Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
4<br />
6 8<br />
AMIGOS PRESENTES DE DEUS!<br />
O AUTISMO LEVE, OS SINTOMAS E<br />
OS DE<strong>SA</strong>FIOS DE CONVIVER EM SO-<br />
CIEDADE<br />
10<br />
É TEA OU É DÉFICIT DE ATENÇÃO?<br />
E QUANDO O TRANSTORNO DO<br />
ESPECTRO AUTISTA NÃO EXPLICA<br />
TUDO?<br />
14<br />
EXISTE MESMO EMPATIA ENTRE OS<br />
QUE LIDAM COM O AUTISMO?<br />
20<br />
APRAESPI POR UMA CAU<strong>SA</strong><br />
30<br />
A REALIDADE DO AUTISMO SEVERO<br />
35<br />
Adaptação curricular:<br />
ferramenta indispensável na<br />
inclusão escolar<br />
16<br />
CONHEÇAM A HISTÓRIA DE ELISEU<br />
ACÁCIO DA SILVA, PAI DE LUCAS<br />
GABRIEL, AUTISTA DE 22 ANOS.<br />
22<br />
COMO INTERPRETAR UM EXAME<br />
GENÉTICO?<br />
32<br />
Acho que a maior regra de todas,<br />
quando você tem um filho autista, é<br />
ter BOM SENSO e BOM HUMOR!<br />
36<br />
ENCORAJANDO OS PAIS A SEREM<br />
AGENTES DE TRANSFORMAÇÃO<br />
DO UNIVERSO DE SEU FILHO COM<br />
AUTISMO<br />
18<br />
A menina, a mulher e a mãe.<br />
MATÉRIA DE CAPA<br />
24<br />
34<br />
O Que Ensinar? (do leve ao<br />
severo)<br />
40<br />
AUTISMO SEVERO:<br />
A INCES<strong>SA</strong>NTE BUSCA PELA INDE-<br />
PENDÊNCIA<br />
44<br />
TODOS PODEM COMUNICAR,<br />
INCLUSIVE TODOS COM<br />
NECESSIDADES COMPLEXAS<br />
48 49<br />
O cuidado com a nossa<br />
criança interior<br />
O Renascimento<br />
de cada dia<br />
50<br />
Deleita-te no Senhor, e<br />
Ele satisfará o desejo do seu<br />
coração.
5<br />
Estimado leitor.<br />
Estimado leitor,<br />
Nada justifica a discriminação e o preconceito, seja ele político ou social, racial ou<br />
religioso, bem como, contra qualquer tipo de deficiência. Mas ele é presente em nossa<br />
sociedade e acompanha o cotidiano de muitos! No entanto, não nos compete sermos<br />
perfeitos, e sim, respeitar o semelhante e compreender que cada pessoa é diferente e<br />
possui necessidades diferentes. Acreditando que o preconceito, em parte, vem de um<br />
conceito preestabelecido de algo que não se conhece por falta de informação, a nossa<br />
edição de junho coloca o autismo severo como foco principal. Matérias compartilhadas<br />
por pais e profissionais renomados nos trazem à luz o cotidiano do autismo<br />
severo, e suas lutas por políticas públicas que contemplem a real necessidade da<br />
pessoa com TEA.<br />
ANNA CAROLINA ROVAI<br />
Diretora da revista Ser Autista<br />
EXPEDIENTE<br />
Ser Autista<br />
Ano I, Edição 3, Junho 2019.<br />
www.serautista.com<br />
contato@serautista.com<br />
Diretora responsável<br />
Anna Carolina Rovai<br />
anna.rovai@serautista.com.br<br />
Produção de conteúdo e<br />
desenvolvimento<br />
Ser Autista<br />
Rua Machado de Assis, 92 -<br />
São Bernardo do Campo- SP<br />
CNPJ 20.191.247/0001-40<br />
Revisão<br />
Cristiane Alves Cavalcante da Silva<br />
Diagramação/Capa<br />
Carlos Celice<br />
Foto Capa<br />
Dino Menezes<br />
Departamento Comercial<br />
comercial@serautista.com<br />
Nossa matéria de capa nos inspira a entender que inclusão é ter nosso espaço e nossos<br />
direitos na sociedade, Patrícia Lucchesi fala sobre os desafios e conquistas no desenvolvimento<br />
do seu filho, Mateus, autista severo não verbal e como sua história pessoal<br />
recomeçou após o diagnóstico do seu filho. Patrícia iniciou sua carreira artística<br />
com comercias, sendo um grande marco a campanha “O primeiro sutiã a gente nunca<br />
esquece”, seguidos de trabalhos na TV, cinema e teatro; graduada em psicologia. Ela<br />
nos conta que com seu filho encontrou “aceitação, resignação, resiliência e beleza”<br />
enfrentou e enfrenta desafios diários, reconhecendo que todos os dias são de luta, e<br />
que encontra a recompensa no sorriso do seu filho.<br />
A adaptação curricular como ferramenta indispensável no processo de inclusão escolar,<br />
são temas abordados pelo professor Lucelmo Lacerda e a Dra. Tatiana Takeda.<br />
Fernanda Orsati Doutora em Educação Especial e Inclusiva nos apresenta na coluna<br />
tecnologia assistiva e participação ativa o Inclusive Todos aplicativo que oferece uma<br />
estratégia de comunicação funcional que contempla os autistas não verbais.<br />
Para você não perder nenhum conteúdo da Ser Autista, assine nossa revista, você<br />
pode escolher entre os planos trimestral, semestral e anual, recebendo a versão impressa<br />
no conforto da sua casa, além de poder optar pela versão digital gratuita. Além<br />
disso, em nosso portal você vai encontrar matérias interessantes e muito conteúdo,<br />
acesse: www.serautista.com. Queremos estar próximos de vocês, nos envie sugestões<br />
de pauta, eventos e palestras para nosso e-mail: contato@serautista.com.<br />
Aproveito a oportunidade para agradecer aos nossos colunistas que aceitaram fazer<br />
parte desta revista, dividindo seu conhecimento, suas experiências e dicas para<br />
fomentar conhecimento e por meio da informação potencializar o respeito e reduzir o<br />
preconceito. Nos empenhamos a cada exemplar para levar até você um conteúdo diferenciado,<br />
personalizado e que eleve a sua confiança, proporcionado mais equilíbrio<br />
a todos que estejam conectados com este propósito.<br />
A Ser Autista é uma publicação mensal e gratuita.<br />
As opiniões dos artigos/colunistas aqui publicados<br />
refletem unicamente a posição de seu autor,<br />
não caracterizando endosso, recomendação ou<br />
favorecimento por parte da Ser Autista, ou quaisquer<br />
outros envolvidos nessa publicação. As pessoas<br />
que não constarem no expediente não têm<br />
autorização para falar em nome da Ser Autista<br />
ou para retirar qualquer tipo de material se não<br />
possuírem em seu poder carta em papel timbrado<br />
assinada por qualquer pessoa que conste no<br />
expediente. Todos os direitos reservados. É proibida<br />
qualquer forma de reutilização, distribuição,<br />
reprodução ou publicação parcial ou total deste<br />
conteúdo sem prévia autorização da Ser Autista.<br />
Nos acompanhe pelas redes sociais<br />
serautista<br />
serautistarevista<br />
Ser autista App<br />
Desejo a todos uma boa leitura e até a próxima!
6<br />
Amigos presentes de Deus!<br />
Lembro até hoje quando o Enzo<br />
entrou na sala da Amanda, uma<br />
semana depois minha pequena falava<br />
dele: “Mãe o Enzo é muito fofo”, e não<br />
parava de tecer elogios. Na primeira<br />
festinha de um amigo da escola o<br />
Enzo foi e lembro até hoje, Enzo não<br />
ia em nenhum brinquedo, mas vendo<br />
as amigas na roda gigante ele fazia<br />
questão de pegar na mão de cada uma<br />
delas, ali nascia uma parceria, uma<br />
amizade...<br />
Elas lidam da melhor forma com o<br />
que está na frente delas. Aceitam<br />
prontamente as diferenças, lidam<br />
com elas e aprendem a amar... Entre<br />
elas não há nomenclaturas: autismo,<br />
autista, normal, deficiente… nada<br />
disso faz sentido para as crianças.<br />
A única coisa que importa para elas<br />
é se descobrirem em semelhanças e<br />
diferenças e se adaptarem para mutualmente<br />
exercerem sua afetividade,<br />
cada qual à sua forma.<br />
Nós, adultos, é que criamos o precon-<br />
E no mesmo dia, à noite, a mãe do<br />
Enzo enviou uma mensagem no<br />
grupo de mães, emocionada pelo<br />
acolhimento que o Enzo teve pelos<br />
colegas de sala... e fez uma pequena<br />
explicação sobre o autismo.<br />
Naquela altura do campeonato eu<br />
já tinha ouvido falar, mas não sabia<br />
exatamente como era uma criança<br />
autista; ah, mas as crianças são tão<br />
mais abertas que nós, têm menos<br />
medo que nós e, infelizmente, têm<br />
mais amor que nós, adultos.
7<br />
ceito, criamos uma visão distorcida de<br />
um mundo do que é aceito e do que<br />
não é, do que é normal e do que não é,<br />
o que é feio e o que é bonito. Nenhuma<br />
criança exclui a outra se não for<br />
assim ensinada. No auge dos seus 4 e<br />
5 anos essas crianças nos ensinaram<br />
que quando se tem amor a diferença<br />
não faz a menor diferença... e o Enzo<br />
nos mostra a cada ano que os obstáculos<br />
estão aí para serem superados,<br />
e que com amor tudo fica tão mais<br />
simples.<br />
As superações do Enzo são notadas<br />
todos os dias... hoje ele está mais do<br />
que integrado à turma, ele dança, faz<br />
discurso e na última festinha venceu<br />
seus medos e encarou até a tirolesa.<br />
Eu fico completamente encantada<br />
com essa magia no amor entre essas<br />
crianças...<br />
E se pergunto para Amanda qual<br />
a diferença entre ela e o Enzo, ela<br />
diz: “Mãe o Enzo não gosta muito de<br />
música e eu gosto, mas o Enzo parece<br />
comigo porque ele fica triste toda vez<br />
que um amigo fica triste”.<br />
Na inocência e pureza desses pequenos,<br />
eu entendo que para eles se depararem<br />
com a diferença é a arte<br />
normal de descobrir<br />
o mundo.<br />
E fico me perguntando será<br />
que foi bom crescer?<br />
Será que não seria mais belo<br />
ser para sempre inocente,<br />
puro e aberto às novidades,<br />
como uma criança?<br />
RENATA GOMES TERENTIN,<br />
Mãe da Amanda, fotografa<br />
contato 11 97181.8583
8<br />
O autismo leve, os sintomas e os desafios<br />
de conviver em sociedade<br />
Falar em sintomas de autismo é, ao<br />
mesmo tempo, algo simples e complicado.<br />
Muitas pessoas chegam a mim se<br />
dizendo tímidas, com dificuldade<br />
de olhar nos olhos, necessidade de<br />
rotinas ou outros sintomas compatíveis<br />
com o autismo e me questionam<br />
se existe a possibilidade de elas serem<br />
também autistas. Mas o autismo,<br />
apesar de estar cada dia mais sendo<br />
desmistificado, é um universo ainda<br />
cheio de mistérios, de limitações e<br />
dificuldades que nos colocam em<br />
situação de isolamento,<br />
solidão e depressão.<br />
É, portanto, um<br />
transtorno de difícil<br />
diagnóstico, sobretudo<br />
em adultos.<br />
No meu caso, os sintomas<br />
apareceram quando<br />
eu ainda era um<br />
bebê, mas obviamente<br />
foi ser percebido anos<br />
depois, quando a escola<br />
começou a estranhar<br />
meu comportamento.<br />
Eu tinha cerca<br />
de cinco ou seis anos<br />
quando pela primeira<br />
vez minha mãe foi<br />
chamada na escola e<br />
orientada para que me<br />
levasse ao médico, pois<br />
havia “algo errado”<br />
comigo, “talvez autismo<br />
mamãe” – disse<br />
a orientadora que conversava com<br />
minha mãe. Em uma época em que<br />
autismo era sinônimo de demência<br />
e completa incapacidade como um<br />
todo, conhecido popularmente como<br />
uma “doença mental”. Minha mãe<br />
dizia que eu era uma menina boazinha<br />
demais e que eu não era doente.<br />
Eu apenas não me relacionava com<br />
ninguém, não comia quase nada, não<br />
dormia direito, urinava na cama, não<br />
falava, não brincava e chorava muito.<br />
Depois de muita reflexão minha mãe<br />
se lembrou de que eu era um bebê<br />
que não chorava, que não me apegava<br />
a nada, não me mexia no berço e<br />
poderia me deixar uma manhã inteira<br />
deitada no balcão da cozinha porque<br />
eu simplesmente não me virava, era<br />
um bebê quase que de brinquedo...<br />
Quando comecei a andar, descobri um<br />
mundo novo, me distraía facilmente<br />
com objetos e não dava a mínima para<br />
as pessoas. Tinha um sério problema<br />
em dividir alimentos ou compartilhar<br />
objetos e me atinha a uma mania<br />
por época. Teve a época de brincar<br />
de contar grãos de feijão, a época<br />
de enrolar fios de todos os tipos, a<br />
época de enfileirar bonecas e por aí<br />
vai. Eu sabia falar, mas me recusava<br />
a falar e na maior parte do tempo eu<br />
simplesmente não conseguia falar. O<br />
desenvolvimento pleno da fala veio<br />
aos nove anos, coincidentemente após<br />
o diagnóstico, quando minha mãe<br />
me levou a um neuropediatra porque<br />
era a quarta vez que chamavam ela<br />
na escola falando sobre o autismo e<br />
aquela época eu cheguei a um estágio<br />
de enxaqueca em que eu não conseguia<br />
mais sair da cama. As faltas<br />
escolares eram frequentes, eu não<br />
tinha hábitos de higiene como tomar<br />
banho, escovar os dentes ou lavar<br />
os cabelos e cortar as unhas. Eu não<br />
gostava de cabelos bagunçados, não<br />
suportava roupa suja (com manchas),<br />
mas para mim se estivesse cinco dias<br />
com a mesma roupa e ela não estivesse<br />
manchada, então estava bom...<br />
Ao sair da consulta recebi uma bronca<br />
de minha mãe, depois de vomitar<br />
em um dos ônibus que tomamos para<br />
voltar para casa. Ela foi bem direta,<br />
disse que eu não era doente, que<br />
eu sabia falar e que precisaria me<br />
esforçar porque senão a escola não<br />
iria mais me aceitar e, como não tinha<br />
ninguém para cuidar de mim, eu teria<br />
que ser internada. Aquilo me gerou<br />
pânico, entrei em desespero e passei a<br />
falar. Não considero errada a atitude<br />
de minha mãe, pois ela tinha outros<br />
dois filhos para sustentar e realmente<br />
não poderia largar tudo outra vez<br />
para cuidar de mim. Ela já havia<br />
deixado o trabalho em uma tentativa<br />
frustrada de me deixar<br />
em uma creche, em<br />
que eu só gritava e não<br />
me aguentaram lá.<br />
A exposição à pobreza,<br />
à dor, angústia e<br />
solidão me obrigaram<br />
a me adaptar – ou pelo<br />
menos tentar – ser um<br />
pouco mais “normal”.<br />
Mas sempre fui um<br />
“peixe fora d’água”, um<br />
“ponto fora da curva”,<br />
uma criança que, de<br />
especial não tinha<br />
nada. Conhecia sim a<br />
exclusão, o bullying,<br />
a carência afetiva, os<br />
medos, os enjoos, as<br />
crises, a dificuldade<br />
de compreender as<br />
regras, os contextos<br />
e os estranhos comportamentos<br />
das<br />
pessoas. Elas falavam sobre eu não<br />
tomar banho, claro que eu queria<br />
tomar mais banho, porém, o medo do<br />
banheiro me impedia de frequentá-lo<br />
com continuidade, mas essas mesmas<br />
pessoas tomavam banho e se enchiam<br />
– conscientemente – de desodorantes<br />
que ardiam o nariz e deixavam gosto<br />
amargo na garganta. Difícil demais<br />
entender as regras sociais, a prioridade<br />
que as pessoas davam para outras<br />
pessoas que as traiam e falavam mal<br />
delas. Os meus objetos me eram muito<br />
previsíveis, eu sempre sabia como eles<br />
funcionavam e o que poderia esperar<br />
deles. As pessoas eram instáveis,<br />
ora amavam e pegavam no colo, ora<br />
expulsavam e berravam sem motivo.<br />
Definitivamente eu preferia ficar com<br />
os objetos ao invés de ficar com as
9<br />
pessoas.<br />
Apesar de melhorar a minha capacidade<br />
de me relacionar com as pessoas,<br />
isso nunca representou de forma alguma<br />
que eu tivesse, de fato, um bom<br />
relacionamento com quem quer que<br />
fosse. Minhas manias só mudavam<br />
de nome, mas eu continuei diferente,<br />
inaceitável pelo mundo e isolada em<br />
meu próprio casulo.<br />
Sofri humilhações das mais diversas,<br />
apanhei, tive minhas coisas roubadas,<br />
sofri abuso físico e emocional,<br />
perdi minha infância antes do tempo,<br />
cheguei a morar na rua, perdi a fé nas<br />
pessoas, mas nunca perdi minha fé<br />
em Deus.<br />
Atualmente tenho ainda minhas<br />
manias, minhas limitações, uma<br />
forte sensibilidade sensorial e muita<br />
dificuldade na comunicação. Pois é,<br />
sou escritora, palestrante e tenho<br />
dificuldade na comunicação, isso porque<br />
eu falo demais, não consigo ter<br />
os filtros necessários para manter as<br />
pessoas perto de mim, lhes digo o que<br />
penso, de forma carinhosa, mas digo,<br />
isso infelizmente não é bem visto<br />
pela sociedade como um todo. Muito<br />
embora a lei seja clara, tanto na lei<br />
dos homens, como nas leis de Deus,<br />
de que não se deve mentir, as pessoas<br />
preferem mentiras do que ouvir verdades<br />
que não lhes caem bem. Estão<br />
acostumadas a disfarçar sentimentos,<br />
descontam em bebidas, em vícios e<br />
outras coisas destrutivas<br />
todos aqueles<br />
sentimentos que foram<br />
impelidas a guardarem<br />
dentro de si. E me refiro<br />
tanto a sentimentos<br />
bons como a sentimentos<br />
ruins, porque tive<br />
também experiências<br />
ruins quando demonstrei<br />
sentimentos bons,<br />
por exemplo, ao gostar<br />
demais de uma pessoa<br />
e enchê-la de presentes,<br />
agrados e elogios<br />
e acabar sendo questionada<br />
sobre minhas<br />
intenções, fui julgada<br />
de estar querendo obter algo em troca<br />
de toda a manifestação de carinho<br />
que demonstrei, isso foi realmente<br />
muito decepcionante.<br />
Chorar em público, ter sensibilidade<br />
sensorial com sons, cheiros, gostos e<br />
texturas, não saber a hora de falar ou<br />
a hora de precisar parar de falar, falta<br />
de noção em quem confiar, dificuldade<br />
de aprendizado em muitas coisas e<br />
excesso de conhecimento em outras,<br />
desejo e necessidade de trocar repentinamente<br />
de ambiente... São coisas<br />
que prejudicam a minha vida, me impedem<br />
de trabalhar em uma empresa<br />
“comum”, dificultam minha relação<br />
com amigos e familiares e me coloca<br />
em situação de vexame muitas vezes<br />
em minha vida, sintomas do autismo<br />
que nunca vão embora, eles podem<br />
até diminuir em algumas fases, posso<br />
aprender a me proteger, escolher<br />
melhor com quem me relacionar,<br />
mas não impedem infelizmente de<br />
me fazer sofrer. Porque o autismo é<br />
algo complexo, que faz parte do meu<br />
funcionamento e que muitas vezes<br />
na vida me fez pensar em desistir de<br />
viver, mas que com a graça de Deus<br />
sempre fui mais forte e sempre tive<br />
uma capacidade imensa de acreditar<br />
que tudo, um dia, terminaria bem...<br />
Por vezes me pego pensando em<br />
como será minha transição para a<br />
terceira idade e aí desisto de pensar<br />
nisso porque sei que cada ser humano<br />
é único, cada pessoa é uma pessoa<br />
antes de ser autista. O traço autista<br />
nunca irá embora, cada dia mais eu<br />
tenho a expectativa de aprender a me<br />
proteger, saber me isolar nos momentos<br />
certos e ensinar meu filho a agir<br />
da mesma forma. O fato de saber que<br />
preciso seguir regras sociais, mas que<br />
não preciso me agredir para isso me<br />
salva de sofrimentos<br />
desnecessários, tipo,<br />
não preciso ser grossa<br />
com ninguém ao ser<br />
sincera e indelicada,<br />
mas não preciso me<br />
maltratar e ir contra<br />
meus princípios somente<br />
por “ter que seguir”<br />
regras impostas pela sociedade.<br />
Ter equilíbrio<br />
é fundamental para<br />
qualquer pessoa, mas<br />
encontrar esse equilíbrio<br />
é uma regra de<br />
ouro para uma pessoa<br />
com autismo.<br />
UMA REFLEXÃO:<br />
Precisamos urgentemente aprender a<br />
olhar para o nosso próximo. A olhar<br />
para o autismo, tirando o véu do<br />
preconceito, tirando as ideias preconcebidas.<br />
Não podemos ignorar a<br />
fome, a exclusão, o frio, o abandono, a<br />
privação do sono, do colo, do amor, do<br />
alimento para o corpo e para a alma a<br />
que, independentemente da condição<br />
social em que nascemos, aprendemos<br />
em algum momento de nossas vidas.<br />
O autismo pode te ensinar muito.<br />
Depois do autismo você pode perceber<br />
que todo ser humano tem uma<br />
semelhança espantosa em meio à<br />
tanta diferença que determina a individualidade<br />
de cada ser.<br />
Pensamos muitas vezes em nossas<br />
vidas sermos únicos no mundo e de<br />
certa forma somos, temos a honra<br />
de carregar em nosso ser a exclusividade<br />
dos genes que nos diferem dos<br />
demais. Mas todos temos o mesmo<br />
desejo de vencer, de amar e sermos<br />
amados, de termos o perdão de nossos<br />
pecados e o reconhecimento pelas<br />
nossas atitudes heroicas perante as<br />
dificuldades da vida.<br />
A diferença entre você e o seu semelhante<br />
é que você pode ter um olhar<br />
de respeito e compaixão... Você tem o<br />
poder de controlar o que acontece em<br />
seu coração, mas as atitudes do outro<br />
dependem dele e de mais ninguém.<br />
Respeitar ao invés de atacar, perdoar<br />
ao invés de odiar, entender ao invés<br />
de julgar, pequenas atitudes que mudam<br />
o mundo. O desconhecido gera<br />
medo e o medo gera a rejeição. A cura<br />
