamos tão indefesos? Será mesmo que não pensaram?<br />
Espertos foram os que se enterraram antes, como as tartarugas nos cascos<br />
ou as formigas em colônias.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 25
PAI<br />
(gesticulando, para Kia)<br />
Uma lambada, tipo churrasco de carne de segunda, nesse nível! A<br />
informação é da mesma premissa.<br />
(pausa) No mundo havia tanta coisa sendo dita, era fácil, mas ninguém se<br />
reforçou para um<br />
(tom) “imprevisto”. É como diziam, deveriam ter “visto os dois lados de<br />
algum troço”. São retrocessos fáceis, fico desbaratado, em crise.<br />
Nem bem digo e me espanto. Olha só essa menina de 13 anos ditando o<br />
mundo com braveza. Você sim que existe.<br />
KIA<br />
(para a plateia)<br />
Parece besteira, penso alto, parece meio idiota dizer isso após tanto, mas<br />
(pausa) se ouvisse novamente falar de revoluções e instâncias do tipo,<br />
melhor teria sido ter em conta que tudo opera-se dentro dos sisos; nem<br />
tuuudo nas cabecinhas das pessoas por aí funciona na paz! Já era a<br />
quietude, opa.<br />
PAI<br />
(para Kia)<br />
Ouço suas palavras, me impressiona. Posso até completar sua falação.<br />
Calma que logo passa. É igual a viciar-se em balas Juquinha! O que te<br />
prende é o açúcar que dá crédito. Tem açúcar na frutose, mas não enche.<br />
Enfim, só depois de gordos é que pensamos na frutose. Hunnf<br />
(pausa) Então, filha, posso dizer ainda que você é o rebentar do grupo e<br />
estalar de preconceitos cambiantes, como dedos, para que ouçam tal som,<br />
e saibam que não é uma lógica mercadológica. Deixa ver. Cansa se<br />
delongar<br />
(pausa) quero um abraço da minha filhinha agora. Isso sim preenche<br />
minha alma.<br />
Ai, putz, meu pai é malucão!<br />
KIA<br />
(sorrindo, para o Pai)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 26
[O Pai sorri também. Ele, vendo a descontração da filha, se acalma um pouco. Depois dão<br />
um longo abraço.<br />
Assim, meio tateante, ele segue sofrendo depois de largar a filha com seus amigos. E se<br />
desafoga em palavras, vejamos.]<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Disse tudo isso e me senti como que esvaziado, juro<br />
(pausa) com a sensação de que todo meu eu, minha síntese, este melhor<br />
que posso ofertar ficara naquelas palavras e ações. Só me sobrou uma face<br />
(tom) vaga, meio casca. Elas já se preparam. Glória às minhas filhas!<br />
[A menina volta ainda para dizer algo mais para seu pai. Ele já estava quase saindo pela<br />
direita.]<br />
Temos que ter paciência, pai.<br />
KIA<br />
(para o Pai)<br />
KIA (cont.)<br />
(gritando)<br />
A calma portanto está valorizada.<br />
[O Pai vira o rosto. Eles riem um para o outro. Os amigos de Kia acompanhavam tudo.<br />
Cantarola portanto este pai uma melodia.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 27
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Fazia tempos eu não vinha com essa melodia, ela vem de recordações<br />
boas de antigamente. Recorda a infância das minhas filhas, e sim, da<br />
mesma forma faz a água saindo de um jarro, para todos os lados<br />
encharcando. “Ria da vida, ela é bela, tua... tela moldável. Sua, ela é boa, e<br />
você a conduz. Dita teus ânimos... e o que cria, nunca se curva.”<br />
[O Pai derrama aquela música, saindo dali para reencontrar a esposa. Fecha o pano após<br />
saírem todos do palco.]<br />
FIM DO ATO QUATRO<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 28
ATO CINCO<br />
[Ao abrir o pano, entra o Pai pela direita com um livro na mão. Ele caminha e lê.]<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Mas deixa eu te falar uma coisa. Nunca quis ser tão sincero na vida: vamos<br />
papear sobre o que nos move; não é máquina ou química, chama-se<br />
espiritualidade. Não em crenças em figuras ou lendas, mas do que é luz,<br />
certeza, paz, hunnf, e que basta, como uma força. Uma hora será nosso<br />
apoio diante de tudo isso.<br />
[A seguir entram pela esquerda Magali e Nana, elas ouvem atentas essas falas, do cantinho<br />
delas. Depois vem Donatela e fica ao lado das crianças. Ela olha para baixo, não parece<br />
bem, tem algo nas mãos. Aproxima-se de do Pai e grita como nunca antes, jogando ao<br />
mesmo tempo um rolinho de notas no chão. Depois, anuncia com a voz trêmula.]<br />
DONATELA<br />
(aflita, para a plateia)<br />
Eu estou é farta!!! Quantos desabafos e explicações. Em vista disso é só<br />
esperar, é??<br />
[Aos poucos, mais pessoas entram no palco. A projeção do interior da gruta é exibida.]<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Minha senhora não está nada bem, todos ao redor sabem, além da gente.<br />
É o limite, ouvimos seu espernear!<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 29
DONATELA<br />
(agressiva, para a plateia e o Pai)<br />
Isso aqui na minha mão, isso... aqui... Poxa, isso aqui...<br />
(grito) me dá nojo, sempre fedeu e contaminou a pele. Que me trouxe?<br />
Essa, essa merreca! Porcaria de<br />
(tom) dinheiro, papel sujo!! E agora não presta para nada mesmo. Mas<br />
que se dane, porque em vista disso nem consigo formular uma frase<br />
inteira de um mesmo assunto, de tão assolada<br />
(pausa) droga! E cadê o governo? Cadê os gastos, impostos? Cadê o<br />
amparo, a salvação que não vem pela gente calmamente? É como uma<br />
explosão já não contida, dando vazão a tantos sentimentos.<br />
Que patada.<br />
[O esbravejar de Donatela contribuiu para a comoção dos próximos, a situação era<br />
quebradiça. Quem não compartilhava aquela opinião? Era visível nas pessoas. Não havia<br />
ninguém que não estivesse aflito também, que de alguma forma não tivesse sido tocado.<br />
Uns abaixavam a cabeça, outros tantos oravam. Mas em contrapartida havia os que<br />
bufavam, choravam; alguém correu para longe e até houve um que gritou “socorro,<br />
socorro!!”]<br />
PAI<br />
(cabisbaixo, para Donatela)<br />
Desabafa, mulher. Fala tudo que se agarrou aí. A situação é quebradiça,<br />
quem não compartilha da tua opinião?<br />
DONATELA<br />
(triste, para o Pai)<br />
Ah paizinho, hummm, por certo, é, estou fazendo isso<br />
(tom) na brecha, economizando espaço. Ninguém vai sair ileso, você sabe.<br />
[E Donatela fica cambaleante, meio zonza com o que diz. Chega o Pai perto dela e corre<br />
para segurá-la em meus braços.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 30
PAI<br />
(para Donatela)<br />
Não mesmo, algo se perde, falo mas nem sei como! E em minha mente eu<br />
penso que “seria porque todos sofremos juntos?” O mundo é que nos<br />
afeta! Todos aqui.<br />
(pausa) A gente reunida, hunn, para aprender de alguma forma.”<br />
[Então o Pai passa seu olhar pelo recinto de pedras, a projeção está mais iluminada.<br />
Ninguém fala nada mas todos acompanham.]<br />
DONATELA<br />
(fraca, para o Pai)<br />
Como você pode ter tanta calma, paizinhooo?<br />
PAI<br />
(compassivo, para Donatela)<br />
Se eu soubesse sem a menor contestação te diria e repetiria até minha<br />
morte.<br />
[O efeito desse contexto dos últimos dias irrompe em Donatela. E ela grita, irritada, sua<br />
cabeça mira o alto. As mãos se levantam. O Pai a aperta mais contra si. Não pode deixá-la<br />
assim perdida.]<br />
PAI<br />
(se esforçando, para Donatela)<br />
Vamos esperar, mulher. Calma! A sujeira vai ser limpa.<br />
[Donatela fecha os olhos, tenta voltar a si e diz, em um lapso.]<br />
DONATELA<br />
(arrasada, para o Pai)<br />
Sobrou o ridículo, perceberam, ahhhhhhhhhhhh... nãoooo. Que sobrou<br />
da gente sem porvir?<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 31
[Ela escorre dos braços do marido até encostar o rosto em lágrimas na barriga dele. O Pai<br />
puxa as meninas para junto deles, e ficam por uns minutos se aquecendo. Algumas pessoas<br />
saem de perto a fim de se acalmar em outro canto, mas outros ficam, remanescentes.<br />
Queriam calor, de toda forma!]<br />
PAI<br />
(aliviado, para a plateia)<br />
Nossas lágrimas como que deixam o ar seco da gruta com mais frescor. Se<br />
expressar é isso, a entrega, compassando os ares. A emoção enfim supera<br />
toda essa frieza que acompanhamos na vida dos últimos anos.<br />
[Mas de repente um grisalho de cara fofa surpreende os atores, vem ele sem distinções,<br />
sorrindo e dizendo já com as maçãs do rosto rosadas.]<br />
GRISALHO<br />
(brincando, para todos do palco)<br />
Sonhar não custa bosta nenhuma.<br />
[Riram muito daquilo, e a paz deu um sinal de persistência.]<br />
PAI<br />
(para o Grisalho)<br />
Ainda há reciprocidade, é, eu vejo. Que alívio!<br />
Pois é!<br />
GRISALHO<br />
(para o Pai)<br />
PAI<br />
(para o Grisalho)<br />
Estava lá o encerramento do mundo: na desumanidade. Declaro que<br />
sabemos mais sobre tudo isso agora, aqui.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 32
GRISALHO<br />
(convidativo, para o Pai)<br />
Seja bem-vindo, irmão. Vamos ao bar.<br />
[O Grisalho levanta o braço direito melindrosamente.]<br />
GRISALHO<br />
(enfatizando, para o Pai)<br />
Vamos ao bar, temos que descer um pouco pela gruta.<br />
Que bar, homem?<br />
PAI<br />
(para o Grisalho)<br />
GRISALHO<br />
(brincando, para o Pai e outros)<br />
É, sabe não!? Tá mó alegria lá.<br />
[E o Grisalho se babou de rir, que otimista ele parece. Fecha o pano.]<br />
FIM DO ATO CINCO<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 33
ATO SEIS<br />
[O pano abre e muitas pessoas discutem à esquerda do palco. A projeção mostra o interior<br />
de uma das grutas e garrafas de bebidas empilhadas pelo chão. O Pai entra acompanhando<br />
de sua esposa, filhas, o Grisalho e outros que estavam com eles, todos pela direita.]<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Entramos. Há muita gente, olhares de todos os modos<br />
(pausa) e cheiros. Acredito que cada pessoa exale algo diferente, talvez de<br />
acordo com o sentimento ali ou seu grau de estresse. Imaginem tudo isso<br />
de uma só vez; pensem no calor! A energia está se expandindo, talvez<br />
rumo a uma cisão.<br />
(pausa) No meio disso tudo eu mal podia me escorar, então minhas mãos<br />
apertam as das minhas filhas e esposa, seguidamente. Ao meu lado, uma<br />
dupla papeia. Ouvimos de tudo, até o que não precisamos em um<br />
momento desses.<br />
MEDIADOR<br />
(se mostrando, para os coadjuvantes)<br />
Talvez a fé seja o cerne de todo o movimento humano. Se você ainda<br />
guarda dela, emane. A hora é essa! Digo isso pois este é um momento<br />
decisivo. Mas veja, não se vive a fé de qualquer forma, deve ser através<br />
dela. Não “pela” fé, mas “da” fé.<br />
[Depois dessas palavras encorajadoras opina contente uma jovem, seu olhar brilha para a<br />
figura do Mediador.]<br />
UMA JOVEM<br />
Poxa, Mediador, você é meu ídolo.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 34
MEDIADOR<br />
(sorriso de lado, para a jovem)<br />
Sou nada, você que não se ligou. Além um cara comum como eu existem<br />
outros muito mais avançados; se você puder vai atrás do que há de ‘muito<br />
mais’ na vida.<br />
Eu concordo com ele!<br />
PESSOA 1<br />
(satisfeito, para o Mediador)<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Aqui no bar das bebidas gerais o clima é bem diferente do lá de cima; na<br />
gruta me parece que buscam algumas alternativas, e isso rapidamente. Ao<br />
menos ouvem uns aos outros, querendo ou não.<br />
(pausa) Sou chamado a discutir; chego e a coisa já está fervendo. Vamos<br />
ouvir o que dizem essas pessoas aleatórias, não quero me intrometer por<br />
hora. Desculpe usar desse termo, mas vejam que são muitas opiniões. Mas<br />
vamos!<br />
[O Pai chega um pouco para o lado, dando espaço para os outros.]<br />
RAPAZ<br />
(retórico, para o Mediador)<br />
Que valores sabe, ou se sabe o que é o que é!?<br />
PESSOA 2<br />
(para o Rapaz)<br />
Valeu, ô reizinho, fala de longe.<br />
PESSOA 3<br />
(para o Rapaz)<br />
Outros zombam porque você é um ‘burguês!<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 35
PESSOA 4<br />
(para a Pessoa 3)<br />
Esse sistema de que você falou, esse mundo, ahh, esse dito “sistema”, foi<br />
feito mesmo a nos cansar até deixar loucos!!!<br />
Úúulll!<br />
PESSOA 2<br />
Esse sabe! Isso.<br />
OUTRO JOVEM<br />
(desabafando, para a Pessoa 4)<br />
[Entra a figura conhecida como MOBORG. Ele não se aguenta e ri debochando das outras<br />
pessoas. Desagrada no mesmo momento.]<br />
Diz o que te engasga!<br />
MOBORG<br />
(para a Pessoa 3)<br />
RAPAZ<br />
(cochichando para a plateia)<br />
Pode parecer eufemismo mas o carinha se autodenomina “Moborg”<br />
mesmo!<br />
[Há muita falação. Uma LOIRA continua a partir do gancho solto.]<br />
LOIRA<br />
(para a plateia)<br />
Não vou mentir, sempre vi a realidade muito braba, a questão seria saber<br />
apenas lidar. Tudo opera-se nas cabeças das pessoas, humm.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 36
[Ela dá uma pequena pausa em suas conclusões, mas a seguir, ao dizer o termo<br />
“sociedade”, gesticula com o dedão para baixo, devagar.]<br />
LOIRA<br />
(para a plateia)<br />
É mesmo, na boa! E partindo do princípio de que quem carrega a<br />
“sociedade”, bem, quem rege o que quer que seja são as próprias pessoas<br />
e suas vontades; a “sociedade dos ricos”, por exemplo, ela é sustentada<br />
pela “sociedade dos pobres”.<br />
(tom) Então, nada poderia nos parar; as rédeas que nos deixamos ter, as<br />
rédeas que seguram as bocas dos oprimidos, tudo iria abaixo. Só se deixa<br />
levar quem não oferece em contrapartida uma outra opinião. Basta<br />
querer, não ter medinhos. “Que demora”, isso eu penso.<br />
[E sorri a Loira para todos os atentos, depois fica meio enfadonha com o silêncio. Parece<br />
que não deram bola para suas crenças. Ou isso ou estavam pensando em uma resposta.<br />
Um pouco depois, do fundo, dois berros ainda chegam para ela. Uma pessoa fala.]<br />
PESSOA 5<br />
(desaforado)<br />
Nojinho do natural? Bobeira. Uhhhhh.<br />
[A Loira melhora o humor. É apenas polida demais para ali, seu jeito denuncia.]<br />
Isso é medo!<br />
LOIRA<br />
(para a Pessoa 5)<br />
UMA SENHORA<br />
(calma, quase narrando para os outros)<br />
Todos sabemos mas não custa nada repetir: nossos valores estão no que<br />
ditamos.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 37
PESSOA 6<br />
(para os outros)<br />
Galerinha, é explorado quem se deixa.<br />
LOIRA<br />
(interferindo, para a plateia)<br />
Vocês são muito generalistas. Demais até. Eu acredito que maçãs podres<br />
são descartáveis, e que as encontramos sem embargos, só que tem gente<br />
que nem quer enxergar, ou não quer se dar ao trabalho de se mexer para<br />
