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4<br />

6 8<br />

AMIGOS PRESENTES DE DEUS!<br />

O AUTISMO LEVE, OS SINTOMAS E<br />

OS DE<strong>SA</strong>FIOS DE CONVIVER EM SO-<br />

CIEDADE<br />

10<br />

É TEA OU É DÉFICIT DE ATENÇÃO?<br />

E QUANDO O TRANSTORNO DO<br />

ESPECTRO AUTISTA NÃO EXPLICA<br />

TUDO?<br />

14<br />

EXISTE MESMO EMPATIA ENTRE OS<br />

QUE LIDAM COM O AUTISMO?<br />

20<br />

APRAESPI POR UMA CAU<strong>SA</strong><br />

30<br />

A REALIDADE DO AUTISMO SEVERO<br />

35<br />

Adaptação curricular:<br />

ferramenta indispensável na<br />

inclusão escolar<br />

16<br />

CONHEÇAM A HISTÓRIA DE ELISEU<br />

ACÁCIO DA SILVA, PAI DE LUCAS<br />

GABRIEL, AUTISTA DE 22 ANOS.<br />

22<br />

COMO INTERPRETAR UM EXAME<br />

GENÉTICO?<br />

32<br />

Acho que a maior regra de todas,<br />

quando você tem um filho autista, é<br />

ter BOM SENSO e BOM HUMOR!<br />

36<br />

ENCORAJANDO OS PAIS A SEREM<br />

AGENTES DE TRANSFORMAÇÃO<br />

DO UNIVERSO DE SEU FILHO COM<br />

AUTISMO<br />

18<br />

A menina, a mulher e a mãe.<br />

MATÉRIA DE CAPA<br />

24<br />

34<br />

O Que Ensinar? (do leve ao<br />

severo)<br />

40<br />

AUTISMO SEVERO:<br />

A INCES<strong>SA</strong>NTE BUSCA PELA INDE-<br />

PENDÊNCIA<br />

44<br />

TODOS PODEM COMUNICAR,<br />

INCLUSIVE TODOS COM<br />

NECESSIDADES COMPLEXAS<br />

48 49<br />

O cuidado com a nossa<br />

criança interior<br />

O Renascimento<br />

de cada dia<br />

50<br />

Deleita-te no Senhor, e<br />

Ele satisfará o desejo do seu<br />

coração.


5<br />

Estimado leitor.<br />

Estimado leitor,<br />

Nada justifica a discriminação e o preconceito, seja ele político ou social, racial ou<br />

religioso, bem como, contra qualquer tipo de deficiência. Mas ele é presente em nossa<br />

sociedade e acompanha o cotidiano de muitos! No entanto, não nos compete sermos<br />

perfeitos, e sim, respeitar o semelhante e compreender que cada pessoa é diferente e<br />

possui necessidades diferentes. Acreditando que o preconceito, em parte, vem de um<br />

conceito preestabelecido de algo que não se conhece por falta de informação, a nossa<br />

edição de junho coloca o autismo severo como foco principal. Matérias compartilhadas<br />

por pais e profissionais renomados nos trazem à luz o cotidiano do autismo<br />

severo, e suas lutas por políticas públicas que contemplem a real necessidade da<br />

pessoa com TEA.<br />

ANNA CAROLINA ROVAI<br />

Diretora da revista Ser Autista<br />

EXPEDIENTE<br />

Ser Autista<br />

Ano I, Edição 3, Junho 2019.<br />

www.serautista.com<br />

contato@serautista.com<br />

Diretora responsável<br />

Anna Carolina Rovai<br />

anna.rovai@serautista.com.br<br />

Produção de conteúdo e<br />

desenvolvimento<br />

Ser Autista<br />

Rua Machado de Assis, 92 -<br />

São Bernardo do Campo- SP<br />

CNPJ 20.191.247/0001-40<br />

Revisão<br />

Cristiane Alves Cavalcante da Silva<br />

Diagramação/Capa<br />

Carlos Celice<br />

Foto Capa<br />

Dino Menezes<br />

Departamento Comercial<br />

comercial@serautista.com<br />

Nossa matéria de capa nos inspira a entender que inclusão é ter nosso espaço e nossos<br />

direitos na sociedade, Patrícia Lucchesi fala sobre os desafios e conquistas no desenvolvimento<br />

do seu filho, Mateus, autista severo não verbal e como sua história pessoal<br />

recomeçou após o diagnóstico do seu filho. Patrícia iniciou sua carreira artística<br />

com comercias, sendo um grande marco a campanha “O primeiro sutiã a gente nunca<br />

esquece”, seguidos de trabalhos na TV, cinema e teatro; graduada em psicologia. Ela<br />

nos conta que com seu filho encontrou “aceitação, resignação, resiliência e beleza”<br />

enfrentou e enfrenta desafios diários, reconhecendo que todos os dias são de luta, e<br />

que encontra a recompensa no sorriso do seu filho.<br />

A adaptação curricular como ferramenta indispensável no processo de inclusão escolar,<br />

são temas abordados pelo professor Lucelmo Lacerda e a Dra. Tatiana Takeda.<br />

Fernanda Orsati Doutora em Educação Especial e Inclusiva nos apresenta na coluna<br />

tecnologia assistiva e participação ativa o Inclusive Todos aplicativo que oferece uma<br />

estratégia de comunicação funcional que contempla os autistas não verbais.<br />

Para você não perder nenhum conteúdo da Ser Autista, assine nossa revista, você<br />

pode escolher entre os planos trimestral, semestral e anual, recebendo a versão impressa<br />

no conforto da sua casa, além de poder optar pela versão digital gratuita. Além<br />

disso, em nosso portal você vai encontrar matérias interessantes e muito conteúdo,<br />

acesse: www.serautista.com. Queremos estar próximos de vocês, nos envie sugestões<br />

de pauta, eventos e palestras para nosso e-mail: contato@serautista.com.<br />

Aproveito a oportunidade para agradecer aos nossos colunistas que aceitaram fazer<br />

parte desta revista, dividindo seu conhecimento, suas experiências e dicas para<br />

fomentar conhecimento e por meio da informação potencializar o respeito e reduzir o<br />

preconceito. Nos empenhamos a cada exemplar para levar até você um conteúdo diferenciado,<br />

personalizado e que eleve a sua confiança, proporcionado mais equilíbrio<br />

a todos que estejam conectados com este propósito.<br />

A Ser Autista é uma publicação mensal e gratuita.<br />

As opiniões dos artigos/colunistas aqui publicados<br />

refletem unicamente a posição de seu autor,<br />

não caracterizando endosso, recomendação ou<br />

favorecimento por parte da Ser Autista, ou quaisquer<br />

outros envolvidos nessa publicação. As pessoas<br />

que não constarem no expediente não têm<br />

autorização para falar em nome da Ser Autista<br />

ou para retirar qualquer tipo de material se não<br />

possuírem em seu poder carta em papel timbrado<br />

assinada por qualquer pessoa que conste no<br />

expediente. Todos os direitos reservados. É proibida<br />

qualquer forma de reutilização, distribuição,<br />

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conteúdo sem prévia autorização da Ser Autista.<br />

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Desejo a todos uma boa leitura e até a próxima!


6<br />

Amigos presentes de Deus!<br />

Lembro até hoje quando o Enzo<br />

entrou na sala da Amanda, uma<br />

semana depois minha pequena falava<br />

dele: “Mãe o Enzo é muito fofo”, e não<br />

parava de tecer elogios. Na primeira<br />

festinha de um amigo da escola o<br />

Enzo foi e lembro até hoje, Enzo não<br />

ia em nenhum brinquedo, mas vendo<br />

as amigas na roda gigante ele fazia<br />

questão de pegar na mão de cada uma<br />

delas, ali nascia uma parceria, uma<br />

amizade...<br />

Elas lidam da melhor forma com o<br />

que está na frente delas. Aceitam<br />

prontamente as diferenças, lidam<br />

com elas e aprendem a amar... Entre<br />

elas não há nomenclaturas: autismo,<br />

autista, normal, deficiente… nada<br />

disso faz sentido para as crianças.<br />

A única coisa que importa para elas<br />

é se descobrirem em semelhanças e<br />

diferenças e se adaptarem para mutualmente<br />

exercerem sua afetividade,<br />

cada qual à sua forma.<br />

Nós, adultos, é que criamos o precon-<br />

E no mesmo dia, à noite, a mãe do<br />

Enzo enviou uma mensagem no<br />

grupo de mães, emocionada pelo<br />

acolhimento que o Enzo teve pelos<br />

colegas de sala... e fez uma pequena<br />

explicação sobre o autismo.<br />

Naquela altura do campeonato eu<br />

já tinha ouvido falar, mas não sabia<br />

exatamente como era uma criança<br />

autista; ah, mas as crianças são tão<br />

mais abertas que nós, têm menos<br />

medo que nós e, infelizmente, têm<br />

mais amor que nós, adultos.