para a doença social chamada preconceito<br />
começa na consciência de cada<br />
um de nós em respeitar as diferenças<br />
e aprender com o novo.<br />
Desperte o gigante que há em você,<br />
desperte para a conscientização do<br />
autismo. Desperte em olhar para o<br />
lado e enxergar além do preconceito,<br />
além do que seus olhos humanos<br />
podem ver.<br />
Estamos aqui. Sim! Abençoados! E<br />
lutando para nos entendermos e levarmos<br />
a palavra do autismo adiante,<br />
não apenas como uma forma de conscientização,<br />
mas também como uma<br />
forma de união e de reconhecimento<br />
para que todos possamos evoluir, nos<br />
aceitarmos e nos enxergarmos cada<br />
dia mais como pessoas diferentes e<br />
que possamos sim sermos melhores<br />
do que fomos ontem, mas sempre<br />
como parâmetro de comparação nós<br />
mesmos, nunca nos comparando<br />
com as outras pessoas, porque Deus<br />
nos fez únicos e perfeitos em nossas<br />
imperfeições.<br />
KENYA DIEHL<br />
Escritora, Consultora em<br />
autismo, Palestrante,<br />
Blogueira e Autista
10<br />
É TEA ou é Déficit de Atenção?<br />
E quando o Transtorno do Espectro Autista<br />
não explica tudo?<br />
O que são as comorbidades? Além<br />
de TEA, é possível que a criança<br />
também tenha déficit de atenção ou<br />
hiperatividade? Essas dúvidas são<br />
muito comuns, mas para entender<br />
as comorbidades, precisamos antes<br />
conhecer alguns termos sobre o<br />
processo diagnóstico. Primeiro, vamos<br />
falar de diagnóstico diferencial, que é<br />
o processo pelo qual o profissional de<br />
saúde busca distinguir um transtorno<br />
de outro que pode ter características<br />
semelhantes. Por exemplo, uma<br />
criança que não responde quando<br />
chamada pelo nome pode não ter o<br />
interesse social, mas também pode<br />
estar desatenta. Problemas de atenção<br />
são comuns no TEA (Transtorno do<br />
Espectro Autista) e no TDAH (Transtorno<br />
de Déficit de Atenção e Hiperatividade),<br />
mas muitas vezes a forma<br />
como a desatenção se apresenta é<br />
diferente em cada diagnóstico. Além<br />
disso, outros sinais que acompanham<br />
a desatenção ajudam os profissionais<br />
a diferenciar entre TEA e TDAH.<br />
Esse processo fica um pouco mais<br />
complicado quando entendemos que<br />
esses diagnósticos também podem<br />
estar presentes ao mesmo tempo. É o<br />
que chamamos de comorbidade. Por<br />
exemplo, uma pessoa com TEA que<br />
tenha um atraso cognitivo importante<br />
pode ter um quadro de Deficiência<br />
Intelectual associado. Um adolescente<br />
com TEA que começa a ficar mais isolado<br />
e triste, pode estar desenvolvendo<br />
sintomas depressivos. Na prática<br />
clínica, nem sempre essa avaliação<br />
é fácil, especialmente pela grande<br />
sobreposição de sintomas entre TEA<br />
e outros transtornos do desenvolvimento<br />
como deficiência intelectual,<br />
transtorno de déficit de atenção e<br />
hiperatividade, transtornos de aprendizagem,<br />
e transtornos de linguagem.<br />
Além disso, algumas comorbidades<br />
envolvem também outras áreas da<br />
medicina, como a epilepsia, algumas<br />
síndromes genéticas, distúrbios gastrointestinais<br />
e uma maior predisposição<br />
para quadros infecciosos.<br />
E por que é importante avaliarmos as<br />
comorbidades?<br />
O Transtorno do Espectro Autista<br />
impacta muitas áreas do desenvolvimento.<br />
Por isso, quando uma criança<br />
recebe o diagnóstico de TEA é comum<br />
que as pessoas envolvidas no seu<br />
cuidado acreditem que todos os comportamentos<br />
da criança possam ser<br />
explicados apenas pelo TEA. A criança<br />
é desatenta? “É porque tem TEA”.<br />
É agitada? É opositora? “É porque tem<br />
TEA”. Não aprende? “É porque tem<br />
TEA”. Mas precisamos ter cuidado.<br />
A presença de um outro diagnóstico<br />
representa um grande impacto no<br />
tratamento e no próprio desenvolvimento<br />
de cada um. Sabemos que não<br />
existem medicações para o TEA, mas<br />
muitas das comorbidades podem ser<br />
tratadas com medicações ou exigem<br />
um outro olhar das terapias.<br />
Estudos mostram que em populações<br />
clínicas, até 2/3 dos indivíduos com<br />
TEA possuem alguma comorbidade. A<br />
comorbidade mais frequente é a deficiência<br />
intelectual, que pode ocorrer<br />
em 45% a 60% das pessoas com TEA,<br />
seguida dos transtornos ansiosos<br />
(cerca de 40%), transtorno de déficit<br />
de atenção e hiperatividade (TDAH,<br />
cerca de 30% a 40%) e transtorno<br />
de oposição desafiante (TOD, cerca<br />
de 30%). A frequência e o perfil das<br />
comorbidades varia muito entre os<br />
estudos, e a principal causa de variabilidade<br />
é por nível de gravidade do<br />
diagnóstico de TEA e a idade. Transtorno<br />
de humor, como a depressão,<br />
são raros em crianças, e costumam se<br />
iniciar na adolescência.<br />
O mesmo ocorre para a ansiedade<br />
social, que ocorre normalmente na<br />
adolescência é um dos transtornos<br />
ansiosos mais frequentes em TEA. Já<br />
quadros do neurodesenvolvimento
11<br />
como TOD e TDAH são mais frequentes<br />
em crianças, assim como quadros<br />
de fobias e ansiedade de separação.<br />
Outros transtornos mentais graves,<br />
como quadros psicóticos e transtorno<br />
bipolar também podem ocorrer, mas<br />
são bem menos frequentes.<br />
E o TDAH? Possivelmente, na prática<br />
clínica, comorbidade de maior peso,<br />
tanto pela frequência quanto pela<br />
dificuldade de diferenciar os sintomas,<br />
é o déficit de atenção e hiperatividade.<br />
Sintomas de desatenção são<br />
facilmente camuflados pela falta de<br />
interesse social, pelos<br />
déficits de comunicação,<br />
e pelas dificuldades de<br />
automonitoramento,<br />
organização e execução<br />
de atividades comuns a<br />
pessoas com TEA.<br />
No componente da hiperatividade,<br />
alguns aspectos<br />
sensoriais, como<br />
crianças com um perfil<br />
chamado buscador,<br />
também são possíveis<br />
confundidores. Esse<br />
perfil buscador inclui<br />
algumas características<br />
como gostar de pular,<br />
e subir ou esbarrar em<br />
objetos e móveis; tocar<br />
pessoas e objetos com<br />
frequência; preferir<br />
brincadeiras mais brutas;<br />
não ter consciência<br />
da própria força; envolver-se<br />
em brincadeiras<br />
de forma mais agitada<br />
ou barulhenta.<br />
Todas essas características<br />
também podem<br />
estar presentes nos<br />
casos de hiperatividade.<br />
Já perfis de crianças<br />
pouco sensíveis a estímulos sensoriais<br />
podem ser parecidos com sintomas de<br />
desatenção, como: ser muito quieto,<br />
passivo ou retraído, e desconsiderar<br />
ou não responder a estímulos da<br />
intensidade usual disponível em seu<br />
ambiente sensorial.<br />
Em alguns casos, o tratamento medicamentoso<br />
pode ser iniciado num<br />
quadro sugestivo de TDAH, mesmo<br />
que não se tenha certeza do diagnóstico.<br />
Lembrando que pessoas com<br />
TEA estão mais sujeitas a apresentarem<br />
efeitos adversos ou reações<br />
paradoxais às medicações.<br />
Comportamentos relacionados ao<br />
transtorno obsessivo-compulsivo<br />
(TOC) são frequentemente uma dúvida<br />
diagnóstica. Talvez mais do que<br />
qualquer outro transtorno, a preocupação<br />
em como separar os sintomas<br />
de TOC dos sintomas de TEA é uma<br />
investigação clínica difícil. Uma<br />
pessoa com TOC se envolve em atos<br />
repetitivos com o objetivo de reduzir<br />
a ansiedade normalmente gerada por<br />
uma obsessão (como um pensamento<br />
intrusivo e repetitivo de que minhas<br />
mãos estão sujas).<br />
Do ponto de vista das definições,<br />
os sintomas da TEA também atendem<br />
a esse critério. Três fatores que<br />
precisam ser atendidos incluem:<br />
engajamento em atos típicos do TOC,<br />
como lavagem frequente das mãos<br />
para matar germes, capacidade de<br />
resposta às intervenções normalmente<br />
eficazes para o TOC (validade) e um<br />
conjunto básico de sintomas do TOC<br />
que estaria além do padrão típico de<br />
sintomas de TEA. Parece complicado,<br />
mas vamos tentar entender melhor.<br />
Muitas vezes, por restrições da comunicação<br />
típicas de TEA, não conseguimos<br />
investigar de maneira eficaz<br />
a presença das chamadas obsessões.<br />
Diante dessa dificuldade, quando<br />
encontramos na clínica indivíduos<br />
com TEA que apresentam padrões<br />
repetitivos de comportamentos (como<br />
rasgar papéis, arrumar objetos, fazer<br />
perguntas de forma perseverativa),<br />
podemos optar por testar o tratamento<br />
medicamentoso para TOC.<br />
Vale lembrar que alguns comportamentos<br />
são próprios da idade ou<br />
podem ser agravados por fatores<br />
ambientais, pela dificuldade de comunicação,<br />
por doenças clínicas.<br />
Um olhar cuidadoso<br />
para cada pessoa, considerando<br />
todos esses elementos,<br />
é fundamental<br />
para não transformar<br />
comportamentos típicos<br />
em doença, mas também<br />
para não deixar<br />
passar um diagnóstico<br />
que exige tratamento<br />
diferenciado. Vamos<br />
tentar resumir um<br />
pouco?<br />
Diagnóstico diferencial:<br />
processo inicial e<br />
passageiro na avaliação<br />
para determinar qual<br />
transtorno ou doença<br />
explica os sinais e<br />
sintomas apresentados,<br />
excluindo outros transtornos<br />
que têm sinais<br />
e sintomas parecidos.<br />
Alguns dos diagnósticos<br />
diferenciais de TEA<br />
são: TDAH, Deficiência<br />
intelectual, Transtornos<br />
específicos de linguagem,<br />
Transtornos de<br />
aprendizagem.<br />
Comorbidade: presença<br />
de um ou mais transtorno ou doença<br />
que ocorrem ao mesmo tempo que o<br />
diagnóstico principal. Algumas das<br />
comorbidades de TEA são: TDAH,<br />
Deficiência Intelectual, Transtorno<br />
Opositor Desafiante, Depressão e<br />
Ansiedade. Uma avaliação adequada<br />
das comorbidades é essencial para o<br />
sucesso do tratamento!<br />
GRACCIELLE RODRIGUES<br />
CUNHA: Vice coordenadora do<br />
ambulatório de cognição social<br />
(TEAMM)da UNIFESP; Psiquiatra<br />
da infância e adolescência<br />
gracci.rc@gmail.com
12
13
14<br />
EXISTE MESMO<br />
EMPATIA ENTRE OS<br />
QUE LIDAM COM<br />
O AUTISMO?<br />
Quero muito agradecer a oportunidade<br />
de levar luz a um tema quase<br />
proibido nos meios de comunicação e<br />
até mesmo na comunidade autista, o<br />
autismo severo.<br />
Vou usar parte deste espaço para<br />
me apresentar e tentar fazer jus ao<br />
convite para expor as realidades de<br />
um autismo que não é conhecido pela<br />
maioria das pessoas, meu nome é<br />
Vera Duma, sou professora e estudiosa<br />
sobre o assunto por ter um filho<br />
com autismo severo e por força da<br />
minha profissão, acredito que se não<br />
tivesse tido um filho autista talvez<br />
jamais tivesse me embrenhado neste<br />
tema; no curso universitário nada me<br />
foi apresentado para que fizesse com<br />
que me interessasse, mas a vida me<br />
levou por essa trilha. Um autista severo<br />
não é um ser estranho, ele é um ser<br />
humano como qualquer outro, assim<br />
sendo, nascem, crescem, envelhecem<br />
e um dia morrem. A questão é o que<br />
acontece no caminho entre o nascimento<br />
e a morte.<br />
Entre os diversos autismos (espectro<br />
autista) encontra-se o severo, que<br />
também poderia ser subdividido em<br />
outro subgrupo (espectro autismo<br />
severo), neste subgrupo encontra-se<br />
o David (meu filho). As principais<br />
características dos autistas que se<br />
encontram nesta extremidade do<br />
espectro são: a extrema dificuldade<br />
de comunicação (são na sua maioria<br />
não verbais); negam-se a usar outros<br />
meios de comunicação, como, por<br />
exemplo, apontar; tem distúrbio do<br />
sono, podendo ficar dias sem dormir;<br />
costumam ter seletividade alimentar,<br />
por isso podem ter uma alimentação<br />
monótona, com base em 3 ou 4<br />
alimentos; a sensibilidade costuma<br />
ser extrema a estímulos externos<br />
(hipersensibilidade) ou ínfima a estes<br />
mesmo estímulos (hipossensibilidade),<br />
assim caso se machuquem podem não<br />
demonstrar dor, ao mesmo tempo,<br />
uma luz mais forte ou um som que<br />
passaria despercebido por nós, pode<br />
causar um desconforto tão grande<br />
que os faça entrar em crise.<br />
Todos os autistas, independente do<br />
grau (leve, moderado ou severo),<br />
podem ter algumas ou todas essas<br />
características que citei acima, o que<br />
muda no caso do autista severo é a<br />
frequência e a intensidade com que<br />
ocorrem. Normalmente, as crises dos<br />
autistas severos evoluem para surtos,<br />
que podem ser de agressividade, de<br />
autoagressividade, de quebra quebra,<br />
fazendo com que em descontrole eles<br />
possam ferir-se de forma muito séria;<br />
nesses casos, é necessário manejo de<br />
contenção para evitar ferimentos.<br />
Depois dessa breve localização do<br />
autista severo no espectro vou fazer<br />
um histórico do meu filho.<br />
Minha viagem por este mundo do autismo<br />
teve início dia 09 de dezembro<br />
de 1999, embora eu não soubesse na<br />
época... Nesta data nascia meu filho,<br />
saudável, lindo, perfeito e principalmente<br />
muito amado e querido, a<br />
verdade é... Para quase todas as mães<br />
é assim com o autismo, o autismo não<br />
tem cara, não se pode verificar no<br />
teste do pezinho, nenhum diagnóstico<br />
precoce existia naquela época e ainda<br />
hoje. Nada de verdadeiramente confiável<br />
existe para que se possa identificar<br />
o autismo no nascimento, assim<br />
posso dizer que o desenvolvimento<br />
do meu filho foi seguindo o esperado,<br />
olhava-me enquanto mamava, sorria<br />
para mim, seguia objetos quando estimulado,<br />
virava-se para observar sons,<br />
ou seja, como esperado ia se desenvolvendo.<br />
Andou aos 11 meses, começou<br />
a balbuciar algumas palavras com um<br />
ano, “mã mã mã, ai ai ai” em referência<br />
ao meu zangar com ele; “ tae ute”<br />
para a irmã Ruth parar de perturbá-<br />
-lo; além de outras coisas como pedir<br />
água, mamá, biscoito, apontar, tudo<br />
em ordem.<br />
Porém esta fala não evoluía, permanecia<br />
rudimentar quando comparada<br />
a da irmã na mesma idade, sei que<br />
não devemos comparar, mas é inevitável.<br />
Aos 2 anos e meio tomou a vacina<br />
tríplice viral e voltou para casa já com<br />
febre, a febre durou exatos dois dias,<br />
não era uma febre muito alta, então<br />
quando o levamos ao médico este disse<br />
que deveria ser uma reação natural<br />
a vacina. Percebi nesses dois dias uma<br />
mudança bastante significativa, estava<br />
prostrado, ausente, distante, não<br />
retribuía sorrisos, ou seja, estava diferente.<br />
Quando a febre cedeu, tinha ali<br />
outra criança, ele parou de sorrir, de<br />
nos olhar, de seguir sons ou responder<br />
quando chamado pelo nome, de<br />
brincar, perdeu o interesse por outras<br />
crianças e passou a se isolar, ficava<br />
horas olhando o ventilador girar,<br />
virava seu triciclo e girava as rodas<br />
por horas, andava nas pontas dos pés,<br />
não queria mais contato físico, parou
15<br />
totalmente de falar o pouco que falava<br />
e passou a emitir sons totalmente<br />
estranhos.<br />
Meu pensamento foi... Como faço<br />
para resolver isso??? O que está havendo<br />
com ele??? O que é isso???<br />
Levei meu filho a diversos pediatras,<br />
fiz todo tipo de exame e nada,<br />
a resposta era... Está tudo bem com<br />
ele, mas já tínhamos a internet, quem<br />
sabe o Google pudesse responder,<br />
assim conheci o protocolo, colocando<br />
tudo que observei no David... Impossível...<br />
Foi o que pensei, o David é o<br />
protocolo, todos os sintomas, o David<br />
é autista.<br />
Nada sabia sobre autismo, na faculdade<br />
de educação nunca houve uma só<br />
palavra sobre esse assunto, o máximo<br />
que eu já tinha visto sobre<br />
isso era o filme Rain Man.<br />
Assim, num primeiro momento<br />
meus esforços foram<br />
direcionados a “consertar o<br />
David”.<br />
Com o tempo e a total falta<br />
de informação, de diagnóstico,<br />
de medicação, de tratamentos,<br />
peguei-me entrando<br />
em grupos da internet, me<br />
tornei uma “mãe azul”, passei<br />
a sonhar com os grandes<br />
feitos do David, seria ele um<br />
grande músico??? Um pintor<br />
de renome??? Um gênio da<br />
matemática??? Um esportista<br />
famoso??? Eram tantas<br />
possibilidades que até me<br />
peguei agradecendo por ele<br />
ser autista, “um gênio”, mas<br />
nada de ele voltar a falar,<br />
afinal uma fala rudimentar<br />
é sempre melhor do que<br />
nada, pensava que seria só questão<br />
de tempo, mas o tempo passou e um<br />
dia percebi seu grande interesse por<br />
games, havia descoberto finalmente<br />
a habilidade genial do David, comprei<br />
todos os consoles de todos os jogos<br />
disponíveis no brasil, fiz empréstimo,<br />
gastei o que podia e o que não podia,<br />
só pensava que se era esse o grande<br />
dom dele eu teria que incentivar.<br />
No seu silêncio David se tornou um<br />
exímio jogador, passava horas em seu<br />
quarto jogando, ele mesmo trocava<br />
os consoles da TV, colocava e tirava<br />
os jogos, tinha total autonomia, nessa<br />
época estava com uns 8 anos, era um<br />
anjinho, uma criança fácil de lidar,<br />
frequentava a fono, TO, psicóloga,<br />
psiquiatra, neuro, continuava a fazer<br />
exames, detestava gente vestida de<br />
branco... É fácil saber porquê.<br />
De um dia para o outro, acordei e<br />
ao entrar no seu quarto... Ele havia<br />
quebrado todos os consoles, a TV e estava<br />
irreconhecível, nervoso, agitado,<br />
irritado... O que poderia ter ocorrido<br />
naquela noite? Nada de especial tinha<br />
acontecido no dia anterior, apenas ele<br />
havia entrado na puberdade, nessa<br />
época David estava com 10 anos. Daí<br />
em diante, descemos uma ladeira<br />
gigante, me perguntava, aonde tinha<br />
ido parar meu “anjo azul”? Todos os<br />
dias ele acordava nervoso, quando<br />
dormia, então foram mais médicos,<br />
mais exames, e finalmente os tão<br />
temidos remédios controlados.<br />
Era preciso medicá-lo, pois ele além<br />
de não dormir, quebrava tudo que encontrava<br />
pela frente, foram diversas<br />
TV’s, chuveiros, tomadas arrancadas<br />
das paredes, lâmpadas retiradas e<br />
jogadas pela janela, janelas de vidro<br />
quebradas com socos, copos, travessas<br />
e pratos arremessados ao chão;<br />
celulares jogados contra a parede,<br />
micro-ondas quebrado, fogão, portas<br />
de armários, fechaduras das portas,<br />
portas, ar condicionado...<br />
Tudo quebrado e comprado novamente<br />
e quebrado outra vez durante<br />
os dois anos que se seguiram, além<br />
do prejuízo material, havia também<br />
o risco de ferimentos, embora ele<br />
não demonstrasse dor, nem mesmo<br />
quando cortou toda a mão ao socar<br />
repetidamente o vidro da janela, ele<br />
já estava com 12 anos e os medicamentos<br />
(5 diferentes na época) não<br />
faziam efeito, mesmo em doses altas,<br />
pelo contrário, pareciam exacerbar<br />
todo o caos que havia se instalado<br />
em nossas vidas... Para piorar ainda<br />
mais este cenário nesta mesma época<br />
ele encontrou uma caixa de fósforos<br />
em casa... Riscou um e colocou fogo<br />
na camisa que estava usando... Foi<br />
horrível... Queimaduras de terceiro<br />
grau e uma internação de 4 meses<br />
em hospital para queimados, com 45<br />
balneoterapia (lavagem das feridas<br />
com anestesia geral usando abrasivos<br />
para evitar infecção), uma cirurgia<br />
plástica (enxertia) para tentar acelerar<br />
seu restabelecimento...<br />
Depois deste ocorrido decidi<br />
ir retirando aos poucos<br />
(desmame) os medicamentos<br />
controlados... Afinal...<br />
Melhor surtar sem medicamentos<br />
do que continuar<br />
surtando dopado... Por<br />
incrível que pareça houve<br />
uma melhora significativa...<br />
Ainda surtava... Ainda eram<br />
intensas as reações, mas a<br />
frequência havia diminuído...<br />
O David ama viajar... Adora<br />
estar em locais diferentes...<br />
Quartos de hotel... Acampamentos...<br />
Andar de carro...<br />
Então, hoje minha forma de<br />