catar as tais maçãs podres. Por que não selecionar melhor em vez de<br />
transformar tudo numa anarquia? Ninguém é estúpido, todos sabemos<br />
que ‘pessoas’ vivem em sociedade, têm seus líderes e suas funções. Não<br />
existe uma só sociedade de reis apenas! Vamos raciocinar, não apenas<br />
reclamando, mas tendo boas ideias e soluções, poxa.<br />
[A Loira maneja o corpo, voltando com suas confissões, mesmo assim seu gesto acarreta<br />
descrédito da parte de algumas pessoas. É dela as próximas sugestões.]<br />
LOIRA<br />
(esperançosa, para a plateia)<br />
Imagina um monte de gente pensando em melhorias? A humanidade<br />
seria um único mundo e se superaria, como quando realmente quer. Eu<br />
quero um mundo junto. Quando queremos, as coisas acontecem.<br />
PESSOA 2<br />
(desagradável, para a Loira)<br />
Que te passa? Você é maluca ou sei lá o quê? Tudo é recuperável. Cê tá<br />
doida, cala a boca!<br />
UMA SETENTONA<br />
(indagando, para a Loira)<br />
Mocinha, o que quer mesmo? Como pretende chegar lá?<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 38
UM EX-PROFESSOR<br />
(tentando apaziguar, para os outros)<br />
Estimados, por que tanta descrença? Logo vocês, tão jovens, vocês que são<br />
a evolução de nós, velhos!? Como se assustam.<br />
MOBORG<br />
(gritando, para a plateia)<br />
Melhor enforcar a sociedade inteira e ver como reagem, se é que reagem!<br />
SETENTONA<br />
(para os outros)<br />
Como grita esse Moborg. Faz questão de ser desagradável e ainda assim<br />
tem gente escutando, eu heim.<br />
[Chega resmungando a mulher chamada ESPELHADA. Sua beleza chama tanta atenção<br />
quanto seu estilo de falar.]<br />
ESPELHADA<br />
(para Moborg)<br />
Do que você anda falando? De novo você? Em que mundo você<br />
vive? Apenas te vejo esgueirando. Já foi pelos ares, amiguinho.<br />
ESPELHADA (cont.)<br />
(para a plateia)<br />
Por qual motivo estou em um bar, aqui...<br />
(tom) um puro sinal de distração! Por que, é só o que me pergunto.<br />
MOBORG<br />
(se esquivando, para Espelhada)<br />
Menina, não precisa me ouvir. Pode sair de perto se quiser.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 39
[E a atônita Espelhada fica olhando para ele. Não sabem como prosseguir.<br />
Do nada, um AVARENTO sai do fundo do corredor de pessoas, levantando seu copo,<br />
gesticulando para lá e para cá, ao que cospe alto algumas palavras que roubam a cena.]<br />
AVARENTO<br />
Ainda há pouco eram os bancos que comandavam minhas ações, porque<br />
deixava. E ainda acho que essa cambada virá como monstros de verdade<br />
agora que a merda agarrou e não tem mais água, refeição e o mais<br />
necessário. Fiquem espertos!<br />
[Ninguém responde nada, para variar, mas todos seguem os olhares uns dos outros e<br />
cercam o Avarento.<br />
O MENINO, filho do ex-dono de mercearia, aponta ligeiro, sem dar chance do<br />
acumulador incitar outras discórdias.]<br />
MENINO<br />
(para os outros)<br />
Esse cara vivia pedindo fiado na mercearia do meu papai!!<br />
[E mais uma vez todos se voltam para o Avarento. Este não sabe em qual lugar enfiar a<br />
cara. Então, murcho, cabisbaixo, acaba vermelho em sua vergonha.]<br />
LOIRA<br />
(para a plateia)<br />
A palavra chega ser até rasa para descrever tanto.<br />
GRISALHO<br />
(ríspido, para o Avarento)<br />
Entenda, se você não tem mais nada construtivo a dizer, por que não faz o<br />
favor de se calar um momento!!?<br />
[O Grisalho pede de uma maneira que o Avarento dá um jeito de sumir de vista. Sai do<br />
palco aos poucos, esbarrando em SELENA pela direita.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 40
Não vou com a cara dele.<br />
MOBORG<br />
(para o Grisalho)<br />
EX-COMERCIANTE<br />
(expansivo, para a plateia)<br />
Esse aí é mó chato, um pidão, meu filho tinha razão. Ele tratava todo<br />
mundo mal lá na nossa mercearia.<br />
SELENA<br />
(surpresa, para os outros)<br />
Ei, que isso? A droga de um tribunal? Por que apontam uns para os<br />
outros!? Deixa esse homem se expressar. Não é que não tenha caráter; em<br />
todo mundo há. Se bom ou ruim, louvável ou não, aí depende de quem<br />
vê. Mas por que julgam? Todos temos nossa parcela de culpa.<br />
[Moborg pisca para Selena, que levanta a cabeça e tenta conter o sorriso.]<br />
GRISALHO<br />
(para o Pai)<br />
Ouve essa então, esquece esses reclamões. Como eu havia dito, este é o<br />
autointitulado anfitrião do bar, o que prontamente organiza uma volta à<br />
superfície.<br />
Mas será que ele consegue?<br />
PAI<br />
(indeciso, para o Grisalho)<br />
[O Grisalho diz e indica com a mão para o Pai que à direita estava o Mediador. O Avarento<br />
está fora do palco escutando!]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 41
MEDIADOR<br />
(para o Avarento)<br />
Vou te dizer, não morra de vergonha, você também é responsável por essa<br />
depressão que te atinge; quanto mais envolto nessa aura, mais difícil sair<br />
do círculo vicioso. Foge não! Por que não passa a enxergar a vida através<br />
de uma ótica mais leve e positiva? Isso, pensa nas possibilidades das coisas<br />
darem certo. Não é difícil, ninguém nasce assim<br />
(tom) chato. Me perdoe a franqueza. Quando criança, a beleza te tocava!<br />
Você lembra.<br />
(pausa) Não ligava tanto, apenas se divertia e aprendia. Busca essa<br />
inocência de novo, esteja por ela.<br />
GRISALHO<br />
(para o pensativo Pai)<br />
Muitas pessoas se compadecem ao ouvir isso, há mais concórdia e abraços<br />
fluindo do que o Mediador imaginava, com certeza. Seria um perdão, e<br />
como nesses dias perdoar é difícil! Pena esse sermão ter durado pouco,<br />
pois para uma parcela desse povo a crítica nunca não é benquista. Tratam<br />
logo de brindar e afastar o assunto. O bate-boca continua fluindo.<br />
[Perto, um homem de semblante acabado e munido de olheiras expõe algo do seu dia a<br />
dia.]<br />
HOMEM COM OLHEIRAS<br />
(para o Mediador)<br />
Você que não me encha o saco, por favor. Já não basta essa pancadaria<br />
toda? Eu tenho lá meus remédios, sei lá se sei por qual motivo estou aqui.<br />
[Pede passagem a esvoaçante MAITÊ, levantando os dedinhos para ser ouvida.]<br />
MAITÊ<br />
(para os outros)<br />
Dá pra ver, tá com a caaaara da maluquice!<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 42
[Chega MOFANA, interrompendo, sempre perturbadora. Seu alvo é o homem com<br />
olheiras.]<br />
MOFANA<br />
(para o das Olheiras)<br />
Ó, tadinho, aproveita para dormir mais. O que não falta é tempo.<br />
MEDIADOR<br />
(para Mofana e o homem com Olheiras)<br />
Queremos voltar lá para cima, você sabe, não se faça de tonta. E tenha em<br />
conta que remédios são apenas opções.<br />
PAI<br />
(para o Grisalho)<br />
Continua intercalando o Mediador. Ele parece mesmo querer apaziguar os<br />
ânimos, mesmo que de sua maneira.<br />
MEDIADOR<br />
(para Mofana)<br />
Muitas pessoas sentem dores que somente certos fármacos resolvem,<br />
senhora Mofana.<br />
MAITÊ<br />
(repelindo o Mediador)<br />
Isso é o que você diz. Já esteve por um momento na minha correria,<br />
sendo como eu? Nunca. Então, deixa que a decisão seja minha! E tira essa<br />
cara de líder, é tosco.<br />
MEDIADOR<br />
(fazendo pouco caso de Maitê)<br />
Já que sempre soube que era livre, continua me mostrando, responde à<br />
altura também.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 43
MAITÊ<br />
(evasiva, para o Mediador)<br />
Eu vou dar uma volta, ver se tem alguém mais legal para passar minhas<br />
horas.<br />
[Maitê deixa o Mediador sozinho, enquanto este se ajeita para caber em um assento<br />
improvisado. Maitê se distancia do grupo, à esquerda. Mofana finge não dar bola e se vira<br />
para outro lado. O Pai se adianta na direção do Mediador para perguntar algo.]<br />
PAI<br />
Volta para... não entendi direito?<br />
Como disse, cidadão?<br />
MEDIADOR<br />
(para o Pai)<br />
PAI<br />
(para o Mediador)<br />
Eu não sou cidadão, sou humano, e respondo tranquilamente.<br />
MEDIADOR<br />
(para o Pai)<br />
Claro. Quem dera ainda tivéssemos nossa civilidade, a globalização, vida<br />
estável, nossa superfície.<br />
PAI<br />
(para o Mediador)<br />
Que só iria ser destruída em questão de vez, Mediador.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 44
MEDIADOR<br />
(para o Pai)<br />
Quem é você? Qual seu nome, por favor!? Veio com família e tudo, que<br />
combinação.<br />
PAI<br />
(para o Mediador)<br />
Eu já disse, sou humano, e tu?<br />
MEDIADOR<br />
(para o Grisalho)<br />
Você trouxe ele aqui, ãhn, Grisalho?<br />
[E o Grisalho faz menção para que o Pai se explique, gesticulando.]<br />
PAI<br />
(rindo, para o Mediador)<br />
Calma, o Grisalho ficou com a cara mais rosada ainda. Acho que o deixei<br />
em uma saia justa. O Mediador é cauteloso.<br />
GRISALHO<br />
(para o Mediador)<br />
Eu pensei que ele fosse gentil. Achei que sua eloquência fosse necessária,<br />
Mediador!<br />
MEDIADOR<br />
(para o Grisalho e depois para o Pai)<br />
E é. Não se desculpe tão rapidamente. Muito prazer, senhor anônimo.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 45
PAI<br />
(para o Mediador)<br />
Sou um pai, mais um. “Que importam os nomes, não é?”<br />
GRISALHO<br />
(para o Pai)<br />
Ele não é mais um desses que contesta, esculacha, é?<br />
[O Grisalho adverte brincando, já o Pai retribui de maneira amistosa. Há um desconforto<br />
na voz do Grisalho.]<br />
PAI<br />
(para o Grisalho)<br />
Eu? Tudo bem, já vamos. Não precisa ficar sem graça.<br />
MEDIADOR<br />
(para a plateia)<br />
Que está havendo com essa gente?<br />
[O Mediador pergunta e aguarda uma posição do Grisalho mas ele fica quieto, sem reação.]<br />
MEDIADOR<br />
(para o Pai)<br />
Caramba. Que bom que há os que se salvam.<br />
Somos simples.<br />
PAI<br />
(sereno, para o Mediador)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 46
GRISALHO<br />
(para o Pai)<br />
Ótimo. Não diga ‘tchau’, há mais gente boa para conhecer aqui.<br />
Hãn, como assim?<br />
PAI<br />
(para o Grisalho)<br />
[Após essa última conversa, os demais atores saem aos poucos do palco enquanto o pano<br />
desce devagar. Ficam o Pai, o Mediador e o Grisalho até que o pano desça<br />
completamente.]<br />
FIM DO ATO SEIS<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 47
ATO SETE<br />
[Aberto o pano, em outra parte do bar a plateia assiste outras questões. Mais pessoas<br />
diferentes se juntam e conversam. Outra projeção da gruta chega em outro ângulo, justo<br />
quando a jovem TULA passa balbuciando, seu corpo pouco se mexe, apenas as pernas<br />
deslizam.<br />
Bem próxima a ela, vemos a moça que perdeu o marido e os filhos, Espelhada. Ela está<br />
muito mais alerta.]<br />
TULA<br />
(para a plateia)<br />
A imundície vem da raiva, eu sei, estudava Medicina antes do mundo se<br />
estranhar dessa forma. Mas ninguém me ouviu, a visão ficou algo<br />
embaçada, nem sequer seria citada nos comentários maliciosos dessa<br />
gente daqui; ainda que minha intenção fosse das melhores, diferentemente<br />
do Avarento, de Moborg, Mofana e cia; mesmo assim, todos estariam fora<br />
dos créditos se tudo isso fosse apenas um filme. Mas não é.<br />
[As duas se chocam, Espelhada encara Tula e desabafa.]<br />
ESPELHADA<br />
(desgastada, para Tula)<br />
Em apenas um par de dias tudo virou de cabeça para baixo para valer.<br />
TULA<br />
(para Espelhada)<br />
Eu também não entendo. É como se tivesse entrado em outra existência,<br />
diria talvez uma realidade alternativa, e aquela de antes fosse apenas uma<br />
lembrança enfurnada em algum canto da minha mente. Já você, perdeu os<br />
parentes, isso corta imaginar.<br />
(pausa) Que facada. Pobre coitada.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 48
ESPELHADA<br />
(chorando, )<br />
Minha carne pouco sente dor, agora.<br />
TULA<br />
(para a plateia)<br />
Essa viúva também não quer figurar nos créditos de “filme algum”.<br />
ESPELHADA<br />
(gritando, para a plateia)<br />
Nãooooo. Eu tenho que ir embora!<br />
TULA<br />
(para a plateia)<br />
Ela analisa vocês, olha dentro de suas almas e os reconhece. Pensa ser o<br />
epitáfio dos espíritos e entes, todos reunidos em uma só gruta. Que<br />
referência ao passado longínquo! Analisa ela mesma também, danada, que<br />
de maneira igual maculou em toda parte por tanta curiosidade.<br />
(tom) “Algo deve ser feito!”, ela pede baixinho. “Será que sempre fora<br />
ruim, que nunca chegara lá? Era essa nossa utopia? Gritando, fugindo dos<br />
carmas. Essa vontade<br />
(pausa) energia, sua carga, e repulsa. E sai!<br />
ESPELHADA<br />
(voltando, para a plateia)<br />
Ei, pois é. Me penalizando. Tenho por Espelhada minha sina e graça, sim,<br />
a mesma.<br />
[Espelhada começa enfim a falar com mais coerência aos outros, usa um tom alto, definido.<br />
Discursa tanto para os demais coadjuvantes quanto para a plateia, intercalando.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 49
ESPELHADA<br />
(enxugando suas lágrimas)<br />
Meninas, todas. Me vejo nessa tradução e reinterpretação de nós mesmas.<br />
Que tantas exigências só nos confundiram e carregaram.<br />
Lentes, telas, perfis e o que encarar. Quem me dera ser dilacerada, bem<br />
através de tudo que posso, ou ver até pelo meu transe; recomeçaria<br />
melhor! Mas eu... vivo.<br />
[Ela se detém, seu rosto fica fosco. Tula chega por trás e coloca a mão no ombro dela.<br />
Espelhada abaixa a cabeça.]<br />
TULA<br />
(para Espelhada)<br />
Você sabe que os rápidos cochichos são sobre seu ponto de vista. Seria<br />
pena? Todo o mundo está em cheque!<br />
TULA (cont.)<br />
(para a plateia)<br />
Fica muda a Espelhada, justo quando é sua hora!? Talvez seja melhor<br />
calar, tudo ficou dividido, vamos apenas pensar.<br />
[Vem uma ÓRFÃ e quita a imersão das já mencionadas mulheres, isso para dizer algo,<br />
quer apenas dialogar, vem com tanta garra. Vai e fala para as duas, brusca.]<br />
ÓRFÃ<br />
(gesticulando, para as duas e a plateia)<br />
Amigas... amigos, ouçam. Já foi, o quer que tenha passado, aconteceu e<br />
não podemos voltar atrás; imaginem que dá sim para repensar daqui para<br />
frente, há oportunidade, não estou certa? Países e governos eram<br />
reacionários, era assim, mas não quer dizer que não se possa lutar por<br />
aquilo que acham certo. Uma página foi virada. Existe muita vontade, e o<br />
clima, vocês sabem, é outro para tudo. Mesmo quando tiver um ou outro<br />
para meter o bedelho e dizer besteira na tua cara, sei lá, querendo estragar<br />
isso<br />
(pausa) É porque o indivíduo que não atinge certos níveis de pensamento<br />