7<br />

ceito, criamos uma visão distorcida de<br />

um mundo do que é aceito e do que<br />

não é, do que é normal e do que não é,<br />

o que é feio e o que é bonito. Nenhuma<br />

criança exclui a outra se não for<br />

assim ensinada. No auge dos seus 4 e<br />

5 anos essas crianças nos ensinaram<br />

que quando se tem amor a diferença<br />

não faz a menor diferença... e o Enzo<br />

nos mostra a cada ano que os obstáculos<br />

estão aí para serem superados,<br />

e que com amor tudo fica tão mais<br />

simples.<br />

As superações do Enzo são notadas<br />

todos os dias... hoje ele está mais do<br />

que integrado à turma, ele dança, faz<br />

discurso e na última festinha venceu<br />

seus medos e encarou até a tirolesa.<br />

Eu fico completamente encantada<br />

com essa magia no amor entre essas<br />

crianças...<br />

E se pergunto para Amanda qual<br />

a diferença entre ela e o Enzo, ela<br />

diz: “Mãe o Enzo não gosta muito de<br />

música e eu gosto, mas o Enzo parece<br />

comigo porque ele fica triste toda vez<br />

que um amigo fica triste”.<br />

Na inocência e pureza desses pequenos,<br />

eu entendo que para eles se depararem<br />

com a diferença é a arte<br />

normal de descobrir<br />

o mundo.<br />

E fico me perguntando será<br />

que foi bom crescer?<br />

Será que não seria mais belo<br />

ser para sempre inocente,<br />

puro e aberto às novidades,<br />

como uma criança?<br />

RENATA GOMES TERENTIN,<br />

Mãe da Amanda, fotografa<br />

contato 11 97181.8583


8<br />

O autismo leve, os sintomas e os desafios<br />

de conviver em sociedade<br />

Falar em sintomas de autismo é, ao<br />

mesmo tempo, algo simples e complicado.<br />

Muitas pessoas chegam a mim se<br />

dizendo tímidas, com dificuldade<br />

de olhar nos olhos, necessidade de<br />

rotinas ou outros sintomas compatíveis<br />

com o autismo e me questionam<br />

se existe a possibilidade de elas serem<br />

também autistas. Mas o autismo,<br />

apesar de estar cada dia mais sendo<br />

desmistificado, é um universo ainda<br />

cheio de mistérios, de limitações e<br />

dificuldades que nos colocam em<br />

situação de isolamento,<br />

solidão e depressão.<br />

É, portanto, um<br />

transtorno de difícil<br />

diagnóstico, sobretudo<br />

em adultos.<br />

No meu caso, os sintomas<br />

apareceram quando<br />

eu ainda era um<br />

bebê, mas obviamente<br />

foi ser percebido anos<br />

depois, quando a escola<br />

começou a estranhar<br />

meu comportamento.<br />

Eu tinha cerca<br />

de cinco ou seis anos<br />

quando pela primeira<br />

vez minha mãe foi<br />

chamada na escola e<br />

orientada para que me<br />

levasse ao médico, pois<br />

havia “algo errado”<br />

comigo, “talvez autismo<br />

mamãe” – disse<br />

a orientadora que conversava com<br />

minha mãe. Em uma época em que<br />

autismo era sinônimo de demência<br />

e completa incapacidade como um<br />

todo, conhecido popularmente como<br />

uma “doença mental”. Minha mãe<br />

dizia que eu era uma menina boazinha<br />

demais e que eu não era doente.<br />

Eu apenas não me relacionava com<br />

ninguém, não comia quase nada, não<br />

dormia direito, urinava na cama, não<br />

falava, não brincava e chorava muito.<br />

Depois de muita reflexão minha mãe<br />

se lembrou de que eu era um bebê<br />

que não chorava, que não me apegava<br />

a nada, não me mexia no berço e<br />

poderia me deixar uma manhã inteira<br />

deitada no balcão da cozinha porque<br />

eu simplesmente não me virava, era<br />

um bebê quase que de brinquedo...<br />

Quando comecei a andar, descobri um<br />

mundo novo, me distraía facilmente<br />

com objetos e não dava a mínima para<br />

as pessoas. Tinha um sério problema<br />

em dividir alimentos ou compartilhar<br />

objetos e me atinha a uma mania<br />

por época. Teve a época de brincar<br />

de contar grãos de feijão, a época<br />

de enrolar fios de todos os tipos, a<br />

época de enfileirar bonecas e por aí<br />

vai. Eu sabia falar, mas me recusava<br />

a falar e na maior parte do tempo eu<br />

simplesmente não conseguia falar. O<br />

desenvolvimento pleno da fala veio<br />

aos nove anos, coincidentemente após<br />

o diagnóstico, quando minha mãe<br />

me levou a um neuropediatra porque<br />

era a quarta vez que chamavam ela<br />

na escola falando sobre o autismo e<br />

aquela época eu cheguei a um estágio<br />

de enxaqueca em que eu não conseguia<br />

mais sair da cama. As faltas<br />

escolares eram frequentes, eu não<br />

tinha hábitos de higiene como tomar<br />

banho, escovar os dentes ou lavar<br />

os cabelos e cortar as unhas. Eu não<br />

gostava de cabelos bagunçados, não<br />

suportava roupa suja (com manchas),<br />

mas para mim se estivesse cinco dias<br />

com a mesma roupa e ela não estivesse<br />

manchada, então estava bom...<br />

Ao sair da consulta recebi uma bronca<br />

de minha mãe, depois de vomitar<br />

em um dos ônibus que tomamos para<br />

voltar para casa. Ela foi bem direta,<br />

disse que eu não era doente, que<br />

eu sabia falar e que precisaria me<br />

esforçar porque senão a escola não<br />

iria mais me aceitar e, como não tinha<br />

ninguém para cuidar de mim, eu teria<br />

que ser internada. Aquilo me gerou<br />

pânico, entrei em desespero e passei a<br />

falar. Não considero errada a atitude<br />

de minha mãe, pois ela tinha outros<br />

dois filhos para sustentar e realmente<br />

não poderia largar tudo outra vez<br />

para cuidar de mim. Ela já havia<br />

deixado o trabalho em uma tentativa<br />

frustrada de me deixar<br />

em uma creche, em<br />

que eu só gritava e não<br />

me aguentaram lá.<br />

A exposição à pobreza,<br />

à dor, angústia e<br />

solidão me obrigaram<br />

a me adaptar – ou pelo<br />

menos tentar – ser um<br />

pouco mais “normal”.<br />

Mas sempre fui um<br />

“peixe fora d’água”, um<br />

“ponto fora da curva”,<br />

uma criança que, de<br />

especial não tinha<br />

nada. Conhecia sim a<br />

exclusão, o bullying,<br />

a carência afetiva, os<br />

medos, os enjoos, as<br />

crises, a dificuldade<br />

de compreender as<br />

regras, os contextos<br />

e os estranhos comportamentos<br />

das<br />

pessoas. Elas falavam sobre eu não<br />

tomar banho, claro que eu queria<br />

tomar mais banho, porém, o medo do<br />

banheiro me impedia de frequentá-lo<br />

com continuidade, mas essas mesmas<br />

pessoas tomavam banho e se enchiam<br />

– conscientemente – de desodorantes<br />

que ardiam o nariz e deixavam gosto<br />

amargo na garganta. Difícil demais<br />

entender as regras sociais, a prioridade<br />

que as pessoas davam para outras<br />

pessoas que as traiam e falavam mal<br />

delas. Os meus objetos me eram muito<br />

previsíveis, eu sempre sabia como eles<br />

funcionavam e o que poderia esperar<br />

deles. As pessoas eram instáveis,<br />

ora amavam e pegavam no colo, ora<br />

expulsavam e berravam sem motivo.<br />

Definitivamente eu preferia ficar com<br />

os objetos ao invés de ficar com as


9<br />

pessoas.<br />

Apesar de melhorar a minha capacidade<br />

de me relacionar com as pessoas,<br />

isso nunca representou de forma alguma<br />

que eu tivesse, de fato, um bom<br />

relacionamento com quem quer que<br />

fosse. Minhas manias só mudavam<br />

de nome, mas eu continuei diferente,<br />

inaceitável pelo mundo e isolada em<br />

meu próprio casulo.<br />

Sofri humilhações das mais diversas,<br />

apanhei, tive minhas coisas roubadas,<br />

sofri abuso físico e emocional,<br />

perdi minha infância antes do tempo,<br />

cheguei a morar na rua, perdi a fé nas<br />

pessoas, mas nunca perdi minha fé<br />

em Deus.<br />

Atualmente tenho ainda minhas<br />

manias, minhas limitações, uma<br />

forte sensibilidade sensorial e muita<br />

dificuldade na comunicação. Pois é,<br />

sou escritora, palestrante e tenho<br />

dificuldade na comunicação, isso porque<br />

eu falo demais, não consigo ter<br />

os filtros necessários para manter as<br />

pessoas perto de mim, lhes digo o que<br />

penso, de forma carinhosa, mas digo,<br />

isso infelizmente não é bem visto<br />

pela sociedade como um todo. Muito<br />

embora a lei seja clara, tanto na lei<br />

dos homens, como nas leis de Deus,<br />

de que não se deve mentir, as pessoas<br />

preferem mentiras do que ouvir verdades<br />

que não lhes caem bem. Estão<br />

acostumadas a disfarçar sentimentos,<br />

descontam em bebidas, em vícios e<br />

outras coisas destrutivas<br />

todos aqueles<br />

sentimentos que foram<br />

impelidas a guardarem<br />

dentro de si. E me refiro<br />

tanto a sentimentos<br />

bons como a sentimentos<br />

ruins, porque tive<br />

também experiências<br />

ruins quando demonstrei<br />

sentimentos bons,<br />

por exemplo, ao gostar<br />

demais de uma pessoa<br />

e enchê-la de presentes,<br />

agrados e elogios<br />

e acabar sendo questionada<br />

sobre minhas<br />

intenções, fui julgada<br />

de estar querendo obter algo em troca<br />

de toda a manifestação de carinho<br />

que demonstrei, isso foi realmente<br />

muito decepcionante.<br />

Chorar em público, ter sensibilidade<br />

sensorial com sons, cheiros, gostos e<br />

texturas, não saber a hora de falar ou<br />

a hora de precisar parar de falar, falta<br />

de noção em quem confiar, dificuldade<br />

de aprendizado em muitas coisas e<br />

excesso de conhecimento em outras,<br />

desejo e necessidade de trocar repentinamente<br />

de ambiente... São coisas<br />

que prejudicam a minha vida, me impedem<br />

de trabalhar em uma empresa<br />

“comum”, dificultam minha relação<br />

com amigos e familiares e me coloca<br />

em situação de vexame muitas vezes<br />

em minha vida, sintomas do autismo<br />

que nunca vão embora, eles podem<br />

até diminuir em algumas fases, posso<br />

aprender a me proteger, escolher<br />

melhor com quem me relacionar,<br />

mas não impedem infelizmente de<br />

me fazer sofrer. Porque o autismo é<br />

algo complexo, que faz parte do meu<br />

funcionamento e que muitas vezes<br />

na vida me fez pensar em desistir de<br />

viver, mas que com a graça de Deus<br />

sempre fui mais forte e sempre tive<br />

uma capacidade imensa de acreditar<br />

que tudo, um dia, terminaria bem...<br />

Por vezes me pego pensando em<br />

como será minha transição para a<br />

terceira idade e aí desisto de pensar<br />

nisso porque sei que cada ser humano<br />

é único, cada pessoa é uma pessoa<br />

antes de ser autista. O traço autista<br />

nunca irá embora, cada dia mais eu<br />

tenho a expectativa de aprender a me<br />

proteger, saber me isolar nos momentos<br />

certos e ensinar meu filho a agir<br />

da mesma forma. O fato de saber que<br />

preciso seguir regras sociais, mas que<br />

não preciso me agredir para isso me<br />

salva de sofrimentos<br />

desnecessários, tipo,<br />

não preciso ser grossa<br />

com ninguém ao ser<br />

sincera e indelicada,<br />

mas não preciso me<br />

maltratar e ir contra<br />

meus princípios somente<br />

por “ter que seguir”<br />

regras impostas pela sociedade.<br />

Ter equilíbrio<br />

é fundamental para<br />

qualquer pessoa, mas<br />

encontrar esse equilíbrio<br />

é uma regra de<br />

ouro para uma pessoa<br />

com autismo.<br />

UMA REFLEXÃO:<br />

Precisamos urgentemente aprender a<br />

olhar para o nosso próximo. A olhar<br />

para o autismo, tirando o véu do<br />

preconceito, tirando as ideias preconcebidas.<br />

Não podemos ignorar a<br />

fome, a exclusão, o frio, o abandono, a<br />