incluí-lo no mundo é fazendo<br />
o que ele gosta... Mostrando<br />
a ele esse mundão<br />
que também é dele.<br />
Espero que tenham entendido porque<br />
me meti nesta luta... E, porque não<br />
tenho o direito de arredar o pé, as<br />
conquistas só virão para o David<br />
quando vierem para todos os autistas<br />
invisíveis (moderados e severos)...<br />
Afinal quero o meu direito de morrer<br />
um dia.<br />
#nossosfilhosnaosaoinvisiveis<br />
#autismoseveroexiste<br />
#juntassomosmaisfortes<br />
VERA DUMA, mãe do Davi, ativista<br />
pela causa do autismo severo<br />
e moderado, professora do ensino<br />
médio e básico.<br />
https://m.youtube.com/channel/<br />
UC7K8uevpSTxH2BBXK48aTmg
16<br />
Conheçam a história de Eliseu Acácio da Silva,<br />
pai de Lucas Gabriel, autista de 22 anos.<br />
Hoje, nossa história começa<br />
contando a luta de um pai que<br />
batalha, diariamente, para ver os<br />
direitos de seu filho, e dos filhos<br />
dos outros, reconhecido!<br />
Eu recebi o diagnóstico do meu filho,<br />
Lucas Gabriel, quando ele tinha apenas<br />
02 anos de idade. Hoje, ele já tem<br />
22 e as dificuldades para atendimento<br />
e tratamentos ainda parecem ser as<br />
mesmas de 20 anos atrás. Talvez, eu<br />
esteja enganado...<br />
Nossa trajetória no autismo começa<br />
com as suspeitas de minha mãe sobre<br />
o Lucas. Porém, ela suspeitava que ele<br />
fosse surdo, uma vez que ele se mostrava<br />
indiferente quando era chamado.<br />
Ao levá-lo a um fonoaudiólogo, o<br />
primeiro diagnóstico ficou descartado,<br />
pois constatou que sua audição era<br />
perfeita. Então, fomos encaminhados<br />
a um neurologista, o qual o diagnosticou<br />
com autismo. Lucas é um adulto<br />
com autismo severo. Confesso que,<br />
na época, minha reação foi tranquila,<br />
pois eu já havia ouvido falar de<br />
autismo e já tinha tido contato com<br />
algumas informações básicas.<br />
Com esse pouco conhecimento, eu<br />
achava que já sabia o que era o autismo.<br />
Ledo engano! Eu não tinha muita<br />
certeza do que era autismo, mas tinha<br />
certeza que com muito amor e disposição<br />
ele seria capaz de transpor todas<br />
as adversidades que apareceriam devido<br />
ao autismo. Mas, os meses e anos<br />
seguintes me mostraram que não era,<br />
e não é, tão simples assim.<br />
Contamos para todos da família e, de<br />
uma maneira geral, a reação inicial<br />
foi de lamento. Até minha mãe, que<br />
já estava acompanhando tudo, ficou<br />
muito preocupada. Mesmo assim, ela<br />
ficou ao meu lado e me ajudou, juntamente<br />
com a mãe do Lucas, a cuidar<br />
dele. A minha mãe foi de fundamental<br />
importância nesses anos iniciais<br />
e sua ajuda foi ainda maior que da<br />
própria mãe do meu filho. Por isso, e<br />
por muito mais, serei grato a ela por<br />
toda minha vida.<br />
Com o passar dos anos, acreditei que,<br />
mesmo com o autismo presente em<br />
nossa família, poderíamos ter qualidade<br />
de vida com atendimentos e tratamentos<br />
para Lucas. Mas, infelizmente<br />
não alcançamos essa possibilidade.<br />
Ainda hoje, cuidar de um autista<br />
severo no Brasil tem se mostrado um<br />
desafio que parece infinito! E não só<br />
os severos, mas os moderados e, em<br />
alguns casos, os leves também, pois<br />
faltam políticas públicas que faça<br />
valer os direitos de nossos filhos. O<br />
que vejo hoje é uma necessidade de<br />
termos que lutar sempre. E com o<br />
autismo severo, tenho a impressão<br />
que essa necessidade se equipare ao<br />
ar que respiramos! Claro que tivemos<br />
alguns progressos ao longo dos<br />
anos, mas tudo poderia ter sido ainda<br />
melhor.<br />
Considero que, sendo autista severo,<br />
uma das maiores conquistas do Lucas<br />
foi o desfralde, o que aconteceu ainda<br />
na infância. A iniciativa de ele sempre<br />
procurar, ou solicitar, o local adequado<br />
para suas necessidades fisiológicas<br />
é algo que considero uma de nossas<br />
maiores conquistas.<br />
Uma de minhas grandes frustrações<br />
foi a institucionalização de meu<br />
filho... Uma realidade que nunca fez<br />
parte dos meus planos para ele. Mas,<br />
apesar da constante frustração, pois<br />
ele continua institucionalizado, não<br />
me sinto impotente. Acredito que, de<br />
alguma forma, serei capaz de contribuir<br />
para mudar essa realidade, pois<br />
acredito que, um dia eu poderei trazê-<br />
-lo de volta para casa. E esse é o meu<br />
objetivo e luta, válido também para<br />
meu enteado institucionalizado.<br />
Pensando em todos os progressos<br />
que a ciência tem feito, acredito
17<br />
que, em futuro não sei se distante,<br />
poderá haver cura para o autismo. Na<br />
verdade, esse assunto ainda mexe um<br />
pouco comigo, pois ainda não temos<br />
muitas respostas exatas, e sim, um<br />
emaranhado de possíveis causas. Mas,<br />
quem sabe um dia, veremos essa cura,<br />
ao menos àqueles que precisam. Aos<br />
outros, fica o livre arbítrio e o direito<br />
à neurodiversidade.<br />
Não pensem que penso na cura<br />
porque não amo meu filho, muito pelo<br />
contrário! É por amá-lo demais. Em<br />
uma certa ocasião, meu filho quase<br />
morreu, de acordo com o médico que<br />
o atendeu, porque havia cortado o<br />
pulso em um vidro da porta de casa<br />
durante uma crise de agressividade.<br />
Foi um dos piores momentos da<br />
minha vida! O fato de ao menos considerar<br />
a possibilidade de perder meu<br />
filho, me fez perder o chão.<br />
será o dia mais feliz da minha vida.<br />
Minha maior fonte de inspiração<br />
nessa jornada tem sido o próprio Lucas,<br />
pois ele me mostra o tempo todo<br />
o carinho que tem por mim, mesmo<br />
tendo a necessidade de ser ajudado<br />
constantemente.<br />
Ele me mostra, todos os dias, que tudo<br />
vale a pena por ele. Por isso o fato de<br />
ele estar institucionalizado me machuca<br />
tanto. Eu só serei uma pessoa<br />
feliz no dia em que ele for realmente<br />
livre.<br />
Nossa história ainda não acabou e sei<br />
que tem muito a ser feito. Peço aos<br />
pais, assim como a todos os outros,<br />
que busquem constantemente políticas<br />
públicas para as pessoas autistas<br />
em todas as demandas do autismo<br />
leve ao severo.<br />
E que não ignorem a triste realidade<br />
de centenas (talvez milhares?) de<br />
autistas severos adultos institucionalizados<br />
por todo o país, sem tratamento<br />
adequado e até mesmo sem<br />
qualidade de vida. Sou realista, e não<br />
pessimista. Acredito que podemos,<br />
gradativamente, embora seja urgente,<br />
trazer mudanças necessárias a essa e<br />
a outras realidades negativas em que<br />
vivem pessoas autistas.<br />
E, para finalizar, gostaria de dizer que<br />
aquela frase que tem nas redes sociais<br />
“o melhor tratamento para autismo<br />
é amor e paciência” não é absoluta.<br />
Tratar o autista com amor e paciência<br />
é muito importante, com toda certeza!<br />
Mas amor e paciência não é tudo que<br />
o autista precisa como tratamento.<br />
Autistas precisam, uns mais<br />
outros menos, de apoio multidisciplinar.<br />
E essa deve ser<br />
nossa busca e cobrança junto<br />
ao poder público como<br />
direito das pessoas autistas.<br />
E tem também algumas situações engraçadas<br />
que já passamos. Uma vez,<br />
estávamos em uma igreja evangélica e<br />
meu filho começou a pular. As pessoas<br />
acharam que era uma manifestação<br />
do Espírito Santo, mas era só ele<br />
fazendo estereotipias mesmo. Rimos<br />
muito da situação, porque nos pareceu<br />
engraçada no momento. E tenho<br />
guardado minhas esperanças para<br />
que eu possa vir aqui um dia e contar<br />
a vocês momentos felizes, que será<br />
quando esse modelo de institucionalização<br />
em hospitais psiquiátricos, clínicas<br />
e abrigos oferecerem aos nossos<br />
filhos tratamento digno e real.<br />
Quando esse dia chegar, certamente,<br />
ANITA BRITO é doutoranda pela USP em<br />
Neurociências para estudos sobre TEA,<br />
cursos em Harvard e Stanford, Graduada<br />
pela PUC-SP e mestre pela Universidade<br />
Presbiteriana Mackenzie. Professora,<br />
escritora e palestrante. Vencedora do Prêmio<br />
Orgulho Autista, 2014. Desde 2011,<br />
já foram milhares de palestras em todo o<br />
Brasil e exterior falando sobre autismo<br />
com seu Nicolas Brito Sales.
18<br />
A menina, a mulher e a mãe.<br />
Nesta edição quero dedicar esse<br />
texto às mulheres. Sim, a elas que<br />
tanto nos encantam e são exemplos<br />
de força e dedicação.<br />
Quando falamos de família e, principalmente,<br />
de um diagnóstico de TEA<br />
então, aí é que elas são as personagens<br />
principais das histórias da maioria<br />
das famílias, salvo raras exceções.<br />
A mulher protagoniza, quase sempre,<br />
a função da pessoa que parte para o<br />
estudo em busca de uma solução para<br />
o desenvolvimento de seu filho(a), assume<br />
perspectivas diferentes no meio<br />
social com o intuito de abranger o<br />
maior número de possibilidades para<br />
que isso aconteça. Passa, facilmente,<br />
de mãe a terapeuta, professora,<br />
fisioterapeuta, nutricionista e por<br />
aí vai. Essa mãe, obrigatoriamente,<br />
tem que se reinventar, para assumir<br />
novos papéis que antes não estavam<br />
programados no plano de vida. E não<br />
podemos nos esquecer de que, se ela<br />
falhar, será cobrada pela sociedade, a<br />
qual atribui toda e qualquer falha na<br />
gestão familiar primeiramente à mãe.<br />
Além do mais, a mãe ainda é vista de<br />
forma tácita como principal responsável<br />
na educação dos filhos.<br />
Todo o exposto acima já é amplamente<br />
discutido e divulgado, sendo assim,<br />
eu não quero que esse texto vire um<br />
“mais do mesmo”. Então, como sempre,<br />
quero propor uma reflexão do<br />
texto a seguir onde quero poder dividir<br />
com vocês o que tenho observado<br />
em algumas oportunidades que a vida<br />
tem me proporcionado.<br />
O diagnóstico na vida adulta em<br />
mulheres tem sido cada vez mais<br />
observado e é considerado sempre<br />
mais complexo. As mulheres, de<br />
forma geral, tendem a camuflar<br />
mais os sintomas e sinais do TEA em<br />
função das convenções sociais. Esses,<br />
acabam passando despercebidos. Isso,<br />
porque espera-se que a mulher tenha<br />
um comportamento mais adequado<br />
aos padrões sociais, como falar pouco,<br />
não encarar as pessoas, não olhar diretamente<br />
nos olhos, etc. Por muitos<br />
anos, esses aspectos eram de vital importância<br />
para que uma mulher fosse<br />
considerada “ direita” ou a “certa para<br />
casar”. Por isso, quando encontramos<br />
mulheres com um comportamento tímido,<br />
ou até mesmo um acanhamento<br />
excessivo, esse comportamento é<br />
visto como aceitável socialmente.<br />
Essas mulheres quando entram na<br />
maternidade têm se descoberto por<br />
meio de seus estudos, motivados pelas<br />
experiências vividas com seus filhos<br />
com TEA. E estão se entendendo enquanto<br />
indivíduos. Atualmente, com<br />
o avanço dos estudos sobre o assunto,<br />
as mulheres têm encontrado subsídios<br />
para conseguirem o diagnóstico<br />
tardio.<br />
Mas, fica a dúvida: a busca pelo diagnóstico<br />
tardio tem benefícios? Essa<br />
é uma pergunta que não tem resposta<br />
certa ou errada. Como já disse<br />
em textos das edições anteriores, o<br />
bem-estar da pessoa é que deve vir<br />
em primeiro lugar. Se essa acredita<br />
que um diagnóstico lhe trará respostas,<br />
por que não? Mas, se por acaso,<br />
uma pessoa pensar que o diagnóstico<br />
pode lhe trazer rótulos ou não trazer<br />
benefício algum, por que tê-lo?<br />
Acredito que com o passar do tempo<br />
teremos cada vez mais informação<br />
sobre em como diagnosticar as mulheres<br />
e isso dará as futuras gerações<br />
a oportunidade de escrever histórias<br />
diferentes. Importante lembrar que<br />
nem todas as mães de pessoas com<br />
autismo, também são autistas. Esse<br />
texto é baseado nas experiências que<br />
tenho tido ao longo da minha jornada<br />
nesse assunto.<br />
Alexsander Sales é formado em<br />
Administração de Empresas e pósgraduado<br />
em logística empresarial<br />
pela FGV. Atualmente, é Pós-graduando<br />
em Neuropsicopedagia e<br />
ativista da causa autista. Desde<br />
2012, acompanha sua família nas<br />
palestras levando seu depoimento<br />
na visão de pai e falando sobre leis<br />
e moradias assistidas.
19
20<br />
APRAESPI por uma causa<br />
INTERVENÇÕES DA EQUIPE<br />
DE EDUCAÇÃO E <strong>SA</strong>ÚDE EM<br />
ATUAÇÃO INTERDISCIPLI-<br />
NAR A PESSOAS COM TEA<br />
(TRANSTORNO DO ESPEC-<br />
TRO AUTISTA) NA APRAESPI<br />
Definição, causas e prevalência do<br />
Transtorno do Espectro Autista (TEA)<br />
O TEA, de acordo com o DSM-5<br />
(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSO-<br />
CIATION [APA], 2014), designa um<br />
transtorno do neurodesenvolvimento<br />
que é caracterizado por comprometimentos<br />
persistentes na comunicação<br />
e na interação social em múltiplos<br />
contextos, bem como por padrões restritos<br />
e repetitivos de comportamen-<br />
tos, interesses ou<br />
atividades.<br />
O TEA é compreendido como um<br />
transtorno de etiologias múltiplas<br />
combinando fatores genéticos e ambientais.<br />
A prevalência é significativamente<br />
mais elevada em homens do que<br />
mulheres. Dados epidemiológicos<br />
recentes do Centro de Controle e Prevenção<br />
de Doenças (CDC) nos Estados<br />
Unidos indicam uma prevalência<br />
de TEA de um em cada 59 crianças<br />
nascidas.<br />
O número de pessoas diagnosticadas<br />
com o transtorno no mundo é crescente,<br />
o que não indica, necessariamente,<br />
o aumento da sua prevalência,<br />
pois possíveis razões para o aumento<br />
são:<br />
• A adoção de um conceito mais<br />
amplo;<br />
• Maior conscientização de clínicos e<br />
da comunidade sobre as manifestações<br />
do TEA;<br />
• Melhor detecção de casos sem deficiência<br />
intelectual;<br />
• Melhora nos serviços de atendimento<br />
a esta população;<br />
• Aumento de estudos epidemiológicos<br />
populacionais e com a utilização<br />
de métodos padronizados de investigação<br />
diagnostica.<br />
A NECESSIDADE DO DIAGNÓSTICO<br />
DIFERENCIAL E AS INTERVENÇÕES<br />
PARA O DESENVOLVIMENTO DA<br />
PESSOA COM TEA<br />
As abordagens baseadas em atendimento<br />
interdisciplinar para a<br />
pessoa com TEA na APRAESPI é um<br />
tratamento integrado dos técnicos da<br />
educação, saúde e assistência social,<br />
nas seguintes áreas: Pedagogia, Psicopedagogia,<br />
Psicologia, Fonoaudiologia,<br />
Fisioterapia, Terapia ocupacional,<br />
Enfermagem, Assistência social,<br />
Musicoterapia, Nutrição, Psiquiatria,<br />
Neurologia e demais áreas médicas<br />
quando necessário.<br />
A partir de um diagnóstico de TEA<br />
realizado pela equipe multidisciplinar<br />
é possível iniciar a intervenção e a<br />
orientação à família gerando ganhos<br />
significativos e duradouros no desenvolvimento<br />
da criança. A intervenção<br />
ou plano de tratamento das pessoas<br />
com TEA devem ser adaptados para
21<br />
atender às necessidades específicas de<br />
cada pessoa com o transtorno.<br />
Os tratamentos podem envolver<br />
intervenções comportamentais, de<br />
desenvolvimento, cognitivo e medicamentoso<br />
ou ambos, pois não existe<br />
uma única forma de lidar, sendo a<br />
combinação dos tratamentos a base<br />
para o estudo e a intervenção eficaz<br />
para cada criança com o TEA.<br />
A atuação interdisciplinar deve se<br />
colocar em um processo de busca e<br />
atuação do conhecimento de procedimentos,<br />
métodos, diretrizes e princípios<br />
para que seja efetivo e funcional<br />
a intervenção a pessoa com TEA.<br />
O foco da atuação técnica são as habilidades<br />
nas relações sociais; desenvolvimento<br />
sensorial, cognitivo, acadêmico<br />
e comportamental; habilidades<br />
de vida diária; habilidades motoras e<br />
treinamento de comunicação alternativa/funcional.<br />
PROGRAMAS DE INTERVENÇÕES<br />
COMBINADAS QUE SÃO UTILIZA-<br />
DAS NA APRAESPI AOS ALUNOS<br />
COM TEA<br />
As intervenções centradas em<br />
estímulos específicos para o aluno<br />
com TEA tem o objetivo de ampliar<br />
estruturas neurológicas para aprendizagem.<br />
Nas salas temos no máximo<br />
6 alunos com TEA, com programas<br />
específicos e funcionais.<br />
EDUCAÇÃO COGNITIVISTA<br />
As intervenções pedagógicas vão<br />
potencializar as competências cognitivas,<br />
socioemocionais dos alunos por<br />
meio de atividades individualizadas<br />
que impactam no desenvolvimento e<br />
superação de dificuldades, bem como,<br />
em longo prazo, relacionados à saúde<br />
e qualidade de vida, no desempenho<br />
da concentração, raciocínio, memória,<br />
criatividade, autoestima, perseverança,<br />
coordenação motora e a capacidade<br />
de resolver problemas de forma<br />
criativa e inovadora.<br />
PROGRAMA TEACCH (TRATAMEN-<br />
TO E EDUCAÇÃO PARA AUTISTAS<br />
E CRIANÇAS COM LIMITAÇÕES RE-<br />
LACIONADAS À COMUNICAÇÃO)<br />
O que faz a diferença na abordagem<br />
TEACCH ser única é o foco na<br />
compreensão da cultura do autismo<br />
na construção do ambiente físico,<br />
social e na comunicação. O ambiente<br />
é estruturado para acomodar as<br />
dificuldades que a criança autista<br />
apresenta e ao mesmo tempo, treina<br />
a sua performance comportamental<br />
para a aquisição de hábitos aceitáveis<br />
e apropriados.<br />
MÉTODO ABA (ANÁLISE DO COM-<br />
PORTAMENTO APLICADA)<br />
ABA é uma abordagem que é usada<br />
para a compreensão do comportamento<br />
e suas consequências, sendo<br />
que o meio e as atividades devem ser<br />
estruturados para melhor desempenho<br />
do aluno com TEA.<br />
Ser analista do comportamento<br />
significa atuar como educador, uma<br />
vez que o tratamento envolve um<br />
processo abrangente e estruturado de<br />
ensino-aprendizagem ou reaprendizagem.<br />
OS PAIS SÃO OS PRINCIPAIS PAR-<br />
CEIROS<br />
A abordagem familiar é um dos<br />
aspectos principais para o êxito do<br />
tratamento. Isso se dá, tanto na psicoeducação,<br />
no apoio psicológico aos<br />
pais e/ou cuidadores, como na instrumentalização<br />
para eles serem agentes<br />
de mudança. São os pais que costumam<br />
ter maior tempo de convivência<br />
com a criança e é importante que<br />
estimulem seus filhos nas atividades<br />
do cotidiano, buscando inseri-los no<br />
ambiente social. Os pais não apenas<br />
impulsionam a tomada de decisões<br />
sobre intervenções, mas também<br />
assumem um papel fundamental no<br />
seu fornecimento.<br />
INTERVENÇÕES MÉDICAS<br />
Não existe um padrão de tratamento<br />
que possa ser aplicado em todas as<br />
pessoas com TEA. Cada paciente exige<br />
um tipo de acompanhamento específico<br />
e individualizado que solicita a<br />
participação dos pais, dos familiares e<br />
de uma equipe profissional multidisciplinar<br />
visando à reabilitação global<br />
do paciente. O uso de medicamentos<br />
só é indicado quando surgem complicações<br />
e comorbidades. Os problemas<br />
incluem: comportamento associado ao<br />
TDAH, como desatenção ou hiperatividade;<br />
sintomas de ansiedade;<br />
comportamento compulsivo obsessivo;<br />
comportamento de agressividade<br />
e distúrbio do sono. Medicamentos<br />
prescritos podem reduzir esses comportamentos<br />
o suficiente para que as<br />
intervenções comportamentais ou de<br />
desenvolvimento sejam mais eficazes.<br />
ELI<strong>SA</strong>BETE FERNANDES R.<br />
PEREIRA<br />
Coordenadora da Unidade de<br />
Atendimento ao TEA da APRAES-<br />
PI; Psicóloga e mestre em Distúrbios<br />
do desenvolvimento<br />
LAIR MOURA<br />
Superintendente da Apraespi. 50<br />
anos em defesa dos direitos das<br />
Pessoas com deficiência
22<br />
Como interpretar um exame genético?<br />
A interpretação de um exame genético<br />
é algo bastante sério e deve ser<br />
feito de forma muito criteriosa, de<br />
preferência acompanhada pelo médico<br />
que solicitou o exame, ou então por<br />
um médico geneticista.<br />
No Brasil, o laudo genético deve ser<br />
feito seguindo as regras da ANVI<strong>SA</strong>,<br />
bem como a Academia Americana<br />