é o que mais sofre, e aí repudia tudo o que vê pela frente, se enche de<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 50
motivos. Vocês viram que a ignorância é defeito do passado, por favor.<br />
Crianças, saibam que apenas uma pessoa faz tanta diferença, e olha<br />
quantas crianças estão aqui, muito mais que só duas, três. Ééé, e a falta<br />
(pausa) é mais sentida que o não... existir.<br />
Após tudo isso, cá estamos enfiados dentro de um buraco como há eras,<br />
sendo que a grande fera é a sentença, fogo e veias ensanguentadas da terra<br />
rasgada. É mole ou quer mais?? Não só isso, muito nos países era baseado<br />
nesse abismo, mas prevemos... e então já está extrapolado. Apenas nossa<br />
alma clama. Poxa, não devia nem existir isso de países, se somos tanto<br />
quanto uma rocha é para o planeta. Isso é falta de emoção, de empatia<br />
(pausa) Apenas... de não ter noção; um dia eu li que “somos um”, e como<br />
hoje eu entendo isso! Se estamos aqui é para entender um ao outro.<br />
[As três se abraçam e sentam no chão do palco. Entretanto, vem o ácido Moborg para<br />
acabar com essa demonstração de afeto.]<br />
MOBORG<br />
(fungando, para a plateia)<br />
Eu como sou um cidadão, rumk, deixo aqui meu direito de opinar. Assim.<br />
TULA<br />
(para a plateia)<br />
Moborg fala fungando quando quer ser valentão, Deus me livre!<br />
MOBORG<br />
(para Tula)<br />
Todo esse la la iá de sentimentalismo e tal é muito bonitinho mas<br />
ninguém sabe de como deu errado, eu duvido. De eras em eras uma ou<br />
outra civilização é erradicada pelo planeta. É o natural, é como uma<br />
ordem dada; cada geração tem sua existência e dá adeus; então, quem se<br />
esquece ou negligencia suas ações é engolido e surpreendido quando<br />
menos se espera<br />
(pausa) e... finda, visitado por engodos. Por isso pouco sabemos de tantas<br />
povos, muito mal lembramos dos nomes, como os lemurianos ou atlantes.<br />
Mas veja, essa é a sina. Isso é meio que a cadência, ou algo de estar nela.<br />
Apenas é nosso turno, aprumem-se!<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 51
ESPELHADA<br />
(para a Órfã)<br />
Ah tá. Já... ouvimos.<br />
[O comentário irrita ele. Moborg finaliza suas palavras com grito rasgado.]<br />
Aceitem!!!<br />
MOBORG<br />
(para as três)<br />
[Entra a bela CUYA, interferindo e chamando atenção. Entra também um APAVORADO<br />
em cena.]<br />
CUYA<br />
(para Moborg)<br />
Você é horrível, é o chato da galera, vive atento, um... um cara ainda<br />
urbanizado. Só isso!<br />
Vamos juntos!<br />
UM APAVORADO<br />
(para todos)<br />
Babaca. Some daqui.<br />
ALGUÉM<br />
MOBORG<br />
(defendendo, para todos)<br />
Eu sou realista. Este planeta e nós tivemos nossa vez, nos afastamos do<br />
Natural, é isso.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 52
ÓRFÃ<br />
(para Moborg)<br />
Por que ainda está aqui então? Ihh chatice.<br />
[Cuya está inquieta do outro lado, tão bela mas já bem desapontada. Seu rosto treme.]<br />
Não passa de um animal.<br />
CUYA<br />
(para Moborg)<br />
ÓRFÃ<br />
Não é porque tenha um cadinho de autoconsciência que é melhor que<br />
ninguém. Você é um apegado. Não seja tão idiota e presunçoso.<br />
ALGUÉM<br />
(rindo)<br />
Eita, a órfã ajuda no ataque ao chato!<br />
ESPELHADA<br />
(incrédula, para os outros)<br />
Não entendo como ainda defendem um boçal desses.<br />
MOBORG<br />
(fingindo surpresa, para Espelhada)<br />
Como? Não entendi nada.<br />
[Moborg vai ironizando, fica ali rindo e isso claramente aumenta o descontentamento dos<br />
outros. Tula sai do palco sem alarde, à direita.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 53
MOBORG<br />
(para a plateia)<br />
Que está havendo com as pessoas, deram para romantizar?? Pelo visto<br />
ninguém bebe nem se diverte.<br />
Vamos beber então!!<br />
UM APAVORADO<br />
(levantando uma garrafa)<br />
[Por ali, entram mais dois atores, o Pai e mais um, trata-se de JONH, ainda quieto. Ambos<br />
pela entram pela direita. Caminham conversando.]<br />
PAI<br />
(para Jonh)<br />
Toda essa baderna me deixou bem contrariado, Jonh, mas pensar que<br />
mesmo aqui carregamos ainda a discórdia, e que bate forte; isso é um<br />
alerta, e triste demais. Falta pouco mesmo e algo estoura de algum modo...<br />
desagradável; tão logo acabe o álcool e outras substâncias, muitos<br />
prontamente vão se arrebentar.<br />
Disse a minha Donatela uma vez que ‘Quem se parece conosco e nos<br />
compreende, não precisaria de cerimônias nem nada do tipo.’ Mas as<br />
pessoas aqui, essa gente quer mais disputas, a brincadeira é essa. Estão por<br />
fora, nem têm referências, tudo é repentino... tudo é casinho.<br />
[Por fim, o Pai faz uma pausa longa em sua linha de pensamento. Os outros atores estão<br />
como que paralisados com o que ele comenta. Também o Pai fica com o olhar distante.]<br />
PAI<br />
(desapontado, para a plateia)<br />
Daí vem a loucura, as ânsias, a falta de controle. Vejo o balançar das<br />
emoções, de humores, hunnf, a cada dia piorando.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 54
JONH<br />
(quebrando o silêncio, para o Pai)<br />
É um criadouro de imprevisibilidades; soma-se a tudo isso o fato de existir<br />
esse repúdio voluntariado ao dizer algo que afete.<br />
PAI<br />
(para Jonh)<br />
‘Quem não chega a certos níveis de pensamento é o que mais sofre’,<br />
interessante ouvir isso... aqui. Poxa vida, mas se não existisse coisa<br />
parecida! Nem bem termino de juntar essas palavras e já me vejo em mais<br />
discussões. De todo lado há embates.<br />
[As vozes do bar murmuram ao perceberem a entrada do Pai e Jonh. Alguém se adianta,<br />
passando por entre os atores; a próxima indagação portanto é dirigida ao Pai.]<br />
ALGUÉM<br />
E se prefere as referências parcas?? Pouco, seguramente. O que acha de<br />
tudo isso?<br />
Eu lá sei.<br />
PAI<br />
(penalizado, para a plateia)<br />
Aceita?<br />
UM APAVORADO<br />
(enquanto empurra um copo)<br />
Não bebo, mas agradeço.<br />
PAI<br />
(para o Apavorado)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 55
ALGUÉM<br />
Não bebe nada?<br />
PAI<br />
(para Alguém)<br />
Não é lá muito adequado, amigo. Logo agora que precisamos da mente<br />
limpa.<br />
[O Grisalho volta pela esquerda, está com ADORNO e Mofana. Ao rever Mofana,<br />
Moborg se precipita na conversa.]<br />
MOBORG<br />
(interferindo, para Mofana)<br />
Ele não só está sóbrio como sabe-se lá de qual maneira ficou quieto até<br />
aqui.<br />
PAI<br />
(para Moborg)<br />
Você não deve ter prestado atenção em mim, não faz mal.<br />
GRISALHO<br />
(defendendo o Pai)<br />
Vocês gostam de ficar com a boca cheia de palavrinhas, não é!?<br />
PAI<br />
(para os outros)<br />
Olha, ninguém me conhece e já estão adiantando o que falo ou não.<br />
MOBORG<br />
(para o Pai)<br />
Numa situação dessas era o esperado.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 56
GRISALHO<br />
(enfático, para Moborg)<br />
Acho que o futuro até já anda engolindo os que se desapontam, pondo em<br />
seus lugares, se encargando.<br />
MOFANA<br />
(saudando com um copo, para o Pai)<br />
Quem não se dá valor, ou melhor, alguém... como você.<br />
PAI<br />
Bem, com isso eu concordo. Satisfeitos?<br />
[O Pai perpassa os rostos dessas pessoas. Ainda assim, Mofana nem teve como continuar<br />
o raciocínio, foi logo interrompida com uma enxurrada de teores e asperezas exaltadas.<br />
Dizem muitas coisas os denunciantes do bar geral, Adorno é o primeiro deles.]<br />
ADORNO<br />
(incomodado, para todos)<br />
Pessoas que fazem questão, tchau para vocês; não são nem bem-vindas<br />
nem toleráveis. Na boa, isso de fórmulas, essas besteiras re-imitadas...<br />
acabam não?<br />
[Adorno está meio exaltadinho. Ele quer espaço empurrando outros para que o vejam<br />
aparecer. É prosaico demais, muitos riem dele na hora. Jonh aproveita a deixa e corta a<br />
fala de Adorno.]<br />
JONH<br />
(ágil, para todos)<br />
Porque vocês acham que pensam em apocalipse? A realidade do<br />
momento é muito ofuscante. É daí que preferem repensar! Solicitam uma<br />
hipótese para entender melhor. Tenta complementar, Adorno,<br />
trabalhávamos em uma loja, anteriormente. Lembra sim. Você nunca teve<br />
a menor chance.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 57
[Maitê reaparece repentinamente. Adorno ainda estava tão sem graça que nem consegue<br />
formular uma frase.]<br />
MAITÊ<br />
(interrompendo, para todos)<br />
Meu pai sempre nos disse: o mundo acaba pra quem morre. Tua vida, teu<br />
viver, é existindo. E já!<br />
Também.<br />
JONH<br />
(para Maitê)<br />
ADORNO<br />
(se refazendo, para Maitê)<br />
É como andam dizendo: não tem como se esconder, está aí, assino<br />
embaixo.<br />
JONH<br />
(para Adorno)<br />
Boa, já ajudou bastante, Adorno; falou e nada disse... se lascar.<br />
(tom) Isso lá é uma terapia? Ficou monótono. Continua Maitê, não vou<br />
muito com a cara do Adorno, a presença de alguém tão fraco não ajuda<br />
em nada.<br />
MAITÊ<br />
(indecisa, para Jonh e Adorno)<br />
Prefere o quê, então: entrar na fila calmamente ou cair na disputa? Olha,<br />
eu questiono mas não sei para quem é a pergunta.<br />
JONH<br />
(para Maitê)<br />
Então sua vista fica perdida. Melhor escolher um lado.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 58
[Interrompe a simpática LARES, que não via a hora de tantos bate-bocas terminarem.<br />
Depois comenta a dona que fora DIRETORA de hospital. Os atores falam rápido, é como<br />
uma troca de tiros.]<br />
Prefiro ser digna até o fim!<br />
LARES<br />
(indiferente, para a plateia)<br />
DIRETORA<br />
(para Adorno e Jonh)<br />
Que tal se observar um pouco mais e aprender a relaxar?<br />
Ih, que valentia.<br />
ADORNO<br />
(para a Diretora)<br />
JONH<br />
(rindo para a plateia)<br />
Adorno volta às palavras irritantes.<br />
[Levanta Moborg, já observou muito! Este sim precisa de poucas oportunidades para<br />
zombar. É sempre assim.]<br />
MOBORG<br />
(para todos)<br />
Que se explodam e morram. No fundo, é o desejo de todos aqui mesmo<br />
(pausa) Quem quer sair da gruta?<br />
LARES<br />
(para Moborg e a plateia)<br />
Eles quem? Já me perdi. Está falando de quem?<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 59
[Lares busca outros com o olhar. É um momento de profundo silêncio.]<br />
Quero vazar agoraaa!<br />
MOFANA<br />
(eufórica, para Moborg)<br />
[Mofana sorri se oferecendo para o Moborg e ele retribui as insinuações de Mofana. Os<br />
dois trocam olhares.]<br />
Que aviso, heim!<br />
LARES<br />
(para Mofana)<br />
MOBORG<br />
(para a Diretora e Lares)<br />
Quem se ferra é quem tenta meter o bedelho onde não é chamada, acaba<br />
é se sacaneando, aparecendo fazendo coisas ridículas e impensadas.<br />
DIRETORA<br />
(apontando o dedo para Lares)<br />
Eu, ãhn? Acho que se referia a ela somente, não?<br />
Gente, o que é isso??<br />
CUYA<br />
(para todos)<br />
DIRETORA<br />
(para Lares)<br />
É com isso que consegue se defender, Lares?<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 60
LARES<br />
(rebatendo, para a Diretora)<br />
Precisa desse tipo da trairagem mesmo, não é! Que te fiz, sua maluca?<br />
UM BUFÃO<br />
(gritando)<br />
Que espetáculo estar de pé com o vapor das bocas enchendo o ambiente.<br />
Adoro nesse calor vivo energizado!!!<br />
[Ele é ovacionado com as risadas dos atores, com exceção de Mofana, Adorno e Moborg.]<br />
Isso mesmo.<br />
DIRETORA<br />
(sarcástica, para o Bufão)<br />
LARES<br />
(para a Diretora)<br />
Vá se ferrar, vai, eu já fiz meus projetos de escapar sozinha. Estou farta.<br />
[A Diretora se ajeita dentro dela mesma.]<br />
BUFÃO<br />
(apontando para Moborg)<br />
Tão inesperado que foi ainda posso sentir o descontrole desconfortável<br />
em seus rostinhos, vai que isso para ele é felicidade.<br />
[O Bufão completa a frase e se vangloria levantando um copo. Maitê, Jonh e Cuya também<br />
erguem seus copos.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 61
DIRETORA<br />
(para o Bufão)<br />
Isso sim foi fora do comum, mas até que soa bem.<br />
[E ri a Diretora, por fim. Depois disso se dispersam. Apenas o Pai fica no palco.]<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
O que se vê aqui é da mesma desvalia que uma feira livre, isso pela<br />
mediocridade dos saltos e intuitos! Digo de coração: que pena!<br />
[Agora ele também deixa o palco, sai pela esquerda. Desce o pano ao som de uma música<br />
misteriosa.]<br />
FIM DO ATO SETE<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 62
ATO OITO<br />
[O pano sobre enquanto entra a projeção do bar, lá estar a senhora AFLIÇÕES, sentada<br />
em uma cadeira de frente para uma mesa; ela levanta o copo de destilado, joga o líquido<br />
todo para frente. Dessa forma, voa pelos quatro cantos do “bar”. Aflições soca o copo na<br />
mesa e o ressoar é ouvido com bastante ênfase. Então ela fala com a propriedade de sua<br />
idade. Maitê vem a seguir, da direita.]<br />
AFLIÇÕES<br />
(para a plateia)<br />
Melhor perder uma guerra que ser otária atrás de uma máscara<br />
acovardada ditada pelos outros<br />
(pausa) e nem mesmo saber o porquê. Esses são os homens de verdade,<br />
os de coragem e sem remorsos. Mas tem gente que acha que é mais<br />
cômodo lamber o saco de um imperialista ou outro, fazer o quê!? Vai<br />
morar de favor e lavar a privada deles.<br />
Poxaaa!! Preciso de um homem assim para me acompanhar... um que seja<br />
macho e tenha vida própria.<br />
MAITÊ<br />
(para Aflições e a plateia)<br />
Diversas pessoas ficam incógnitas, mas fazem pouco caso do que ela diz.<br />
São seus direitos, mulher.<br />
AFLIÇÕES<br />
(para Maitê)<br />
Você reflexiona, Maitê, é uma mulher desconhecida por muitos apesar de<br />
algumas falas, você havia se apresentado dizendo ser expatriada. Agora eu<br />
também.<br />
[Maitê sorri para Aflições. Entram Donatela, Nana e Magali, vindas da esquerda. Maitê<br />
acena para Nana. Todas se cumprimentam, e isso faz com que simpatizem entre si.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 63
AFLIÇÕES<br />
(para Maitê)<br />
Não entendo isso, sempre que tem uma discussão saudável começando,<br />
vem um outro desocupado... ou desocupada mental para ficar sacaneando<br />
os demais, desvalorizando.<br />
(pausa) Quando não jogando suas frustrações pensando que vão ficar com<br />
peninha. Vamos deixar esse Moborg e ao outros crescerem?<br />
[Aflições caminha a esmo. Entra o Pai pela esquerda, Nana corre até ele. Donatela sorri.]<br />
Oi, pai!<br />
MAGALI<br />
(sorridente, para o Pai)<br />
Oi, lindinha.<br />
PAI<br />
(feliz, para Magali)<br />
MAITÊ<br />
(para o Pai)<br />