privação do sono, do colo, do amor, do<br />

alimento para o corpo e para a alma a<br />

que, independentemente da condição<br />

social em que nascemos, aprendemos<br />

em algum momento de nossas vidas.<br />

O autismo pode te ensinar muito.<br />

Depois do autismo você pode perceber<br />

que todo ser humano tem uma<br />

semelhança espantosa em meio à<br />

tanta diferença que determina a individualidade<br />

de cada ser.<br />

Pensamos muitas vezes em nossas<br />

vidas sermos únicos no mundo e de<br />

certa forma somos, temos a honra<br />

de carregar em nosso ser a exclusividade<br />

dos genes que nos diferem dos<br />

demais. Mas todos temos o mesmo<br />

desejo de vencer, de amar e sermos<br />

amados, de termos o perdão de nossos<br />

pecados e o reconhecimento pelas<br />

nossas atitudes heroicas perante as<br />

dificuldades da vida.<br />

A diferença entre você e o seu semelhante<br />

é que você pode ter um olhar<br />

de respeito e compaixão... Você tem o<br />

poder de controlar o que acontece em<br />

seu coração, mas as atitudes do outro<br />

dependem dele e de mais ninguém.<br />

Respeitar ao invés de atacar, perdoar<br />

ao invés de odiar, entender ao invés<br />

de julgar, pequenas atitudes que mudam<br />

o mundo. O desconhecido gera<br />

medo e o medo gera a rejeição. A cura<br />

para a doença social chamada preconceito<br />

começa na consciência de cada<br />

um de nós em respeitar as diferenças<br />

e aprender com o novo.<br />

Desperte o gigante que há em você,<br />

desperte para a conscientização do<br />

autismo. Desperte em olhar para o<br />

lado e enxergar além do preconceito,<br />

além do que seus olhos humanos<br />

podem ver.<br />

Estamos aqui. Sim! Abençoados! E<br />

lutando para nos entendermos e levarmos<br />

a palavra do autismo adiante,<br />

não apenas como uma forma de conscientização,<br />

mas também como uma<br />

forma de união e de reconhecimento<br />

para que todos possamos evoluir, nos<br />

aceitarmos e nos enxergarmos cada<br />

dia mais como pessoas diferentes e<br />

que possamos sim sermos melhores<br />

do que fomos ontem, mas sempre<br />

como parâmetro de comparação nós<br />

mesmos, nunca nos comparando<br />

com as outras pessoas, porque Deus<br />

nos fez únicos e perfeitos em nossas<br />

imperfeições.<br />

KENYA DIEHL<br />

Escritora, Consultora em<br />

autismo, Palestrante,<br />

Blogueira e Autista


10<br />

É TEA ou é Déficit de Atenção?<br />

E quando o Transtorno do Espectro Autista<br />

não explica tudo?<br />

O que são as comorbidades? Além<br />

de TEA, é possível que a criança<br />

também tenha déficit de atenção ou<br />

hiperatividade? Essas dúvidas são<br />

muito comuns, mas para entender<br />

as comorbidades, precisamos antes<br />

conhecer alguns termos sobre o<br />

processo diagnóstico. Primeiro, vamos<br />

falar de diagnóstico diferencial, que é<br />

o processo pelo qual o profissional de<br />

saúde busca distinguir um transtorno<br />

de outro que pode ter características<br />

semelhantes. Por exemplo, uma<br />

criança que não responde quando<br />

chamada pelo nome pode não ter o<br />

interesse social, mas também pode<br />

estar desatenta. Problemas de atenção<br />

são comuns no TEA (Transtorno do<br />

Espectro Autista) e no TDAH (Transtorno<br />

de Déficit de Atenção e Hiperatividade),<br />

mas muitas vezes a forma<br />

como a desatenção se apresenta é<br />

diferente em cada diagnóstico. Além<br />

disso, outros sinais que acompanham<br />

a desatenção ajudam os profissionais<br />

a diferenciar entre TEA e TDAH.<br />

Esse processo fica um pouco mais<br />

complicado quando entendemos que<br />

esses diagnósticos também podem<br />

estar presentes ao mesmo tempo. É o<br />

que chamamos de comorbidade. Por<br />

exemplo, uma pessoa com TEA que<br />

tenha um atraso cognitivo importante<br />

pode ter um quadro de Deficiência<br />

Intelectual associado. Um adolescente<br />

com TEA que começa a ficar mais isolado<br />

e triste, pode estar desenvolvendo<br />

sintomas depressivos. Na prática<br />

clínica, nem sempre essa avaliação<br />

é fácil, especialmente pela grande<br />

sobreposição de sintomas entre TEA<br />

e outros transtornos do desenvolvimento<br />

como deficiência intelectual,<br />

transtorno de déficit de atenção e<br />

hiperatividade, transtornos de aprendizagem,<br />

e transtornos de linguagem.<br />

Além disso, algumas comorbidades<br />

envolvem também outras áreas da<br />

medicina, como a epilepsia, algumas<br />

síndromes genéticas, distúrbios gastrointestinais<br />

e uma maior predisposição<br />

para quadros infecciosos.<br />

E por que é importante avaliarmos as<br />

comorbidades?<br />

O Transtorno do Espectro Autista<br />

impacta muitas áreas do desenvolvimento.<br />

Por isso, quando uma criança<br />

recebe o diagnóstico de TEA é comum<br />

que as pessoas envolvidas no seu<br />

cuidado acreditem que todos os comportamentos<br />

da criança possam ser<br />

explicados apenas pelo TEA. A criança<br />

é desatenta? “É porque tem TEA”.<br />

É agitada? É opositora? “É porque tem<br />

TEA”. Não aprende? “É porque tem<br />

TEA”. Mas precisamos ter cuidado.<br />

A presença de um outro diagnóstico<br />

representa um grande impacto no<br />

tratamento e no próprio desenvolvimento<br />

de cada um. Sabemos que não<br />

existem medicações para o TEA, mas<br />

muitas das comorbidades podem ser<br />

tratadas com medicações ou exigem<br />

um outro olhar das terapias.<br />

Estudos mostram que em populações<br />

clínicas, até 2/3 dos indivíduos com<br />

TEA possuem alguma comorbidade. A<br />

comorbidade mais frequente é a deficiência<br />

intelectual, que pode ocorrer<br />

em 45% a 60% das pessoas com TEA,<br />

seguida dos transtornos ansiosos<br />

(cerca de 40%), transtorno de déficit<br />

de atenção e hiperatividade (TDAH,<br />

cerca de 30% a 40%) e transtorno<br />

de oposição desafiante (TOD, cerca<br />

de 30%). A frequência e o perfil das<br />

comorbidades varia muito entre os<br />

estudos, e a principal causa de variabilidade<br />

é por nível de gravidade do<br />

diagnóstico de TEA e a idade. Transtorno<br />

de humor, como a depressão,<br />

são raros em crianças, e costumam se<br />

iniciar na adolescência.<br />

O mesmo ocorre para a ansiedade<br />

social, que ocorre normalmente na<br />

adolescência é um dos transtornos<br />

ansiosos mais frequentes em TEA. Já<br />

quadros do neurodesenvolvimento


11<br />

como TOD e TDAH são mais frequentes<br />

em crianças, assim como quadros<br />

de fobias e ansiedade de separação.<br />

Outros transtornos mentais graves,<br />

como quadros psicóticos e transtorno<br />

bipolar também podem ocorrer, mas<br />

são bem menos frequentes.<br />

E o TDAH? Possivelmente, na prática<br />

clínica, comorbidade de maior peso,<br />

tanto pela frequência quanto pela<br />

dificuldade de diferenciar os sintomas,<br />

é o déficit de atenção e hiperatividade.<br />

Sintomas de desatenção são<br />

facilmente camuflados pela falta de<br />

interesse social, pelos<br />

déficits de comunicação,<br />

e pelas dificuldades de<br />

automonitoramento,<br />

organização e execução<br />

de atividades comuns a<br />

pessoas com TEA.<br />

No componente da hiperatividade,<br />

alguns aspectos<br />

sensoriais, como<br />

crianças com um perfil<br />

chamado buscador,<br />

também são possíveis<br />

confundidores. Esse<br />

perfil buscador inclui<br />

algumas características<br />

como gostar de pular,<br />

e subir ou esbarrar em<br />

objetos e móveis; tocar<br />

pessoas e objetos com<br />

frequência; preferir<br />

brincadeiras mais brutas;<br />

não ter consciência<br />

da própria força; envolver-se<br />

em brincadeiras<br />

de forma mais agitada<br />

ou barulhenta.<br />

Todas essas características<br />

também podem<br />

estar presentes nos<br />

casos de hiperatividade.<br />

Já perfis de crianças<br />

pouco sensíveis a estímulos sensoriais<br />

podem ser parecidos com sintomas de<br />

desatenção, como: ser muito quieto,<br />

passivo ou retraído, e desconsiderar<br />

ou não responder a estímulos da<br />

intensidade usual disponível em seu<br />

ambiente sensorial.<br />

Em alguns casos, o tratamento medicamentoso<br />

pode ser iniciado num<br />

quadro sugestivo de TDAH, mesmo<br />

que não se tenha certeza do diagnóstico.<br />

Lembrando que pessoas com<br />

TEA estão mais sujeitas a apresentarem<br />

efeitos adversos ou reações<br />

paradoxais às medicações.<br />

Comportamentos relacionados ao<br />

transtorno obsessivo-compulsivo<br />

(TOC) são frequentemente uma dúvida<br />

diagnóstica. Talvez mais do que<br />

qualquer outro transtorno, a preocupação<br />

em como separar os sintomas<br />

de TOC dos sintomas de TEA é uma<br />

investigação clínica difícil. Uma<br />

pessoa com TOC se envolve em atos<br />

repetitivos com o objetivo de reduzir<br />

a ansiedade normalmente gerada por<br />

uma obsessão (como um pensamento<br />

intrusivo e repetitivo de que minhas<br />

mãos estão sujas).<br />

Do ponto de vista das definições,<br />

os sintomas da TEA também atendem<br />

a esse critério. Três fatores que<br />

precisam ser atendidos incluem:<br />

engajamento em atos típicos do TOC,<br />

como lavagem frequente das mãos<br />

para matar germes, capacidade de<br />

resposta às intervenções normalmente<br />

eficazes para o TOC (validade) e um<br />

conjunto básico de sintomas do TOC<br />

que estaria além do padrão típico de<br />

sintomas de TEA. Parece complicado,<br />

mas vamos tentar entender melhor.<br />

Muitas vezes, por restrições da comunicação<br />

típicas de TEA, não conseguimos<br />

investigar de maneira eficaz<br />

a presença das chamadas obsessões.<br />

Diante dessa dificuldade, quando<br />

encontramos na clínica indivíduos<br />

com TEA que apresentam padrões<br />

repetitivos de comportamentos (como<br />

rasgar papéis, arrumar objetos, fazer<br />

perguntas de forma perseverativa),<br />

podemos optar por testar o tratamento<br />

medicamentoso para TOC.<br />

Vale lembrar que alguns comportamentos<br />

são próprios da idade ou<br />

podem ser agravados por fatores<br />

ambientais, pela dificuldade de comunicação,<br />

por doenças clínicas.<br />

Um olhar cuidadoso<br />

para cada pessoa, considerando<br />

todos esses elementos,<br />

é fundamental<br />

para não transformar<br />

comportamentos típicos<br />

em doença, mas também<br />

para não deixar<br />

passar um diagnóstico<br />

que exige tratamento<br />

diferenciado. Vamos<br />

tentar resumir um<br />

pouco?<br />

Diagnóstico diferencial:<br />

processo inicial e<br />

passageiro na avaliação<br />

para determinar qual<br />

transtorno ou doença<br />

explica os sinais e<br />

sintomas apresentados,<br />

excluindo outros transtornos<br />

que têm sinais<br />

e sintomas parecidos.<br />

Alguns dos diagnósticos<br />

diferenciais de TEA<br />

são: TDAH, Deficiência<br />

intelectual, Transtornos<br />

específicos de linguagem,<br />

Transtornos de<br />

aprendizagem.<br />

Comorbidade: presença<br />

de um ou mais transtorno ou doença<br />

que ocorrem ao mesmo tempo que o<br />

diagnóstico principal. Algumas das<br />

comorbidades de TEA são: TDAH,<br />

Deficiência Intelectual, Transtorno<br />

Opositor Desafiante, Depressão e<br />

Ansiedade. Uma avaliação adequada<br />

das comorbidades é essencial para o<br />

sucesso do tratamento!<br />

GRACCIELLE RODRIGUES<br />