de Medicina Genética e Genômica<br />
(American College of Medical Genetics<br />
- ACMG). Utilizar uma normatização<br />
para confecção do laudo permite<br />
que ele seja lido de forma universal,<br />
fazendo com que tenham regras<br />
estruturais e de nomenclatura, tendo<br />
assim um padrão de qualidade e de<br />
interpretação.<br />
Quando um laudo genético é recebido,<br />
o mais comum é procurarmos o significado<br />
do gene, mas isso não é a forma<br />
mais correta de interpretação, pois<br />
o gene pode estar relacionado com<br />
diversas condições e não exatamente<br />
tudo que está na descrição do gene<br />
está relacionado com aquele indivíduo.<br />
É a variante genética que vai ser<br />
importante e que vai ditar o fenótipo<br />
clínico, quer dizer, o que pode acontecer<br />
com aquela alteração. Dessa<br />
forma, podemos dizer que quem rege<br />
essa orquestra é a variante genética.<br />
A variante genética é aquela informação<br />
que vem geralmente após “c.”<br />
ou “p.” que significa, respectivamente,<br />
sequência de DNA codificada ou<br />
proteína.<br />
A sequência referência usada na<br />
análise deve ser referenciada. Dessa<br />
forma, se tivermos esse tipo de alteração<br />
c.G1091A/ p.R364H significa dizer<br />
que houve uma alteração de nucleotídeo<br />
(c) na posição 1091 onde houve<br />
a troca G por A e na proteína (p) na<br />
posição 364 trocando o aminoácido<br />
arginina (R) para histidina (H).<br />
De acordo com o ACMG, o termo<br />
mais correto para relatar uma alteração<br />
genética é variante e elas devem<br />
ser reportadas seguindo as regras de<br />
nomenclatura internacional, indicadas<br />
pelo Human Genome Variation<br />
Society (HGVS), pois quando falamos<br />
mutação estamos nos referindo a<br />
trocas permanentes nos nucleotídeos,<br />
enquanto que polimorfismos<br />
são definidos com uma variante com<br />
frequência acima de 1%, o que tem<br />
gerado muita confusão e, por isso,<br />
esses termos foram substituídos por<br />
variante e seguido das seguintes<br />
classificações: variantes patogênicas,<br />
variantes provavelmente patogênicas,<br />
variantes de significado incerto<br />
(Variant of unknown significance<br />
– VUS), variantes provavelmente<br />
benignas e variantes benignas.<br />
VARIANTES PATOGÊNICAS:<br />
variantes são aquelas variantes<br />
sabidamente reconhecidas como causadoras<br />
de doenças, isto é, já foram<br />
identificadas em pacientes afetados,<br />
com estudos funcionais e depositadas<br />
como patogênicas em bancos de dados<br />
específicos; variantes que provocam a<br />
perda de função da proteína (nonsense,<br />
frameshift, splicing sites), variantes<br />
raras e/ou ausentes nos bancos<br />
de dados populacionais ou, então,
23<br />
variantes que segregam com a doença<br />
em uma família.<br />
VARIANTES PROVAVELMENTE<br />
PATOGÊNICAS:<br />
variantes que apesar de não reportadas<br />
em bancos de dados ou na literatura<br />
científica e que não foram avaliadas<br />
em estudos funcionais, podem<br />
levar à alteração da função proteica<br />
(nonsense, frameshift, splicing site).<br />
VARIANTES DE SIGNIFICADO<br />
INCERTO:<br />
podem ser variantes em genes conhecidos<br />
relacionados a uma questão clínica,<br />
mas a variante em questão não<br />
tem evidências científicas disponíveis<br />
que permitem concluir se tratar de<br />
uma variante benigna ou patogênica.<br />
Podem ser também variantes em genes<br />
cuja função ainda é incerta, isto é,<br />
naqueles genes potencialmente candidatos<br />
onde a natureza da troca pode<br />
afetar a função deste gene. Geralmente<br />
são variantes raras, ausentes ou em<br />
baixa frequência nos bancos de dados<br />
populacionais, sem relatos anteriores<br />
e, quando analisadas, são aquelas<br />
modificadoras da função proteica<br />
(frameshift). É escolha do laboratório<br />
relatar ou não as VUS encontradas,<br />
mas a ACMG sugere que elas sejam<br />
reportadas quando estão em genes<br />
relacionados com a questão clínica do<br />
paciente.<br />
VARIANTES PROVAVELMENTE<br />
BENIGNAS:<br />
variantes para as quais não foi reconhecida<br />
ou não se espera nenhuma<br />
patogenicidade (silenciosas, intrônicas),<br />
mas que não preenchem todos<br />
os critérios para serem classificadas<br />
como benignas.<br />
VARIANTES BENIGNAS:<br />
variantes com evidências suficientes<br />
para classificação como benignas,<br />
comprovadamente reconhecidas por<br />
não conferirem patogenicidade, podendo<br />
ou não serem reportadas.<br />
A classificação e a interpretação das<br />
variantes refletem o conhecimento<br />
científico disponível na literatura no<br />
momento da análise, interpretação do<br />
resultado e emissão do laudo. Assim,<br />
as variantes provavelmente patogênicas<br />
e, principalmente, as variantes de<br />
significado desconhecido/incerto podem<br />
vir a ser reclassificadas, devendo<br />
sempre passar por um processo de<br />
reinterpretação na literatura científica<br />
após a realização do exame.<br />
Com a diminuição dos valores, houve<br />
um aumento crescente de realização<br />
de sequenciamento de última geração<br />
(sequenciamento do genoma completo<br />
e do exoma completo) e consequentemente<br />
um aumento muito grande<br />
de variantes de significado clínico<br />
desconhecido/incerto e, por isso,<br />
muito tem se discutido sobre a importância<br />
da reinterpretação dos dados,<br />
pois o conhecimento não é estático, é<br />
dinâmico e está em intensa ascensão.<br />
No último dia 29 de abril, um novo<br />
documento foi publicado no ACMG<br />
sugerindo que os dados de pacientes<br />
devem ser reanalisados, principalmente<br />
quando existe VUS. Além da<br />
Academia Americana, a EuroGentest,<br />
UK e a Academia Canadense de<br />
Medicina Genética (Canadian College<br />
of Medical Geneticist) também vêm<br />
discutindo essa reinterpretação dos<br />
dados.<br />
Nós da Tismoo sempre acreditamos<br />
que a reinterpretação dos dados é algo<br />
bastante importante e, por isso, desde<br />
nossa inauguração, já contamos com<br />
o sistema de atualização de dados<br />
chamado de Tismoo 24/7, no qual os<br />
dados dos pacientes que realizaram<br />
os exames T-GEN (sequenciamento<br />
completo do genoma) ou T-EXOM<br />
(sequenciamento completo do exoma)<br />
são atualizados a cada seis meses<br />
durante um ano após a confecção e,<br />
passado esse período, o paciente poderá<br />
solicitar essa reanálise por tempo<br />
ilimitado, pois acreditamos que um<br />
dado que hoje pode ter um significado<br />
incerto pode ser a chave para o<br />
conhecimento no futuro.<br />
É importante ressaltar que um laudo<br />
genético deve ser sempre bem elaborado,<br />
com base nas regras da ANVI<strong>SA</strong><br />
e da ACMG, ele deve conter resultados,<br />
metodologia e conclusões — e<br />
o mais importante: deve ser relacionado<br />
com a clínica do paciente e ser<br />
interpretado sempre com um suporte<br />
médico.<br />
Lembrem-se que a<br />
variante genética deve<br />
ser avaliada e não<br />
apenas o gene.<br />
GRACIELA PIGNATARI.<br />
Bióloga, Mestrado e Doutorado em<br />
Biologia Molecular pela UNIFESP,<br />
estágio no Mount Sinai School of<br />
Medicine em Nova York, Participou<br />
da criação da ONG “Projeto A Fada<br />
do Dente” e é sócio-fundadora da<br />
startup de biotecnologia TISMOO.
24<br />
ACEITAÇÃO E QUEBRA<br />
DO PRECONCEITO<br />
Para falar de preconceito primeiro<br />
quero falar de aceitação. Não é<br />
necessário aceitar porque é de verdade.<br />
O diagnóstico do Mateus foi difícil.<br />
Aceitação tem a ver com compreensão.<br />
Por isso penso que é preciso<br />
mais informação. Quando compreendi<br />
melhor o diagnóstico tudo<br />
melhorou.<br />
Gostaria de ver as mães de autistas<br />
passeando mais. Sendo mais convidadas<br />
para eventos. Trabalhando...<br />
e o que elas quiserem ser.<br />
As pessoas aceitando e convivendo<br />
mais uns com os outros. Autismo<br />
é uma questão social e não somente<br />
de famílias de Autistas.<br />
Autistas são pessoas.<br />
Famílias são famílias.<br />
Mães são mães. Sou feliz com meu<br />
filho e penso que todos sofremos.<br />
É um privilégio tentar entender<br />
isso. Meu projeto de orientação psicológica<br />
para familiares de pacientes<br />
com o transtorno do espectro<br />
autista vai nesse sentido.<br />
Lutar contra o preconceito é falar<br />
de inclusão. Todos merecem seu<br />
espaço e seus direitos na sociedade.<br />
O Mateus não cresce, mas se desenvolve<br />
e envelhece. Todos nós<br />
envelhecemos. Graças a Deus.<br />
Quero falar principalmente para<br />
as mães.<br />
Mas não somente as mães de autistas<br />
e as famílias... Todas as mães...<br />
Porque não existe mãe de autista,<br />
mãe nova, mãe solteira. Mãe é<br />
sempre mãe.<br />
APRESENTAÇÃO<br />
Sou Patrícia Lucchesi, trabalhei na<br />
carreira artística por mais de 20<br />
anos.<br />
Comecei com comerciais e tive o<br />
privilégio de fazer a campanha,<br />
“O primeiro sutiã a gente nunca<br />
esquece”, um marco histórico.<br />
Fui para a TV, novelas, teatro e<br />
cinema. Dentre os trabalhos que<br />
participei, fiz minisséries, o seriado,<br />
“O grande Pai” no S.B.T, “Sandy<br />
e Junior” na Globo, o longa metragem<br />
“O casamento dos trapalhões”,<br />
entre outros...<br />
Sou psicóloga e, o mais importante,<br />
mãe do Mateus.<br />
Autista severo e não verbal.<br />
Não é independente.<br />
Comunica-se por meio de gestos e<br />
o PECS.<br />
Minha história recomeça com seu<br />
diagnóstico.<br />
“Com meu<br />
filho encontrei<br />
aceitação,<br />
resignação,<br />
resiliência<br />
e beleza”
“Os autistas são bons...<br />
são sempre crianças,<br />
mas crescem...<br />
são inocentes... anjos”<br />
25
26<br />
Diagnóstico<br />
Casei e engravidei cedo.<br />
O Mateus é meu filho único e faz parte<br />
de todo meu entendimento de vida.<br />
Eu era inexperiente na época, mas já<br />
na amamentação ele não interagia<br />
muito comigo. No começo teve um desenvolvimento<br />
aparentemente dentro<br />
da normalidade. Chegou a falar algumas<br />
palavras...<br />
Passear<br />
A, e, i, o, u.<br />
A olhar para mim e falar, bonita.<br />
Mãe<br />
Frases curtas de duas a três palavras.<br />
Mas foi regredindo no seu desenvolvimento.<br />
Andava na ponta dos pés,<br />
corria sem parar, apresentava auto<br />
e heteroagressividade, se jogava no<br />
berço, mordia a mão, batia a cabeça,<br />
não brincava com brinquedos, não<br />
entendia linguagem figurada, não<br />
brincava com as pessoas, girava a<br />
rodinha do carrinho com as mãos<br />
ao invés de brincar, não olhava nos<br />
olhos, se fixava nos pés das pessoas<br />
caminhando, não respondia a comandos,<br />
não imitava, girava uma cordinha<br />
com as mãos, se balançava muito,<br />
enfileirava objetos, fechava as portas,<br />
não atendia pelo nome.<br />
Foi se distanciando cada vez mais<br />
e parou de falar aos 7 anos. Eu não<br />
tinha a orientação que precisava, pois<br />
se sabia pouco sobre o diagnóstico<br />
naquela época. A pediatra dizia que<br />
atrasos eram normais. Até mesmo<br />
porque os exames físicos não detectavam<br />
nada.<br />
O pai foi se afastando... me deixava<br />
sozinha com o Mateus por longos<br />
períodos. O casamento acabou.<br />
Eu e minha família mal sabíamos o<br />
que era autismo. O diagnóstico veio<br />
quando o Mateus tinha dois anos e<br />
meio. E o pai biológico nunca mais<br />
apareceu e sua família também se<br />
distanciou, infelizmente. Só para<br />
vocês terem uma idéia da gravidade,<br />
o Mateus nessa época chegou a falar:<br />
pai. Mas meus familiares sempre<br />
estiveram ao meu lado.<br />
Tratamento<br />
Em um programa de televisão meus<br />
pais viram o Dr. Raymond Rosenberg<br />
falar sobre o transtorno, e que tinha<br />
tudo a ver com o Mateus. A pediatra<br />
orientou que não precisava procurar<br />
o Dr. Rosenberg, porque ele podia<br />
melhorar. Ainda assim decidimos<br />
levar ele motivados por uma grande<br />
preocupação. Fiquei sem chão e<br />
muito desesperada. Muito preocupada<br />
quanto ao futuro do Mateus e o que<br />
aconteceria com ele. Eu teria que<br />
abandonar uma carreira bem-sucedida.<br />
Corremos de tratamento em<br />
tratamento. Eu estava bem abalada<br />
e iniciei minha terapia que faço até<br />
hoje.<br />
O Mateus fez reorganização neurológica<br />
pelo método da Dra. Beatriz<br />
Padovan, fono, equoterapia...<br />
Tudo que estava ao nosso alcance.<br />
Tivemos auxilio de uma profissional<br />
reconhecida, Dra. Margarida Windolz,<br />
infelizmente recém-falecida.<br />
O Mateus passou por excelentes<br />
profissionais da área. Usamos os<br />
conceitos do Aba. Tem o PECS,<br />
sistema alternativo de comunicação<br />
por imagens. Ele tem um painel onde<br />
organiza sua rotina. O tratamento<br />
hoje é melhor que a 10... 20 anos.<br />
Escola e inclusão<br />
Tentamos a inclusão. Mas muitas<br />
escolas não o aceitaram. Chegaram<br />
a me dizer que era um problema na<br />
educação e que eu não dava carinho e<br />
não cuidava bem dele. Faltava e falta<br />
estrutura nas escolas. Que não forneciam<br />
um monitor, nem se quer permitiam<br />
que conseguíssemos um, por<br />
causa de leis trabalhistas da época.<br />
Hoje é permitido monitores, mas<br />
carece de formação adequada de<br />
profissionais. Encontramos em escolas<br />
especiais uma maior estrutura<br />
inclusive pelo nível de autismo do<br />
meu filho. Ele está na Fada associação<br />
de pais a pelo menos 15 anos. É muito<br />
feliz lá.<br />
Tenho várias histórias lindas do<br />
Mateus com eles. Escola especializada<br />
em autismo, onde encontramos um<br />
tratamento modelo. Infelizmente<br />
sobrevivem com muita dificuldade.<br />
Para contar uma história que adoro<br />
do psiquiatra do Mateus, com ele. Vou<br />
dizer de um dia que ele visitou a Fada,<br />
depois de muitos anos sem ir à escola.<br />
O Mateus fez pipoca junto com seus<br />
amigos e achamos que logo depois iria<br />
comer o seu potinho sozinho, como<br />
sempre fazia. Mas nos surpreendeu<br />
oferecendo para o doutor antes. O<br />
Mateus tem dificuldade na interação<br />
social e comunicação. Como é no<br />
transtorno. Por isso, muitas vezes,<br />
não consegue dividir. Se organiza por<br />
meio de rotina como é no TEA, e o<br />
doutor naquela situação significava<br />
uma quebra de rotina.<br />
Preconceito<br />
O Mateus sofreu algum preconceito.<br />
Para falar um pouco disso, em um<br />
prédio onde eu morava, tive que me<br />
mudar, pois ele chegou a ser isolado<br />
pelos moradores. Uma vez quando foi<br />
à piscina, se assustou com as crianças<br />
correndo e segurou com as mãos o<br />
braço de um amigo. Ele se assustou<br />
e a mãe não aceitou qualquer tipo de<br />
explicação minha e de minha família.<br />
Fazendo uma reclamação ao condomínio<br />
e comunicando a todos em um
27<br />
mural do prédio. Vejam só o absurdo,<br />
eu quase tive que pagar uma multa.<br />
Tentei por muito tempo explicar a<br />
todos, fazer essa integração e não<br />
consegui. Eu não me culpo por isso,<br />
muito menos ao meu filho. Claro que<br />
nem todas as pessoas agiram assim.<br />
Um síndico foi afastado porque nos<br />
defendeu. Lamento. Não por mim e<br />
minha família. Apenas não vejo mais<br />
necessidade de comentar. O tempo<br />
passou e tenho talvez a esperança ou<br />
ilusão que momentos desagradáveis<br />
assim não se repitam.<br />
Faculdade e segundo<br />
casamento<br />
Meu segundo marido foi o pai do<br />
Mateus. Tínhamos uma relação muito<br />
especial um com o outro. O Paulo foi<br />
meu mestre, meu professor, namorado<br />
e não só isso. Meu companheiro<br />
em tudo. Eu fiz faculdade de psicologia<br />
para entender melhor o Mateus e<br />
lidar melhor com as questões que envolvem<br />
seu diagnóstico. O Paulo deu<br />
a maior força. Continuo estudando e<br />
é um caminho para mim. Ele sempre<br />
soube lidar com o Mateus. Nós<br />
brincávamos todos juntos, o Mateus<br />
o imitava.<br />
Colocava o seu sapato e saia pela casa.<br />
Um dia quando o Paulo foi me buscar<br />
em casa para sair, antes de nos casarmos.<br />
Eu estava me arrumando no<br />
quarto e o Paulo na sala sentou o Mateus<br />
em seu colo, naquela época com<br />
3... 4 anos. E eu do quarto sem querer<br />
ouvi esse presente.O Paulo perguntou<br />
se o Mateus queria ser seu filho, que<br />
poderia chamar ele de pai.<br />
Nós nos<br />
divertíamos<br />
muito juntos, em parques,<br />
cinema, teatro...<br />
Cozinhávamos e o Paulo sempre fazia<br />
a gente rir. Infelizmente ele foi adoecendo<br />
com o tempo e faleceu. Eu mais<br />
uma vez fiquei abalada. Em luto.<br />
O Mateus em crise se machucou<br />
muito. As crises fazem parte do transtorno.<br />
Desde pequeno entrou em<br />
diversas crises. Para mim a pior foi na<br />
puberdade. Ficou muito perigoso para<br />
o Mateus e impossível de controlarmos<br />
sozinhos a situação. Tivemos que<br />
colocá-lo em um lar por alguns meses.<br />
Ele melhorou e voltou para casa.<br />
Hoje moramos com os avós do<br />
Mateus. É muito bom almoçar em<br />
família... essa união, família é a base.<br />
É tudo!!!<br />
Autismo e dificuldades que<br />
podemos transpor<br />
O Mateus em momentos de crise usa<br />
capacete; já precisou fazer duas cirurgias<br />
plásticas faciais. Fala-se de diagnóstico<br />
precoce, autismo na infância.<br />
É muito importante o diagnóstico<br />
precoce para o tratamento.<br />
Mas quase não se fala dos adultos.<br />
Eles envelhecem e nós também.<br />
Meu filho precisa de assistência 24<br />
horas. Todos precisamos de nosso espaço<br />
garantido. Eles não são diferentes.<br />
Onde eles tenham todo cuidado,<br />
inclusão e sua individualidade.<br />
Penso que vão precisar de mais residências<br />
assistidas acessíveis.<br />
Centros de tratamento com atendimento<br />
multidisciplinar acessível.<br />
Sempre inclusão e atendimento prioritário.<br />
Todos têm seus direitos.<br />
Todos deveriam ter os melhores<br />
tratamentos.<br />
A lei muitas vezes não saem do papel.<br />
Ela existe, mas ainda, infelizmente,<br />
não é uma realidade efetiva. Já<br />
melhorou muito, mas precisamos<br />
caminhar mais. É uma luta, porém<br />
com o apoio e a união de todos. Tenho<br />
certeza que vamos conseguir. Já está<br />
bem melhor hoje. Participei no dia<br />
da conscientização do autismo, de<br />
um simpósio na Unicamp, fazendo<br />
um depoimento de pelo menos 30<br />
minutos. Com umas 800 pessoas nos<br />
assistindo. Fiz uma entrevista na<br />
Alesp e voltei lá em um evento para<br />
dar meu depoimento.<br />
Na Câmera<br />
Municipal<br />
de<br />
Campinas<br />
também<br />
estive dando meu<br />
depoimento no encerramento<br />
do simpósio da Unicamp.<br />
Na caminhada de conscientização<br />
do Autismo na Paulista,<br />
estava lá também, fiquei muito feliz<br />
de me encontrar com muitos amigos.<br />
Vendo uma adesão cada vez maior.<br />
Temos a frente parlamentar da<br />
deficiência e do autismo. Fico muito<br />
feliz com a iniciativa da revista Ser<br />
Autista.<br />
A informação está bem maior. A<br />
aceitação também. É muito importante<br />
que a gente conheça cada vez mais<br />
nossos direitos. Meu maior medo<br />
é onde o Mateus vai ficar quando<br />
não pudermos mais suprir as suas<br />
necessidades. Tenho o apoio familiar.<br />
Embora conforme o tempo passa fica<br />
mais difícil. Há algumas poucas leis<br />
dos governos para ajudar no custeio<br />
da escola e em gastos. Mas nada muito<br />
claro, definitivo e aplicado amplamente.<br />
Para conseguir alguma ajuda é<br />
uma luta. É preciso entrar com ações<br />
na justiça e são anos. Nem sempre se<br />
consegue.<br />
No Caps o diagnóstico é feito, porém o<br />
encaminhamento para o tratamento<br />
não acontece. E as pessoas que não<br />
tem plano de saúde e vão para o SUS?<br />
Foi uma luta para ensinar o Mateus<br />
a ir ao banheiro, tirar a fralda, a sua<br />
higiene pessoal e ser relativamente<br />
independente. Lembro que aos cinco<br />
anos ele aprendeu a segurar a bola e<br />
jogar para a outra pessoa. Foi um esforço<br />
meu e de todos os que acompanham,<br />
em um treino quase diário.