Você é um dos poucos tranquilos por aqui, deve ser por causa dessa<br />
família linda.<br />
PAI<br />
(para Maitê)<br />
Te agradeço pelo elogio! Quanto aos outros, bem, não conseguem falar<br />
mais nada construtivo, dona. Muito me espanta tantas tonalidades aqui.<br />
[Depois Donatela, até então muda, resolve opinar de sua forma compassada. Enquanto ela<br />
fala o palco se enche de atores.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 64
DONATELA<br />
(para Maitê)<br />
Porque não vazam... mais fácil. Que acha, menina? Que voltem quando<br />
forem mais humanos, mais firmes, não umas... ratoeiras.<br />
[Sorrateiramente, começa o som de uma brisa, e em seguida há uma lufada contínua que<br />
empalidece todos os presentes daquele resquício. Ficam quietos ainda que seus corações<br />
batam forte. Ninguém mais pronuncia nadinha, apenas se entreolham.<br />
Uma criança chora nesse ínterim silencioso. Somente a criança chora, uma. Nana busca a<br />
voz dessa outra criança, ela está alguns metros à frente da plateia agora. Logo ela segura o<br />
choro, controla a respiração, olha para os lados e presencia o clima soturno criado para<br />
finalmente sorrir, contendo a emoção. Então ela vira para a mãe, questionando.]<br />
CRIANÇA<br />
(animada, para sua mãe)<br />
Mainha, tá vinu uma sombra, um moço ó!<br />
[E se esparrama a boazinha criança no colo da mãe. A menina ainda completa em tom de<br />
brincadeira.]<br />
É o vulto, mamã!<br />
CRIANÇA<br />
(para sua mãe)<br />
Quequem, filha?<br />
MÃE DA CRIANÇA<br />
(gaguejando, para a plateia)<br />
CRIANÇA<br />
(para sua mãe)<br />
O “Sombra do Deserto”, eu ouvi ele me avisanu.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 65
[A projeção muda para a visão de uma tormenta em um deserto. Chega “SOMBRA DO<br />
DESERTO” detrás da ‘multidão’ que toma o palco agora, ele passa com seu chapéu para<br />
baixo, ninguém vê seu rosto. Caminha lentamente e assim é dado a ele mais espaço para ir<br />
até o centro do palco, no meio das pessoas. Ali a maioria poderia ouvir.<br />
Ele não mais anda normalmente, se apruma, o corpo se ajeita ao mesmo tempo que fala.]<br />
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
Apelativo desse jeito, só surte o contrário.<br />
[Ele fala e solta um bocejo ao final.]<br />
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
A pronúncia é como um raio brando e abafado, como um vasto espasmo<br />
que de um lapso brilhou, e continua após a pausa respiratória. O planeta<br />
se retrai, é um período.<br />
Oi, sombra!<br />
CRIANÇA<br />
(para “Sombra do Deserto”)<br />
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
Oi, meu amigo! Seus pais também vão ouvir. O ser humano apenas ruma<br />
ao colapso, desde que descobriu que morre. Você morre, vive, é assim.<br />
[E gesticula no ar um corte. Depois “Sombra do Deserto” se detém mais uma vez, olha ao<br />
redor, meio que se espreguiça. Nem assim ninguém de lá viu sua expressão, mesmo que<br />
estivessem acompanhando tudo como se fosse um... ‘espetáculo’.<br />
Ele continua disparando, com todos tão atentos quanto no começo, ainda que bem<br />
confusos com essa aparição.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 66
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
Na verdade, tem raiva, ou certa inveja da Natureza, ao que renomeia tanto<br />
ao seu feitio, seu querer; mas a Natureza é perfeita, é real demais. Destruir<br />
e modificar é o único que consegue a grande fatia da humanidade; beleza<br />
e eternidade escapam de suas mãos.<br />
(pausa) Vêm catando designações e sobrepondo... Mas têm lá guardado<br />
remorso.<br />
Se dizem mesmo que o Conhecimento é a chave para qualquer existência,<br />
por que não fazem o que poderiam, então? Podiam, sim que podiam,<br />
como ainda podem. Mas deixam?<br />
A fera selvagem, em estado puro... e o ser humano, selecionado, aprendiz,<br />
ajudante. Humm. Abram os olhos! Suas mentes.<br />
Algo te compadece, sim.<br />
[“Sombra do Deserto” encosta uma de suas pequenas mãos no ombro de Magali.]<br />
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
Todos temos uma voz interior, saiba que você aí também.<br />
PAI<br />
(para Donatela)<br />
Com isso uma surdez passa, essas palavras ecoam nos pensamentos da<br />
gente da gruta.<br />
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para o Pai)<br />
Depois, congelado em um abafado instante, o compasso oculta quem<br />
acabara de falar; ouvimos todos um estalar abruto e agudo, como se fora<br />
oriundo de uma potente chicotada. Foi tão ríspido, repentino, que alguns<br />
caíram, outros ficaram bambeados; por fim se abaixam os humanos. Que<br />
susto! Devo sair.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 67
[Some “Sombra do Deserto” no meio das pessoas. A criança ri. E Cuya ri da criança.<br />
Magali olha o Pai um tanto séria.]<br />
Nooossa.<br />
DONATELA<br />
(maravilhada, para a plateia)<br />
Pois é.<br />
PAI<br />
(olhos paralisados, para a plateia)<br />
[Aflições interrompe de novo, quebrando o silêncio da falta que “Sombra do Deserto” já<br />
faz.]<br />
AFLIÇÕES<br />
(assustada, para os outros)<br />
Amigos, eu sou realista. A menos que chegue alguém, um outro grupo, ou<br />
um desses militares que ainda esteja rodando por aí, não temos salvação.<br />
(pausa) Vão acabar os mantimentos e morreremos de fome ou loucura, ou<br />
tudo junto... se matando, sei lá! Vamos subir?<br />
JONH<br />
(bem direto, para os outros)<br />
Ou ainda podemos seguir pela gruta, descer através da fenda.<br />
MÃE DA CRIANÇA<br />
(preocupada, para Jonh)<br />
Como assim, que isso!? Fenda? A gente veio cheio de crianças.<br />
[Um homem de feições comuns pede a palavra, seu nome é MALDONADO.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 68
Eu não acho má ideia.<br />
MALDONADO<br />
(para a Mãe da criança)<br />
A mim tampouco.<br />
UMA ADOLESCENTE<br />
(animada, para Maldonado)<br />
Eu começo amanhã.<br />
DIRETORA<br />
(para a plateia)<br />
Amanhã? Vamos logo!!!<br />
MALDONADO<br />
(para a Diretora)<br />
[Então a soma das vozes inflama Jonh, ele se movimenta para falar.]<br />
JONH<br />
(para Maldonado)<br />
Calma, galera. Vamos planejar isso, raciocinar um pouco, não é mais<br />
prudente apenas (...)<br />
MALDONADO<br />
(interrompendo, para Jonh)<br />
Nem dispomos de um... prazo, amigão.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 69
JONH<br />
(para a plateia)<br />
Eu sei, mas e se não tiver fim a descida? Sei lá, e se acaba nosso ar, água.<br />
Ou se aparece alguma parede à frente sem que dê para atravessar? Temos<br />
que raciocinar.<br />
MALDONADO<br />
(para Jonh)<br />
Que escolha tem, se aqui vai dar ruim também?<br />
JONH<br />
(conformado, para Maldonado)<br />
Se é assim, onde estamos é mais perto da entrada. Para cima ou para<br />
baixo, algo... vai cobrar a gente. Tem razão, vamos nos apressar.<br />
MALDONADO<br />
(ansioso, para Jonh)<br />
Você quer dizer que poderíamos facilmente localizar alguém.<br />
JONH<br />
(para os outros)<br />
Sim, ainda que isso seja apenas uma hipótese, como tantas. Se ficarmos<br />
distantes nenhum resgate poderia, é...<br />
MAITÊ<br />
(para Jonh)<br />
Ei, primeiro falam em subir, agora descer. Melhor escolher uma direção,<br />
tudo isso está muito confuso.<br />
[Vem correndo perguntando o alisado Mediador.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 70
MEDIADOR<br />
(ofegante)<br />
Mas não sairíamos??<br />
[Em seguida Aflições se afoba.]<br />
AFLIÇÕES<br />
(para Maldonado e a plateia)<br />
Lá fora!? É maldição? Os gases nos matariam.<br />
MAITÊ<br />
(para o Mediador)<br />
Também acho, é muito pouco provável que o clima tenha melhorado.<br />
[Voltam à fala o casal Mofana e Moborg, ela tentando parecer normal e ele criticando com<br />
a voz monótona.]<br />
MOFANA<br />
(para Maitê)<br />
Vocês viram como muitos morreram.<br />
MOBORG<br />
(para Mofana e Maitê)<br />
As meninas estão amedrontadas, eu sei.<br />
MEDIADOR<br />
(comenta baixinho)<br />
Meu Deus, mudam tanto de opinião.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 71
JONH<br />
(para o Mediador)<br />
Parceiro, logo nem ar você vai ter para respirar, quanto mais ficar<br />
balbuciando, só vai ter poeira, gazes, essas emanações. Tentamos o que<br />
temos à mão. De toda forma, já disseram, vai dar ruim! Deixa de ser<br />
mané.<br />
PESSOA 2<br />
(zombando)<br />
Vai ô caçatenção, vai te catar!!!<br />
[O Mediador não quer se abater mas está visivelmente contrariado. Do fundo do grupo,<br />
retruca um adepto da ideia de ir para fora.]<br />
Se ferre você aí.<br />
PESSOA 1<br />
(para Jonh)<br />
CUYA<br />
(apaziguando, para todos)<br />
Calma, pessoal. Segurem a onda.<br />
Deixa esse otário aí então!!<br />
PESSOA 3<br />
(para o Mediador)<br />
Ele que pense.<br />
MOFANA<br />
(para o Mediador)<br />
[Mofana como sempre coloca mais pilha! Moborg ri alto.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 72
PESSOA 2<br />
(para todos)<br />
É isso aí, vamos aêê. Perdemos é tempo papeando e bebendo!!!<br />
Vamos. Vamos, Júlio!!<br />
SENHORA DISTINTA<br />
Vãoboraaaa!<br />
PESSOA 3<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
E se agitam os seres. Querem o núcleo, talvez. Eu reflito um pouco mas a<br />
conclusão é enfática: “Se querem descer, que desçam.”<br />
HOMEM 5<br />
(para a irmã ao lado)<br />
Tá vendo, Carla. Quem disse que buscar tem fim, ou que achar só se<br />
encontra perto.<br />
MALDONADO<br />
(berrando, para a plateia)<br />
Eitaa, o último a sair que não deixe as luzes acesas!!<br />
MOBORG<br />
(para os outros)<br />
É a unanimidade, não sou eu não.<br />
Você não é leviano, querido.<br />
MOFANA<br />
(para Moborg)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 73
MALDONADO<br />
(para o Mediador)<br />
Se ele quer ficar e sofrer, deixa ele, é uma mula! Isso de orgulho pertence<br />
à categoria dos comportamentos descartáveis; sem isso, vive-se com muito<br />
mais dignidade. Digo mais, sem um chato desses, vamos é mais longe.<br />
Eu concordo com o moço.<br />
DIRETORA<br />
(para Maldonado)<br />
Eu também.<br />
MULHER FRANZINA<br />
(assentindo, para a Diretora)<br />
MOFANA<br />
(olhando para trás, para os outros)<br />
Esperem, todos merecem uma oportunidade. Levamos esse traste e lhe<br />
mostramos como é cooperar.<br />
–<br />
VELHA AVÓ<br />
(consentindo, para Mofana e os outros)<br />
Isso não seria ruim... e mais justo também; chamem meus netinhos, por<br />
favor!<br />
MEDIADOR<br />
(contrariado, para os outros)<br />
Mas eu não quero ir pela fenda nem caverna nem buraco algum. Adeus,<br />
eu me afasto.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 74
HOMEM 5<br />
(para a irmã)<br />
Quando acaba o respeito, desaba todo o que sobra de sustentação. Mais<br />
ninguém profere nada, apenas fita a gente com coleguismo.<br />
[A projeção muda enfatizando o interior da gruta. E vão saindo os atores do palco. Uma<br />
música cadenciada é tocada, depois de um tempo diminui de volume para que o Pai e os<br />
outros falem.]<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Um a um adentrando cada vez mais a fenda. Suas falas diminuem pouco a<br />
pouco depois de tanta falação. Os que ficam estão aliviados, é unânime,<br />
nem carecia de comentários. Mas que estranha essa sensação da saída dos<br />
outros, similar a uma... perda, é o que pensamos.<br />
[Noutro lado, mais pessoas papeiam próximas umas das outras. Aparecem pela primeira<br />
vez MARIENETE e a MENINA PEREIRA.]<br />
MARIENETE<br />
(para a Menina Pereira)<br />
Da nossa época nos encargamos nós, Menina.<br />
A gente fica, moço.<br />
MENINA PEREIRA<br />
(para Marienete e Jonh)<br />
[Jonh nem dá muita bola. Sua preocupação era com a descida, queria recrutar mais gente.<br />
Ele aumenta o tom da voz.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 75
JONH<br />
(para os outros)<br />
Alguém mais vai? Vamos lá, para que nossa distância não seja muita.<br />
JONH (cont.)<br />
(baixinho)<br />
“E também porque muitos não sabem andar nesse tipo de terreno”.<br />
PAI<br />
(compassivo, para Jonh)<br />
Pode ir, rapaz. Faz o que teu coração manda.<br />
JONH<br />
(vagamente, para o Pai)<br />
Ah é!? Nós vamos caminhando então.<br />
Até mais, Jonh!<br />
MENINA PEREIRA<br />
(se despedindo)<br />
“Até para vocês também”.<br />
JONH<br />
(baixinho)<br />
MENINA PEREIRA<br />
(para a plateia)<br />
Algo ecoa na sua mente nesse ínterim, e você some de vista, Jonh. Foi<br />
mais uma de suas frases não proferidas, talvez.<br />
[Sai Jonh com os outros, finalmente. Logo após isso o Mediador trata.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 76
MEDIADOR<br />
(para o Pai)<br />
Ao fundo ou na superficialidade, dá na mesma, se o resultado vai ser estar<br />
mais longe de qualquer luz, assim para quem desvia a atenção, mesmo<br />
tendo tanto valor espiritual; por isso mesmo cada vez mais nos afastamos<br />
de qualquer elevação. É fato que gostam de estar para baixo. A ruindade<br />
está por aí, meu caro.<br />
[E se detém o Mediador, contemplativo, visto que muitos acompanhavam o que dizia,<br />
inclusive Donatela, já meio desperta. Ela também observa a conversa paralela de dois<br />
homens, um GENRO afobado e seu SOGRO.]<br />
GENRO<br />
(para o Sogro)<br />
Não entro nessa doidera nem levo junto minhas crianças, são inocentes.<br />
SOGRO<br />
(querendo entreter, para o Genro)<br />
Até que enfim você está certo.<br />
Há sempre escolha.<br />
MENINA PEREIRA<br />
(simpática, para os dois)<br />
DONATELA<br />
(arrematando, para eles)<br />
Há sempre diferenciação altruística!<br />
SOGRO<br />
(para Donatela)<br />
Tem é gente disposta. Isso salva.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 77
[Muitos sorriem com gosto para o Sogro e sua positividade.]<br />
GENRO<br />
(traquina, para todos)<br />
Quem quer continuar gozando dessa vida?<br />
[E riem e se coram muitas daquelas pessoas que decidiram ficar na gruta.]<br />
Que dia, que dias!<br />
MENINA PEREIRA<br />
(sorridente, para todos)<br />
MEDIADOR<br />
(hesitante)<br />
Talvez possamos retornar para a superfície, enviar um sinal de socorro,<br />
talvez.<br />
DONATELA<br />
(se animando, para todos)<br />
Não sabemos muito, mas... quem sabe, não é!?<br />
MEDIADOR<br />
(para Donatela)<br />
Aconteceu tanto troço que ficar se explicando ofusca! Mas está aqui, o que<br />
sei, o que aprendi.<br />
[E se cala de vez o tal Mediador. O Pai estende a mão para o Mediador, e eles selam o<br />
acordo.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 78
PAI<br />
(para o Mediador)<br />
Não se culpe, isso é o inevitável... Apenas tenho uma curiosidade, só para<br />