CUNHA: Vice coordenadora do<br />

ambulatório de cognição social<br />

(TEAMM)da UNIFESP; Psiquiatra<br />

da infância e adolescência<br />

gracci.rc@gmail.com


12


13


14<br />

EXISTE MESMO<br />

EMPATIA ENTRE OS<br />

QUE LIDAM COM<br />

O AUTISMO?<br />

Quero muito agradecer a oportunidade<br />

de levar luz a um tema quase<br />

proibido nos meios de comunicação e<br />

até mesmo na comunidade autista, o<br />

autismo severo.<br />

Vou usar parte deste espaço para<br />

me apresentar e tentar fazer jus ao<br />

convite para expor as realidades de<br />

um autismo que não é conhecido pela<br />

maioria das pessoas, meu nome é<br />

Vera Duma, sou professora e estudiosa<br />

sobre o assunto por ter um filho<br />

com autismo severo e por força da<br />

minha profissão, acredito que se não<br />

tivesse tido um filho autista talvez<br />

jamais tivesse me embrenhado neste<br />

tema; no curso universitário nada me<br />

foi apresentado para que fizesse com<br />

que me interessasse, mas a vida me<br />

levou por essa trilha. Um autista severo<br />

não é um ser estranho, ele é um ser<br />

humano como qualquer outro, assim<br />

sendo, nascem, crescem, envelhecem<br />

e um dia morrem. A questão é o que<br />

acontece no caminho entre o nascimento<br />

e a morte.<br />

Entre os diversos autismos (espectro<br />

autista) encontra-se o severo, que<br />

também poderia ser subdividido em<br />

outro subgrupo (espectro autismo<br />

severo), neste subgrupo encontra-se<br />

o David (meu filho). As principais<br />

características dos autistas que se<br />

encontram nesta extremidade do<br />

espectro são: a extrema dificuldade<br />

de comunicação (são na sua maioria<br />

não verbais); negam-se a usar outros<br />

meios de comunicação, como, por<br />

exemplo, apontar; tem distúrbio do<br />

sono, podendo ficar dias sem dormir;<br />

costumam ter seletividade alimentar,<br />

por isso podem ter uma alimentação<br />

monótona, com base em 3 ou 4<br />

alimentos; a sensibilidade costuma<br />

ser extrema a estímulos externos<br />

(hipersensibilidade) ou ínfima a estes<br />

mesmo estímulos (hipossensibilidade),<br />

assim caso se machuquem podem não<br />

demonstrar dor, ao mesmo tempo,<br />

uma luz mais forte ou um som que<br />

passaria despercebido por nós, pode<br />

causar um desconforto tão grande<br />

que os faça entrar em crise.<br />

Todos os autistas, independente do<br />

grau (leve, moderado ou severo),<br />

podem ter algumas ou todas essas<br />

características que citei acima, o que<br />

muda no caso do autista severo é a<br />

frequência e a intensidade com que<br />

ocorrem. Normalmente, as crises dos<br />

autistas severos evoluem para surtos,<br />

que podem ser de agressividade, de<br />

autoagressividade, de quebra quebra,<br />

fazendo com que em descontrole eles<br />

possam ferir-se de forma muito séria;<br />

nesses casos, é necessário manejo de<br />

contenção para evitar ferimentos.<br />

Depois dessa breve localização do<br />

autista severo no espectro vou fazer<br />

um histórico do meu filho.<br />

Minha viagem por este mundo do autismo<br />

teve início dia 09 de dezembro<br />

de 1999, embora eu não soubesse na<br />

época... Nesta data nascia meu filho,<br />

saudável, lindo, perfeito e principalmente<br />

muito amado e querido, a<br />

verdade é... Para quase todas as mães<br />

é assim com o autismo, o autismo não<br />

tem cara, não se pode verificar no<br />

teste do pezinho, nenhum diagnóstico<br />

precoce existia naquela época e ainda<br />

hoje. Nada de verdadeiramente confiável<br />

existe para que se possa identificar<br />

o autismo no nascimento, assim<br />

posso dizer que o desenvolvimento<br />

do meu filho foi seguindo o esperado,<br />

olhava-me enquanto mamava, sorria<br />

para mim, seguia objetos quando estimulado,<br />

virava-se para observar sons,<br />

ou seja, como esperado ia se desenvolvendo.<br />

Andou aos 11 meses, começou<br />

a balbuciar algumas palavras com um<br />

ano, “mã mã mã, ai ai ai” em referência<br />

ao meu zangar com ele; “ tae ute”<br />

para a irmã Ruth parar de perturbá-<br />

-lo; além de outras coisas como pedir<br />

água, mamá, biscoito, apontar, tudo<br />

em ordem.<br />

Porém esta fala não evoluía, permanecia<br />

rudimentar quando comparada<br />

a da irmã na mesma idade, sei que<br />

não devemos comparar, mas é inevitável.<br />

Aos 2 anos e meio tomou a vacina<br />

tríplice viral e voltou para casa já com<br />

febre, a febre durou exatos dois dias,<br />

não era uma febre muito alta, então<br />

quando o levamos ao médico este disse<br />

que deveria ser uma reação natural<br />

a vacina. Percebi nesses dois dias uma<br />

mudança bastante significativa, estava<br />

prostrado, ausente, distante, não<br />

retribuía sorrisos, ou seja, estava diferente.<br />

Quando a febre cedeu, tinha ali<br />

outra criança, ele parou de sorrir, de<br />

nos olhar, de seguir sons ou responder<br />

quando chamado pelo nome, de<br />

brincar, perdeu o interesse por outras<br />

crianças e passou a se isolar, ficava<br />

horas olhando o ventilador girar,<br />

virava seu triciclo e girava as rodas<br />

por horas, andava nas pontas dos pés,<br />

não queria mais contato físico, parou


15<br />

totalmente de falar o pouco que falava<br />

e passou a emitir sons totalmente<br />

estranhos.<br />

Meu pensamento foi... Como faço<br />

para resolver isso??? O que está havendo<br />

com ele??? O que é isso???<br />

Levei meu filho a diversos pediatras,<br />

fiz todo tipo de exame e nada,<br />

a resposta era... Está tudo bem com<br />

ele, mas já tínhamos a internet, quem<br />

sabe o Google pudesse responder,<br />

assim conheci o protocolo, colocando<br />

tudo que observei no David... Impossível...<br />

Foi o que pensei, o David é o<br />

protocolo, todos os sintomas, o David<br />

é autista.<br />

Nada sabia sobre autismo, na faculdade<br />

de educação nunca houve uma só<br />

palavra sobre esse assunto, o máximo<br />

que eu já tinha visto sobre<br />

isso era o filme Rain Man.<br />

Assim, num primeiro momento<br />

meus esforços foram<br />

direcionados a “consertar o<br />

David”.<br />

Com o tempo e a total falta<br />

de informação, de diagnóstico,<br />

de medicação, de tratamentos,<br />

peguei-me entrando<br />

em grupos da internet, me<br />

tornei uma “mãe azul”, passei<br />

a sonhar com os grandes<br />

feitos do David, seria ele um<br />

grande músico??? Um pintor<br />

de renome??? Um gênio da<br />

matemática??? Um esportista<br />

famoso??? Eram tantas<br />

possibilidades que até me<br />

peguei agradecendo por ele<br />

ser autista, “um gênio”, mas<br />

nada de ele voltar a falar,<br />

afinal uma fala rudimentar<br />

é sempre melhor do que<br />

nada, pensava que seria só questão<br />

de tempo, mas o tempo passou e um<br />

dia percebi seu grande interesse por<br />

games, havia descoberto finalmente<br />

a habilidade genial do David, comprei<br />

todos os consoles de todos os jogos<br />

disponíveis no brasil, fiz empréstimo,<br />

gastei o que podia e o que não podia,<br />

só pensava que se era esse o grande<br />

dom dele eu teria que incentivar.<br />

No seu silêncio David se tornou um<br />

exímio jogador, passava horas em seu<br />

quarto jogando, ele mesmo trocava<br />

os consoles da TV, colocava e tirava<br />

os jogos, tinha total autonomia, nessa<br />

época estava com uns 8 anos, era um<br />

anjinho, uma criança fácil de lidar,<br />

frequentava a fono, TO, psicóloga,<br />

psiquiatra, neuro, continuava a fazer<br />

exames, detestava gente vestida de<br />

branco... É fácil saber porquê.<br />

De um dia para o outro, acordei e<br />

ao entrar no seu quarto... Ele havia<br />

quebrado todos os consoles, a TV e estava<br />

irreconhecível, nervoso, agitado,<br />

irritado... O que poderia ter ocorrido<br />

naquela noite? Nada de especial tinha<br />

acontecido no dia anterior, apenas ele<br />

havia entrado na puberdade, nessa<br />

época David estava com 10 anos. Daí<br />

em diante, descemos uma ladeira<br />

gigante, me perguntava, aonde tinha<br />

ido parar meu “anjo azul”? Todos os<br />

dias ele acordava nervoso, quando<br />

dormia, então foram mais médicos,<br />

mais exames, e finalmente os tão<br />

temidos remédios controlados.<br />

Era preciso medicá-lo, pois ele além<br />

de não dormir, quebrava tudo que encontrava<br />

pela frente, foram diversas<br />

TV’s, chuveiros, tomadas arrancadas<br />

das paredes, lâmpadas retiradas e<br />

jogadas pela janela, janelas de vidro<br />

quebradas com socos, copos, travessas<br />

e pratos arremessados ao chão;<br />

celulares jogados contra a parede,<br />

micro-ondas quebrado, fogão, portas<br />

de armários, fechaduras das portas,<br />

portas, ar condicionado...<br />

Tudo quebrado e comprado novamente<br />

e quebrado outra vez durante<br />

os dois anos que se seguiram, além<br />

do prejuízo material, havia também<br />

o risco de ferimentos, embora ele<br />

não demonstrasse dor, nem mesmo<br />

quando cortou toda a mão ao socar<br />

repetidamente o vidro da janela, ele<br />

já estava com 12 anos e os medicamentos<br />

(5 diferentes na época) não<br />

faziam efeito, mesmo em doses altas,<br />

pelo contrário, pareciam exacerbar<br />

todo o caos que havia se instalado<br />

em nossas vidas... Para piorar ainda<br />

mais este cenário nesta mesma época<br />

ele encontrou uma caixa de fósforos<br />

em casa... Riscou um e colocou fogo<br />

na camisa que estava usando... Foi<br />

horrível... Queimaduras de terceiro<br />

grau e uma internação de 4 meses<br />

em hospital para queimados, com 45<br />

balneoterapia (lavagem das feridas<br />

com anestesia geral usando abrasivos<br />

para evitar infecção), uma cirurgia<br />

plástica (enxertia) para tentar acelerar<br />

seu restabelecimento...<br />

Depois deste ocorrido decidi<br />

ir retirando aos poucos<br />

(desmame) os medicamentos<br />

controlados... Afinal...<br />

Melhor surtar sem medicamentos<br />

do que continuar<br />

surtando dopado... Por<br />

incrível que pareça houve<br />

uma melhora significativa...<br />

Ainda surtava... Ainda eram<br />

intensas as reações, mas a<br />

frequência havia diminuído...<br />

O David ama viajar... Adora<br />

estar em locais diferentes...<br />

Quartos de hotel... Acampamentos...<br />

Andar de carro...<br />

Então, hoje minha forma de<br />

incluí-lo no mundo é fazendo<br />

o que ele gosta... Mostrando<br />

a ele esse mundão<br />

que também é dele.<br />

Espero que tenham entendido porque<br />

me meti nesta luta... E, porque não<br />

tenho o direito de arredar o pé, as<br />

conquistas só virão para o David<br />

quando vierem para todos os autistas<br />

invisíveis (moderados e severos)...<br />

Afinal quero o meu direito de morrer<br />

um dia.<br />

#nossosfilhosnaosaoinvisiveis<br />

#autismoseveroexiste<br />

#juntassomosmaisfortes<br />

VERA DUMA, mãe do Davi, ativista<br />

pela causa do autismo severo<br />

e moderado, professora do ensino<br />

médio e básico.<br />

https://m.youtube.com/channel/<br />

UC7K8uevpSTxH2BBXK48aTmg


16<br />

Conheçam a história de Eliseu Acácio da Silva,<br />

pai de Lucas Gabriel, autista de 22 anos.<br />

Hoje, nossa história começa<br />

contando a luta de um pai que<br />

batalha, diariamente, para ver os<br />

direitos de seu filho, e dos filhos<br />

dos outros, reconhecido!<br />

Eu recebi o diagnóstico do meu filho,<br />

Lucas Gabriel, quando ele tinha apenas<br />