28<br />
Intervenção<br />
Ele tinha um caderno com<br />
figuras com tudo o que achávamos<br />
que ele gostava, o Mateus<br />
nomeava. Apontava e falava ou perguntávamos<br />
o que era, ele apontava.<br />
Sempre se acalmou com água. Na<br />
piscina ou praia ou banho. Com massagem,<br />
ele faz até hoje. A massagem é<br />
excelente. É um momento importante<br />
de integração com o outro, com o<br />
ambiente. É muito bom a mãe quando<br />
puder fazer no filho. Eu faço todos<br />
os dias, porém quando não posso me<br />
ajudam. Mãe e pai não devem ser<br />
terapeutas de seus filhos. Mãe e pai<br />
devem ser apenas isso, não é pouco.<br />
Estar presente, cuidar do outro, sem<br />
deixar de se cuidar, ensinar, aprendendo<br />
a lição. Precisa manter a rotina,<br />
um ambiente mais tranquilo o máximo<br />
possível, ensinar que nem sempre<br />
é assim. Não sabemos até onde vai<br />
o entendimento do Mateus, mas ele<br />
tem ótima compreensão e empatia.<br />
Ele gosta das pessoas e quer sua companhia.<br />
Mas tem um treino, manejo<br />
para isso acontecer. Inclusão nas<br />
escolas, famílias, sociedade sempre.<br />
Os pais não devem carregar uma<br />
cruz, devem apenas amar fazendo o<br />
possível. Tentamos por meio do que o<br />
Mateus gosta que ele se desenvolvesse<br />
dentro de suas possibilidades, e au-<br />
mentar seu repertório.<br />
Ele gosta de água, piscina,<br />
praia, parque, caminhar, passear,<br />
música...<br />
Alguns sons ele curte, mas outros<br />
não. Tentamos entender isso. Antes<br />
do diagnóstico quando eu ligava o<br />
liquidificador, o Mateus se assustava e<br />
colocava as mãos no ouvido, fechando<br />
a porta do quarto com tudo. Eu não<br />
entendia o que era isso e não sabia<br />
lidar com a situação. Para mim é fundamental<br />
a orientação que tive, tenho<br />
de excelentes profissionais na área e<br />
meus estudos. Outro dia ele viu um<br />
liquidificador em casa e sinalizou que<br />
queria fazer um suco.<br />
A questão da temperatura do corpo<br />
para ele é diferenciada. Muitas vezes<br />
que está frio, põe roupa de calor.<br />
Eu já passei muito tempo tentando<br />
agasalhar o Mateus no frio enquanto<br />
ele dormia. Ele tirava a roupa e punha<br />
sunga que estava no seu armário.<br />
Tentei equilibrar oferecendo um<br />
cobertor. Ele gostou e agora quer se<br />
cobrir para dormir mesmo no calor,<br />
então deixo o quarto fresquinho.<br />
Massagem é bom para isso também.<br />
O Mateus balançava o corpo para<br />
frente e para trás, ele tinha uma rede<br />
para fazer isso. Pois a rede ou balanço<br />
de parque o acalmava muito. Todos<br />
nós da família brincamos disso com<br />
ele. Assim com o tempo ele parou de<br />
balançar. Seus avós o levaram muito a<br />
parques. O avô até basquete, futebol,<br />
skate... brincou com ele. Todos nós<br />
brincamos... faz parte do tratamento<br />
também.
29<br />
Tenho eterna gratidão a minha família,<br />
ao Dr. Raymond Rosenberg, Dr.<br />
Salomão Schwartzman, a Dra. Beatriz<br />
Padovan, a todos da Fada, todas as<br />
mães e pais e a todos que estiveram e<br />
estão presentes com a gente, eu e meu<br />
filho e na nossa causa. Sou grata ao<br />
Mateus por tudo.<br />
Mateus hoje<br />
Hoje ele tem uma socialização maravilhosa.<br />
Fazemos esteira juntos e ele<br />
é um grande companheiro. Tem seus<br />
amigos e está sempre presente nas<br />
nossas reuniões familiares. Os sobrinhos<br />
fazem pipoca com ele, gente ele<br />
A-DO-RA pipoca. Dividem um com<br />
outro esses momentos. Nadam juntos,<br />
assistem filmes, o Mateus gosta também<br />
de vídeo clipes de música.<br />
Tem um laptop que ele brinca no<br />
quarto e junto com a gente. Temos<br />
uma pessoa muito querida que está<br />
bastante presente, muito carinhoso<br />
com todos da nossa família. Eu deixo<br />
ele estragar um pouco o Mateus oferecendo<br />
doces. Não deixava ninguém<br />
fazer isso antes. Penso que o Mateus<br />
tolera açúcar sem exageros.<br />
Faz atividades de rotina, arruma a<br />
cama, lava os pratos, limpa os móveis<br />
do seu quarto, vai ao mercado, molha<br />
as plantas e ajuda na horta. É vaidoso<br />
e escolhe suas roupas. Ás vezes fica<br />
no quarto sozinho experimentando<br />
todas as roupas de seu armário.<br />
Nessa páscoa acordou muito mais<br />
cedo encontrando os ovos de chocolate,<br />
que estavam dentro da caixa,<br />
em um quarto da casa que ele não<br />
entrava. O Mateus tem um faro mais<br />
desenvolvido e outros sentidos que<br />
não temos. Penso que ele sentiu o<br />
cheiro. Chocolate é difícil de esconder<br />
dele... Mas ficou tão feliz parecendo<br />
emocionado, acabou não comendo o<br />
ovo de páscoa. Naquele momento...<br />
Autismo tem cura?<br />
A cura para o autismo não existe.<br />
Existe tratamento e aceitação.<br />
Não são autistas. São seres humanos.<br />
Podem evoluir. Não sabemos até<br />
onde. É provável. Sinto no Mateus<br />
uma melhora crescente. Ninguém<br />
sabe até onde podem chegar. Minha<br />
família sempre esteve ao meu lado.<br />
Isso é essencial. Tenho muito orgulho<br />
do Mateus e meu filho é como o de<br />
muitas mães. Onde valorizamos as<br />
mínimas conquistas. Penso que orientar<br />
os familiares e acolher é muito<br />
importante. Tenho a experiência de<br />
26 anos com meu filho, sou psicóloga<br />
graduada e tenho esse projeto de<br />
trabalhar com orientação psicológica<br />
para autistas e seus familiares.<br />
Utilizando-me da psicologia e minha<br />
história com o Mateus. Primeiro<br />
precisamos nos cuidar para cuidar<br />
do outro. Sou palestrante e engajada<br />
na causa autista. Minha aceitação do<br />
diagnóstico veio com o tempo. Abandonei<br />
uma carreira artística bem-sucedida<br />
e estou retomando. É como um<br />
espetáculo teatral. O espetáculo único.<br />
Só nosso. O que sentimos é nosso.<br />
Mas os personagens vários. Sou muito<br />
feliz ao lado do meu filho e faria tudo<br />
de novo. Não me arrependo de nada.<br />
Tenho sorte de ter um filho onde eu<br />
posso enxergar o mundo com mais<br />
verdade, pureza e entrega. Os autistas<br />
são bons... são sempre crianças, mas<br />
crescem... são inocentes... anjos.<br />
Não são normais. Nós não somos também.<br />
Isso pode ser bom. Eles não têm<br />
o faz de conta. Não entendem o duplo<br />
sentido. São eles mesmos. Verdadeiros.<br />
Precisam como todas as pessoas<br />
serem amados e aceitos. Entendo<br />
com meu filho o melhor de mim. Um<br />
mundo onde podemos aceitar e unir.<br />
Devo ao meu filho a união de minha<br />
família, aprendizado e um novo caminho.<br />
Entendo-me mais feliz e isso<br />
basta. Sonho para todos aceitação,<br />
verdade que é encontro. Um mundo<br />
sem preconceitos, união e amor.<br />
Como é para meu filho. O Mateus tem<br />
dificuldade com o não. Precisam ser<br />
ensinados para entender melhor isso.<br />
Ou serem aceitos?<br />
Precisam se socializar sim. Da forma<br />
como podem...<br />
Não sabemos o limite disso. Pois o<br />
limite é uma convenção. Não se pode<br />
limitar uma pessoa, embora isso<br />
também seja importante. Podemos<br />
resumir assim? Não sei... Gostaria de<br />
entender. É assim que entendo... Vejo<br />
aceitação, resignação, resiliência e<br />
beleza. Posso dizer que superei, mas<br />
todos os dias são de luta. Não posso<br />
dizer que é tão fácil. Mas vale a pena.<br />
Faria tudo de novo para ver o meu<br />
filho sorrir e olhar para mim. Eu me<br />
encontro quando vejo os olhos do<br />
Mateus, através de mim, sorrir.<br />
“Eu me encontro quando<br />
vejo os olhos do Mateus,<br />
através de mim, sorrir”<br />
E quem quiser falar mais comigo.<br />
Seguem meus contatos.<br />
Patrícia Lucchesi<br />
Psicóloga CRP 06/108747<br />
www.patricialucchesipsicologia.com.br<br />
contato@patricialucchesipsicologia.com.br<br />
patricia.lucchesi.16<br />
patilucchesi
30<br />
A REALIDADE DO AUTISMO SEVERO<br />
Observamos nos últimos anos um<br />
avanço na divulgação sobre o autismo<br />
nos meios de comunicação, ao que<br />
consideramos por conscientização<br />
sobre o autismo.<br />
A visibilidade para as pessoas autistas<br />
na TV, por exemplo, acontece frequentemente.<br />
Entretanto, a queixa<br />
frequente sobre essa visibilidade<br />
informativa é a quase invisibilidade<br />
da realidade do autismo severo.<br />
Uma realidade onde os desafios do<br />
autismo leve e moderado se diversificam<br />
e se multiplicam na severidade<br />
do autismo com a deficiência intelectual<br />
(na maioria dos casos); e um<br />
conjunto de comorbidades associadas<br />
que vão muito além das conhecidas e<br />
divulgadas características do autismo.<br />
Realidade muitas vezes vivida de forma<br />
sofrida por esses autistas severos<br />
e seus cuidadores e que conheço há<br />
mais de vinte anos pelo meu filho<br />
e muitos autistas severos, que aliás<br />
são milhares por todo o país e pelo<br />
mundo.<br />
O autismo severo não é sofrível por<br />
suas próprias características adicionais<br />
às próprias características<br />
do autismo; é sofrível também pela<br />
carência de apoio profissional nos<br />
atendimentos e tratamentos desde o<br />
diagnóstico.<br />
Sofrível pela parcialidade ou ausência<br />
desses serviços no sistema de saúde<br />
mental e clínica. Sistema que disponibiliza<br />
serviços e profissionais aquém<br />
das necessidades de apoio dos autistas<br />
severos. Serviços e profissionais limitados<br />
a atendimentos de neurologia,<br />
psiquiatria e medicações. Conjunto<br />
de apoio parcial e insuficiente que se<br />
limite a uma relativa estabilidade.<br />
Estabilidade essa que muitas vezes<br />
acaba não acontecendo ou que<br />
acontece com altas doses de uso<br />
controlado. Na triste e cruel realidade,<br />
esses autistas não estão exatamente<br />
mentalmente estáveis: estão dopados.<br />
E se as medicações de fato são tão<br />
importantes quanto necessárias para<br />
muitos autistas, o aumento de medicações<br />
e doses são uma resposta à<br />
necessidade de apoio multidisciplinar<br />
com terapias.<br />
Eu vivi esse grande e triste dilema por<br />
muitos anos com meu filho autista.<br />
Vivi a angústia continua de encontrar<br />
para ele na rede pública somente<br />
as consultas com o psiquiatra e a<br />
prescrição de inúmeros medicamentos<br />
em doses que muitas vezes<br />
resultavam em efeitos colaterais<br />
bastante desconfortáveis ao autista<br />
e ao pai. Olhos vermelhos, andar<br />
cambaleante e salivação eram os<br />
efeitos sempre visíveis! Mas as medicações<br />
tinham um outro efeito que<br />
somente eu presenciava nas noites e<br />
madrugadas: a respiração ofegante...<br />
Muitas noites passei sem dormir<br />
por ele se manter acordado. Muitas<br />
noites passei sem dormir angustiado<br />
por vê-lo dormir ofegante.<br />
Quando questionados sobre esses<br />
efeitos, se limitavam a esclarecer que<br />
eram normais. Além disso, diziam que<br />
ainda tinha margem para aumentar a<br />
dose, caso necessário. Sem as consultas<br />
médicas e o uso das medicações, o<br />
que era ruim pelos efeitos colaterais<br />
poderia ficar pior com os episódios de<br />
crises de agressividade.<br />
Crises que por vezes aconteciam<br />
mesmo no uso das medicações. Crises<br />
em que Lucas Gabriel, meu filho<br />
autista severo, se mordia nos braços<br />
e mãos e mordia outras pessoas à sua<br />
volta. Crises de quebradeiras, quando
31<br />
quebrava em casa tudo que conseguia<br />
quebrar. E era praticamente tudo que<br />
ele quebrava nessas crises... Crises<br />
alimentadas também pela difícil<br />
convivência com a mãe, que tem<br />
esquizofrenia. Diversas vezes fui<br />
chamado com urgência em casa por<br />
minha mãe porque o autista severo, já<br />
adolescente e forte, estava quebrando<br />
tudo numa crise de agressividade... E<br />
quando chegava em casa encontrava<br />
uma praça de guerra e um autista severo<br />
no meio dos destroços de móveis<br />
e eletrodomésticos.<br />
Ainda assim, gosto sempre de lembrar<br />
que o autismo severo não se resume<br />
a crises de agressividade. Antes e<br />
depois dessas crises, é possível acontecer<br />
momentos de carinho vindos<br />
do autista com beijos e abraços.<br />
Abraços desajeitados com o braço envolvendo<br />
o pescoço e beijos por vezes<br />
lambuzados. Carinhos que acontecem<br />
naturalmente... Principalmente quando<br />
o autista também recebe carinho.<br />
Outra realidade marcante no autismo<br />
severo é a ausência de autonomia e a<br />
necessidade de companhia e auxílio<br />
constante. Ajudas necessárias<br />
inclusive nas situações básicas, na<br />
higiene pessoal por exemplo. E essa<br />
necessidade de apoio constante segue<br />
na adolescência e na vida adulta. Nos<br />
autistas não verbais, a ausência da<br />
fala é um desafio extra para o autista,<br />
a família e até mesmo profissionais na<br />
área de saúde clínica. A dificuldade<br />
na comunicação não verbalizada e<br />
não compreendida plenamente tanto<br />
pelos autistas como por seus cuidadores,<br />
muitas vezes é, também, a causa<br />
de crises.<br />
A realidade do autismo severo reflete<br />
também na saúde mental e física<br />
dos seus cuidadores na família, que<br />
muitas é somente a mãe cuidadora.<br />
Mães que acabam sofrendo tanto pela<br />
realidade do filho autista como pela<br />
sua própria realidade. Mães cansadas<br />
fisicamente e mentalmente... Mães<br />
que sofrem como vítimas da depressão,<br />
ansiedade e outras situações<br />
negativas na mente e no corpo. Mães<br />
sem o apoio necessário e sem esperança<br />
para o futuro do filho autista<br />
para o tempo em que esse autista será<br />
órfão. Esperando respostas, perguntam<br />
verbalmente ou silenciosamente:<br />
“Onde meu filho vai morar?”, “Quem<br />
vai cuidar do meu filho?”<br />
Para esses casos, que são muitos,<br />
as moradias assistidas com equipe<br />
multidisciplinar é uma alternativa!<br />
Entretanto, há uma resistência dos<br />
governos em investir nesse modelo<br />
de acolhimento e tratamento profissional<br />
e humano às pessoas autistas<br />
como parte de políticas públicas. Na<br />
realidade, em função da ausência de<br />
tratamento desde o diagnóstico e ao<br />
longo dos anos, a situação de muitos<br />
desses autistas vai se complicando na<br />
infância, adolescência e chega na vida<br />
adulta.<br />
E a mais cruel realidade no autismo<br />
severo que muitos desconhecem,<br />
ou ignoram, é que muitos autistas<br />
severos chegam à adolescência com<br />
crises frequentes de agressividade e<br />
a família desesperada não consegue<br />
controlar a situação.<br />
Há uma máxima equivocada de<br />
que para cuidar de autistas basta<br />
amor e paciência. Paciência e amor<br />
são realmente muito importantes,<br />
mas nem de longe são suficientes.<br />
Nos bastidores do autismo severo,<br />
as crises de agressividade parecem<br />
erupções vulcânicas. São vulcões<br />
temporariamente adormecidos<br />
que podem despertar a qualquer<br />
momento. Para onde correr?<br />
A quem recorrer?<br />
Nesses casos em que até mesmo<br />
médicos e medicações não conseguem<br />
mais controlar a situação de crises<br />
de agressividade no autismo severo,<br />
a triste recomendação à família: a<br />
institucionalização para tratamentos<br />
e qualidade de vida desses autistas.<br />
Essa é uma outra realidade bastante<br />
preocupante, triste e desconhecida da<br />
maioria.<br />
Centenas de autistas severos estão<br />
nesse momento institucionalizados<br />
no Brasil. Num sistema praticamente<br />
manicomial, muitas instituições<br />
recebem esses autistas sem a<br />
equipe multidisciplinar necessária.<br />
São clínicas, abrigos e hospitais psiquiátricos<br />
que recebem esses autistas<br />
em convênio com o poder público que<br />
foi condenado em processo judicial a<br />
oferecer todo o tratamento necessário<br />
por meio da institucionalização.<br />
Contudo, o que acontece na prática de<br />
muitas instituições é um tratamento<br />
que se resume ao acompanhamento<br />
do médico psiquiatra e os cuidados<br />
pela equipe de enfermagem com as<br />
medicações de rotina e medicações<br />
extras administradas nos momentos<br />
de crises desses autistas, além das<br />
contenções com amarras de pano.<br />
Posso afirmar que, infelizmente,<br />
conheço essa realidade do autista<br />
severo institucionalizado não apenas<br />
de ouvir falar. Sou testemunha ocular<br />
dessas preocupantes situações. Hoje,<br />
sou pai e padrasto de autistas severos<br />
adultos que, infelizmente, estão temporariamente<br />
institucionalizados em<br />
diferentes instituições. Com minha<br />
Maria, trabalhamos muito no preparo<br />
de uma nova vida para nossos rapazes<br />
autistas.<br />
A angústia da separação é imensa!<br />
Além dessa angústia, sigo protestando<br />
minha revolta contra esse sistema<br />
manicomial em que autistas são tratados.<br />
Um exemplo dessa desumanidade<br />
contra as pessoas autistas é local<br />
onde está meu enteado e mais cinco<br />
autistas severos adultos, que funciona<br />
há três anos de maneira inadequada e<br />
irregular.<br />
Autistas que raríssimas vezes veem<br />
e sentem a luz solar em momentos<br />
ao ar livre... Autistas severos sem o<br />
necessário acompanhamento multidisciplinar,<br />
sendo cuidados apenas<br />
pela equipe de enfermagem.<br />
Para uma verdadeira e completa conscientização<br />
sobre o autismo, expor essas<br />
realidades sobre o autismo severo<br />
é absolutamente imprescindível!<br />
Eliseu Acácio, pai e ativista<br />
pela causa autista.
32<br />
Acho que a maior regra de todas, quando você tem<br />
um filho autista, é ter BOM SENSO e BOM HUMOR!<br />
Meu filho, Gabriel, é autista. Teve o<br />
diagnóstico aos 3 anos. Logo depois,<br />
recebi um panfleto de uma fonoaudióloga<br />
com umas “dicas” que eu<br />
deveria seguir.<br />
Dizia mais ou menos assim:<br />
1) converse com seu filho sobre tudo;<br />
2) dance com ele;<br />
3) cante;<br />
4) olhe nos olhos;<br />
5) use frases curtas.<br />
Tinham outras regras também, mas<br />
essas eu as coloquei em prática há 16<br />
anos. Converso com ele sobre tudo e<br />
quando o “negócio aperta”, solto um:<br />
me ajuda aí... Falo tanto né que ele<br />
também responde tudo com né! Ele<br />
fala pouco, meio embolado. Mas o<br />
som da voz dele acalma minha alma<br />
e alegra meu coração. Adora cantar.<br />
Tem um repertório meio eclético!<br />
Já cantou muito “hoje é festa lá no<br />
meu ap., pode aparecer” do Latino...<br />
até o clássico do Roberto “como é<br />
grande, o meu amor por você. Acho<br />
que a maior regra de todas, quando<br />
você tem um filho autista, é ter BOM<br />
SENSO e BOM HUMOR! Porque você<br />
vai precisar.<br />
Já passei por muitas situações complicadas!<br />
O maior desafio do autismo<br />
é o comportamento inadequado. Vou<br />
descrever algumas: estávamos no<br />
Prezunic (supermercado). Eu, ele e a<br />
psicóloga, que estava ensinando-o a<br />
fazer compras. Neste dia, ele estava<br />
com sinusite, deveria estar sentindo<br />
dor, mas na maioria das vezes, temos<br />
que descobrir que eles estão doentes...<br />
Meu filho chega e diz: mãe, estou<br />
com dor na garganta, no ouvido! A<br />
psicóloga era muito confusa, dava<br />
várias ordens ao mesmo tempo e ele<br />
se desorganizou e quando estava<br />
colocando alguns legumes na sacola,<br />
ele deu um tapa no nariz dela, o<br />
nariz sangrou, ela foi ficando verde e<br />
desmaiou... Gabriel chorava, queria se<br />
bater, ficou desorganizado...<br />
Um homem começou a falar alto que<br />
tinha que chamar a polícia, que o meu<br />
filho não podia andar solto por aí...<br />
Respirei fundo, pedi a dois funcionários<br />
do mercado que segurasse os braços<br />
do meu filho, cada um de um lado<br />
para ele não se bater, chamei a moça<br />
do mercado para acudir a psicóloga,<br />
ela rapidamente voltou a si.<br />
Parei, olhei para o meu filho, muitas<br />
pessoas do nosso lado, discutindo<br />
com o homem, eu limpei o seu rosto,<br />
com um pacotinho de lenço de papel<br />
que uma senhora colocou na minha<br />
mão e sai daquela situação com ele.