saber o que pensam. Lembram do vulto de “Sombra do Deserto? Mas<br />
cadê aquele senhor que veio e falou daquela forma???<br />
[Cuya e a criança se entreolham. Magali tem o olhar perdido. Saem do palco o Mediador,<br />
o Pai e sua família, a menina Pereira, Cuya e a criança, o Grisalho e o Genro e seu Sogro.<br />
Uma junção de amigos que cochichava atrás deles agora tem a palavra, seu pé atrás não<br />
chega a superar tanta descrença. Eles concluem a seguir, chegando para a borda do palco.]<br />
PESSOA 6<br />
(para a plateia)<br />
Parceiro, vou te dizer... essas questões, essa palhaçada que tocamos, acho<br />
ser a introdução. Sei lá o que me diz, e não sai da cabeça, que ainda vem<br />
mais, e mais. Eu tenho isso de<br />
(tom) intuição, de verdade, não é papinho.<br />
PESSOA 7<br />
(para a Pessoa 7)<br />
Eu posso imaginar, tenho também essas, digamos, impressões!<br />
E quem não?<br />
PESSOA 8<br />
(para os outros)<br />
PESSOA 6<br />
(para os outros)<br />
A amplitude da existência da gente nos aturde... ninguém é pouco.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 79
PESSOA 8<br />
(para todos)<br />
Óbvio, amigos!<br />
PESSOA 7<br />
(para a Pessoa 6)<br />
Vamos segurar a pipa e ver no que dá.<br />
PESSOA 8<br />
(para a Pessoa 7)<br />
Eu também não acho que seja a hora de agir não, hem.<br />
PESSOA 6<br />
(para os outros)<br />
É, é. Esses ali são é bem apressadinhos. A velocidade das coisas não é essa<br />
não. Já viram que a galera que desceu é da mesma categoria dos que<br />
deram uma mãozinha à sacanagem com o planeta.<br />
É bem provável.<br />
PESSOA 7<br />
(para a plateia)<br />
[O grupo sai de fininho, apenas a jovem que conheciam como JULIANA fica de fora. Ela<br />
ouve mas não dá bola, ficou quieta. Está sozinha no palco agora. Isolada, Juliana reflete.<br />
Uma música calma começa.]<br />
JULIANA<br />
(prosaica, para a plateia)<br />
“Se pela existência o prazer induz, por que não vivê-lo!?” Sim, eu como<br />
tantas aqui sinto saudade das facilidades da nossa vida anterior; acreditem<br />
ou não mas é do cotidiano que gostávamos!<br />
Entrementes, observo minha própria mão segurando uma taça de vinho.<br />
Ao meu redor, o caos de vozes no bar geral das bebidas que... sobraram.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 80
Porém, eu me aquieto! Sair daqui para não ficar besta é só o que quero.<br />
Aff.<br />
Ou seria melhor ousar em sedativos voluntariamente do que me deixar<br />
viciar por uma vidinha pouco funcional, de aparências e valores que nem<br />
mesmo sei o que quer dizer?<br />
(pausa) Ahhh, é verdade que uma hora ou outra um tanto disso vai<br />
importar... são as decisões! A minha é a mudança.<br />
Sei em meu íntimo que essa tolice de casinha foi bem inútil, e que novas<br />
oportunidades podem aparecer, desde que a intuição flua. Eu havia<br />
tentado. “Para aonde ir, para cima, baixo? Que dúvida!”<br />
[Entram duas jovens no palco, vindas da direita. Passam abruptamente esbarrando em<br />
Juliana. As jovens estão batendo boca, andam rápido, de uma ponta a outra do palco.<br />
Juliana está no meio, ouvindo... surpresa.]<br />
JOVEM 1<br />
(para a Jovem 2)<br />
(...) frase imbecil e reacionária essa aí. Não tem o que discutir se há<br />
ignorância. Que presteza!<br />
JOVEM 2<br />
(para a Jovem 1)<br />
Tinha que ser um tipinho mesmo, você ouviu aquilo?<br />
[Uma delas se surpreende. A jovem da frente é perseguida pela de trás, que vira o rosto<br />
para falar.]<br />
JOVEM 1<br />
(para a Jovem 2)<br />
Pior que não é mentira, rola mesmo... as pessoas não sabem mais quem<br />
são, buscam perfis, estereótipos. Tenho que admitir que sem Internet e<br />
redes sociais fica mais fácil, mais, ai... palpável!<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 81
JOVEM 2<br />
(para a Jovem 1)<br />
É só a gente, amiga. Tudo cara na cara.<br />
JOVEM 1<br />
(para a Jovem 2)<br />
Está na hora de nos voltarmos para dentro.<br />
Pois é, e parar e se entender.<br />
JOVEM 2<br />
(para a Jovem 1)<br />
[Juliana todavia observava as duas figuras indo embora e sorri.]<br />
JULIANA<br />
(feliz, para a plateia)<br />
Na minha memória eu ainda escuto a canção que mais me tocou até hoje,<br />
era a mesma emoção desde que me apaixonei pela primeira vez, e<br />
também a mesma desde que soube rir com facilidade; que energia eu<br />
senti! Foi bom relembrar. Como um beijo <strong>técnico</strong>!<br />
JULIANA (cont.)<br />
(mãos no rosto, para a plateia)<br />
Eu danço em seus pensamentos, envolta como que em nuvens e odores<br />
dóceis! Me perco.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 82
JULIANA (cont.)<br />
(dançando, para a plateia)<br />
Imaginem muitas paisagens, desgastes, movimentos, sustos, olhares e<br />
diversidade de gente; é assim a profusão de pensamentos dos seres<br />
humanos lá embaixo. Cada um emitindo suas vibrações. Vejam vocês<br />
também! Ainda não viram? Daqui seguimos tateando pelas consequências<br />
da crise separatista que muitos apelidaram de “O curso”; “O curso através<br />
de nós mesmos.” E a densidade reina, pesa principalmente para os que<br />
escolheram descer através da fenda.<br />
[O pano desce enquanto Juliana dança em sua paz.]<br />
FIM DO ATO OITO<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 83
ATO NOVE<br />
[O pano sobe e “Sombra do Deserto” vem do fundo do palco para a borda. Não há nem<br />
música ou projeção.]<br />
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
Esse ambiente é turvo, como uma manhã sem graça em começo de dia<br />
ofuscado... como um fim de ciclo. Mesmo assim, aparecem as aliadas<br />
Ágata, Ária e Ama, são lindas cada qual sua singularidade e marcas. Estão<br />
concentradas. Não sabemos ao certo de onde vieram, mas o que fazem é<br />
sentido em todos os cantos. Cantam elas, em sentimental mas potente<br />
uníssono. Fiquem, e ouçam!<br />
[“Sombra do Deserto” se recolhe enquanto entram ÁGATA, ÁRIA AMA em longas<br />
túnicas brancas. Elas se direcionam também bem perto da plateia e cantam.]<br />
ÁGATA, ÁRIA, AMA<br />
(juntas, para a plateia)<br />
“Cansa andar sem tudo ver, cansa dizer e nem fazer.”<br />
[E depois retomam com um aspirante coro.]<br />
ÁGATA, ÁRIA, AMA<br />
(juntas, para a plateia)<br />
“Ahhhhhhh.... ÓÓÓÓÓÓóóó...”<br />
[Aquietam-se, as três respiram. Aquela fora apenas a introdução. Levantam as mãos para<br />
o alto. Fala Ária, posicionada no meio delas.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 84
ÁRIA<br />
(emocionada, para a plateia)<br />
“Pelo desespero que nos equipara desde um prosseguir animalesco; no<br />
adeus de cada dia, especular-se.”<br />
[Prontamente, Ágata sentencia recitando mais uma poesia por quem queira.]<br />
ÁGATA<br />
(enigmática, para a plateia)<br />
“Estou, passo. Este que enxergam é um tipo de purgatório! Mas sou parte<br />
do pó, me misturo, reviro, renasço. Nós humanos nutrimos<br />
confidencialmente o que há de divino na dúvida. Seria lamentar,<br />
acreditar? Toda vez que sou pó, eu implico.”<br />
[As três moças se juntam em círculo e de mãos dadas pedem em oração! Ágata roga pelas<br />
três e por todos os viventes.]<br />
ÁGATA<br />
(esperançosa, para a plateia)<br />
Aqui estamos todas pensando no próximo. Quem é vivo apareça, há essa<br />
comoção!<br />
[Assim completa Ama, que finalmente dá o ar da graça com sua voz musical.]<br />
AMA<br />
(sorridente, para a plateia)<br />
Porque amamos. Disso não há dúvida.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 85
[Na sequência as três fazem outro “Ahhhhhhh.... ÓÓÓÓÓÓóóó...” que ecoa tão forte a<br />
ponto de ser escutado por toda parte. Depois elas deixam o palco com sua leveza; “Sombra<br />
do Deserto” sai a seguir.<br />
A projeção é finalmente acionada mostrando a descida pela “gruta”, ainda que na verdade<br />
os atores andem em ziguezague pelo palco. À direita, em outra perspectiva, levanta a voz o<br />
Sr. ROUCO, um homem já de idade. Sua fala é endereçada aos outros que como ele<br />
descem pela fenda, são atores que até então não haviam aparecido mas que agora seguem<br />
com Jonh e os demais ‘descendo’.]<br />
ROUCO<br />
(preocupado, para os outros)<br />
Caros, amigas, crianças, ouçam! Este é o alerta dos divinos. Não há um só<br />
na gruta que não tenha entendido! O desconhecido nos forneceu a<br />
discórdia, tanto nos esbaldamos... mas nesse instante é preciso orar.<br />
Vamos nos juntar e rezar!!<br />
JONH<br />
(ríspido, para o Rouco)<br />
Ihhhh, não vai ser rezando que vamos resolver. Quem vai nos tirar dessa?<br />
[Jonh censura o Rouco mas o ancião não se abate. O GENTIL observa até ter a sua<br />
oportunidade de opinar.]<br />
ROUCO<br />
(para a plateia e depois Jonh)<br />
Deus nos guiará, apenas Ele... Você devia saber!<br />
GENTIL<br />
(para o Rouco)<br />
Temos que sair daqui já, ou vamos morrer de fome, é preciso buscar<br />
alimentos. Só temos que continuar! Eu acredito que é o que Ele quer.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 86
JONH<br />
(agitado, para o Gentil)<br />
Não há mais tarde, desculpa completar sua frase, Gentil.<br />
Vamos descer!<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(gritando, para todos)<br />
AFLIÇÕES<br />
(para os outros)<br />
A baixinha está certa, não vai demorar para matarmos uns aos outros.<br />
JONH<br />
(avisando, para os outros)<br />
Sabemos que seria rápido. Mas não podemos perder o foco.<br />
JOVEM BARBEADO E LIMPO<br />
(gritando, para os outros)<br />
Não esqueçam de Deus, e da concórdia!<br />
ROUCO<br />
(intercedendo, para os outros)<br />
O Supremo. Nosso Deus! É a hora que mais precisamos de fé.<br />
Poupem o ar!!<br />
MOFANA<br />
(irritada, para os outros)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 87
[A Baixinha se esforça para olhar para Mofana depois dessa critica. Uma analisa a outra<br />
enquanto caminham.]<br />
ROUCO<br />
(para o Jovem)<br />
Tudo bem, também falei de Deus para elas mas não surtiu efeito, já me<br />
arrependendo de fazer o trajeto com tantos descrentes.<br />
JOVEM BARBEADO E LIMPO<br />
(para o Rouco)<br />
Talvez ser Deus seja o maior desejo humano... ser Ele, tal qual.<br />
ROUCO<br />
(completando, para o Jovem)<br />
Como não é, ou não o entende, repudia... e zomba.<br />
ROUCO (cont.)<br />
(respirando fundo, para os outros)<br />
Mas apesar disso, somos mortais na lei. Vamos nos unir. Por favor, não<br />
desçam ao abismo. Sinto que nos equivocamos. Ainda temos tempo<br />
Cala a boca, pregador.<br />
AFLIÇÕES<br />
(irritada, para o Rouco)<br />
[Aflições grita cortando relações; depois ela dá meia volta e então se move para frente para<br />
o Sr. Rouco. Está nervosa, é bruta no que diz.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 88
AFLIÇÕES<br />
(para o Rouco)<br />
Você é melhor que a gente?? Vai, diz. Não deixa eu ter que te bater,<br />
beleza? Te arrebento se continuar tentando nos impedir.<br />
MOFANA<br />
(para Aflições)<br />
Nossa, você mudou tanto. O que houve?<br />
Perdemos é tempo!<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(para Aflições)<br />
[A Baixinha fala como se apoiando a decisão de Aflições. Mofana encara as duas.]<br />
MOFANA<br />
(para a Baixinha e Aflições)<br />
Com esses valores parcos, só se vislumbra mais fiasco.<br />
MALDONADO<br />
(lamentando, para Jonh)<br />
Daqui não parece legal, nem batido. Será que valeu a pena, Jonh?<br />
[Jonh olha para Maldonado de forma indecisa. O Sr. Rouco fica parado enquanto passam<br />
por ele, imóvel no palco. Eles caminham mais e mais sem nada falar com ele, um a um<br />
saindo do palco pela direita, exceto o Sr. Rouco e o Jovem. Mesmo assim é possível notar<br />
“Sombra do Deserto” enquanto passa novamente pelo cenário e observa de um lado os<br />
remanescentes saindo; a seguir ele vai um pouco à frente, de frente para o público.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 89
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
Posso enxergar já longe o grande número dos participantes que desceram.<br />
Eu ainda reconheço o Sr. Rouco e o Jovem voltando de sua descida<br />
arrependida.<br />
Um pouco mais abaixo, ouvimos as discussões do povo peleando. Suas<br />
pauladas ascendem na forma de analogias, ofensas, e baixezas.<br />
[O Sr. Rouco enxerga “Sombra do Deserto” e vai na direção dele, também de frente para<br />
o público.]<br />
ROUCO<br />
(para a plateia)<br />
Eu solto no ar para que “fujam do eu, do mim, de todo narcisismo ignóbil<br />
que ainda sequela a raça. Se o que é Raça, meus caros!? Mera ignição.<br />
Chegará o dia de seu aprendizado.”<br />
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para o Rouco)<br />
Sua voz é como um sopro, irmão, quem sabe por quanta gente pode<br />
aquiescer!<br />
[“Sombra do Deserto” dá um leve sorriso e se esgueira pela escuridão da esquerda do<br />
palco, sempre atento. O Jovem Barbeado e o Rouco deixam o palco pela direita. O palco<br />
por um tempo fica vazio. “Sombra do Deserto” retorna.]<br />
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
Justamente à frente do grupo que desce, como um pelotão de soldados<br />
batedores, há uma garotada que papeia e dá goladas certeiras... segundo<br />
especulam. Uns falam, outros escutam; uns têm nomes, outros não.<br />
Entendam vocês mesmos.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 90
[“Sombra do Deserto” se senta no palco para ouvir três jovens chegando pela esquerda,<br />
são eles MARLENE, PÍO e o MIADO.]<br />
Virados! Brinda aê.<br />
MARLENE<br />
(incitando, para os outros)<br />
PÍO<br />
(para a plateia)<br />
Mesmo que num grande acabar de mundo, a festa, é!!<br />
A celebração!<br />
MIADO<br />
(cortando, para Pío)<br />
PÍO<br />
(para os outros)<br />
Bora celebrar, curtir a desgraça se aproximando. Achamos isso maneiro.<br />
MIADO<br />
(para os outros)<br />
Vocês parecem felizes, eu hein.<br />
MARLENE<br />
(para os outros)<br />
Tanto que chegamos a ponto de desistir de inovar<br />
[Subitamente Marlene fica muda na atmosfera pesada de sua divagação.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 91
PÍO<br />
(para Marlene)<br />
Que houve, filhona? Perdeu a fala?<br />
Ihh, lá se vai o brinde!<br />
MARLENE<br />
(para a plateia)<br />
Não, ela esqueceu o script!<br />
MIADO<br />
(para Pío)<br />
PÍO<br />
(gargalhando, para a plateia)<br />
Desde quando vivia no bairro, a fofoqueira da galera.<br />
[Muitos riem de Marlene. Só que ela retoma a palavra rapidamente.]<br />
MARLENE<br />
(para a plateia)<br />
Acho que essa situação de perdoar, perdoar-se, é o mínimo. Mesmo que<br />
nossas... desculpas não tragam nada de volta!<br />
PÍO<br />