02 anos de idade. Hoje, ele já tem<br />

22 e as dificuldades para atendimento<br />

e tratamentos ainda parecem ser as<br />

mesmas de 20 anos atrás. Talvez, eu<br />

esteja enganado...<br />

Nossa trajetória no autismo começa<br />

com as suspeitas de minha mãe sobre<br />

o Lucas. Porém, ela suspeitava que ele<br />

fosse surdo, uma vez que ele se mostrava<br />

indiferente quando era chamado.<br />

Ao levá-lo a um fonoaudiólogo, o<br />

primeiro diagnóstico ficou descartado,<br />

pois constatou que sua audição era<br />

perfeita. Então, fomos encaminhados<br />

a um neurologista, o qual o diagnosticou<br />

com autismo. Lucas é um adulto<br />

com autismo severo. Confesso que,<br />

na época, minha reação foi tranquila,<br />

pois eu já havia ouvido falar de<br />

autismo e já tinha tido contato com<br />

algumas informações básicas.<br />

Com esse pouco conhecimento, eu<br />

achava que já sabia o que era o autismo.<br />

Ledo engano! Eu não tinha muita<br />

certeza do que era autismo, mas tinha<br />

certeza que com muito amor e disposição<br />

ele seria capaz de transpor todas<br />

as adversidades que apareceriam devido<br />

ao autismo. Mas, os meses e anos<br />

seguintes me mostraram que não era,<br />

e não é, tão simples assim.<br />

Contamos para todos da família e, de<br />

uma maneira geral, a reação inicial<br />

foi de lamento. Até minha mãe, que<br />

já estava acompanhando tudo, ficou<br />

muito preocupada. Mesmo assim, ela<br />

ficou ao meu lado e me ajudou, juntamente<br />

com a mãe do Lucas, a cuidar<br />

dele. A minha mãe foi de fundamental<br />

importância nesses anos iniciais<br />

e sua ajuda foi ainda maior que da<br />

própria mãe do meu filho. Por isso, e<br />

por muito mais, serei grato a ela por<br />

toda minha vida.<br />

Com o passar dos anos, acreditei que,<br />

mesmo com o autismo presente em<br />

nossa família, poderíamos ter qualidade<br />

de vida com atendimentos e tratamentos<br />

para Lucas. Mas, infelizmente<br />

não alcançamos essa possibilidade.<br />

Ainda hoje, cuidar de um autista<br />

severo no Brasil tem se mostrado um<br />

desafio que parece infinito! E não só<br />

os severos, mas os moderados e, em<br />

alguns casos, os leves também, pois<br />

faltam políticas públicas que faça<br />

valer os direitos de nossos filhos. O<br />

que vejo hoje é uma necessidade de<br />

termos que lutar sempre. E com o<br />

autismo severo, tenho a impressão<br />

que essa necessidade se equipare ao<br />

ar que respiramos! Claro que tivemos<br />

alguns progressos ao longo dos<br />

anos, mas tudo poderia ter sido ainda<br />

melhor.<br />

Considero que, sendo autista severo,<br />

uma das maiores conquistas do Lucas<br />

foi o desfralde, o que aconteceu ainda<br />

na infância. A iniciativa de ele sempre<br />

procurar, ou solicitar, o local adequado<br />

para suas necessidades fisiológicas<br />

é algo que considero uma de nossas<br />

maiores conquistas.<br />

Uma de minhas grandes frustrações<br />

foi a institucionalização de meu<br />

filho... Uma realidade que nunca fez<br />

parte dos meus planos para ele. Mas,<br />

apesar da constante frustração, pois<br />

ele continua institucionalizado, não<br />

me sinto impotente. Acredito que, de<br />

alguma forma, serei capaz de contribuir<br />

para mudar essa realidade, pois<br />

acredito que, um dia eu poderei trazê-<br />

-lo de volta para casa. E esse é o meu<br />

objetivo e luta, válido também para<br />

meu enteado institucionalizado.<br />

Pensando em todos os progressos<br />

que a ciência tem feito, acredito


17<br />

que, em futuro não sei se distante,<br />

poderá haver cura para o autismo. Na<br />

verdade, esse assunto ainda mexe um<br />

pouco comigo, pois ainda não temos<br />

muitas respostas exatas, e sim, um<br />

emaranhado de possíveis causas. Mas,<br />

quem sabe um dia, veremos essa cura,<br />

ao menos àqueles que precisam. Aos<br />

outros, fica o livre arbítrio e o direito<br />

à neurodiversidade.<br />

Não pensem que penso na cura<br />

porque não amo meu filho, muito pelo<br />

contrário! É por amá-lo demais. Em<br />

uma certa ocasião, meu filho quase<br />

morreu, de acordo com o médico que<br />

o atendeu, porque havia cortado o<br />

pulso em um vidro da porta de casa<br />

durante uma crise de agressividade.<br />

Foi um dos piores momentos da<br />

minha vida! O fato de ao menos considerar<br />

a possibilidade de perder meu<br />

filho, me fez perder o chão.<br />

será o dia mais feliz da minha vida.<br />

Minha maior fonte de inspiração<br />

nessa jornada tem sido o próprio Lucas,<br />

pois ele me mostra o tempo todo<br />

o carinho que tem por mim, mesmo<br />

tendo a necessidade de ser ajudado<br />

constantemente.<br />

Ele me mostra, todos os dias, que tudo<br />

vale a pena por ele. Por isso o fato de<br />

ele estar institucionalizado me machuca<br />

tanto. Eu só serei uma pessoa<br />

feliz no dia em que ele for realmente<br />

livre.<br />

Nossa história ainda não acabou e sei<br />

que tem muito a ser feito. Peço aos<br />

pais, assim como a todos os outros,<br />

que busquem constantemente políticas<br />

públicas para as pessoas autistas<br />

em todas as demandas do autismo<br />

leve ao severo.<br />

E que não ignorem a triste realidade<br />

de centenas (talvez milhares?) de<br />

autistas severos adultos institucionalizados<br />

por todo o país, sem tratamento<br />

adequado e até mesmo sem<br />

qualidade de vida. Sou realista, e não<br />

pessimista. Acredito que podemos,<br />

gradativamente, embora seja urgente,<br />

trazer mudanças necessárias a essa e<br />

a outras realidades negativas em que<br />

vivem pessoas autistas.<br />

E, para finalizar, gostaria de dizer que<br />

aquela frase que tem nas redes sociais<br />

“o melhor tratamento para autismo<br />

é amor e paciência” não é absoluta.<br />

Tratar o autista com amor e paciência<br />

é muito importante, com toda certeza!<br />

Mas amor e paciência não é tudo que<br />

o autista precisa como tratamento.<br />

Autistas precisam, uns mais<br />

outros menos, de apoio multidisciplinar.<br />

E essa deve ser<br />

nossa busca e cobrança junto<br />

ao poder público como<br />

direito das pessoas autistas.<br />

E tem também algumas situações engraçadas<br />

que já passamos. Uma vez,<br />

estávamos em uma igreja evangélica e<br />

meu filho começou a pular. As pessoas<br />

acharam que era uma manifestação<br />

do Espírito Santo, mas era só ele<br />

fazendo estereotipias mesmo. Rimos<br />

muito da situação, porque nos pareceu<br />

engraçada no momento. E tenho<br />

guardado minhas esperanças para<br />

que eu possa vir aqui um dia e contar<br />

a vocês momentos felizes, que será<br />

quando esse modelo de institucionalização<br />

em hospitais psiquiátricos, clínicas<br />

e abrigos oferecerem aos nossos<br />

filhos tratamento digno e real.<br />

Quando esse dia chegar, certamente,<br />

ANITA BRITO é doutoranda pela USP em<br />

Neurociências para estudos sobre TEA,<br />

cursos em Harvard e Stanford, Graduada<br />

pela PUC-SP e mestre pela Universidade<br />

Presbiteriana Mackenzie. Professora,<br />

escritora e palestrante. Vencedora do Prêmio<br />

Orgulho Autista, 2014. Desde 2011,<br />

já foram milhares de palestras em todo o<br />

Brasil e exterior falando sobre autismo<br />

com seu Nicolas Brito Sales.


18<br />

A menina, a mulher e a mãe.<br />

Nesta edição quero dedicar esse<br />

texto às mulheres. Sim, a elas que<br />

tanto nos encantam e são exemplos<br />

de força e dedicação.<br />

Quando falamos de família e, principalmente,<br />

de um diagnóstico de TEA<br />

então, aí é que elas são as personagens<br />

principais das histórias da maioria<br />

das famílias, salvo raras exceções.<br />

A mulher protagoniza, quase sempre,<br />

a função da pessoa que parte para o<br />

estudo em busca de uma solução para<br />

o desenvolvimento de seu filho(a), assume<br />

perspectivas diferentes no meio<br />

social com o intuito de abranger o<br />

maior número de possibilidades para<br />

que isso aconteça. Passa, facilmente,<br />

de mãe a terapeuta, professora,<br />

fisioterapeuta, nutricionista e por<br />

aí vai. Essa mãe, obrigatoriamente,<br />

tem que se reinventar, para assumir<br />

novos papéis que antes não estavam<br />

programados no plano de vida. E não<br />

podemos nos esquecer de que, se ela<br />

falhar, será cobrada pela sociedade, a<br />

qual atribui toda e qualquer falha na<br />

gestão familiar primeiramente à mãe.<br />

Além do mais, a mãe ainda é vista de<br />

forma tácita como principal responsável<br />

na educação dos filhos.<br />

Todo o exposto acima já é amplamente<br />

discutido e divulgado, sendo assim,<br />

eu não quero que esse texto vire um<br />

“mais do mesmo”. Então, como sempre,<br />

quero propor uma reflexão do<br />

texto a seguir onde quero poder dividir<br />

com vocês o que tenho observado<br />

em algumas oportunidades que a vida<br />

tem me proporcionado.<br />

O diagnóstico na vida adulta em<br />

mulheres tem sido cada vez mais<br />

observado e é considerado sempre<br />

mais complexo. As mulheres, de<br />

forma geral, tendem a camuflar<br />

mais os sintomas e sinais do TEA em<br />

função das convenções sociais. Esses,<br />

acabam passando despercebidos. Isso,<br />

porque espera-se que a mulher tenha<br />

um comportamento mais adequado<br />

aos padrões sociais, como falar pouco,<br />

não encarar as pessoas, não olhar diretamente<br />

nos olhos, etc. Por muitos<br />

anos, esses aspectos eram de vital importância<br />

para que uma mulher fosse<br />

considerada “ direita” ou a “certa para<br />

casar”. Por isso, quando encontramos<br />

mulheres com um comportamento tímido,<br />

ou até mesmo um acanhamento<br />

excessivo, esse comportamento é<br />

visto como aceitável socialmente.<br />

Essas mulheres quando entram na<br />

maternidade têm se descoberto por<br />

meio de seus estudos, motivados pelas<br />

experiências vividas com seus filhos<br />

com TEA. E estão se entendendo enquanto<br />

indivíduos. Atualmente, com<br />

o avanço dos estudos sobre o assunto,<br />

as mulheres têm encontrado subsídios<br />

para conseguirem o diagnóstico<br />

tardio.<br />

Mas, fica a dúvida: a busca pelo diagnóstico<br />

tardio tem benefícios? Essa<br />

é uma pergunta que não tem resposta<br />

certa ou errada. Como já disse<br />

em textos das edições anteriores, o<br />

bem-estar da pessoa é que deve vir<br />

em primeiro lugar. Se essa acredita<br />

que um diagnóstico lhe trará respostas,<br />

por que não? Mas, se por acaso,<br />

uma pessoa pensar que o diagnóstico<br />

pode lhe trazer rótulos ou não trazer<br />

benefício algum, por que tê-lo?<br />

Acredito que com o passar do tempo<br />

teremos cada vez mais informação<br />

sobre em como diagnosticar as mulheres<br />

e isso dará as futuras gerações<br />

a oportunidade de escrever histórias<br />

diferentes. Importante lembrar que<br />

nem todas as mães de pessoas com<br />

autismo, também são autistas. Esse<br />

texto é baseado nas experiências que<br />

tenho tido ao longo da minha jornada<br />

nesse assunto.<br />

Alexsander Sales é formado em<br />

Administração de Empresas e pósgraduado<br />

em logística empresarial<br />

pela FGV. Atualmente, é Pós-graduando<br />

em Neuropsicopedagia e<br />

ativista da causa autista. Desde<br />

2012, acompanha sua família nas<br />

palestras levando seu depoimento<br />

na visão de pai e falando sobre leis<br />

e moradias assistidas.