33<br />
Ele se acalmou, fomos para o setor de<br />
frios e parece que nada daquilo tinha<br />
acontecido. Sempre vejo as atitudes<br />
das pessoas “boas” no mundo, porque<br />
elas sim são a maioria!<br />
A psicóloga, um tempo depois, mandou<br />
a sócia dela encaminhar meu<br />
filho para o NEC, instituto em Boston,<br />
que demora alguns anos só para responder<br />
um formulário! Por isso, acho<br />
que a grande sacada é o treinamento<br />
dos pais, para não ficarmos na mão de<br />
nenhum terapeuta!<br />
Teve outro episódio no shopping. Ele<br />
tinha pedido o dia inteiro para ir ao<br />
shopping. Fomos! Eu, ele e a cuidadora.<br />
Ele pediu para ir num restaurante<br />
self-service. Shopping lotado, feriado<br />
escolar. Ele monta seu prato, sentamos<br />
numa mesa e de repente, ele joga o<br />
prato no chão!<br />
O shopping inteiro parou! Silêncio<br />
absoluto! Nessa hora, eu gostaria te ter<br />
me transformado num avestruz e ter<br />
enterrado minha cabeça na grama, no<br />
chão, em qualquer lugar. Mas como<br />
não me transformei, respirei fundo,<br />
não me atrevi a olhar para o lado, ouvi<br />
uma voz lá no fundo oferecendo para<br />
ajudar. Agradeci. E falei sério com o<br />
moleque: “Você vai pegar tudo o que<br />
você jogou no chão”.<br />
Fiz ele catar todos os cacos do prato e<br />
colocar na bandeja. Depois nos levantamos<br />
como se nada tivesse acontecido.<br />
Ele foi brincar num parquinho.<br />
Eu queria entender porque o autista<br />
se desorganiza do nada! Tem muitas<br />
outras histórias! Muitas! Mas tudo que<br />
vivemos valeu a pena. Hoje, aos 19<br />
anos, ele se comporta muito bem, sabe<br />
esperar, é muito obediente, sabe se<br />
controlar. O autista tem que ter limite,<br />
tem que ser educado, ele não pode<br />
fazer tudo que quiser, porque é autista!<br />
Eles não têm medo de correr na rua<br />
e ser atropelado, por exemplo, cabe<br />
a nós, responsáveis, ensiná-los a ter<br />
medo, a cantar, a dançar... Eu falo com<br />
o meu filho desde pequeno que<br />
“a vida é dura”...<br />
mas que vale a pena!<br />
ANDRÉA OLIVEIRA é jornalista<br />
e mãe da Rafaela, de 27 anos e do<br />
Gabriel, autista, de 19.
34<br />
O Que Ensinar? (do leve ao severo)<br />
Na vida, cada indivíduo aprende uma<br />
série de coisas, algumas são aprendidas<br />
de maneira mais natural, sem<br />
planejamento, o que ocorre em todos<br />
os momentos. Já outras muitas coisas<br />
são ensinadas intencional e planejadamente,<br />
sobretudo nesta instituição<br />
a que denominamos de escola.-<br />
A escola ensina coisas como leitura,<br />
multiplicação, História do Brasil,<br />
entre outros. Para que tudo isto e<br />
muito mais seja ensinado, há uma<br />
programação que é gradual, isto é,<br />
começando com coisas mais fáceis até<br />
habilidades complexas. Ocorre que<br />
para a escola ensinar o que ensina<br />
da forma que ensina, ela precisa de<br />
certos pré-requisitos que são aprendidos<br />
mais ou menos naturalmente,<br />
tais como ouvir e entender o idioma,<br />
atender a instruções, rastrear objetos<br />
com o olho, entre muitos outros.<br />
Mas crianças com autismo ou outros<br />
transtornos do neurodesenvolvimento<br />
podem não emitir estes comportamentos<br />
conforme o esperado para a<br />
idade.<br />
Pessoas com TEA leve normalmente<br />
possuem a maior parte dos pré-requisitos<br />
escolares e as adaptações necessárias<br />
podem ser mais de produção<br />
de arranjos para o desenvolvimento<br />
de habilidades sociais, mas pessoas<br />
na faixa severa do espectro podem<br />
estar muito distantes do currículo<br />
formal. Não é incomum ver pessoas<br />
com maior comprometimento e que<br />
não conseguiram aprender a ler e<br />
escrever, em aulas de português, tomando<br />
lições de Oração Coordenada<br />
Subordinada Assindética, o que é um<br />
flagrante desvio do projeto inclusivo.<br />
Que fazer então?<br />
O currículo único para toda uma sala<br />
de aula, não é o cenário ideal, mas é o<br />
que conseguimos prover maciçamente<br />
por meio dos serviços educacionais<br />
usuais. No entanto, uma população<br />
com desenvolvimento atípico exige<br />
um serviço atípico. Há dois extremos<br />
para os quais este currículo comum<br />
pode ser insuficiente, os estudantes<br />
com superdotação (para os quais é necessário<br />
o enriquecimento curricular)<br />
e com deficiências (para os quais são<br />
necessárias adaptações de variada natureza)<br />
é precisamente para isto que<br />
serve o serviço de Educação Especial.<br />
No caso da criança com autismo, o<br />
ideal é que o professor(a) especialista<br />
em Educação Especial domine<br />
protocolos de avaliação adequados<br />
para o público com que trabalha, por<br />
exemplo: em uma creche, o Portage e<br />
o VB-MAPP; no Ensino Fundamental<br />
inclusivo, o VB-MAPP e o PEAK;<br />
na Educação Especial o ABLLS-R e<br />
o AFLS, entre muitos outros (só dei<br />
exemplos), além de eventuais avaliações<br />
específicas.<br />
A partir desta avaliação é que se deve<br />
elaborar o Plano de Ensino Individualizado<br />
– PEI, aproximando-o sempre<br />
do currículo da escola o máximo pos-<br />
sível. Isto nos permite reconhecer, de<br />
maneira sistematizada, quais as habilidades<br />
deveriam estar presentes no<br />
comportamento do aluno e que, como<br />
decorrência dos prejuízos inerentes<br />
aos transtornos do neurodesenvolvimento,<br />
não estão.<br />
Esse plano pode prever alterações de<br />
abordagem (privilegiando pistas visuais,<br />
por exemplo), de conteúdo (enfatizando<br />
pré-requisitos para outros<br />
comportamentos, por exemplo), de<br />
velocidade (ajustando-se ao indivíduo)<br />
entre outras dimensões do currículo.<br />
Imagine uma criança hipotética,<br />
Joana, com TEA, que não consegue<br />
acompanhar um objeto com o olhar,<br />
tornando impossível sua alfabetização.<br />
O que deve a educação fazer,<br />
pedir aos terapeutas que ensinem<br />
este comportamento? Resignarem-<br />
-se? A resposta correta é: estabelecer<br />
o rastreio visual como um objetivo<br />
curricular para este indivíduo, com<br />
procedimentos de ensino, mensuração<br />
de resultados e metas específicas.<br />
Fazemos nossa parte e esperamos<br />
que a biologia faça a dela. Quando há<br />
qualquer desequilíbrio nesta relação,<br />
a suplementação de aprendizagem<br />
da criança se torna nosso horizonte<br />
fundamental.<br />
PROF. LUCELMO LACERDA<br />
pesquisador em autismo<br />
e inclusão
35<br />
ADAPTAÇÃO<br />
CURRICULAR:<br />
ferramenta<br />
indispensável na<br />
inclusão escolar<br />
Quando o assunto é aprendizado e<br />
inclusão escolar podemos elencar<br />
uma diversidade de “dificultadores”<br />
que vão desde a falta de estrutura da<br />
escola até a ausência de capacitação<br />
de professores. Vou além, também temos<br />
a ausência de comprometimento<br />
de muitas famílias que ainda insistem<br />
em achar, comodamente, que<br />
educação e aprendizado é somente<br />
responsabilidade da escola, bem como<br />
destaco a falta de dedicação de terapeutas<br />
que acham que não precisam<br />
estar juntos ao estabelecimento de<br />
ensino para proceder ao tratamento<br />
efetivo do seu paciente.<br />
Discorro sempre sobre a necessidade<br />
de união da família, da escola e dos<br />
terapeutas no processo de inclusão.<br />
Claro que não estou deixando o<br />
Estado de fora. Este também tem seu<br />
papel, entre outros, criando normas,<br />
fiscalizando e, no caso específico das<br />
escolas públicas, dando suporte de<br />
âmbito formal e material.<br />
Dentro do processo de aprendizado<br />
do aluno de inclusão é necessário o<br />
emprego de ferramentas que vêm<br />
proporcionar planejamento e efetividade.<br />
Dentre elas, cito o Programa<br />
de Ensino Individualizado, conhecido<br />
como PEI. Trata-se de currículo adaptado<br />
a ser produzido pelo professor e<br />
equipe pedagógica da escola com o fim<br />
de, além de planejar, traçar metas que<br />
serão fundamentais no processo de<br />
desenvolvimento do aluno. Quando<br />
o educando é assistido por terapeutas<br />
(psicólogos, psicopedagogos, terapeutas<br />
ocupacionais, fonoaudiólogos...)<br />
é importante que sejam consultados<br />
acerca da construção deste PEI, pois<br />
têm condições de indicar quais são os<br />
programas/métodos que facilitarão o<br />
aprendizado do seu paciente.<br />
Infelizmente, vemos que poucas escolas<br />
têm se interessado em confeccionar<br />
o PEI, deixando de lado um rico<br />
instrumento composto por metodologias,<br />
materiais (adaptados ou não),<br />
objetivos, conteúdos e avaliação. Ao<br />
deixar de produzir e currículo adaptado,<br />
a escola perde a oportunidade de<br />
ter maior condição de proporcionar<br />
o máximo de desenvolvimento do<br />
aluno de inclusão, tendo em vista que<br />
se trata de planejamento individual e,<br />
assim sendo, mais preciso e efetivo.<br />
No entanto, há de se ressaltar que<br />
existe legislação que disponha acerca<br />
da necessidade de currículo adaptado<br />
e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei<br />
nº13.146/2015) veio ao encontro desse<br />
entendimento. Veja-se o que diz o<br />
artigo 28:<br />
ART. 28. INCUMBE AO PODER PÚBLICO ASSEGU-<br />
RAR, CRIAR, DESENVOLVER, IMPLEMENTAR, INCEN-<br />
TIVAR, ACOMPANHAR E AVALIAR: (...)<br />
V - ADOÇÃO DE MEDIDAS INDIVIDUALIZADAS E<br />
COLETIVAS EM AMBIENTES QUE MAXIMIZEM O<br />
DESENVOLVIMENTO ACADÊMICO E SOCIAL DOS<br />
ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA, FAVORECENDO<br />
O ACESSO, A PERMANÊNCIA, A PARTICIPAÇÃO E A<br />
APRENDIZAGEM EM INSTITUIÇÕES DE ENSINO; (...)<br />
§ 1O ÀS INSTITUIÇÕES PRIVADAS, DE QUALQUER NÍ-<br />
VEL E MODALIDADE DE ENSINO, APLICA-SE OBRIGA-<br />
TORIAMENTE O DISPOSTO NOS INCISOS I, II, III, V,<br />
VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI,<br />
XVII E XVIII DO CAPUT DESTE ARTIGO, SENDO<br />
VEDADA A COBRANÇA DE VALORES ADICIONAIS DE<br />
QUALQUER NATUREZA EM SUAS MEN<strong>SA</strong>LIDADES,<br />
ANUIDADES E MATRÍCULAS NO CUMPRIMENTO<br />
DES<strong>SA</strong>S DETERMINAÇÕES.<br />
Lembrando que todas as escolas estão<br />
inseridas neste artigo. A concessão<br />
para funcionar é pública, portanto, as<br />
escolas particulares também devem<br />
confeccionar o currículo adaptado,<br />
que é uma medida de ensino individualizada,<br />
para o aluno de inclusão.<br />
Conforme diz a psicopedagoga Letícia<br />
de Pádua, “cada criança tem suas<br />
peculiaridades no aprender e são<br />
essas individualidades que darão<br />
norte ao professor da conduta<br />
que deverá ter com ela, para<br />
que a mesma possa assimilar os<br />
comportamentos e conteúdos<br />
acadêmicos”.<br />
A profissional ainda acrescenta que,<br />
independente de estarmos lidando<br />
com uma criança autista, síndrome de<br />
Down ou qualquer outra que necessitará<br />
de uma avaliação diagnóstica,<br />
plano de ensino e metodologias diferenciadas<br />
são muito importantes:<br />
1 - CONHECER MELHOR O ALUNO;<br />
2 - AVALIAR AS DIVER<strong>SA</strong>S<br />
COMPETÊNCIAS/HABILIDADES;<br />
3 - ESTABELECER AS METAS E<br />
ELA BORAR UM CRONOGRAMA;<br />
4 – AVALIAR E REAVALIAR,<br />
CONTINUAMENTE.<br />
Com essas ações, o aluno terá seu<br />
direito ao aprendizado respeitado e<br />
poderá desenvolver suas habilidades.<br />
Não adaptar o currículo é discriminar<br />
a pessoa autista.<br />
TATIANA TAKEDA é professora<br />
universitária e de pós-graduações, servidora<br />
pública, advogada, membro da Comissão<br />
dos Direitos das Pessoas com Deficiência<br />
da OAB/GO, vice-presidente da Comissão<br />
de Inclusão Social e Defesa da Pessoa com<br />
Deficiência do IBDFAM/GO, mestre e especialista<br />
em Direito, pós-graduada em Ensino<br />
Estruturado para Autistas, especializa em<br />
Direito Educacional, administradora da<br />
página www.tatianatakeda.com.br e dos<br />
perfis sociais @direitoeinclusao (instagram)<br />
e Direitos e Inclusão das Pessoas com Deficiência<br />
– Prof. Tatiana Takeda (facebook), e autora<br />
da Coleção de Ebooks Viva a Diferença<br />
(download gratuito em www.ludovica.com.br).
36<br />
Encorajando os pais a serem agentes de<br />
transformação do universo de seu filho com autismo<br />
Iniciar este artigo com palavras encorajadoras<br />
faz parte da minha vida<br />
e trajetória de 30 anos de trabalho na<br />
APRAESPI a pessoas com TEA.<br />
Acreditem, estimulem e estimulem,<br />
seu filho tem potencial para alcançar<br />
um desenvolvimento além do<br />
esperado.<br />
Nas pessoas com autismo o espectro<br />
que a criança desenvolve desde<br />
pequena nos enganam com o rótulo<br />
da dificuldade de interação social e<br />
comportamentos restritos e estereotipados<br />
(como descreve-se o diagnóstico<br />
segundo o DSM-5), pois não vamos<br />
deixar que vençam nossas expectativas.<br />
Tudo depende do caminho de<br />
estimulação que traçamos.<br />
E deixo claro que foram as pessoas<br />
com TEA (transtorno do espectro autista)<br />
e seus familiares que me inspiraram<br />
a ter esta postura, como diz uma<br />
mãe muito querida Rebeca Becker<br />
“Nós somos verdadeiros<br />
soldados de transformação”.<br />
Explicando sobre os caminhos a ser<br />
tomado na estimulação a pessoa com<br />
TEA é importante ter noção de que a<br />
formação da comunicação, linguagem<br />
e fala é de suma importância a ser<br />
desenvolvida.<br />
Muitas das atividades comuns em<br />
ambientes de primeira infância<br />
podem não parecer educativas. Na realidade,<br />
pesquisas mostram que essas<br />
atividades são na verdade ferramentas<br />
de aprendizagem que promovem<br />
o desenvolvimento intelectual das<br />
crianças, principalmente em crianças<br />
com desenvolvimento atípico.<br />
Por que cantamos canções de ninar<br />
e estimulamos o encaixe com blocos<br />
com as crianças e o que elas aprendem<br />
com essas atividades? O desenvolvimento<br />
intelectual responde a<br />
essas questões e investiga a ligação<br />
entre as melhores práticas na educação<br />
infantil e a ciência do desenvolvimento<br />
infantil.<br />
A ciência explica que por meio dessas<br />
brincadeiras estimulamos na criança<br />
sua atenção compartilhada e suas<br />
funções executivas, tão necessárias<br />
no desenvolvimento integral da<br />
criança com TEA.<br />
A atenção compartilhada e funções<br />
executivas se referem à necessidade<br />
de estimulação entre o objeto e a<br />
criança. O adulto ao fazer a intervenção<br />
em crianças com TEA, deve<br />
ter claro a necessidade deste engajamento,<br />
pois é nesta tríade (adulto-objeto-criança)<br />
que iniciamos as mais<br />
necessárias ramificações neurológicas<br />
da criança.<br />
Ao fazer essa tríade estamos potencializando<br />
o contato visual da criança<br />
com TEA, centralizando-se na estimulação<br />
das percepções do que se vê,<br />
faz e executa. Associado a essa estimulação<br />
temos em evidência métodos<br />
comportamentais que dirigem nossas<br />
atitudes para esse engajamento.