(para Marlene)<br />
Já eu acho que devia se colocar melhor, Marlene. Aquele sujeitinho ali, o<br />
que se afastou, esse pastorzinho Rouco, para variar (...)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 92
MARLENE<br />
(para Pío)<br />
Fica na tua você, Pío. Grandes abusos, hein... também tá nessa, seu<br />
gentinha!<br />
PÍO<br />
(para Marlene)<br />
Você é pesadinha, sabia? Nem me deixou completar a frase. Respira, vai!!<br />
MARLENE<br />
(para Pío)<br />
Não sou tua parente, seu lokeiro!!<br />
MIADO<br />
(sussurrando, para a plateia)<br />
Ajudar é também não atrapalhar.<br />
PÍO<br />
(para o Miado)<br />
Melhor você também não se intrometer.<br />
MIADO<br />
(com trejeitos, para Pío)<br />
Ah Pío, irônico como sempre, porém só escarra e cospe no chão em sinal<br />
de desagrado. Esse solo já fora limpo um dia antes da vinda desse tipo de<br />
‘civilidade’, e a atitude de Pío reforça a interferência predatória dessas<br />
pessoas. Ele ainda é audacioso em sua última declaração, agora dirigida à<br />
Marlene: “Você se descontrolou, mulher.”<br />
[Marlene ri, depois Pío também, balançando o rosto. Logo, “Sombra do Deserto” se<br />
levanta e enxota os três para fora do palco, à direita. Ele volta sozinho e fala ao público, na<br />
borda.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 93
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
Não muito atrás ouvimos passos, depois ruídos de pedras deslizando,<br />
murmúrios. De repente um susto, era a única situação capaz de deter<br />
aquelas discussões tolas ao redor. É um acidente, e ele veio para a jovem<br />
Ella; cheia de vida... mas tropeça e sente seu corpo se quebrando.<br />
[Entra a coadjuvante que interpreta a jovem ELLA e se atira no palco, inerte.]<br />
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
Caiu logo pertinho dali da consciência de cada um. Está pelo chão, mas a<br />
jovem ou a consciência? Ella fala aos prantos, e nesse intervalo é<br />
encoberta pelo descaso de outra aglomeração chegando. Ella entendeu<br />
por fim que ninguém quer se dar ao trabalho de ajudar ninguém; pelo<br />
menos é realista; jovem mas realista. Adverte: “Alguém me... me deu um<br />
tapa no rosto... que me acertou a direita. Eu lhe ofereci o outro lado, a<br />
esquerda; para que se possa... igualar.” E o rosto tomba. A descida é tão<br />
lasciva para alguns, principalmente para os solitários. Fecha-se então um<br />
período para a jovem Ella, para todo mundo, perdem um tempo que<br />
passa. Foi a primeira baixa ali.<br />
[Retornam à cena Ama, Ária e Ágata, vindas da esquerda, e ficam ao lado de “Sombra do<br />
Deserto”.]<br />
AMA, ÁRIA, ÁGATA<br />
(juntas, para a plateia)<br />
“Qual atual estágio da Humanidade? Fraco, insuficiente?”, nós recitamos,<br />
nós contemplamos. “Se outrora fomos virtuosas e espiritualizadas criações,<br />
qual seria a razão da imaturidade?”<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 94
AMA, ÁRIA, ÁGATA (cont.)<br />
(ainda para a plateia)<br />
Buscamos a magna Fraternidade, dizemos mais uma vez juntas, temos as<br />
vozes infladas de tamanha inocência, nosso sibilar é da mais pura vibração.<br />
Vocês entenderam, não é!?<br />
[Elas se abraçam. “Sombra do Deserto” abaixa a cabeça. Desce o pano.]<br />
FIM DO ATO NOVE<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 95
ATO DEZ<br />
[Abre o pano e “Sombra do Deserto” já está no palco, ele fala da beirada, pertinho do<br />
público. Não há música ou projeção alguma.]<br />
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
Foram os batedores, seguidos de Aflições, Jonh, Mofana, Moborg, a<br />
Baixinha divertida entre outros os que mais desceram pela fenda em<br />
sequência. Tinham palpites e caminhavam se esgueirando e falando<br />
besteiras para passar o tempo, ainda que o ar fosse ficando cada vez mais<br />
débil. Pegamos o gancho de um assunto qualquer deles ali, começando<br />
por Jonh.<br />
[Sai “Sombra do Deserto” pela esquerda enquanto entram os demais atores pela direita.<br />
Nesse momento, a projeção volta trazendo ângulos diferentes da gruta e seu relevo. Os<br />
atores entram ziguezagueando pelo palco.]<br />
JONH<br />
(para o Gentil)<br />
Te digo, Gentil, no meu país não é tão diferente assim, há tanta falta de<br />
bom gosto quanto existe de sobra muita farra... com jogos e diversões. Se<br />
esbaldam em licores e cantam e dançam até que o amanhã seja outro dia;<br />
por qual motivo se preocupar com o passado e com o que já foi iniciado,<br />
não é? Isso aí. É o que raciocinavam. E já é muito, já que nem saem do<br />
automático!<br />
Saíam, quer dizer... eu friso.<br />
GENTIL<br />
(sorridente, para Jonh)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 96
JONH<br />
(ainda para o Gentil)<br />
É... uma organização de-qualquer-forma, ou do-jeito-que-dá, enfim.<br />
[Gentil não gosta muito da opinião de Jonh, ele se agita para retrucar.]<br />
GENTIL<br />
(para Jonh)<br />
Ah tá, bem... a população... sem seus brinquedos e distrações, sem sua<br />
belezas e esculturas naturais, e hoje também sem uma fauna e flora ricas...<br />
pois é, está é perdida! E aí, vai e pede auxílio e empréstimos, não formula<br />
nada, apenas recria, pega as migalhas da sorte. Da medida que vier, da<br />
forma que for e está bom; assim também pensa o miserável que com um<br />
gole d'água se satisfaz e dorme. Amanhã é outro diaaaa, vai saber se é o<br />
que pensam.<br />
(pausa) Desejam consideração e risos, esperam voltar às próprias ocas de<br />
concreto, ou a conjecturar a próxima moda da vez.<br />
Leis? Hunf. ‘Dá igual’ é seu livro. ‘Pensar’, ‘filosofar’, isso tudo é<br />
bobagem. ‘Ser vai para cadeia, ‘matar vai para cadeia, ‘pedir vai para<br />
cadeia... mas ‘comprar te livra, ‘usurpar, despista, ‘reclamar te redime, e<br />
‘ter... é fé.<br />
Borra e ofusca você, Jonhhhh, você um cidadão demasiado suspenso por<br />
opiniões<br />
(tom) toleráveis.<br />
JONH<br />
(surpreso, para o Gentil)<br />
Cara, tu é muito ousado! Até parece que você não é cidadão de algum<br />
lugar. Acho que nem entendeu o que quis dizer<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 97
GENTIL<br />
(nervoso, para Jonh)<br />
Me deixa continuar, já te vi falando muito; se tiver que faltar o ar, que seja<br />
por este alívio, pelo menos eu falo em meu nome e por muitos dos que<br />
me compadeço.<br />
Nessas suas bancas de escritos, se vendiam manuais e mais manuais, os<br />
livros estilo fórmula chamados de autoajuda. Estou mentindo? Hein,<br />
abastado? Eu conheci!<br />
[O Gentil passa os olhos pelos demais já mudos e atentos. Muitas outras cabeças se<br />
voltavam com curiosidade para o que ele dizia. Gentil se enche de vontade.]<br />
GENTIL<br />
(para a plateia)<br />
Não precisa muito para delinear o quanto as pessoas “buscavam uma<br />
satisfação sem limite, quer de um prazer que não se renova pedindo, quer<br />
do que vier; têm no prazer apenas consolo rápido.”<br />
Emoldurar a face te exausta, Jonh? Você e os psicólogos dos governos!!<br />
Dizem ‘apenas relaxe, deixa acontecer.’ Contextualizam que todos temos<br />
lá nosso momentinho de estrela, mas é para distrair a gente. Quem sabe,<br />
não é mesmo!? Quem sabe o de amanhã se não planejamos? Como e do<br />
que se libertar para qual talvez!?<br />
Digo que também se servem da propaganda, e dos valores apenas<br />
monetários; não é difusa sua obsessão por todo esse lucro absurdo, então?<br />
Mas por que eu digo isso, por raiva, rancor? Não, mas por medo do que<br />
mais um alucinado pode trazer para a gente. Se eu penso em continuar<br />
vivo... é para melhorar. Quem quer retornar às demarcações? Eu quero<br />
sobreviver, voltar a viver bem, quem mais?<br />
JONH<br />
(acuado, para a plateia)<br />
Eu não invento nada, juro, mas sou um pouco culpado, eu sei, não precisa<br />
relembrar... já sabem, todos nós somos sedentários das cidades.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 98
UMA IDOSA ANGUSTIADA<br />
(para Jonh)<br />
Fica na tua, rapazinho, nem eu me imaginava aqui nesse estado ainda em<br />
vida, aderindo a isso; não imaginava nada mais para esta existência, diga-se<br />
de passagem; quem sabe para outras, não é!? Mas estou de pé, segurando<br />
minha bolsa. Aqui e decidida.<br />
GENTIL<br />
(para a idosa)<br />
Que é, então, como se resumir por todos? Que fazem as crianças quando<br />
não choram? Chamam atenção?<br />
SAULO VIEGAS<br />
(para Jonh)<br />
Ué, eu sou de lá também de onde ele veio. Deixa o cara. Tudo bem,<br />
conterrâneo!?<br />
JONH<br />
(para Saulo)<br />
Opa, tamos indo, né. Enguicei não.<br />
Somo demais.<br />
SAULO VIEGAS<br />
(fazendo de infantil, para Jonh)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 99
AFLIÇÕES<br />
(se intrometendo, para Gentil)<br />
Mas é claro, você até está certo, seu Gentil. Quem nunca ouviu aquela<br />
propaganda? “Vai cruzar? O governo dá preservativos. Já copulou? O<br />
governo oferece a pílula do dia seguinte. Teve criança? O governo manda<br />
uma bolsa família que dá<br />
(tom) para o gasto. Resolveu virar bandido e foi em cana? O governo te<br />
afaga com uma cela e barriga cheia. Todo presidiário com filhos tem<br />
direito a um auxílio de tanto ‘por filho’. Agora experimenta estudar e<br />
andar em uma linha honesta para ver o que é que te acontece!”<br />
JONH<br />
(complementando, para Aflições)<br />
“Se você é um desses sedentários”, eles perguntavam na chamada da<br />
propaganda.<br />
SAULO VIEGAS<br />
(para o Jonh)<br />
E como isso não deu ruim até hoje???<br />
SELENA<br />
(desaforada, para todos)<br />
Como não deu? Onde estamos, retardado!? Tá tudo ligado, parceiro.<br />
AFLIÇÕES<br />
(para Selena)<br />
Ihhh. Se intromete que uma beleza, perde a paciência e o decoro.<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(intercedendo, para todos)<br />
Ah, povo otário. Tudo é bolsa, tudo tem que ter auxílio. Justamente para<br />
calar a boca das pessoas, acomodá-las... a deixar mais e mais em um<br />
labirinto de mi-no-rias oprimidas.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 100
SAULO VIEGAS<br />
(para a Baixinha)<br />
Isso é o que foi mostrado para a gente, né, imagina o que não rolou que<br />
nunca chegou aos ouvidos dos normais!<br />
[Saulo pensa em algo a mais para falar, fica a impressão de que lembrou de algo importante<br />
que fora deixado para trás. Ele hesita.]<br />
SAULO VIEGAS<br />
(olhar perdido, para a plateia)<br />
“Como as pirâmides reveladas... Vocês viram quantas pirâmides<br />
apareceram pelo planeta depois dos terremotos?”<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(para Saulo)<br />
Pois é! Se isso não for levado em consideração, sei lá. Eu também ouvi<br />
muitas notícias falsas naquela época.<br />
SELENA<br />
(para Saulo e a Baixinha)<br />
Existem muitos mistérios e poucos exploradores, isso sim.<br />
AFLIÇÕES<br />
(para Saulo)<br />
Você está se surpreendendo demais!<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(aludindo, para Selena)<br />
É muita volta! O lanche feliz nosso que somos obrigados a ver todo dia, o<br />
que deixamos acontecer... nos fartamos.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 101
Mesmo assim, eu voto por<br />
JONH<br />
(querendo expor para todos)<br />
[Entretanto, antes que ele possa terminar, brota Mofana, vem camuflada detrás da fila de<br />
gente, sorrindo... e empurra Jonh. Ele se desequilibra como se estivesse caindo por um<br />
barranco. Jonh solta um grito e despenca até não ser mais visto na escuridão da direita do<br />
palco. Todos ficam estarrecidos com o som de sua ‘morte’.]<br />
Sua estranha!<br />
AFLIÇÕES<br />
(advertindo, para Mofana)<br />
Ele era meu ex.<br />
MOFANA<br />
(confessando, para todos)<br />
SELENA<br />
(espantada, para Mofana)<br />
Isso é motivo? Você está rindo!?<br />
Cruzes!<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(assustada, mãos na boca)<br />
Isso não foi legal.<br />
SAULO VIEGAS<br />
(arrematando, para Mofana)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 102
MOFANA<br />
(sonsa, para todos)<br />
Fiquem quietos e andem, queridinhos. Confiem em mim!<br />
AFLIÇÕES<br />
(chorando, para Mofana)<br />
Vamos ser os próximos, Mofana?<br />
MOFANA<br />
(branda, para Aflições)<br />
Espero que não. Olha, por dentro meu desespero me corrói, estou fria.<br />
“Eu me penalizo sim, mas Jonh em algum momento estragaria tudo. Eu o<br />
conhecia muito bem.”<br />
SELENA<br />
(para Mofana)<br />
Isso lá valeu a pena? Não te trouxe nada e ainda te afastou mais da gente.<br />
Desculpa, mas ecoa na minha mente.<br />
MOBORG<br />
(censurando, para Selena)<br />
É menos um para dar despesas. Além do mais, ele era um mala.<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(para Mofana)<br />
Isso mesmo. “A vida dá rasteira nas pessoas que se descuidam, é o que<br />
sucede.”<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 103
SAULO VIEGAS<br />
(sussurrando, para todos)<br />
Hum, como uma máquina retorquindo.<br />
[Calam-se apenas para recomeçar a andar em sua fila indiana. Mesmo assim, o Gentil não<br />
deixou passar barato.]<br />
GENTIL<br />
(irônico, para todos)<br />
Ora, vamos improvisar! Se ninguém falar nada morreremos é de tédio.<br />
MOFANA<br />
(dura, para o Gentil)<br />
Quieto. Economize nosso ar, ô engraçadinho. Se fosse homem de<br />
verdade, optaria pelo silêncio nessas horas. Ou isso ou vai para longe em<br />
outra trilha. Vai dizer que não se aliviou também sem ele te enchendo?<br />
[Gentil lhe acompanha o movimento da boca. “Miserável”, ele sussurra. Emudecidos, eles<br />
continuam se arrastando em ziguezague. Perto, Selena pergunta para Moborg, que só<br />
orientava a andança.]<br />
E você aí, quer morrer?<br />
SELENA<br />
(assanhada, para Moborg)<br />
Não tenho medo não.<br />
MOBORG<br />
(desconfiado, para Selena)<br />
[Selena se vira de corpo inteiro para Moborg. Ficam cara a cara. Ele fica sem graça, já que<br />
a estava esgueirando mas não esperava tanta retribuição de sua parte. Era uma bela mulher,<br />
e o que ela diz anima o desconfiado ‘guia’.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 104
SELENA<br />
(para Moborg)<br />
Eu quero morrer, e você? Uma hora dessas.<br />
MOBORG<br />
(para Selena)<br />
Eu quero você, estava te observando.<br />
Uma dupla faz outra!<br />
SELENA<br />
(para Moborg)<br />
MOBORG<br />
(para Selena)<br />
Eu faço você, então. Vamos por outras vielas, Selena. A oportunidade faz<br />
a causa.<br />
[Diante disso, os dois saem de fininho para longe do grupo, por outra escolha, à direita.<br />
Ninguém percebe. Então o pano desce.]<br />
FIM DO ATO DEZ<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 105