19


20<br />

APRAESPI por uma causa<br />

INTERVENÇÕES DA EQUIPE<br />

DE EDUCAÇÃO E <strong>SA</strong>ÚDE EM<br />

ATUAÇÃO INTERDISCIPLI-<br />

NAR A PESSOAS COM TEA<br />

(TRANSTORNO DO ESPEC-<br />

TRO AUTISTA) NA APRAESPI<br />

Definição, causas e prevalência do<br />

Transtorno do Espectro Autista (TEA)<br />

O TEA, de acordo com o DSM-5<br />

(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSO-<br />

CIATION [APA], 2014), designa um<br />

transtorno do neurodesenvolvimento<br />

que é caracterizado por comprometimentos<br />

persistentes na comunicação<br />

e na interação social em múltiplos<br />

contextos, bem como por padrões restritos<br />

e repetitivos de comportamen-<br />

tos, interesses ou<br />

atividades.<br />

O TEA é compreendido como um<br />

transtorno de etiologias múltiplas<br />

combinando fatores genéticos e ambientais.<br />

A prevalência é significativamente<br />

mais elevada em homens do que<br />

mulheres. Dados epidemiológicos<br />

recentes do Centro de Controle e Prevenção<br />

de Doenças (CDC) nos Estados<br />

Unidos indicam uma prevalência<br />

de TEA de um em cada 59 crianças<br />

nascidas.<br />

O número de pessoas diagnosticadas<br />

com o transtorno no mundo é crescente,<br />

o que não indica, necessariamente,<br />

o aumento da sua prevalência,<br />

pois possíveis razões para o aumento<br />

são:<br />

• A adoção de um conceito mais<br />

amplo;<br />

• Maior conscientização de clínicos e<br />

da comunidade sobre as manifestações<br />

do TEA;<br />

• Melhor detecção de casos sem deficiência<br />

intelectual;<br />

• Melhora nos serviços de atendimento<br />

a esta população;<br />

• Aumento de estudos epidemiológicos<br />

populacionais e com a utilização<br />

de métodos padronizados de investigação<br />

diagnostica.<br />

A NECESSIDADE DO DIAGNÓSTICO<br />

DIFERENCIAL E AS INTERVENÇÕES<br />

PARA O DESENVOLVIMENTO DA<br />

PESSOA COM TEA<br />

As abordagens baseadas em atendimento<br />

interdisciplinar para a<br />

pessoa com TEA na APRAESPI é um<br />

tratamento integrado dos técnicos da<br />

educação, saúde e assistência social,<br />

nas seguintes áreas: Pedagogia, Psicopedagogia,<br />

Psicologia, Fonoaudiologia,<br />

Fisioterapia, Terapia ocupacional,<br />

Enfermagem, Assistência social,<br />

Musicoterapia, Nutrição, Psiquiatria,<br />

Neurologia e demais áreas médicas<br />

quando necessário.<br />

A partir de um diagnóstico de TEA<br />

realizado pela equipe multidisciplinar<br />

é possível iniciar a intervenção e a<br />

orientação à família gerando ganhos<br />

significativos e duradouros no desenvolvimento<br />

da criança. A intervenção<br />

ou plano de tratamento das pessoas<br />

com TEA devem ser adaptados para


21<br />

atender às necessidades específicas de<br />

cada pessoa com o transtorno.<br />

Os tratamentos podem envolver<br />

intervenções comportamentais, de<br />

desenvolvimento, cognitivo e medicamentoso<br />

ou ambos, pois não existe<br />

uma única forma de lidar, sendo a<br />

combinação dos tratamentos a base<br />

para o estudo e a intervenção eficaz<br />

para cada criança com o TEA.<br />

A atuação interdisciplinar deve se<br />

colocar em um processo de busca e<br />

atuação do conhecimento de procedimentos,<br />

métodos, diretrizes e princípios<br />

para que seja efetivo e funcional<br />

a intervenção a pessoa com TEA.<br />

O foco da atuação técnica são as habilidades<br />

nas relações sociais; desenvolvimento<br />

sensorial, cognitivo, acadêmico<br />

e comportamental; habilidades<br />

de vida diária; habilidades motoras e<br />

treinamento de comunicação alternativa/funcional.<br />

PROGRAMAS DE INTERVENÇÕES<br />

COMBINADAS QUE SÃO UTILIZA-<br />

DAS NA APRAESPI AOS ALUNOS<br />

COM TEA<br />

As intervenções centradas em<br />

estímulos específicos para o aluno<br />

com TEA tem o objetivo de ampliar<br />

estruturas neurológicas para aprendizagem.<br />

Nas salas temos no máximo<br />

6 alunos com TEA, com programas<br />

específicos e funcionais.<br />

EDUCAÇÃO COGNITIVISTA<br />

As intervenções pedagógicas vão<br />

potencializar as competências cognitivas,<br />

socioemocionais dos alunos por<br />

meio de atividades individualizadas<br />

que impactam no desenvolvimento e<br />

superação de dificuldades, bem como,<br />

em longo prazo, relacionados à saúde<br />

e qualidade de vida, no desempenho<br />

da concentração, raciocínio, memória,<br />

criatividade, autoestima, perseverança,<br />

coordenação motora e a capacidade<br />

de resolver problemas de forma<br />

criativa e inovadora.<br />

PROGRAMA TEACCH (TRATAMEN-<br />

TO E EDUCAÇÃO PARA AUTISTAS<br />

E CRIANÇAS COM LIMITAÇÕES RE-<br />

LACIONADAS À COMUNICAÇÃO)<br />

O que faz a diferença na abordagem<br />

TEACCH ser única é o foco na<br />

compreensão da cultura do autismo<br />

na construção do ambiente físico,<br />

social e na comunicação. O ambiente<br />

é estruturado para acomodar as<br />

dificuldades que a criança autista<br />

apresenta e ao mesmo tempo, treina<br />

a sua performance comportamental<br />

para a aquisição de hábitos aceitáveis<br />

e apropriados.<br />

MÉTODO ABA (ANÁLISE DO COM-<br />

PORTAMENTO APLICADA)<br />

ABA é uma abordagem que é usada<br />

para a compreensão do comportamento<br />

e suas consequências, sendo<br />

que o meio e as atividades devem ser<br />

estruturados para melhor desempenho<br />

do aluno com TEA.<br />

Ser analista do comportamento<br />

significa atuar como educador, uma<br />

vez que o tratamento envolve um<br />

processo abrangente e estruturado de<br />

ensino-aprendizagem ou reaprendizagem.<br />

OS PAIS SÃO OS PRINCIPAIS PAR-<br />

CEIROS<br />

A abordagem familiar é um dos<br />

aspectos principais para o êxito do<br />

tratamento. Isso se dá, tanto na psicoeducação,<br />

no apoio psicológico aos<br />

pais e/ou cuidadores, como na instrumentalização<br />

para eles serem agentes<br />

de mudança. São os pais que costumam<br />

ter maior tempo de convivência<br />

com a criança e é importante que<br />

estimulem seus filhos nas atividades<br />

do cotidiano, buscando inseri-los no<br />

ambiente social. Os pais não apenas<br />

impulsionam a tomada de decisões<br />

sobre intervenções, mas também<br />

assumem um papel fundamental no<br />

seu fornecimento.<br />

INTERVENÇÕES MÉDICAS<br />

Não existe um padrão de tratamento<br />

que possa ser aplicado em todas as<br />

pessoas com TEA. Cada paciente exige<br />

um tipo de acompanhamento específico<br />

e individualizado que solicita a<br />

participação dos pais, dos familiares e<br />

de uma equipe profissional multidisciplinar<br />

visando à reabilitação global<br />

do paciente. O uso de medicamentos<br />

só é indicado quando surgem complicações<br />

e comorbidades. Os problemas<br />

incluem: comportamento associado ao<br />

TDAH, como desatenção ou hiperatividade;<br />

sintomas de ansiedade;<br />

comportamento compulsivo obsessivo;<br />

comportamento de agressividade<br />

e distúrbio do sono. Medicamentos<br />

prescritos podem reduzir esses comportamentos<br />

o suficiente para que as<br />

intervenções comportamentais ou de<br />

desenvolvimento sejam mais eficazes.<br />

ELI<strong>SA</strong>BETE FERNANDES R.<br />

PEREIRA<br />

Coordenadora da Unidade de<br />

Atendimento ao TEA da APRAES-<br />

PI; Psicóloga e mestre em Distúrbios<br />

do desenvolvimento<br />

LAIR MOURA<br />

Superintendente da Apraespi. 50<br />

anos em defesa dos direitos das<br />

Pessoas com deficiência


22<br />

Como interpretar um exame genético?<br />

A interpretação de um exame genético<br />

é algo bastante sério e deve ser<br />

feito de forma muito criteriosa, de<br />

preferência acompanhada pelo médico<br />

que solicitou o exame, ou então por<br />

um médico geneticista.<br />

No Brasil, o laudo genético deve ser<br />

feito seguindo as regras da ANVI<strong>SA</strong>,<br />

bem como a Academia Americana<br />

de Medicina Genética e Genômica<br />

(American College of Medical Genetics<br />

- ACMG). Utilizar uma normatização<br />

para confecção do laudo permite<br />

que ele seja lido de forma universal,<br />

fazendo com que tenham regras<br />

estruturais e de nomenclatura, tendo<br />

assim um padrão de qualidade e de<br />

interpretação.<br />

Quando um laudo genético é recebido,<br />

o mais comum é procurarmos o significado<br />

do gene, mas isso não é a forma<br />

mais correta de interpretação, pois<br />

o gene pode estar relacionado com<br />

diversas condições e não exatamente<br />

tudo que está na descrição do gene<br />

está relacionado com aquele indivíduo.<br />

É a variante genética que vai ser<br />

importante e que vai ditar o fenótipo<br />

clínico, quer dizer, o que pode acontecer<br />

com aquela alteração. Dessa<br />

forma, podemos dizer que quem rege<br />

essa orquestra é a variante genética.<br />

A variante genética é aquela informação<br />

que vem geralmente após “c.”<br />

ou “p.” que significa, respectivamente,<br />

sequência de DNA codificada ou<br />

proteína.<br />

A sequência referência usada na<br />

análise deve ser referenciada. Dessa<br />

forma, se tivermos esse tipo de alteração<br />

c.G1091A/ p.R364H significa dizer<br />

que houve uma alteração de nucleotídeo<br />

(c) na posição 1091 onde houve<br />

a troca G por A e na proteína (p) na<br />

posição 364 trocando o aminoácido<br />

arginina (R) para histidina (H).<br />

De acordo com o ACMG, o termo<br />

mais correto para relatar uma alteração<br />

genética é variante e elas devem<br />

ser reportadas seguindo as regras de<br />

nomenclatura internacional, indicadas<br />

pelo Human Genome Variation<br />

Society (HGVS), pois quando falamos<br />

mutação estamos nos referindo a<br />

trocas permanentes nos nucleotídeos,<br />

enquanto que polimorfismos<br />

são definidos com uma variante com<br />

frequência acima de 1%, o que tem<br />

gerado muita confusão e, por isso,<br />

esses termos foram substituídos por<br />

variante e seguido das seguintes<br />

classificações: variantes patogênicas,<br />

variantes provavelmente patogênicas,<br />

variantes de significado incerto<br />

(Variant of unknown significance<br />

– VUS), variantes provavelmente<br />

benignas e variantes benignas.<br />

VARIANTES PATOGÊNICAS:<br />

variantes são aquelas variantes<br />

sabidamente reconhecidas como causadoras<br />

de doenças, isto é, já foram<br />

identificadas em pacientes afetados,<br />

com estudos funcionais e depositadas<br />

como patogênicas em bancos de dados<br />

específicos; variantes que provocam a<br />

perda de função da proteína (nonsense,<br />

frameshift, splicing sites), variantes<br />

raras e/ou ausentes nos bancos<br />

de dados populacionais ou, então,


23<br />

variantes que segregam com a doença<br />

em uma família.<br />

VARIANTES PROVAVELMENTE<br />

PATOGÊNICAS:<br />

variantes que apesar de não reportadas<br />

em bancos de dados ou na literatura<br />

científica e que não foram avaliadas<br />

em estudos funcionais, podem<br />

levar à alteração da função proteica<br />

(nonsense, frameshift, splicing site).<br />

VARIANTES DE SIGNIFICADO<br />

INCERTO:<br />

podem ser variantes em genes conhecidos<br />

relacionados a uma questão clínica,<br />

mas a variante em questão não<br />

tem evidências científicas disponíveis<br />

que permitem concluir se tratar de<br />

uma variante benigna ou patogênica.<br />

Podem ser também variantes em genes<br />

cuja função ainda é incerta, isto é,<br />

naqueles genes potencialmente candidatos<br />

onde a natureza da troca pode<br />

afetar a função deste gene. Geralmente<br />

são variantes raras, ausentes ou em<br />

baixa frequência nos bancos de dados<br />

populacionais, sem relatos anteriores<br />

e, quando analisadas, são aquelas<br />

modificadoras da função proteica<br />

(frameshift). É escolha do laboratório<br />

relatar ou não as VUS encontradas,<br />

mas a ACMG sugere que elas sejam<br />

reportadas quando estão em genes<br />

relacionados com a questão clínica do<br />

paciente.<br />

VARIANTES PROVAVELMENTE<br />

BENIGNAS:<br />

variantes para as quais não foi reconhecida<br />

ou não se espera nenhuma<br />

patogenicidade (silenciosas, intrônicas),<br />

mas que não preenchem todos<br />

os critérios para serem classificadas<br />

como benignas.<br />

VARIANTES BENIGNAS:<br />

variantes com evidências suficientes<br />

para classificação como benignas,<br />

comprovadamente reconhecidas por<br />

não conferirem patogenicidade, podendo<br />

ou não serem reportadas.<br />

A classificação e a interpretação das<br />

variantes refletem o conhecimento<br />

científico disponível na literatura no<br />

momento da análise, interpretação do<br />

resultado e emissão do laudo. Assim,<br />

as variantes provavelmente patogênicas<br />

e, principalmente, as variantes de<br />

significado desconhecido/incerto podem<br />

vir a ser reclassificadas, devendo<br />

sempre passar por um processo de<br />

reinterpretação na literatura científica<br />

após a realização do exame.<br />

Com a diminuição dos valores, houve<br />

um aumento crescente de realização<br />

de sequenciamento de última geração<br />

(sequenciamento do genoma completo<br />

e do exoma completo) e consequentemente<br />

um aumento muito grande<br />

de variantes de significado clínico<br />

desconhecido/incerto e, por isso,<br />

muito tem se discutido sobre a importância<br />

da reinterpretação dos dados,<br />

pois o conhecimento não é estático, é<br />

dinâmico e está em intensa ascensão.<br />

No último dia 29 de abril, um novo<br />

documento foi publicado no ACMG<br />

sugerindo que os dados de pacientes<br />

devem ser reanalisados, principalmente<br />

quando existe VUS. Além da<br />

Academia Americana, a EuroGentest,<br />

UK e a Academia Canadense de<br />

Medicina Genética (Canadian College<br />

of Medical Geneticist) também vêm<br />

discutindo essa reinterpretação dos<br />

dados.<br />

Nós da Tismoo sempre acreditamos<br />

que a reinterpretação dos dados é algo<br />

bastante importante e, por isso, desde<br />

nossa inauguração, já contamos com<br />

o sistema de atualização de dados<br />

chamado de Tismoo 24/7, no qual os<br />

dados dos pacientes que realizaram<br />

os exames T-GEN (sequenciamento<br />

completo do genoma) ou T-EXOM<br />

(sequenciamento completo do exoma)<br />

são atualizados a cada seis meses<br />

durante um ano após a confecção e,<br />

passado esse período, o paciente poderá<br />

solicitar essa reanálise por tempo<br />

ilimitado, pois acreditamos que um<br />

dado que hoje pode ter um significado<br />

incerto pode ser a chave para o<br />

conhecimento no futuro.<br />

É importante ressaltar que um laudo<br />

genético deve ser sempre bem elaborado,<br />

com base nas regras da ANVI<strong>SA</strong><br />

e da ACMG, ele deve conter resultados,<br />

metodologia e conclusões — e<br />

o mais importante: deve ser relacionado<br />

com a clínica do paciente e ser<br />

interpretado sempre com um suporte<br />

médico.<br />

Lembrem-se que a<br />

variante genética deve<br />

ser avaliada e não<br />

apenas o gene.<br />

GRACIELA PIGNATARI.<br />

Bióloga, Mestrado e Doutorado em<br />

Biologia Molecular pela UNIFESP,<br />

estágio no Mount Sinai School of<br />

Medicine em Nova York, Participou<br />

da criação da ONG “Projeto A Fada<br />

do Dente” e é sócio-fundadora da<br />

startup de biotecnologia TISMOO.