37<br />
Esses métodos comportamentais<br />
que se referem ao ABA (Análise do<br />
Comportamento Aplicada), TEACCH<br />
(Tratamento e Educação para Autistas e<br />
Crianças com dificuldades relacionadas<br />
à Comunicação) e demais intervenções<br />
comportamentais são as estratégias<br />
que iremos ter para que a estimulação<br />
seja integrada, potencializando os<br />
estímulos que tanto é necessário para<br />
criança com TEA.<br />
Portanto, formas de lidar, como o que<br />
falar, como falar e quando falar com<br />
a criança, tem um significado determinante<br />
para o seu desenvolvimento,<br />
pois é desta maneira que iremos ter<br />
a significância quase que “mágica” do<br />
contato visual da criança, do seu leve<br />
sorriso ou expressão emocional e da<br />
sua verdadeira percepção do meio<br />
com o início do contato social.<br />
Esses momentos são “mágicos”, pois<br />
conseguimos com atitudes diferenciadas<br />
de estimulação, a magia do contato<br />
da criança com TEA e o início da<br />
significância dela com o mundo. Esses<br />
momentos são maravilhosos e são<br />
deles que necessitamos ter com mais<br />
frequência na vida desta criança.<br />
Os pais, após terem conhecimento<br />
desses métodos, devem agir constantemente<br />
com atitudes diferenciadas e<br />
assim o universo de conhecimento da<br />
criança estará garantido para que seja<br />
capaz de ampliar suas percepções e o<br />
que o meio social espera dela.<br />
As orientações dos profissionais das<br />
áreas de Fonoaudiologia, Psicologia,<br />
Psicopedagogia, Terapia Ocupacional,<br />
Psiquiatria e Neurologia que são envolvidos<br />
nos cuidados e estimulação<br />
da criança com TEA são as “gotinhas<br />
diárias” da transformação das atitudes<br />
das crianças e seus pais.<br />
É de suma importância que a mudança<br />
com técnicas comece em casa,<br />
para que a postura dos “soldados de<br />
transformação” tenha seu verdadeiro<br />
significado.<br />
Deixo bem claro que não podemos<br />
negligenciar tais técnicas e condutas<br />
medicamentosas, quando necessário,<br />
pois não devemos deixar escapar um<br />
segundo de uma conduta e direcionamento<br />
correto de intervenções,<br />
porque delas dependem o futuro de<br />
seu filho.<br />
Tenho a oportunidade de fazer<br />
parte de uma equipe que por meio de<br />
atitudes interligadas, que chamamos<br />
de intervenções interdisciplinares, fazemos<br />
a diferença na vida das pessoas<br />
com TEA e seus familiares.<br />
Entendo que quando temos a noção<br />
das técnicas e a importância dessas<br />
intervenções nos detalhes de cada<br />
atitude da criança com TEA, podemos<br />
proporcionar um universo de estímulos<br />
e compreensão integrada com o<br />
objetivo efetivo de conexões neurológicas<br />
e compreensão da criança e o<br />
meio em que esta vive.<br />
Com muita importância quero<br />
ressaltar que os “soldados de transformação”<br />
são também as auxiliares<br />
de classe que compõem o quadro de<br />
funcionários da APRAESPI, pois estudam<br />
e são capacitadas com as técnicas<br />
e aplicam com muita clareza, sabem o<br />
que fazer e como fazer para a estimulação<br />
necessária à criança com TEA.<br />
Portanto, os métodos devem ser aplicados<br />
por todos a todo momento, de<br />
maneira integrada para que a criança<br />
compreenda sempre o que está fazendo<br />
e como deve fazer, porque são<br />
desses momentos de intervenção que<br />
mais necessitam.<br />
Desta forma compreendo que os<br />
métodos são fáceis de serem aplicados<br />
apenas necessitamos de algumas doses<br />
de sistematização, perseverança,<br />
determinação, dedicação e persistência<br />
para que a significância exista na<br />
vida de cada pessoa com TEA.<br />
Não se assustem com todos esses<br />
adjetivos de postura, o universo de<br />
uma pessoa com TEA nos ensina que<br />
quando agimos desta forma é você<br />
que ganha um universo diferente<br />
com um olhar diferente e com uma<br />
vida cheia de significados especiais e<br />
sentimentos únicos e das mais profundas<br />
emoções.<br />
Ganhe esta emoção<br />
profunda de gratificação<br />
pela vida e venha<br />
também ser um<br />
“SOLDADO DE<br />
TRANSFORMAÇÃO”.<br />
ELI<strong>SA</strong>BETE FERNANDES R. PEREI-<br />
RA Coordenadora da Unidade de<br />
Atendimento ao TEA da APRAES-<br />
PI; Psicóloga e mestre em<br />
Distúrbios do desenvolvimento
38
39
40<br />
AUTISMO SEVERO:<br />
a incessante busca pela independência<br />
Créditos nas fotos: Humberto Luiz/ Candelabro Filmes<br />
Com a falta de moradias assistidas no<br />
Brasil, pais se preocupam com o futuro<br />
dos filhos que atingem a maioridade<br />
incapazes de se estabelecer sozinhos.<br />
Entre todos os receios citados por pais<br />
de autistas severos quando o assunto<br />
é futuro, um dos principais é a<br />
busca pela independência. De acordo<br />
com uma pesquisa da The National<br />
Autistic Society, apenas 4% das<br />
pessoas com autismo vivem de forma<br />
independente, e 30% têm um estilo<br />
de vida semi-independente, residindo<br />
em moradias assistidas. No Brasil,<br />
onde essa opção ainda é praticamente<br />
inexistente, pais se preocupam cada<br />
vez mais com os filhos que estão no<br />
grau mais severo do espectro e prestes<br />
a completar a maioridade.<br />
Esta é a realidade da publicitária<br />
Camila Nogueira, que tem um filho<br />
autista de 14 anos. Ela lista as atividades<br />
que luta para ensinar a Miguel<br />
desde pequeno. “Colocar uma roupa,<br />
saber escovar os dentes e preparar a<br />
própria comida. São coisas que qualquer<br />
um já aprendeu, mas ele tem<br />
mais dificuldades”, explica.<br />
PRIMEIROS PASSOS<br />
Para Camila, a busca pela independência<br />
do filho é um processo constante<br />
e que exige muita paciência.<br />
Com ajuda da Análise do Comportamento,<br />
o menino aprendeu a realizar<br />
algumas atividades, mas essas<br />
práticas ainda precisam ser supervisionadas.<br />
“A idade psicológica dele está por<br />
volta de 10, 11 anos. Esses dias, por<br />
exemplo, ele tomou banho e não<br />
lavou cabelo.Às vezes esquece de<br />
lavar partes do corpo que tem mais<br />
dificuldade de sentir, como tomar<br />
banho de meia, não lavar o pé e não<br />
perceber que estava molhado, que a<br />
meia ainda estava no pé”, conta.<br />
Mais que a terapia, a mudança na estrutura<br />
do relacionamento entre mãe<br />
e filho também foram essenciais para<br />
garantir uma melhoria nesse sentido.<br />
“Chegou uma hora que a gente precisava<br />
desenvolver essa personalidade<br />
do Miguel, e por mais incrível que<br />
pareça, o que mais funciona nesse<br />
processo é eu não ficar tão junto. A<br />
mãe fala pelo filho, faz pelo filho.<br />
Então eu ter me afastado deu para<br />
o Miguel mais espaço. Hoje ele está<br />
muito mais independente”, analisa.<br />
Para o psicólogo Fábio Coelho,<br />
especialista em autismo, comemorar<br />
todas as conquistas também faz parte<br />
desse processo. “No autismo severo<br />
geralmente os ganhos podem ser<br />
bem lentos, o que pode desmotivar<br />
pais e familiares. Para que isso não<br />
ocorra, é super importante que os<br />
pais aprendam a sorrir nas pequenas<br />
conquistas, elogiar, festejar. Além<br />
de reforçar a aprendizagem do filho,<br />
aumentando as chances da habilidade<br />
continuar ocorrendo, essa valorização<br />
pode servir para impulsionar<br />
outras conquistas e, também, elevar a<br />
autoconfiança dos pais”, explica.<br />
É exatamente esse tipo de atitude que<br />
Camila procura reforçar sempre que<br />
nota um avanço significativo em Miguel,<br />
como o fato de conseguir tomar<br />
banho, trocar de roupa e, ainda assim,<br />
esquecer a toalha molhada em cima
41<br />
Créditos nas fotos: Humberto Luiz/ Candelabro Filmes<br />
da cama.<br />
“Penso: ‘como todo adolescente, ele<br />
está deixando a toalha em cima da<br />
cama’. Para chegar nesse ponto, teve o<br />
ponto que ele aprendeu a arrancar a<br />
roupa, tomar o banho, se secar com a<br />
toalha, se enrolar nela, porque antes<br />
ele passava pelado para o quarto, trocar<br />
de roupa. Quer dizer, estamos na<br />
última parte do processo, que é botar<br />
a toalha no banheiro de novo”.<br />
JURIDICAMENTE FALANDO<br />
É comum que pais de autistas severos<br />
entrem na justiça com um pedido de<br />
curatela após eles completarem 18<br />
anos. A prática é garantida pela Lei<br />
nº 13.146, de 2015 (Estatuto da Pessoa<br />
com Deficiência), e significa que, uma<br />
vez aceita, a curatela declara incapacidade<br />
daquela pessoa.<br />
Em outras palavras, “o interditado<br />
não mais poderá comandar os atos na<br />
vida civil, portanto, faz-se necessário<br />
a nomeação de um curador, que<br />
exercerá a curatela desta pessoa”. De<br />
acordo com a advogada e especialista<br />
em direito dos autistas, Diana Serpe,<br />
uma mudança na lei permite que esta<br />
interdição seja apenas parcial.<br />
“A interdição completa não é mais<br />
uma regra, que nem era antigamente.<br />
Obviamente algumas pessoas vão ser<br />
declaradas absolutamente incapazes,<br />
mas, no geral, as pessoas podem não<br />
ter discernimento para vender um<br />
apartamento, mexer na conta do<br />
banco, mas podem se apaixonar e<br />
casar, como é o caso de uma pessoa<br />
com síndrome de Down, por exemplo”,<br />
explica.<br />
Ela ainda reforça acreditar que, no<br />
caso de autistas severos, cerca de 90%<br />
dos pais devem conseguir a curatela<br />
por meio de interdição. “O que houve<br />
é uma tomada de decisão assistida,<br />
ou seja, precisa comprovar mesmo,<br />
entrar com processo e provar que a<br />
pessoa precisa mesmo para que haja<br />
essa intervenção”, analisa.<br />
FUTURO<br />
Pensar no futuro e em como os<br />
autistas severos vão se virar depois<br />
que os pais morrerem também é<br />
uma preocupação constante. “Minha<br />
expectativa para o futuro do Miguel<br />
é que ele vá viver com os amigos dele<br />
numa residência inclusiva, que ele vá<br />
trabalhar. Quem sabe ter um relacionamento<br />
afetivo, acho que seria muito<br />
legal para ele. Sonho para ele uma<br />
vida digna, simples, que ele tenha<br />
amigos, que ele tenha um trabalho,<br />
que se realize como ser humano, seja<br />
feliz”, diz Camila.<br />
A residência inclusiva citada por ela<br />
é comum em outros países e proporciona<br />
a pessoas com autismo, ou<br />
outros transtornos terem uma rotina<br />
estruturada e receber os cuidados<br />
necessários vindos de cuidadores<br />
especializados para a fim de ter uma<br />
vida digna.<br />
No Brasil, ainda existem poucas moradias<br />
assistidas para autistas.<br />
Uma delas é o Residencial Terapêutico<br />
Viver, em Porto Alegre (RS). A<br />
iniciativa partiu de da experiência<br />
própria da estudante de jornalismo<br />
Fernanda Ferreira, que se juntou<br />
a outros familiares de pessoas no<br />
espectro e fundou a Organização Não<br />
Governamental (ONG) que deu início<br />
aos trabalhos no local.<br />
Ainda no âmbito privado, o local<br />
conta com doações de pessoas físicas<br />
para se manter e ainda não oferece a<br />
moradia assistida em tempo integral.<br />
No entanto, uma parceria com uma<br />
clínica já oferece um esquema de<br />
hotel, no qual os autistas passam o<br />
fim de semana. “Uma vez por mês<br />
eles vêm, passam o fim de semana e<br />
fazem atividades, saem, vão ao teatro,<br />
ao cinema”, diz.<br />
Para Camila, além do apoio das<br />
instituições governamentais e da<br />
criação de novas moradias assistidas<br />
no Brasil, é também dever dos pais<br />
acreditarem no potencial dos filhos,<br />
apesar de tudo.<br />
“Sempre digo que temos que<br />
ser descrentes em relação aos<br />
médicos, mas muito crentes<br />
em relação aos nossos filhos.<br />
A coisa que eu mais falo para<br />
essas mães que estão chegando<br />
agora é: ‘Acredita no teu<br />
filho. Ele é gente, ele não é o<br />
autismo, não é uma doença.<br />
É uma pessoa ali dentro, um<br />
ser humano. Investe nele, leva<br />
para passear, para conhecer o<br />
mundo e ver o que acontece’”,<br />
conclui.<br />
GABRIELA Jornalista,<br />
autora de ‘Singularidades<br />
- Um Olhar sobre o Autismo’,<br />
editora do Portal<br />
Singularidades<br />
Créditos nas fotos: Humberto Luiz/ Candelabro Filmes
42
43
44<br />
Todos podem comunicar, inclusive todos<br />
com necessidades complexas<br />
Quando falamos que comunicação é<br />
para todas as pessoas com autismo,<br />
queremos dizer que é para todos.<br />
“Mas, e meu filho que não tem um<br />
bom controle motor”, ele também!<br />
“Mas, e minha aluna que não parece<br />
entender”, ela também! “Mas, e meu<br />
paciente que não se foca em uma só<br />
atividade nem por 2 minutos”, ele<br />
também! Mas, mas, mas... Sim!<br />
Comunicação é para todos, inclusive<br />
para as crianças, jovens e adultos com<br />
necessidades complexas. Então, eu<br />
sou uma psicóloga trabalhando com<br />
comunicação alternativa e suplementar,<br />
ou comunicação aumentativa e<br />
alternativa (CAA). Então, você mãe,<br />
pai, ou professora de uma criança<br />
com autismo que não fala, ou não fala<br />
mais de algumas palavras soltas ou<br />
frases, este artigo é para você!<br />
Muitos me perguntam, “o que essa<br />
psicóloga está trabalhando com<br />
comunicação?” Eu respondo! Comecei<br />
trabalhando com suporte positivo<br />
para comportamento, isso quer dizer<br />
que eu comecei trabalhando com<br />
crianças com “problemas” de comportamento.<br />
Eu chamo problemas, e coloco “entre<br />
parênteses” porque para a gente<br />
que está de fora os comportamentos<br />
parecem problemas, pois incluem<br />
bater, morder, gritar, jogar coisas, não<br />
engajar em tarefas e atividades, ter<br />
comportamentos ao contrário do que<br />
está sendo pedido, ignorar pedidos,<br />
entre outros.<br />
Todos esses comportamentos parecem<br />
problemas para nós, mas para<br />
a pessoa com autismo podem ser a<br />
única maneira que conseguem agir,<br />
ou mesmo podem ser maneiras que<br />
compensam por diferenças no processamento<br />
sensório-motor do ambiente,<br />
e mesmo pelas diferenças em como<br />
responder para esse meio.<br />
E vejam que enfatizo que o problema<br />
é o comportamento e não a criança ou<br />
jovem. Quando chamamos a criança<br />
ou jovem de problema ou mesmo<br />
nomeamos a pessoa como agressiva,<br />
estamos dando uma identidade de<br />
problema ou agressiva à pessoa, e<br />
quando isso vira identidade e quem<br />
a pessoa é, é assim que ela se comportará<br />
e mudanças de ação são mais<br />
difíceis. Um dia conto mais para vocês<br />
sobre a pesquisa que fiz descrevendo<br />
as consequências de descrever as<br />
nossas crianças como problemas.<br />
Comportamentos problema, então,<br />
são comuns e principalmente em<br />
pessoas com autismo que não desenvolvem<br />
linguagem verbal. Vamos<br />
refletir, uma pessoa que não consegue<br />
se expressar e se fazer entendida, e<br />
desenvolve comportamentos que chamamos<br />
de problema, será uma coincidência?<br />
Você já ficou tão frustrado<br />
que não conseguiu se comunicar?<br />
Ficou tão frustrado que quis gritar,<br />
bater e ou simplesmente sair andando?<br />
Eu já! Quando percebemos que<br />
somos todos mais parecidos do que<br />
diferentes, vemos que tais comportamentos<br />
são parte da gama de comportamentos<br />
possíveis para pessoas<br />
que não se comunicam verbalmente,<br />
e que mesmo a sua comunicação não<br />
verbal, seus gestos expressões e sinais<br />
são limitados.<br />
Isso significa que a função de muitos<br />
dos comportamentos problema ou<br />
agressivos é comunicar uma ideia, necessidade,<br />
ou uma frustração por não<br />
conseguir fazê-lo. Talvez, essa funcio-
45<br />
nalidade tenha perdido o sentido ao<br />
longo do caminho, e o aluno não mais<br />
se comporta daquela maneira devido<br />
a uma necessidade em si, talvez tenha<br />
entrado na rotina ou se acostumado<br />
a se comportar assim, mas em algum<br />
momento a funcionalidade existia.<br />
Enfim, oferecer uma estratégia de<br />
comunicação funcional é quando<br />
tentamos substituir um comportamento<br />
não funcional, como gritar<br />
ou bater, por uma tentativa ou ação<br />
comunicativa. Por exemplo, quando a<br />
minha aluna não quer engajar na atividade<br />
proposta e ela grita por alguns<br />
minutos seguidos, eu quero ensinar<br />
que ela simplesmente pode apontar<br />
para o cartão escrito NÃO, ou fazer<br />
um sinal de não com a mão. Portanto,<br />
eu tentava, e ainda continuo a oferecer,<br />
maneiras funcionais de crianças<br />
e jovens comunicarem necessidades<br />
e ideias. Aliás, normalmente em<br />
CAA trabalhamos com crianças mais<br />
velhas e jovens. Isso se deve ao fato<br />
de que todas as outras estratégias são<br />
tentadas anteriormente à CAA.<br />
Então, quando me perguntam, tem<br />
idade máxima para comunicação?<br />
Não! Todos podem comunicar, não<br />
importa a idade. Quando se vê que<br />
uma criança ou jovem, realmente<br />
procura um cartão, pois quer comunicar-se,<br />
e sente-se reforçada, não<br />
precisando mais utilizar aquele comportamento<br />
anterior (não funcional<br />
ou agressivo) para se comunicar, é<br />
libertador. E a partir daí, a prática e o<br />
treino lhe darão mais e mais instrumentos<br />
para se comunicar e, assim<br />
precisa utilizar menos os comportamentos<br />
que recorria anteriormente.<br />
A partir da comunicação funcional,<br />
a ideia é sempre promover comunicação<br />
total. Ou seja, em todos os<br />
ambientes, utilizando uma variedade<br />
de recursos, as crianças e jovens conseguem<br />
se expressar. Nesse sentido,<br />
comecei a estudar e ver possibilidades<br />
no uso de tecnologia na CAA, especificamente<br />
na utilização de aplicativos<br />
em tablets. Quando pensamos em suporte<br />
à comunicação, temos que levar<br />
todas as características das pessoas<br />
com autismo em consideração, principalmente<br />
as questões sensório-motoras.<br />
Portanto, quero dividir com vocês<br />
a minha pesquisa sobre os princípios<br />
da utilização de CAA em tablets. As<br />
ideias abaixo vêm sendo exploradas<br />
em diversos aplicativos, o Inclusive,<br />
da Inclusive Todos é um deles.<br />
Os princípios listados abaixo são baseados<br />
nas características e questões<br />
levantadas para pessoas com TEA<br />
e outras condições e deficiências e<br />
como a utilização do aplicativo pode<br />
levar em conta essas características<br />
e dar suporte à comunicação dessas<br />
crianças e jovens.<br />
LEVANDO-SE EM CONSIDERAÇÃO<br />
QUESTÕES DE PLANEJAMENTO<br />
MOTOR E EXECUTIVO: PRINCÍPIOS<br />
DOS ASPECTOS FÍSICOS DO SISTE-<br />
MA DE COMUNICAÇÃO<br />
A. Utilização sistema de comunicação<br />
em equipamento eletrônico como<br />
um tablet que pode ser utilizado<br />
em diferentes ambientes da<br />
criança ajuda na generalização da<br />
função comunicativa do sistema,<br />
além da motivação pelo equipamento<br />
eletrônico.<br />
B. O feedback automático da resposta<br />
da tela sensível ao toque auxilia<br />
a experiência de causa e efeito e<br />
promove rapidez na compreensão<br />
da função comunicativa do<br />
aplicativo.<br />
C. A possibilidade de oferecer telas<br />
com as linhas e colunas estáticas,<br />
em que o vocabulário está sempre<br />
na mesma posição visuoespacial<br />
auxilia no planejamento visuoespacial<br />
para comunicação, antecipação<br />
e predição dos estímulos,<br />
o que auxilia na automatização<br />
para ampliação do repertório para<br />
comunicação, essencial para uma<br />
comunicação interativa eficaz.<br />
D. Na primeira tela, programa-se o<br />
que chamamos de vocabulário básico,<br />
o que significa que a pessoa<br />
consegue se comunicar basicamente<br />
em todos os ambientes com<br />
sim e não, mais e pare, e verbos<br />
como quero, ir, entre outros. Além<br />
disso o sistema baseia-se na utilização<br />
de vocabulários diversificados<br />
incluindo artigos, descritores<br />
como adjetivos e advérbios, e<br />
pronomes, não somente substantivos<br />
modelando a comunicação<br />
falada.<br />
E. Programam-se cores diferentes<br />
nas caixas dos símbolos para<br />
tipos diferentes de palavras, como<br />
pronomes, verbos, substantivos,<br />
etc. Essa codificação por cor dos<br />
símbolos é um recurso visual e<br />
cognitivo que auxilia o aprendizado<br />
por equivalência e a formação<br />
de frases.<br />
F. A opção do sintetizador de voz,<br />
que fala em voz alta as palavras<br />
selecionadas, e deve ser preferencialmente<br />
com o gênero de identificação<br />
da pessoa, promove um<br />
feedback auditório imediato para<br />
o indivíduo auxiliando o seu processamento<br />
multimodal (figura,<br />
palavra escrita e palavra falada).<br />
Tal recurso também facilita sua<br />
participação social no grupo em<br />
que está inserido, pois irá ouvir a<br />
ideia sendo comunicada.<br />
Levando-se em consideração questões<br />
sociais e relacionais: princípios<br />
da estrutura da interação<br />
A. a. Inicia-se a utilização do equipamento<br />
com o pedido de atividades<br />
de interesse da criança e que<br />
sejam motivadoras para elas. Por<br />
exemplo, a criança aciona “mais”<br />
para assistir mais do seu vídeo ou<br />
pedir mais do seu lanche favorito.<br />
B. Começamos com pedidos (acesso<br />
ao item, reforço imediato) e depois<br />
ampliar para descrições e comentários,<br />
ainda com seus temas de<br />
interesse. Pedidos têm uma relação<br />
direta com a representação e<br />
o acesso ao item (reforçamento),<br />
o que auxilia compreensão da<br />
utilização do equipamento como<br />
mediador de comunicação.<br />
C. Utilizam-se perguntas estruturadas<br />
e para quais a resposta esteja<br />
programada no equipamento de<br />
comunicação, evitando perguntas<br />
abertas com muitas possibilidades<br />
de respostas. Perguntas estruturadas<br />
têm opções implícitas nelas
46<br />
mesmas, mas mesmo com uma<br />
pergunta mais fechada a criança<br />
ou jovem não responder, o parceiro<br />
de comunicação pode oferecer<br />
as opções de resposta. Por exemplo,<br />
você pode oferecer duas cores<br />
de giz de cera, se uma criança está<br />
escolhendo uma para pintar.<br />
D. Utilizam-se essas perguntas estruturadas<br />
durante jogos e brincadeiras<br />
interativas para promover<br />
trocas com função comunicativa e<br />
motivadora. Por exemplo, vamos<br />
jogar bola, você quer a “grande” ou<br />
a “pequena”?<br />
LEVANDO-SE EM CONSIDERAÇÃO<br />
QUESTÕES DE APRENDIZAGEM:<br />
PRINCÍPIOS EDUCATIVOS<br />
A. Trabalhe com interações estruturadas<br />
com opções e alternativas<br />
(como “sim” e “não,” escolhas de<br />
jogos, cores de massinha, livro que<br />
irão ler, vídeo que irá assistir, etc.)<br />
para dar estrutura visual e repertório<br />
para promover a escolha da<br />
criança em itens de seu interesse.<br />
B. Modele o uso do equipamento<br />
para a criança ou jovem se familiarizar<br />
com seu uso. Dizer, “Ah, você<br />
está apontando para a porta, você<br />
quer <strong>SA</strong>IR?” E você pode acionar<br />
o símbolo “sair” e deixar o jovem<br />
sair.<br />
C. Ofereça a hierarquia de dicas para<br />
promover a resposta no tablet,<br />
incluindo apoio manual, gestual,<br />
verbal, visual, indireto, até a<br />
pessoa conseguir fazer de maneira<br />
independente. Quando começamos<br />
o processo podemos começar<br />
de menos para mais suporte. Isso<br />
quer dizer que você pode fazer<br />
a pergunta estruturada, e ver se<br />
a pessoa responde de maneira<br />
independente. Se ela não acionar<br />
nenhum símbolo, você pode mostrar<br />
onde a imagem de resposta<br />
está ou opções de resposta que<br />
estão no equipamento, suporte<br />
gestual. Se não houver resposta,<br />
você pode falar a resposta e<br />
mostrar (suporte verbal e gestual).<br />
Se não houver resposta, você pode<br />
dar apoio manual para acionar o<br />
símbolo (suporte manual). A ideia<br />
é que você está ensinando a pessoa<br />
a utilizar o equipamento, então<br />
faça uma pergunta que estimule<br />
uma resposta previsível, por<br />
exemplo o jovem está assistindo<br />
a um vídeo que gosta muito, e<br />
você pausa o vídeo. Você pergunta:<br />
“quer mais vídeo?” e traga o<br />
tablet para frente dele. Se ele não<br />
responder, você diz: “você quer<br />
MAIS vídeo?” Apontando para a<br />
palavra “mais” no sistema. Se ele<br />
não responder, você pode dizer: “se<br />
você quiser assistir a mais vídeo,<br />
acione a palavra ‘mais’”, auxiliando<br />
manualmente a criança a acionar<br />
o símbolo “mais”.<br />
D. Promova escolhas e comentários<br />
em ambientes em que o comportamento<br />
naturalmente ocorre. Tal<br />
prática oferece aprendizagem da<br />
pessoa inserida no contexto, sem<br />
necessidade de generalização posterior.<br />
Por exemplo, pedir “lanche”<br />
na hora de se alimentar, ou pedir<br />
para “sair” quando fora a hora de<br />
ir embora.<br />
E. Trabalhar aprendizagem sem erros,<br />
tanto na parte motora (dando<br />
apoio manual quando necessário,<br />
já descrito na hierarquia de<br />
dicas), quanto no tipo de pergunta,<br />
evitando perguntas que tenham<br />
resposta de certo e errado. Por<br />
exemplo, ao invés de perguntar:<br />
“que cor é essa massinha que estamos<br />
brincando?”, perguntar: “qual<br />
a cor de massinha que você quer<br />
brincar?”;<br />
F. Praticar os mesmos vocabulários<br />
constantemente, a prática é a<br />
única maneira de garantir planejamento<br />
motor adequado, comunicação<br />
mais automatizada e que<br />
dificuldades motoras não interfiram<br />
na acurácia da resposta.<br />
LEVANDO-SE EM CONSIDERAÇÃO<br />
A CONSEQUÊNCIA: PRINCÍPIOS DE<br />
REFORÇAMENTO<br />
A. Ofereça reforço, de preferência<br />
natural ao item ou ideia que foi<br />
comunicada, imediatamente após<br />
o símbolo ter sido acionado. Por<br />
exemplo, utilizar a comunicação<br />
em uma situação de brincadeira<br />
que a criança pode pedir “bolha de<br />
sabão” acionando o símbolo, ou um<br />
jovem pode pedir para “sair” para<br />
ir ao quintal.<br />
B. Redirecione a resposta se a pessoa,<br />
por exemplo, fez uma pergunta<br />
e sem apoio a criança escolheu<br />
a resposta que não corresponde<br />
à pergunta. Assim, você pode<br />
direcionar com apoio manual para<br />
a resposta certa, sem enfatizar o<br />
erro em si. Tal princípio também<br />
está de acordo com aprendizagem
47<br />
sem erros, e a noção que a utilização<br />
de CAA é um processo de<br />
aprendizagem de se familiarizar<br />
com os itens e não;<br />
C. Termine em sucesso sempre.<br />
Garanta que cada tentativa de<br />
interação e comunicação termine<br />
com acesso ao item, ou com uma<br />
resposta verbal que demonstre<br />
que a pessoa foi ouvida. O uso do<br />
equipamento faz parte de uma<br />
interação, e uma interação bem-<br />
-sucedida termina com resposta de<br />
ambas as partes.<br />
D. Expanda o vocabulário após o<br />
aprendizado inicial combinando<br />
duas palavras, utilizando as<br />
mesmas palavras em diferentes<br />
ambientes. Por exemplo, a minha<br />
menina que escolhia “mais” para<br />
ter acesso a mais massinha, depois<br />
irá acionar “mais massinha”. Ir<br />
acrescentando palavras quando a<br />
criança ou jovem já dominar o pedido<br />
da atividade. Fazer o mesmo<br />
para comentários e outros tipos de<br />
comunicação.<br />
E. Ao expandir, proporcione uma<br />
atividade já aprendida após uma<br />
nova, que exija mais da criança ou<br />
jovem. Quando intercalamos uma<br />
atividade mais fácil com uma mais<br />
difícil, a pessoa continua motivada<br />
a manter atenção e esforço e<br />
continuar tentando as atividades<br />
mais difíceis.<br />
F. f. Espace o reforçamento para<br />
ampliação do repertório de comunicação<br />
e atividades comunicativas.<br />
Por exemplo, o jovem sempre<br />
podia escolher sua atividade mais<br />
motivadora, depois essa opção só<br />
é oferecida alternadamente a uma<br />
atividade diferente. Por exemplo, o<br />
jovem escolhia assistir aos vídeos,<br />
mas posteriormente ele irá escolher<br />
entre livro e jogo, e depois<br />
pode voltar ao vídeo.<br />
Dessa maneira você irá treinar<br />
vocabulário e habilidades diferentes<br />
dentro de um contexto de<br />
interação. Enfim, de maneira geral<br />
as estratégias acima descrevem<br />
princípios que justificam a utilização<br />
de um aplicativo como um<br />
recurso de CAA para pessoas com<br />
autismo.<br />
E como começar? Boa pergunta.<br />
VAMOS BAIXAR UM<br />
APLICATIVO E VAMOS LÁ!<br />
DE MANEIRA GERAL, PARA CO-<br />
MEÇAR A PROMOVER UMA INTE-<br />
RAÇÃO COMUNICATIVA DEVE SE:<br />
1. Seguir o interesse da pessoa,<br />
descubra o que a motiva e use<br />
durante o seu tempo juntos.<br />
2. Usar uma estratégia de acesso à<br />
atividade de interesse, que pode<br />
incluir:<br />
a. Dar opções de atividades para<br />
promover escolha, ou<br />
b. Colocar a atividade em um lugar<br />
de difícil acesso que a criança<br />
tenha que pedir.<br />
3. Depois, devemos dar suporte (modelagem<br />
ou dicas) para o pedido<br />
ou a escolha, para garantir que a<br />
criança toque no tablet para pedir<br />
ou comunicar o que quer.<br />
4. Logo em seguida o reforço, tanto<br />
verbal, quanto de acesso ao item<br />
ou atividade deve ser dado, portanto,<br />
deve-se engajar na atividade<br />
imediatamente com animação.<br />
5. Para ampliar ou expandir deve-<br />
-se fazer um comentário ou uma<br />
pergunta durante a atividade para<br />
promover resposta utilizando o<br />
equipamento<br />
a. Dar uma pausa e perguntar se a<br />
pessoa quer “mais”.<br />
b. Você achou isso “bom” ou<br />
“ruim”?<br />
6. Novamente, dar suporte (modelagem<br />
ou dicas) para que a criança<br />
use o tablet para responder.<br />
7. Logo em seguida, reforçar com a<br />
atividade ou item, e reforçar verbalmente<br />
e fazer um comentário.<br />
8. Repetir a interação ou iniciar<br />
outra para promover a resposta da<br />
criança ou jovem utilizando o app.<br />
9. E praticar, praticar e praticar, em<br />
diferentes situações, ambientes, e<br />
com diversos vocabulários!<br />
Eu já disse que todos com autismo<br />
podem comunicar?<br />
Inclusive todos com<br />
dificuldades complexas!<br />
VAMOS COMUNICAR!<br />
FERNANDA TEBEXRENI OR<strong>SA</strong>TI,<br />
Psicóloga, Doutora em Educação Especial<br />
e Inclusiva pela Universidade de Syracuse,<br />
Professora em Psicopedagogia da Universidade<br />
Presbiteriana Mackenzie.