ATO ONZE<br />
[Abre o pano e o Pai está lá. No momento em que ele começa a falar, aparece a projeção<br />
daquele ângulo da gruta. Uma música tensa é iniciada.]<br />
PAI<br />
(confessando para a plateia)<br />
Apagamos duas cavernas ao lado do bar. E dormimos como pedras a<br />
família toda, era hora de relaxar o mínimo que fosse.<br />
Umas cinco horas depois de levantarmos, começaram estrondos e ruídos<br />
de movimento de águas abaixo da gente. Levantei e fui conferir.<br />
Curiosamente, o ar foi melhorando um pouquinho, apesar da apreensão.<br />
O Grisalho acena para mim. Vejo com ele um amontoado se reunindo ao<br />
redor do jardineiro, o Muca. Chegamos todos perto dele, que orientava<br />
calmamente enquanto era abordado por nossas carências.<br />
[O jardineiro entra no palco e fica agachado. Ao começar a falar, MUCA mostra um<br />
montinho terra em forma de pilha, parecia a miniatura de um morrinho. Ele se levanta.]<br />
MUCA<br />
(para os outros)<br />
Hunf. Vê esse punhado de areia? Afortunadamente, mesmo querendo ou<br />
não, existem os grãos normais, os que se mexem ou só evaporam de<br />
acordo com as intempéries; em sua maioria, não fazem muita diferença no<br />
geral. E... continuam alugando espaço na areia comum, são, igualmente...<br />
parte do volume. Os que já são meio cristalizados, que a Natureza fez a<br />
figa de apurar um cado mais... esses se afastam do meio ordinário... são<br />
espaçosos demais, então a areia comum vai aos poucos rechaçando, até<br />
por saber que eles representam tudo aquilo que poderiam ser, mas só ‘se’<br />
tivessem sido mais enfático, isso em termos de vontade.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 106
MUCA (cont.)<br />
(caminhando, para a plateia)<br />
Repare que certas almas são irrecuperáveis, é o que acontece! Mas que<br />
infortúnio, muita gente todavia e ainda travada por um céu ou inferno,<br />
essa... dualidade, essa escolha; que bom ser Deus maior que tudo isso!<br />
Atente para quem ainda tem pureza; a pureza e o amor são como um<br />
bálsamo. Rogo por aqueles que já nem sabem mais o porquê de lutar, são<br />
como totens. É triste, mas o fim desse tipo é sempre um rastro de morte.<br />
E por conseguinte não é uma questão religiosa ou política, é loucura<br />
generalizada!<br />
Sem a felicidade de uma família, esqueceram até de qual canto vêm. É<br />
bizarro, antinatural... esse estado.<br />
Me sinto um pouco bobo com esses conselhos.<br />
[Assim trata o gasto Muca. Ele estala os dedos, se espreguiça; as linhas do rosto estão mais<br />
bem desenhadas a despeito da idade avançada. O Pai complementa a seguir, tentando<br />
colaborar.]<br />
PAI<br />
(brincando, para o Muca)<br />
E, pelo menos, não assustar crianças. As coisas simples ganham<br />
profundidade. “Totens, antinaturais, uma era passada.”<br />
MUCA<br />
(para o Pai)<br />
Sim, boa! Mas, por hora, vamos nos resguardar, preparar... ganhando<br />
força.<br />
Para quê, amigo?<br />
PAI<br />
(para o Muca)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 107
MUCA<br />
(para o Pai)<br />
Quando o barulho das águas cessar. “Não deve demorar.”<br />
[Após alguns minutos, reaparece Kia, vindo bem descomposta. Ela puxa seu pai pelo braço<br />
e diz o que quase o derruba.]<br />
Pai, não quero morrer!<br />
KIA<br />
(aflita, para o Pai)<br />
[Seguramente, o Pai não esperava aquilo, quase tomba. Diz o que consegue para a filha.]<br />
PAI<br />
(abalado, para Kia)<br />
Mas filha! Calma. Deus nos dê forças para não fraquejar logo nesse ponto!<br />
Eu sei que ainda corremos risco. Bem... você se esqueceu de tudo o que já<br />
falamos sobre morte? Mesmo antes disso tudo aqui; a morte vem para<br />
todos, meu doce. Querendo ou não, e à qualquer hora. Uns podem até<br />
escolher; não foi o nosso caso, fomos é jogados nessa. Mas então é nossa<br />
vez!? Quem sabe? Se for, só Deus sabe. E Ele sabe!<br />
[Perto dele, Donatela intercede com a voz embargada, já algo monótona.]<br />
DONATELA<br />
(quase chorando, para o Pai)<br />
Temos é que encarar, só por acaso... são fatos... caramba! Ela está com<br />
medo... eu também!<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 108
PAI<br />
(para Donatela e Kia)<br />
Vocês são fortes, eu sei. E você, Kia, não porque é minha filha que te<br />
defendo, mas porque sinto isso, não me dou por vencido.<br />
[Kia chora. O Pai a envolve com um abraço, sua esposa faz o mesmo, se deixando cair<br />
encima do Pai com as outras meninas, Nana e Magali.]<br />
PAI<br />
(comovido, para elas)<br />
É a conjuntura, são os humores, minhas lindinhas. Falo demais. Às vezes<br />
era melhor um gesto de carinho, só isso. Acabo falando mais do que<br />
precisa, deve ser porque minha voz sempre acalmou vocês.<br />
KIA<br />
(respirando fundo, para o Pai)<br />
Muito cansada mesmo, humm.<br />
PAI<br />
(olhando para cima)<br />
É uma baita chateação, gatinha. Não se preocupe.<br />
DONATELA<br />
(ajudando, para Kia)<br />
A avidez nos faz sonhar e fantasiar; nossa mente nos tapeia!<br />
KIA<br />
(enxugando o rosto, para Donatela)<br />
Eu vou tentar ficar centrada.<br />
[Kia se exprime da forma que consegue, e a família se abraça mais.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 109
MAGALI<br />
(para o Pai)<br />
O senhor sempre diz assim, como se fosse fácil.<br />
[A pequena Magali fala e não há receios em sua voz, o Pai fica admirado.]<br />
PAI<br />
(animado, para Magali)<br />
É como eu encaro, filha. Se consigo arrancar um risinho desses rostinhos,<br />
mesmo meio murchinhos, ainda assim serão as faces mais belas que<br />
poderiam me presentear, e vir a ser; minhas meninas são minha vida!<br />
Já fiquei melhor, chatinha.<br />
KIA<br />
(mexendo no cabelo de Magali)<br />
[O Pai pega Nana no colo e lhe dá um beijo na bochecha cheinha. Suas mãozinhas<br />
buscavam ele.]<br />
Vamos dar uma volta, amor.<br />
DONATELA<br />
(para o Pai)<br />
[E saem para rodear pelo palco.]<br />
PAI<br />
(para Donatela)<br />
Vou, mas agradecendo a Deus por um momento desses, e por nossa<br />
união.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 110
[Eles andam um pouco, então se sentam e depois deitam no palco para dormir. Na<br />
projeção passam-se horas, simbolizando um dia inteiro, depois mostra o interior da gruta<br />
novamente. Entra “Sombra do Deserto” para narrar outra vez, vindo da direita e se<br />
posiciona no meio do cenário. O Pai e sua família ainda dormem.]<br />
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
Há tanto marasmo rondando... que soa raro! Mais nenhuma notícia veio<br />
além dos diferentes sons de quedas d’água por perto. As pessoas estão<br />
tensas. Logo vão se... deparar!<br />
[O Pai se levanta primeiro. “Sombra do Deserto” está ainda saindo do palco quando<br />
Donatela e as meninas despertam. Começa uma outra música tensa.]<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Então, a fome nos ataca. Ficamos nervosos. As palavras tendem a<br />
escassear. Era sabido de todos que não haveria um esquema ininterrupto.<br />
(pausa) E aí andávamos de um lado a outro mas não havia o que fazer.<br />
Fome. A fome é feia demais. Já ouvi isso, e deve ser mesmo; ouvi<br />
também que ‘dessa forma, nossos atos cabem cada vez menos, ou se<br />
tornam cada vez mais nocivos e irreais, sempre envoltos por muita<br />
desatenção’. Nessas situações é que nós visualizamos até aonde a<br />
curiosidade... pode definhar.<br />
(pausa) Digo isso porque começamos a fuxicar a gruta, nada muito longe,<br />
mas na esperança de qualquer matinho que fosse; quem sabe um<br />
cogumelo ou inseto... na verdade, quem sabe qualquer coisa para comer, e<br />
se distrair. Não havia escolha, ninguém teve chance de trazer muita coisa<br />
depois do que aconteceu nas cidades.<br />
[Sons de águas correndo, vozes eufóricas. Os atores ficam agitados.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 111
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Seguindo os ouvidos, a correnteza que estava perto, quem sabe se havia ou<br />
não um peixe, por exemplo, ou estou louco? O restante da cambada foi<br />
por outro lado, mas aqui perto, na face oeste, ouvimos bem nítida a<br />
corrente d’água, que bom era aquilo! Claro que escutamos, aqui perto, foi<br />
sim.<br />
Nos separamos então em duas partes: uns explorando pela água e outros<br />
de guarda. Fixei o posto de Donatela e das minhas meninas em uma boa<br />
localização. Mas subiremos de volta às rochas que irrompemos dias atrás<br />
quando demos entrada; vou com mais uns cinco, além do Grisalho e de<br />
Muca. Era isso que estava faltando... ver como estaria a vida lá fora...<br />
aquém.<br />
[Termina a música tensa. Entra “Sombra do Deserto”, cumprimenta o Pai e fica ao seu<br />
lado. Todos os outros deixam o palco.]<br />
SOMBRA DO DESERTO<br />
(para a plateia)<br />
Na outro plano, mais abaixo ainda, o sangue continuou fervendo na<br />
descida total pela fenda. Traziam o que havia sobrado do bar geral.<br />
Tamanha era a ânsia de notícias que estas se destilaram em boatos cada<br />
vez mais acalorados, viraram muita discussão. Logo havia aquela lavagem<br />
de roupa suja. O papo foi aumentando, surgindo dúvidas e conclusões em<br />
muitos. Quem é que estava certo? Falavam de tudo um pouco, segue o<br />
que foi possível captar. Notem como a Baixinha divertida costurava suas<br />
palavras, uma a uma. Mas a roupa que ela poderia vestir era a incógnita!<br />
Ela, como muitos ali, não era transparente com suas intenções.<br />
[Entram agora pela direita a Baixinha, Saulo Viegas, MARTA, Aflições, Marlene, Mofana,<br />
Gentil e KOKO. Caminham para lá e para cá, sem rumo. O Pai e “Sombra do Deserto”<br />
seguem lado a lado saindo pela esquerda.]<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(para a plateia)<br />
Não há ser que não precise de certos paliativos.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 112
SAULO VIEGAS<br />
(corroborando, para a Baixinha)<br />
Para aguentar o tranco, olha... vou te dizer!<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(para Saulo Viegas)<br />
Vamos, me passa essa garrafa! Ahhh<br />
MARTA<br />
(advertindo, para Saulo e a Baixinha)<br />
Vocês só bebem, vão escorregar. Eu ia muito pelos alpinismos durante a<br />
juventude.<br />
Calma aí, tia!<br />
SAULO VIEGAS<br />
(irritadiço, para Marta)<br />
AFLIÇÕES<br />
(rindo alto, para os outros)<br />
Não poda a gente que não somos plantas... me acompanha que não sou<br />
novela!<br />
Cruzes.<br />
MARTA<br />
(espantada, para os outros)<br />
AFLIÇÕES<br />
(rindo alto, para Marta)<br />
Nem me tome por exemplo... sou uma pessoa ruim, sei disso, e morrerei<br />
assim. Sinto completar a frase, para seu embaraço.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 113
Ih, frases prontas.<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(caçoando, para Aflições)<br />
MARLENE<br />
(para a Baixinha)<br />
Mas que discurso longo, demorou para produzir? Me espanta como tem<br />
tanta gente diferente por aqui.<br />
[Marlene repara em tudo, ela havia se deixado ficar para trás depois das críticas dos<br />
batedores.]<br />
E você, quem é?<br />
MOFANA<br />
(desconfiada, para Marlene)<br />
Pode deixar que sou amiga.<br />
MARLENE<br />
(para Mofana)<br />
MOFANA<br />
(para Marlene)<br />
Não sei, você vem aqui, tenta algo. Mas acho que tem uma predisposição<br />
para ser pisada.<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(para Marlene)<br />
Pois nem moleste o passado ou encha o saco da galera com mensagens de<br />
atualização.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 114
[A Baixinha divertida já estava alta, mesmo assim não perde a oportunidade de querer<br />
aparecer mais que as outras. Marlene e Mofana trocam olhares, se estranhando. Aflições<br />
ri com a mão na boca. Saulo e o Gentil riem juntos, apenas Koko não havia esboçado<br />
reação alguma até agora.]<br />
KOKO<br />
(enfático, para os outros)<br />
Durante essa divagação, aqui do fundo da fila, eu pensei: “Nova era é isso,<br />
chefia, acabou o escapismo.”<br />
[Muitos debocham e trocam olhares. Apesar do disfarce que o álcool provocou naquelas<br />
cabeças, havia muito suor frio. Gentil é o primeiro a contestar.]<br />
GENTIL<br />
(para os outros)<br />
Pior que eu concordo com ele. Não tem mais essa não.<br />
MOFANA<br />
(pensativa, para o Gentil)<br />
Com certeza, concordo, meio que me dei conta.<br />
AFLIÇÕES<br />
(para Mofana)<br />
Talvez ainda querendo tirar o foco do que fez, não é.<br />
MOFANA<br />
(para Aflições e os outros)<br />
Sim, e daí? Voltem a caminhar e não falem tanto para que sobre oxigênio.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 115
Respirem devagar.<br />
MARTA<br />
(recriminando, para os outros)<br />
KOKO<br />
(para Saulo)<br />
Eu sinto o ar bem na boa, parece até melhor. Mas tem gente aqui, sei<br />
não...<br />
[Koko adverte e se recupera, ajeita o corpo. Anda com passos decididos.]<br />
GENTIL<br />
(baixinho, para a plateia)<br />
Eu ficaria louco de verdade se não me expressasse.<br />
[O Gentil fala mais para si do que para os demais. Mofana ouve e se interessa.]<br />
MOFANA<br />
(para o Gentil)<br />
Continua, é bom assistir aqueles tropeços.<br />
[Mofana instiga mas o Gentil finge que não ouve. Da direita, aparece GI, até então estava<br />
ocultada por um boné e cabelo preso. Sua finura chama atenção nesse momento, e ela se<br />
gaba com os seus gestos. Veio aos poucos, até comedida demais. Mas ela quer é justamente<br />
interceder com as próprias palavras.]<br />
GI<br />
(polida, para os outros)<br />
Queridos, a inteligência é que resolve, não o desespero.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 116
[Ela expõe, e tão logo observa mais gente se resvalando em conversinhas ásperas, não se<br />
contenta e fala mais.]<br />
GI<br />
(para a plateia)<br />
Saibam que vocês são um dos melhores expoentes de astúcia moldados<br />
pela Vida ao longo das Eras, e têm sim sua relevância!<br />
KOKO<br />
(interessado em Gi)<br />
Oi? Belas... palavras, de onde você veio?<br />
MARTA<br />
(criticando, para Gi)<br />
Mas pagamos o pato por sermos, ‘por estarmos despreparados’.<br />
[Depois mais gente se debate tagarelando.]<br />
AFLIÇÕES<br />
(afinando o papo, para Marta)<br />
É, e você acha que alguém entregou um manual para a gente?? Vai nessa,<br />
amiga.<br />
Eu cresci em orfanato, sabia!? Fomos jogadas nessa, claro que era para<br />
errar; o erro faz parte do processo também.<br />
Sem essa de juízes!!!<br />
MARTA<br />
(para Aflições)<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 117
KOKO<br />