24<br />

ACEITAÇÃO E QUEBRA<br />

DO PRECONCEITO<br />

Para falar de preconceito primeiro<br />

quero falar de aceitação. Não é<br />

necessário aceitar porque é de verdade.<br />

O diagnóstico do Mateus foi difícil.<br />

Aceitação tem a ver com compreensão.<br />

Por isso penso que é preciso<br />

mais informação. Quando compreendi<br />

melhor o diagnóstico tudo<br />

melhorou.<br />

Gostaria de ver as mães de autistas<br />

passeando mais. Sendo mais convidadas<br />

para eventos. Trabalhando...<br />

e o que elas quiserem ser.<br />

As pessoas aceitando e convivendo<br />

mais uns com os outros. Autismo<br />

é uma questão social e não somente<br />

de famílias de Autistas.<br />

Autistas são pessoas.<br />

Famílias são famílias.<br />

Mães são mães. Sou feliz com meu<br />

filho e penso que todos sofremos.<br />

É um privilégio tentar entender<br />

isso. Meu projeto de orientação psicológica<br />

para familiares de pacientes<br />

com o transtorno do espectro<br />

autista vai nesse sentido.<br />

Lutar contra o preconceito é falar<br />

de inclusão. Todos merecem seu<br />

espaço e seus direitos na sociedade.<br />

O Mateus não cresce, mas se desenvolve<br />

e envelhece. Todos nós<br />

envelhecemos. Graças a Deus.<br />

Quero falar principalmente para<br />

as mães.<br />

Mas não somente as mães de autistas<br />

e as famílias... Todas as mães...<br />

Porque não existe mãe de autista,<br />

mãe nova, mãe solteira. Mãe é<br />

sempre mãe.<br />

APRESENTAÇÃO<br />

Sou Patrícia Lucchesi, trabalhei na<br />

carreira artística por mais de 20<br />

anos.<br />

Comecei com comerciais e tive o<br />

privilégio de fazer a campanha,<br />

“O primeiro sutiã a gente nunca<br />

esquece”, um marco histórico.<br />

Fui para a TV, novelas, teatro e<br />

cinema. Dentre os trabalhos que<br />

participei, fiz minisséries, o seriado,<br />

“O grande Pai” no S.B.T, “Sandy<br />

e Junior” na Globo, o longa metragem<br />

“O casamento dos trapalhões”,<br />

entre outros...<br />

Sou psicóloga e, o mais importante,<br />

mãe do Mateus.<br />

Autista severo e não verbal.<br />

Não é independente.<br />

Comunica-se por meio de gestos e<br />

o PECS.<br />

Minha história recomeça com seu<br />

diagnóstico.<br />

“Com meu<br />

filho encontrei<br />

aceitação,<br />

resignação,<br />

resiliência<br />

e beleza”


“Os autistas são bons...<br />

são sempre crianças,<br />

mas crescem...<br />

são inocentes... anjos”<br />

25


26<br />

Diagnóstico<br />

Casei e engravidei cedo.<br />

O Mateus é meu filho único e faz parte<br />

de todo meu entendimento de vida.<br />

Eu era inexperiente na época, mas já<br />

na amamentação ele não interagia<br />

muito comigo. No começo teve um desenvolvimento<br />

aparentemente dentro<br />

da normalidade. Chegou a falar algumas<br />

palavras...<br />

Passear<br />

A, e, i, o, u.<br />

A olhar para mim e falar, bonita.<br />

Mãe<br />

Frases curtas de duas a três palavras.<br />

Mas foi regredindo no seu desenvolvimento.<br />

Andava na ponta dos pés,<br />

corria sem parar, apresentava auto<br />

e heteroagressividade, se jogava no<br />

berço, mordia a mão, batia a cabeça,<br />

não brincava com brinquedos, não<br />

entendia linguagem figurada, não<br />

brincava com as pessoas, girava a<br />

rodinha do carrinho com as mãos<br />

ao invés de brincar, não olhava nos<br />

olhos, se fixava nos pés das pessoas<br />

caminhando, não respondia a comandos,<br />

não imitava, girava uma cordinha<br />

com as mãos, se balançava muito,<br />

enfileirava objetos, fechava as portas,<br />

não atendia pelo nome.<br />

Foi se distanciando cada vez mais<br />

e parou de falar aos 7 anos. Eu não<br />

tinha a orientação que precisava, pois<br />

se sabia pouco sobre o diagnóstico<br />

naquela época. A pediatra dizia que<br />

atrasos eram normais. Até mesmo<br />

porque os exames físicos não detectavam<br />

nada.<br />

O pai foi se afastando... me deixava<br />

sozinha com o Mateus por longos<br />

períodos. O casamento acabou.<br />

Eu e minha família mal sabíamos o<br />

que era autismo. O diagnóstico veio<br />

quando o Mateus tinha dois anos e<br />

meio. E o pai biológico nunca mais<br />

apareceu e sua família também se<br />

distanciou, infelizmente. Só para<br />

vocês terem uma idéia da gravidade,<br />

o Mateus nessa época chegou a falar:<br />

pai. Mas meus familiares sempre<br />

estiveram ao meu lado.<br />

Tratamento<br />

Em um programa de televisão meus<br />

pais viram o Dr. Raymond Rosenberg<br />

falar sobre o transtorno, e que tinha<br />

tudo a ver com o Mateus. A pediatra<br />

orientou que não precisava procurar<br />

o Dr. Rosenberg, porque ele podia<br />

melhorar. Ainda assim decidimos<br />

levar ele motivados por uma grande<br />

preocupação. Fiquei sem chão e<br />

muito desesperada. Muito preocupada<br />

quanto ao futuro do Mateus e o que<br />

aconteceria com ele. Eu teria que<br />

abandonar uma carreira bem-sucedida.<br />

Corremos de tratamento em<br />

tratamento. Eu estava bem abalada<br />

e iniciei minha terapia que faço até<br />

hoje.<br />

O Mateus fez reorganização neurológica<br />

pelo método da Dra. Beatriz<br />

Padovan, fono, equoterapia...<br />

Tudo que estava ao nosso alcance.<br />

Tivemos auxilio de uma profissional<br />

reconhecida, Dra. Margarida Windolz,<br />

infelizmente recém-falecida.<br />

O Mateus passou por excelentes<br />

profissionais da área. Usamos os<br />

conceitos do Aba. Tem o PECS,<br />

sistema alternativo de comunicação<br />

por imagens. Ele tem um painel onde<br />

organiza sua rotina. O tratamento<br />

hoje é melhor que a 10... 20 anos.<br />

Escola e inclusão<br />

Tentamos a inclusão. Mas muitas<br />

escolas não o aceitaram. Chegaram<br />

a me dizer que era um problema na<br />

educação e que eu não dava carinho e<br />

não cuidava bem dele. Faltava e falta<br />

estrutura nas escolas. Que não forneciam<br />

um monitor, nem se quer permitiam<br />

que conseguíssemos um, por<br />

causa de leis trabalhistas da época.<br />

Hoje é permitido monitores, mas<br />

carece de formação adequada de<br />

profissionais. Encontramos em escolas<br />

especiais uma maior estrutura<br />

inclusive pelo nível de autismo do<br />

meu filho. Ele está na Fada associação<br />

de pais a pelo menos 15 anos. É muito<br />

feliz lá.<br />

Tenho várias histórias lindas do<br />

Mateus com eles. Escola especializada<br />

em autismo, onde encontramos um<br />

tratamento modelo. Infelizmente<br />

sobrevivem com muita dificuldade.<br />

Para contar uma história que adoro<br />

do psiquiatra do Mateus, com ele. Vou<br />

dizer de um dia que ele visitou a Fada,<br />

depois de muitos anos sem ir à escola.<br />

O Mateus fez pipoca junto com seus<br />

amigos e achamos que logo depois iria<br />

comer o seu potinho sozinho, como<br />

sempre fazia. Mas nos surpreendeu<br />

oferecendo para o doutor antes. O<br />

Mateus tem dificuldade na interação<br />

social e comunicação. Como é no<br />

transtorno. Por isso, muitas vezes,<br />

não consegue dividir. Se organiza por<br />

meio de rotina como é no TEA, e o<br />

doutor naquela situação significava<br />

uma quebra de rotina.<br />

Preconceito<br />

O Mateus sofreu algum preconceito.<br />

Para falar um pouco disso, em um<br />

prédio onde eu morava, tive que me<br />

mudar, pois ele chegou a ser isolado<br />

pelos moradores. Uma vez quando foi<br />

à piscina, se assustou com as crianças<br />

correndo e segurou com as mãos o<br />

braço de um amigo. Ele se assustou<br />

e a mãe não aceitou qualquer tipo de<br />

explicação minha e de minha família.<br />

Fazendo uma reclamação ao condomínio<br />

e comunicando a todos em um


27<br />

mural do prédio. Vejam só o absurdo,<br />

eu quase tive que pagar uma multa.<br />

Tentei por muito tempo explicar a<br />

todos, fazer essa integração e não<br />

consegui. Eu não me culpo por isso,<br />

muito menos ao meu filho. Claro que<br />

nem todas as pessoas agiram assim.<br />

Um síndico foi afastado porque nos<br />

defendeu. Lamento. Não por mim e<br />

minha família. Apenas não vejo mais<br />

necessidade de comentar. O tempo<br />

passou e tenho talvez a esperança ou<br />

ilusão que momentos desagradáveis<br />

assim não se repitam.<br />

Faculdade e segundo<br />

casamento<br />

Meu segundo marido foi o pai do<br />

Mateus. Tínhamos uma relação muito<br />

especial um com o outro. O Paulo foi<br />

meu mestre, meu professor, namorado<br />

e não só isso. Meu companheiro<br />

em tudo. Eu fiz faculdade de psicologia<br />

para entender melhor o Mateus e<br />

lidar melhor com as questões que envolvem<br />

seu diagnóstico. O Paulo deu<br />

a maior força. Continuo estudando e<br />

é um caminho para mim. Ele sempre<br />

soube lidar com o Mateus. Nós<br />

brincávamos todos juntos, o Mateus<br />

o imitava.<br />

Colocava o seu sapato e saia pela casa.<br />

Um dia quando o Paulo foi me buscar<br />

em casa para sair, antes de nos casarmos.<br />

Eu estava me arrumando no<br />

quarto e o Paulo na sala sentou o Mateus<br />

em seu colo, naquela época com<br />

3... 4 anos. E eu do quarto sem querer<br />

ouvi esse presente.O Paulo perguntou<br />

se o Mateus queria ser seu filho, que<br />

poderia chamar ele de pai.<br />

Nós nos<br />

divertíamos<br />

muito juntos, em parques,<br />

cinema, teatro...<br />

Cozinhávamos e o Paulo sempre fazia<br />

a gente rir. Infelizmente ele foi adoecendo<br />

com o tempo e faleceu. Eu mais<br />

uma vez fiquei abalada. Em luto.<br />

O Mateus em crise se machucou<br />

muito. As crises fazem parte do transtorno.<br />

Desde pequeno entrou em<br />

diversas crises. Para mim a pior foi na<br />

puberdade. Ficou muito perigoso para<br />

o Mateus e impossível de controlarmos<br />

sozinhos a situação. Tivemos que<br />

colocá-lo em um lar por alguns meses.<br />

Ele melhorou e voltou para casa.<br />

Hoje moramos com os avós do<br />

Mateus. É muito bom almoçar em<br />

família... essa união, família é a base.<br />

É tudo!!!<br />

Autismo e dificuldades que<br />

podemos transpor<br />

O Mateus em momentos de crise usa<br />

capacete; já precisou fazer duas cirurgias<br />

plásticas faciais. Fala-se de diagnóstico<br />

precoce, autismo na infância.<br />

É muito importante o diagnóstico<br />

precoce para o tratamento.<br />

Mas quase não se fala dos adultos.<br />

Eles envelhecem e nós também.<br />

Meu filho precisa de assistência 24<br />

horas. Todos precisamos de nosso espaço<br />

garantido. Eles não são diferentes.<br />

Onde eles tenham todo cuidado,<br />

inclusão e sua individualidade.<br />

Penso que vão precisar de mais residências<br />

assistidas acessíveis.<br />

Centros de tratamento com atendimento<br />

multidisciplinar acessível.<br />

Sempre inclusão e atendimento prioritário.<br />

Todos têm seus direitos.<br />

Todos deveriam ter os melhores<br />

tratamentos.<br />

A lei muitas vezes não saem do papel.<br />

Ela existe, mas ainda, infelizmente,<br />

não é uma realidade efetiva. Já<br />

melhorou muito, mas precisamos<br />

caminhar mais. É uma luta, porém<br />

com o apoio e a união de todos. Tenho<br />

certeza que vamos conseguir. Já está<br />

bem melhor hoje. Participei no dia<br />

da conscientização do autismo, de<br />

um simpósio na Unicamp, fazendo<br />

um depoimento de pelo menos 30<br />

minutos. Com umas 800 pessoas nos<br />

assistindo. Fiz uma entrevista na<br />

Alesp e voltei lá em um evento para<br />

dar meu depoimento.<br />

Na Câmera<br />

Municipal<br />

de<br />

Campinas<br />

também<br />

estive dando meu<br />

depoimento no encerramento<br />

do simpósio da Unicamp.<br />

Na caminhada de conscientização<br />

do Autismo na Paulista,<br />

estava lá também, fiquei muito feliz<br />

de me encontrar com muitos amigos.<br />

Vendo uma adesão cada vez maior.<br />

Temos a frente parlamentar da<br />

deficiência e do autismo. Fico muito<br />

feliz com a iniciativa da revista Ser<br />

Autista.<br />

A informação está bem maior. A<br />

aceitação também. É muito importante<br />

que a gente conheça cada vez mais<br />

nossos direitos. Meu maior medo<br />

é onde o Mateus vai ficar quando<br />

não pudermos mais suprir as suas<br />

necessidades. Tenho o apoio familiar.<br />

Embora conforme o tempo passa fica<br />

mais difícil. Há algumas poucas leis<br />

dos governos para ajudar no custeio<br />

da escola e em gastos. Mas nada muito<br />

claro, definitivo e aplicado amplamente.<br />

Para conseguir alguma ajuda é<br />

uma luta. É preciso entrar com ações<br />

na justiça e são anos. Nem sempre se<br />

consegue.<br />

No Caps o diagnóstico é feito, porém o<br />

encaminhamento para o tratamento<br />

não acontece. E as pessoas que não<br />

tem plano de saúde e vão para o SUS?<br />

Foi uma luta para ensinar o Mateus<br />

a ir ao banheiro, tirar a fralda, a sua<br />

higiene pessoal e ser relativamente<br />

independente. Lembro que aos cinco<br />

anos ele aprendeu a segurar a bola e<br />

jogar para a outra pessoa. Foi um esforço<br />

meu e de todos os que acompanham,<br />

em um treino quase diário.