48<br />
Escultura de Alexander Milov<br />
O cuidado com a nossa criança interior<br />
Quando descobrimos que nossa<br />
criança interior, ainda está ferida<br />
e carrega várias emoções de nossos<br />
pais, antepassados e principalmente<br />
da nossa mãe ou cuidadora; fica mais<br />
simples resolver os nossos conflitos<br />
internos e atuais.<br />
Desde o ventre materno, temos uma<br />
fusão emocional com a nossa mãe,<br />
todas as emoções que ela vivenciou<br />
durante a gestação é registrada em<br />
nosso inconsciente, e após o nascimento<br />
continuamos fusionados, por<br />
mais 2 anos. Como se estivéssemos<br />
num tanque emocional e juntas,<br />
temos que aprender a nadar. O ser<br />
humano é um mamífero que tem<br />
2 fases de formação: intrauterina<br />
e extrauterina, diferente de outros<br />
animais que já nascem, andam e vão<br />
em busca do leite materno, o bebê<br />
humano necessita de cuidados, para<br />
sobreviver.<br />
E durante esta fase, tudo que a mãe<br />
experimenta, inclusive as emoções da<br />
sua criança interior, da sua própria<br />
infância, são transferidas para o bebê,<br />
que vai crescendo e vai confrontando<br />
estas emoções, pois ele é o nosso<br />
próprio espelho; de nossas dores,<br />
traumas, emoções tóxicas, abandono,<br />
carência, violência, abuso...<br />
A maternidade nos concede a chance<br />
de uma autocura, de voltarmos à<br />
infância, resgatar a nossa criança<br />
ferida, cuidar e zelar por ela; que de<br />
alguma forma, sofreu danos emocionais<br />
e carrega uma dor que vai nas<br />
entranhas de nossa caverna emocional.<br />
Os nossos filhos são luz para<br />
as nossas sombras, eles literalmente<br />
colocam o dedo em nossas feridas não<br />
cicatrizadas e por isto, precisamos<br />
saber lidar com tantas emoções, que<br />
por vezes são cheias de dualidades.<br />
Os sentimentos se misturam e muitas<br />
vezes nem sabemos nomeá-los, só<br />
queremos é colo, aconchego, e a<br />
validação de nossas necessidades.<br />
Saber que tudo isto é normal, traz<br />
um grande alívio; afinal que mãe não<br />
surtou durante uma crise de choro de<br />
uma criança, choro de dor física ou<br />
emocional? Que mãe não chorou por<br />
se sentir impotente diante de uma<br />
situação? Que mãe não desejou parar<br />
o mundo e descer? Que mãe não<br />
desejou devolver a criança, por alguns<br />
minutos?<br />
Mas, a boa notícia é que tudo isto,<br />
pode ser trabalhado junto ao processo<br />
da criação de nossos filhos, que são<br />
nossos grandes mestres. A escola da<br />
maternagem, nos oferece a oportunidade<br />
de resgatar a nossa infância e<br />
de curar as nossas feridas, por meio<br />
de nossos filhos! Esta, é a maneira<br />
gentil que Deus nos concede a uma<br />
2ª chance, para o empoderamento e<br />
encorajamento frente aos desafios.<br />
Uma criança com TEA, estará nos<br />
confrontando em muitas ocasiões,<br />
pois além das suas angústias internas,<br />
carrega também as nossas sombras; e<br />
por vezes esta criança estará manifestando<br />
uma dualidade de sentimentos<br />
e emoções; que, se não estivermos<br />
muito alinhadas com o momento, não<br />
teremos recursos para lidar; e nos<br />
sentiremos impotentes. E isto ativa os<br />
nossos gatilhos da infância; emergindo<br />
sentimentos de medo, rejeição,<br />
abandono, carência, ciúmes, raiva,<br />
frustração..., que foram nomeados por<br />
vezes de “birra” e “criança mimada”.<br />
E os nossos filhos, estarão trazendo<br />
a oportunidade da nossa autocura,<br />
de acolhermos a nossa criança, de<br />
compreendermos o que realmente se<br />
passava, qual era o sentimento que<br />
nós estávamos vivenciando; e não o<br />
sentimento nomeado por quem estava<br />
cuidando e que desconhecia totalmente<br />
aquilo que ia fundo em nossa<br />
alma. A aceitação, acolhimento com<br />
amor, perdão e gratidão, são verdadeiros<br />
remédios da alma; só precisamos<br />
nos conectar com esta nossa criança<br />
interior ferida e que deseja ardentemente<br />
se expressar.<br />
Se você precisar de ajuda, posso lhe<br />
auxiliar neste processo, por meio da<br />
terapia, onde iremos investigar a sua<br />
infância, descobrir as sombras, nomeá-las<br />
e acolhe-las sem julgamentos,<br />
levando-as à luz e transmutando em<br />
amor; liberando desta forma a culpa,<br />
a vergonha, a rejeição e tantos outros<br />
sentimentos que vieram em algum<br />
momento que nos sentimos sem<br />
acolhimento.
49<br />
“As flores de amanhã nascem<br />
das sementes plantadas hoje.”<br />
O Renascimento<br />
de cada dia<br />
A rotina com um autista em casa não é<br />
uma das tarefas mais fáceis. Se fôssemos<br />
enumerar a quantidade de preparativos<br />
até se conseguir sair de casa, assim<br />
como todo preparado emocional dos<br />
pais caso uma crise ocorra, ou ainda, a<br />
quantidade de terapias multidisciplinares<br />
que exigem atenção e continuidade<br />
em casa por parte dos familiares, ficaríamos<br />
aqui provavelmente por muito e<br />
muito tempo.<br />
De onde vem esta disposição por parte<br />
deles? Quem são estes pais? Como se<br />
sentem de verdade? Será que estão<br />
ou não autorizados a falar sobre suas<br />
dores e sobre o cansaço em meio a este<br />
caminho? Se faz necessário olharmos<br />
de perto para essas perguntas, e sermos<br />
honestos com o que sentimos a respeito<br />
dessa jornada, pois de fato, em vários<br />
momentos ela não é simpática e nem<br />
acolhedora com a gente. E como é possível,<br />
mesmo em várias situações desafiadoras,<br />
encontrarmos familiares com um<br />
sorriso no rosto, chamando seus filhos<br />
de “anjos na Terra”, encontrando um<br />
certo nível de paz interior frente a todas<br />
as adversidades que essa rotina propõe?<br />
Convido vocês a entrarem com respeito<br />
em suas próprias emoções, e a dialogar<br />
com elas. Para os momentos de dor, faltam-nos<br />
palavras, pois nenhum verbo<br />
é capaz de alcançar tremenda ausência<br />
de esperança dentro de cada um. Se nos<br />
falta o verbo, que a poesia possa nos<br />
representar.<br />
E assim, iniciamos esta matéria, com a<br />
ajuda de Carlos Drummond de Andrade,<br />
em trechos de seu poema intitulado:<br />
“A noite dissolve os homens”.<br />
“A noite caiu. Tremenda, sem esperança…<br />
Os suspiros acusam a presença<br />
negra que paralisa os guerreiros.<br />
E o amor não abre caminho na noite.<br />
A noite é mortal, completa, sem reticências.”<br />
Para falarmos sobre renascimento, é<br />
preciso falarmos sobre a morte, sobre a<br />
noite em nossas vidas, e sobre a tristeza<br />
da alma. O que morre dentro de nós, a<br />
cada necessidade de recomeço é aquilo<br />
de que não nos abastecemos mais: antigas<br />
crenças sobre as coisas, pessoas e<br />
situações que não são mais pertencentes<br />
a nossa realidade atual e principalmente,<br />
sobre as transformações que o dia<br />
a dia sofre, depois de passar a convivermos<br />
com o diagnóstico de autismo<br />
diariamente. Sim, podemos fazer alusão<br />
à noite escura, a uma total falta de percepção<br />
da luz em alguns momentos, pois<br />
é bem isto mesmo. Não existe maiores<br />
explicações quando estamos neste ponto,<br />
existe é o respeito por ela.<br />
Como se pudéssemos nos curvar perante<br />
a dor, para desta forma, esgotarmos<br />
todas as possibilidades de não a aceitar<br />
como parte de quem nos tornamos.<br />
Quando quem éramos clama por alguém<br />
que ainda não somos, de que forma<br />
nossa alma se comporta?<br />
É neste momento de dor e escuridão,<br />
que temos a oportunidade de escolher<br />
como reagiremos a tudo isso, e de que<br />
forma nossa dor cumprirá a sua função:<br />
Ela pode nos ensinar a viver em um<br />
novo formato, ainda desconhecido,<br />
mas necessário, ou ela pode nos fadar a<br />
morrer em vida por falta de recursos diversos<br />
dentro de nós mesmos. Recursos<br />
estes que dentro de um processo constante<br />
de autoconhecimento, chamamos<br />
de ressignificação, ou seja: termos a<br />
capacidade de aprendermos a dar um<br />
novo significado a tudo o que acontece<br />
ao nosso redor.<br />
O contato com o outro, me faz ter mais<br />
conhecimento sobre mim mesmo. O<br />
outro (nossos filhos), nos colocam em<br />
fogo cruzado com nosso estoque de<br />
paciência, com nosso poder de acalmar a<br />
eles e a nós mesmos, com nossa vontade<br />
em sermos pessoas melhores, e quiçá<br />
abertos a mudanças em nosso estilo<br />
de vida em detrimento a eles, se assim<br />
entendermos a necessidade de integrarmos<br />
todos estes sentimentos em nós.<br />
Caso contrário, alguns tenderão a sorrir<br />
mais ao longo de seu aprendizado, e<br />
outros tenderão a se aborrecer mais e a<br />
sorrir menos. Quem está certo? Ambos,<br />
pois cada um se comportará de acordo<br />
com o que se é em essência.<br />
A rotina pode esmagar emocionalmente<br />
a pessoa, mas a forma como ela irá<br />
reagir, não dependerá do outro, mas sim<br />
de seus próprios recursos internos.<br />
Vejam o que Drummond diz, em continuidade<br />
ao seu poema:<br />
“Aurora, entretanto eu te diviso,<br />
ainda tímida, inexperiente das luzes<br />
que vais ascender e dos bens que repartirás<br />
com todos os homens.”<br />
Poderíamos então, após um período<br />
de grande luto pelo o que já não somos<br />
mais, avistarmos uma possibilidade<br />
de equilíbrio? Estamos inclinados ao<br />
convite do “sim”. A Psicologia e seus estudos<br />
nos apontam que as experiências<br />
pessoais são como sementes, que elas<br />
representam tudo aquilo que pensamos,<br />
sentimos e fazemos a nós mesmos e<br />
aos outros, e que partir desta semente,<br />
saberemos se o fruto, nossa alma, estará<br />
atuando na vida de forma saudável ou<br />
não.<br />
E o poeta conclui:<br />
“Minha fadiga encontrará em ti o seu<br />
termo, minha carne estremece na certeza<br />
de tua vinda (...)<br />
Havemos de amanhecer.”<br />
Concluímos que mesmo por meio de<br />
tímidas atitudes, somos todos capazes<br />
de alinharmos nosso pensar ao nosso<br />
sentir, em prol de uma vida cada dia mais<br />
honesta sob o ponto de vista de quem<br />
somos capazes de ser, sem perfeição,<br />
mas respeitando nossas limitações e aos<br />
poucos, acentuarmos nossas habilidades,<br />
e aprendermos a outras tantas que nem<br />
sabíamos sermos capazes de fazer.<br />
Todos ganham com isso, pois não se constrói<br />
o novo, sem a morte do velho “eu”<br />
que carregamos. Isto é renascimento.<br />
Que cada um encontre a sua certeza e o<br />
seu alvorecer, pois como disse o poeta:<br />
“HAVEMOS DE AMANHECER.”<br />
LÚCIA COMITRE TAGLIERI<br />
CRP 06/76322<br />
Fundadora do Instituto Comitre – Núcleo<br />
de Estudos & Psicoterapia Avançada.<br />
Coordena o Projeto G.A.F.T ( Grupo<br />
de Acolhimento ao Familiar do TEA) em<br />
São Bernardo do Campo – SP. É Psicóloga, com bacharelado<br />
em Psicologia pela Unicamp, Pós graduação Psicologia<br />
Analítica pelo Instituto Pieron, Coach pela Sociedade<br />
Brasileira de Coaching, Especializada em Psicoterapia da<br />
criança e do adolescente , Formada em Regressão Terapêutica<br />
pela ABPR, com Aperfeiçoamento em Autismo e suas<br />
intervenções. Colunista da Revista SER Autista.<br />
Rua José Versolato, 111<br />
Sala 1002 Centro – SBC / SP<br />
Contato:<br />
lucia@institutocomitre.com.br<br />
WhatsApp: 11 99160.5630
50<br />
Amados leitores,<br />
Deleita-te no Senhor, e<br />
Ele satisfará o desejo do seu coração.<br />
Quantas vezes as notícias do dia a dia são capazes de gerar em nós sentimentos de incapacidade, inferioridade,<br />
medo e insegurança?<br />
Com alguns anos de ministério passei a entender que por vezes fui enganada acerca dos meus problemas, pela<br />
minha maneira errada de olhar para eles; um problema sim, uma impossibilidade jamais. Quando você entra numa<br />
guerra já se achando derrotado, certamente o será, a única alternativa para que isso não aconteça é mudar sua atitude.<br />
A Bíblia Sagrada nos traz um relato muito interessante de um rei por nome Josafá, que é surpreendido por<br />
uma notícia que abala sua estrutura, seu poderio e domínio, ele é completamente desarmado em sua totalidade ficando à<br />
deriva da situação.<br />
Não é diferente conosco, muitas vezes somos sugados pelas circunstâncias que sem a menor piedade sugam<br />
nossas forças, nosso ânimo e nossa coragem e até mesmo nossa fé.<br />
Josafá tinha um reino equilibrado, mas isso não impediu que um dia uma má notícia chegasse até ele. Três<br />
reinos haviam se juntado, é certo que, a quantidade de soldados e de armas sobrepujavam a do rei Josafá.<br />
E nós? Quantas vezes, quando tudo parece bem, algo começa a nos assolar, o que antes parecia uma fortaleza<br />
agora já começa a mostrar sua fragilidade, o que parecia seguro apresenta rachaduras. Então, aparecem os medos e com<br />
eles suas consequências, e logo estamos como Josafá, desesperados diante de uma má notícia.<br />
É nessa hora que Deus se levanta, quando não temos mais como fazer, quando literalmente chegamos ao nosso<br />
limite, então a única decisão a tomar é entregar tudo em Suas mãos e confiar; e foi exatamente o que Josafá fez, declarou<br />
a Deus sua fragilidade e impotência, seu medo e fracasso, rasgou seu coração sem reservas, sabendo que o único lugar de<br />
onde poderia vir um socorro seria Aquele.<br />
Nesses momentos de conflitos, Deus espera de nós atitudes!!!<br />
Prostração gera morte, atitude gera milagre, reaja aos confrontos.<br />
Quando o rei se posicionou, juntou o povo, orou a Deus, ele foi prontamente respondido,<br />
“Não temas, nem te assustes, nessa peleja não tereis que pelejar”.<br />
É lindo ver o cuidado de Deus conosco.<br />
Sempre vai haver uma motivação para tentar desconstruir a verdade de Deus para as nossas vidas, aquele<br />
sentimento na vida do rei Josafá de medo e incapacidade veio para confundi-lo acerca da verdade. Enquanto estiveres<br />
em Mim Eu estarei em vós, Josafá estava em Deus, então, não tinha porque temer, mas por causa da pressão ele cedeu.<br />
Aquela situação de fato aconteceu, aqueles exércitos desceram contra Josafá, mas antes mesmo da batalha<br />
Deus interveio, Ele sempre está pronto para intervir em nosso favor.<br />
Quando o medo veio, Josafá e seu povo buscaram a Deus com orações e cânticos, confiaram e contemplaram o<br />
seu mover, que assim sejamos nós também, confiar é o grande segredo, descansar é preciso.<br />
Deus abençoe a todos.<br />
Pastora Fabiana Ortiz
51