(para Gi)<br />
Opaaa. E você, qual teu nome.<br />
[Koko quer saber, está entusiasmado olhando para Gi. Porém ela não faz caso.]<br />
Voltaram nessa, ai.<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(para Koko e Gi)<br />
MARLENE<br />
(para a Baixinha)<br />
Quem bom ouvido que tem, e falam de mim!<br />
MARTA<br />
(para Koko e Gi)<br />
Crianças, não é hora para azarações.<br />
Marta tenta cortar os jovens.<br />
MOFANA<br />
(para Marta)<br />
MARTA<br />
(para a Mofana e depois a plateia)<br />
Agora então, dá mais vontade ainda de rir! Tão pequeninos, jovenzinhos,<br />
impondo caprichos, passando por cima do que vier; nem ligam para o<br />
preparo, atenção, evolução e ordem pela qual passou este planeta. Já era.<br />
Resta este sofrimento, fooooi, resta remediar-se ainda mais, as incertezas<br />
só fizeram aumentar!<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 118
KOKO<br />
(se divertindo, para Marta)<br />
Volta para a escola, ô! Evolução não se vê.<br />
MARTA<br />
(para Koko)<br />
Resumindo... posso continuar?<br />
MOFANA<br />
(para Marra)<br />
Depois, Marta, não estava poupando fôlego?<br />
[Entra Maldonado outra vez, pela esquerda, como se estivesse espreitando os outros.]<br />
MALDONADO<br />
(interferindo, para Marta)<br />
É, dona, se já opinou, deixa a palestra seguir.<br />
GENTIL<br />
(para os outros)<br />
Temo é que a nova era chegou de fato, mas e aí? Vejam o resultado:<br />
quem odeia o amor vai continuar odiando... e quem não odeia vai passar a<br />
odiar por revolta. Talvez nesse ponto exista para todos uma certa<br />
comunhão.<br />
[E se cala o Gentil depois dessa. Os outros se manifestam]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 119
MARTA<br />
(com a voz fraca)<br />
Na minha época, “nova era” significava paz; hoje sabemos quando chegam<br />
com isso de “nova era” pelo estrondo das bombas caindo, dos risos de<br />
satisfação. Ah quem dera um lugar sem brigas, só não sei se é possível.<br />
BAIXINHA DIVERTIDA<br />
(para Marta)<br />
A ‘tal’ da “nova era” chegou para quem a delimitou. Para os outros, se<br />
continuam na mesma, estão é cegos; não adianta mesmo, não enxergam<br />
nem o que está na cara. Não sabem o que é futuro, morgam no presente!<br />
[A Baixinha diz e em seguida dá uma golada em seu copo, está visivelmente abatida, como<br />
que se entregando.]<br />
MARLENE<br />
(para todos)<br />
Vocês sabiam que pôr à vista de todos faz parte da era de Aquário?<br />
[Marlene se manifesta, mas outra vez fica no ‘vácuo’. Apenas Saulo dialoga com ela.]<br />
SAULO VIEGAS<br />
(para Marlene)<br />
Não é dessa era que nos referimos, essa está muito distante ainda.<br />
[E ele continua, deixando Marlene para trás.]<br />
SAULO VIEGAS<br />
(para Marta e a Baixinha)<br />
“Nova era”, ah tá. A nossa então é diferente da do dilúvio? Pra gente<br />
vieram os gases podres, não a água purificadora.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 120
[Saulo expõe e fica mais lúcido, seu olhar se perde após o que diz.]<br />
GI<br />
(acalentando, para todos)<br />
Essas discussões são muito saudáveis, deixam as pessoas em contato umas<br />
com as outras, e favorecem inclusive soluções. Em uma coesão deve haver<br />
unidade, pensamento. Se para cada reclamação de um de nós também<br />
brotasse uma solução, estaríamos em um plano muito mais bem<br />
distribuído.<br />
E descer, e descer.<br />
MARTA<br />
(gesticulando, para a plateia)<br />
Maçante!<br />
KOKO<br />
(para Marta)<br />
[Koko se irrita com a presença de Marta, mais para fazer tipinho para cima da Gi.]<br />
MOFANA<br />
(para todos)<br />
É nisso que vamos, não!? Lá embaixo tem água, me canso já de dizer. Até<br />
para mim as dificuldades são aparentes mas estou focada. Vocês perdem<br />
tempo com essas sessões de carência, ahhh.<br />
[Finalmente Gi termina a saga do grupo nivelando com bastante destreza, cercada de<br />
poesia, concentrando sua educação em quem seu olhar pudesse se prolongar.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 121
GI<br />
(para Mofana e depois os outros)<br />
Mas vejam, pelo passado revisitado nos sentimos mais tranquilas. Mas<br />
volta aquela sensação... tantas horas, dias, semanas nas drogas exageradas<br />
que comungamos... nas ficções e interações rítmicas divertidinhas, nos<br />
corpos ocasionais... na sedação por fármacos ou se embebedando e<br />
desconcentrando o prumo e nosso eixo; nas festas ou nas fases e<br />
relacionamentos que nos bambearam, você, eu; ficamos emburrados ou<br />
desanimados, ou tudo isso e mais.<br />
GI (cont.)<br />
(para a plateia)<br />
Se amar sem igual nos encarasse em todas ocasiões, cercados de poesia...<br />
humm, mas muitos sequer tiveram contato. “Ah, apenas se teu hálito<br />
estivesse quente, riria muito mais. Assim a coragem, assim estar.”<br />
[Gi termina de falar e fica algo acabrunhada, os outros caminham um tempo e depois<br />
somem após o que foi dito. O palco em silêncio por um minuto. Entra uma música tensa.<br />
A projeção agora mostra a entrada da gruta. O Pai reaparece, vindo da direita.]<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Eu volto. Como bom patriarca sigo preocupado com o futuro da minha<br />
família. Toda ela. Mas ao pensar na gruta e nas pessoas que se alistaram<br />
para a descida através da fenda, surda, bem... nada disso me assusta mais,<br />
porque sei do seu propósito. Temos então o novo ar que precisávamos?<br />
[O Pai olha para o seu lado direito e lá está “Sombra do Deserto”, acompanhando tudo o<br />
que ele diz. O Pai sorri para o amigo e recomeça com mais ênfase.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 122
PAI<br />
(para a plateia)<br />
Subimos algumas duas horinhas mais até que chegamos tranquilamente ao<br />
começo da gruta.<br />
PAI (cont.)<br />
(para “Sombra do Deserto”)<br />
Vasculhamos ao redor, ainda dentro dela, gostaríamos de alguma pista.<br />
PAI (cont.)<br />
(para a plateia)<br />
Havia lá alguma coisa escrita à direita nesse corredor, parecia até piada,<br />
como uma paródia. Estava escrito... “Kruse Kredus”, em placa bem<br />
adornada de metal. Achei só bobo, sacação de outra época. Por ser<br />
infantil, é até engraçado. Os outros não ligaram, deviam ter mais questões<br />
na cabeça. Mas quer saber, rir é legal, não só desconfiar, ah sim!<br />
Aí é que que a coisa muda de figura e as lufadas de vento trazem todas<br />
essas... novidades. Mil anos seriam pouco para descrever a sensação,<br />
odores. O planeta estava mudando, até que enfim! Era um renascimento,<br />
era viver de novo. Olha, acredito que quando tem sentimento, quando<br />
aflora qualquer emoção dessas que não se sabe para quê... e elas vêm sem<br />
tchauzinhos paras câmeras, por exemplo; quando é dessa forma as<br />
possibilidades são infinitas. Além do mais, quem precisa de uma lente?<br />
Não faz falta droga nenhuma entre minha visão e mundo; nem nada está<br />
ligado aqui no meu eu, basta minha carne e ponto. Só minha visão que<br />
enxerga além desse escuro eletrônico que graças a Deus virou passado.<br />
Penso tanto, revejo uma frase até então boba, quase uma propaganda que<br />
pedia: “Venha desequipado, traz só você. O resto, a gente conversa.”<br />
Hunf, bem, deixa quieto, devo voltar minha atenção para o ambiente que<br />
revisitamos, e toda essa limpeza.<br />
Em vista disso, eu oriento meus companheiros na maior boa vontade,<br />
cheio de tato.<br />
[Entram o Grisalho, Muca e o Sr. Rouco, pela esquerda. O Mediador vem pela direita.<br />
Depois que eles aparecem, a projeção apresenta o ambiente fora da gruta, algo claro e<br />
árido.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 123
PAI<br />
(para todos)<br />
Senhores, veremos como está lá fora, tenham em mente que (..)<br />
Vamos subir de toda forma!<br />
GRISALHO<br />
(interrompendo, para todos)<br />
PAI<br />
(para a plateia)<br />
A resposta do Grisalho foi tão desigual e abrupta quanto o efeito, nem me<br />
deram tempo de pesar se iria, se ficava. Caramba. Será que perceberam o<br />
mesmo que era? Gostaria de ter admirado mais, e refletido, mas tudo<br />
bem. Fomos em bloco saindo como que carregados. Alguém falava algo<br />
sobre “lá fora podermos nos redimir o máximo possível.” Há de ser, mas<br />
depois não ouvi ninguém mais; lá fora... tudo mudou de figura! Meus<br />
pulmões se enchem rapidamente, havia mais dessa sensação; que instante,<br />
que afobação, euforia... a se dissolver. Imediatamente o ar nos petrifica.<br />
A visão poderia na hora ter matado qualquer um de nós, ou zuretado o<br />
pouco que sobrara de sanidade, entretanto nós... nós paramos; bem<br />
provável que o clima também. É, pairamos. Lentamente.<br />
Não demorou para o Grisalho e o Mediador caírem asfixiados.<br />
[Os atores apenas caem no chão, não gritam nem se desesperam.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 124
PAI<br />
(emocionado, para a plateia)<br />
Não suportaram este clima, ou o susto. Morreram em seguida sem que se<br />
pudesse fazer nada, nem consegui ver seus rostos. Deus tenha piedade<br />
deles, tomara que não tenham sofrido. Nós os restantes ficamos mais<br />
parados. Mas esse ar! Com isso que respiramos aqui em cima ficamos nos<br />
sentindo ótimos, alguns de nós arriscaram inclusive sorrir. Tudo vibrava,<br />
meus olhos brilhavam. Parecia que nunca antes havíamos estado fortes<br />
como agora com os pulmões dessa forma. Como se fossemos de verdade<br />
refeitos, mesmo estáticos. Porém havia um segredo ali, e depois desses<br />
instantes de frescor veio a cobrança. Senti um frio cortante e a realidade<br />
cobrando nosso lugar de visitantes no planeta. Dois gritos de socorro são<br />
lançados, eu escuto.<br />
Nos contaminou também!<br />
MUCA<br />
(aflito, para a plateia)<br />
Ai, nãoooo...<br />
ROUCO<br />
(desencontrado, para a plateia)<br />
PAI<br />
(emocionado, para a plateia)<br />
Sem saber muito como agir, tenho apenas a convicção de que precisava<br />
falar com Donatela e... avisar as meninas! Isso é a luz, então? A que nunca<br />
antes aceitamos? Como pudemos tanto querer viver sem esse ar? Que<br />
éramos... além disso?<br />
De todas as formas, o futuro é e sempre será sinônimo de incerteza, isso<br />
eu chuto também... sem dó. Convém agarrar-se a algo? Analisar ou atinar<br />
às vontades? Eu me escoro. Meus dedos tocam a superfície de pedras,<br />
minha mão escorrega ali... não sei qual mundo ficará para elas.<br />
Vejo a pequetitinha Nana, ela que era de pegar na mão e morder, minha<br />
lindinha! “Sobe na cacunda, ném”, ah eu lembro, filha. Que saudade dela<br />
e das outras!! Vivi muito na companhia delas, foi lá que aprendi que nada<br />
escapa ao olhar de uma mulher, é o adagio. Igualmente, o que se esquiva<br />
da vista da criança... e dos nossos deveres? Elas me transformaram em um<br />
pai! E para isso eu vim a esta... Terra.<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 125
Só me resta cantar, minha Nana; nina Nana, a musiquinha do lanche. Fica<br />
indo e vindo na minha percepção, no ritmo do inspirar e expirar do meu<br />
coração, vamos lá.<br />
PAI (cont.)<br />
(rindo, recitando)<br />
“Aipim frito, bãooo com carne seca e caldo de cana, nana, nana. À beira<br />
da estrada nana, cana. Qué jantar? Qué!? E Nana, nana, cama.”<br />
PAI (cont.)<br />
(extasiado, para a plateia)<br />
Nesse decorrer, Magali, Kia, Donatela, todas juntas, vejo minhas meninas<br />
sorrindo e indo ao ponto perto da entrada... comigo lá, paradão olhando o<br />
céu... elas me encontram, sim! Agora tudo se encaixa, pelo menos vejo a<br />
resolução; na verdade, eu sinto, como revelação.<br />
Magali! Magaliiiiiiii, eu berro… com o que me resta de sopro; nosso Deus<br />
é Paz, Vida e Morte, rogamos piedade a Ele, Ele que é a Natureza... e nós<br />
humanos somos da Natureza. Tudo faz parte de uma ordem e ciclos, a<br />
ordem e os ciclos que são dos mesmos Dele.<br />
Convém abraçar isso, e seguir, é o natural. Filhas, é tão boa nossa<br />
passagem, como o carinho que emanamos em todos esses dias juntos...<br />
dispomos de um parafrasear válido. Minhas filhas, Donatela, é só andar...<br />
podem sair também, é nossa vez de nos ausentarmos da escuridão de<br />
antes. Que termo! Vamos com tanta voz dizer, essa joia que prevalece, é a<br />
impalpável claridade. A voz natural, ela que é... todas as vezes... uma<br />
energia extra na existência. Tentem o ar aqui comigo. Passamos bem por<br />
aqui, tentem, é legal, e vai se multiplicar... como nossas funções e usos.<br />
Perto de si e pelos demais... alguém fala através de mim... ainda que só<br />
uma se salva nesse ar cor de... Magali. Ela vai estar na reconstrução do<br />
mundo sensível<br />
[Desaba o corpo do Pai. “Sombra do Deserto” entra para finalizar o drama da peça, já está<br />
sem seu característico chapéu. Assim que ele começa a falar um enorme Sol é projetado,<br />
e uma doce música executada para o público.]<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 126
SOMBRA DO DESERTO<br />
(satisfeito, para a plateia)<br />
Não muito depois aparecem os seres iluminados que antes se chamavam<br />
Ária, Ágata, Ama, além de Tella, Zuhy e Mooié, todos saíram ao novo<br />
ambiente e nada lhes ocorreu; a seguir puxaram a pequena Magali. Foram<br />
os que prevaleceram. Não há fim, um fim seria apenas um ponto,<br />
demarcação, algo transitório no entender dos que tocaram com suas mãos<br />
o solo. A Vida segue, que bom<br />
[“Sombra do Deserto” junta os braços ao redor do corpo em sinal de reverência, fazendo<br />
assim o desenho de um ‘xis', depois levanta a cabeça, os cabelos caem para trás. O pano<br />
desce em definitivo.]<br />
FIM<br />
<strong>Atos</strong> <strong>II</strong> <strong>Beijo</strong> <strong>técnico</strong> (<strong>Adaptação</strong> <strong>teatral</strong>) 127
<strong>Paulo</strong> <strong>Vitor</strong> <strong>Grossi</strong> é escritor, músico e roteirista espiritualista, publicou entre outros títulos<br />
o argumento de “Amor, Ódio, Redenção e Morte”, o roteiro de “Casa de praia” e as<br />
adaptações teatrais de “Médicos de corpo e alma” e “Quando passam os índios” Pela<br />
Poesia, lançou “Cura”, “Servidão”, “A Conferência”. “Cabezada”, “Esencias”, “Maneja” e<br />
“El Viajero Loco Ø § La May Madre” são suas obras em espanhol. Participou também<br />
como guitarrista e vocalista das bandas Alice, íO, Instrumental Vox, Ummantra e SAEM.<br />
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Marília Veloso é fotógrafa e editora da página “Pela Harmonia”. Assina também o blog “À<br />
Zíngara” Sem ela não haveria capa alguma!<br />
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