28<br />

Intervenção<br />

Ele tinha um caderno com<br />

figuras com tudo o que achávamos<br />

que ele gostava, o Mateus<br />

nomeava. Apontava e falava ou perguntávamos<br />

o que era, ele apontava.<br />

Sempre se acalmou com água. Na<br />

piscina ou praia ou banho. Com massagem,<br />

ele faz até hoje. A massagem é<br />

excelente. É um momento importante<br />

de integração com o outro, com o<br />

ambiente. É muito bom a mãe quando<br />

puder fazer no filho. Eu faço todos<br />

os dias, porém quando não posso me<br />

ajudam. Mãe e pai não devem ser<br />

terapeutas de seus filhos. Mãe e pai<br />

devem ser apenas isso, não é pouco.<br />

Estar presente, cuidar do outro, sem<br />

deixar de se cuidar, ensinar, aprendendo<br />

a lição. Precisa manter a rotina,<br />

um ambiente mais tranquilo o máximo<br />

possível, ensinar que nem sempre<br />

é assim. Não sabemos até onde vai<br />

o entendimento do Mateus, mas ele<br />

tem ótima compreensão e empatia.<br />

Ele gosta das pessoas e quer sua companhia.<br />

Mas tem um treino, manejo<br />

para isso acontecer. Inclusão nas<br />

escolas, famílias, sociedade sempre.<br />

Os pais não devem carregar uma<br />

cruz, devem apenas amar fazendo o<br />

possível. Tentamos por meio do que o<br />

Mateus gosta que ele se desenvolvesse<br />

dentro de suas possibilidades, e au-<br />

mentar seu repertório.<br />

Ele gosta de água, piscina,<br />

praia, parque, caminhar, passear,<br />

música...<br />

Alguns sons ele curte, mas outros<br />

não. Tentamos entender isso. Antes<br />

do diagnóstico quando eu ligava o<br />

liquidificador, o Mateus se assustava e<br />

colocava as mãos no ouvido, fechando<br />

a porta do quarto com tudo. Eu não<br />

entendia o que era isso e não sabia<br />

lidar com a situação. Para mim é fundamental<br />

a orientação que tive, tenho<br />

de excelentes profissionais na área e<br />

meus estudos. Outro dia ele viu um<br />

liquidificador em casa e sinalizou que<br />

queria fazer um suco.<br />

A questão da temperatura do corpo<br />

para ele é diferenciada. Muitas vezes<br />

que está frio, põe roupa de calor.<br />

Eu já passei muito tempo tentando<br />

agasalhar o Mateus no frio enquanto<br />

ele dormia. Ele tirava a roupa e punha<br />

sunga que estava no seu armário.<br />

Tentei equilibrar oferecendo um<br />

cobertor. Ele gostou e agora quer se<br />

cobrir para dormir mesmo no calor,<br />

então deixo o quarto fresquinho.<br />

Massagem é bom para isso também.<br />

O Mateus balançava o corpo para<br />

frente e para trás, ele tinha uma rede<br />

para fazer isso. Pois a rede ou balanço<br />

de parque o acalmava muito. Todos<br />

nós da família brincamos disso com<br />

ele. Assim com o tempo ele parou de<br />

balançar. Seus avós o levaram muito a<br />

parques. O avô até basquete, futebol,<br />

skate... brincou com ele. Todos nós<br />

brincamos... faz parte do tratamento<br />

também.


29<br />

Tenho eterna gratidão a minha família,<br />

ao Dr. Raymond Rosenberg, Dr.<br />

Salomão Schwartzman, a Dra. Beatriz<br />

Padovan, a todos da Fada, todas as<br />

mães e pais e a todos que estiveram e<br />

estão presentes com a gente, eu e meu<br />

filho e na nossa causa. Sou grata ao<br />

Mateus por tudo.<br />

Mateus hoje<br />

Hoje ele tem uma socialização maravilhosa.<br />

Fazemos esteira juntos e ele<br />

é um grande companheiro. Tem seus<br />

amigos e está sempre presente nas<br />

nossas reuniões familiares. Os sobrinhos<br />

fazem pipoca com ele, gente ele<br />

A-DO-RA pipoca. Dividem um com<br />

outro esses momentos. Nadam juntos,<br />

assistem filmes, o Mateus gosta também<br />

de vídeo clipes de música.<br />

Tem um laptop que ele brinca no<br />

quarto e junto com a gente. Temos<br />

uma pessoa muito querida que está<br />

bastante presente, muito carinhoso<br />

com todos da nossa família. Eu deixo<br />

ele estragar um pouco o Mateus oferecendo<br />

doces. Não deixava ninguém<br />

fazer isso antes. Penso que o Mateus<br />

tolera açúcar sem exageros.<br />

Faz atividades de rotina, arruma a<br />

cama, lava os pratos, limpa os móveis<br />

do seu quarto, vai ao mercado, molha<br />

as plantas e ajuda na horta. É vaidoso<br />

e escolhe suas roupas. Ás vezes fica<br />

no quarto sozinho experimentando<br />

todas as roupas de seu armário.<br />

Nessa páscoa acordou muito mais<br />

cedo encontrando os ovos de chocolate,<br />

que estavam dentro da caixa,<br />

em um quarto da casa que ele não<br />

entrava. O Mateus tem um faro mais<br />

desenvolvido e outros sentidos que<br />

não temos. Penso que ele sentiu o<br />

cheiro. Chocolate é difícil de esconder<br />

dele... Mas ficou tão feliz parecendo<br />

emocionado, acabou não comendo o<br />

ovo de páscoa. Naquele momento...<br />

Autismo tem cura?<br />

A cura para o autismo não existe.<br />

Existe tratamento e aceitação.<br />

Não são autistas. São seres humanos.<br />

Podem evoluir. Não sabemos até<br />

onde. É provável. Sinto no Mateus<br />

uma melhora crescente. Ninguém<br />

sabe até onde podem chegar. Minha<br />

família sempre esteve ao meu lado.<br />

Isso é essencial. Tenho muito orgulho<br />

do Mateus e meu filho é como o de<br />

muitas mães. Onde valorizamos as<br />

mínimas conquistas. Penso que orientar<br />

os familiares e acolher é muito<br />

importante. Tenho a experiência de<br />

26 anos com meu filho, sou psicóloga<br />

graduada e tenho esse projeto de<br />

trabalhar com orientação psicológica<br />

para autistas e seus familiares.<br />

Utilizando-me da psicologia e minha<br />

história com o Mateus. Primeiro<br />

precisamos nos cuidar para cuidar<br />

do outro. Sou palestrante e engajada<br />

na causa autista. Minha aceitação do<br />

diagnóstico veio com o tempo. Abandonei<br />

uma carreira artística bem-sucedida<br />

e estou retomando. É como um<br />

espetáculo teatral. O espetáculo único.<br />

Só nosso. O que sentimos é nosso.<br />

Mas os personagens vários. Sou muito<br />

feliz ao lado do meu filho e faria tudo<br />

de novo. Não me arrependo de nada.<br />

Tenho sorte de ter um filho onde eu<br />

posso enxergar o mundo com mais<br />

verdade, pureza e entrega. Os autistas<br />

são bons... são sempre crianças, mas<br />

crescem... são inocentes... anjos.<br />

Não são normais. Nós não somos também.<br />

Isso pode ser bom. Eles não têm<br />

o faz de conta. Não entendem o duplo<br />

sentido. São eles mesmos. Verdadeiros.<br />

Precisam como todas as pessoas<br />

serem amados e aceitos. Entendo<br />

com meu filho o melhor de mim. Um<br />

mundo onde podemos aceitar e unir.<br />

Devo ao meu filho a união de minha<br />

família, aprendizado e um novo caminho.<br />

Entendo-me mais feliz e isso<br />

basta. Sonho para todos aceitação,<br />

verdade que é encontro. Um mundo<br />

sem preconceitos, união e amor.<br />

Como é para meu filho. O Mateus tem<br />

dificuldade com o não. Precisam ser<br />

ensinados para entender melhor isso.<br />

Ou serem aceitos?<br />

Precisam se socializar sim. Da forma<br />

como podem...<br />

Não sabemos o limite disso. Pois o<br />

limite é uma convenção. Não se pode<br />

limitar uma pessoa, embora isso<br />

também seja importante. Podemos<br />

resumir assim? Não sei... Gostaria de<br />

entender. É assim que entendo... Vejo<br />

aceitação, resignação, resiliência e<br />

beleza. Posso dizer que superei, mas<br />

todos os dias são de luta. Não posso<br />

dizer que é tão fácil. Mas vale a pena.<br />

Faria tudo de novo para ver o meu<br />

filho sorrir e olhar para mim. Eu me<br />

encontro quando vejo os olhos do<br />

Mateus, através de mim, sorrir.<br />

“Eu me encontro quando<br />

vejo os olhos do Mateus,<br />

através de mim, sorrir”<br />

E quem quiser falar mais comigo.<br />

Seguem meus contatos.<br />

Patrícia Lucchesi<br />

Psicóloga CRP 06/108747<br />

www.patricialucchesipsicologia.com.br<br />

contato@patricialucchesipsicologia.com.br<br />

patricia.lucchesi.16<br />

patilucchesi


30<br />

A REALIDADE DO AUTISMO SEVERO<br />

Observamos nos últimos anos um<br />

avanço na divulgação sobre o autismo<br />

nos meios de comunicação, ao que<br />

consideramos por conscientização<br />

sobre o autismo.<br />

A visibilidade para as pessoas autistas<br />

na TV, por exemplo, acontece frequentemente.<br />

Entretanto, a queixa<br />

frequente sobre essa visibilidade<br />

informativa é a quase invisibilidade<br />

da realidade do autismo severo.<br />

Uma realidade onde os desafios do<br />

autismo leve e moderado se diversificam<br />

e se multiplicam na severidade<br />

do autismo com a deficiência intelectual<br />

(na maioria dos casos); e um<br />

conjunto de comorbidades associadas<br />

que vão muito além das conhecidas e<br />

divulgadas características do autismo.<br />

Realidade muitas vezes vivida de forma<br />

sofrida por esses autistas severos<br />

e seus cuidadores e que conheço há<br />

mais de vinte anos pelo meu filho<br />

e muitos autistas severos, que aliás<br />

são milhares por todo o país e pelo<br />

mundo.<br />

O autismo severo não é sofrível por<br />

suas próprias características adicionais<br />

às próprias características<br />

do autismo; é sofrível também pela<br />

carência de apoio profissional nos<br />

atendimentos e tratamentos desde o<br />

diagnóstico.<br />

Sofrível pela parcialidade ou ausência<br />

desses serviços no sistema de saúde<br />

mental e clínica. Sistema que disponibiliza<br />

serviços e profissionais aquém<br />

das necessidades de apoio dos autistas<br />

severos. Serviços e profissionais limitados<br />

a atendimentos de neurologia,<br />

psiquiatria e medicações. Conjunto<br />

de apoio parcial e insuficiente que se<br />

limite a uma relativa estabilidade.<br />

Estabilidade essa que muitas vezes<br />

acaba não acontecendo ou que<br />

acontece com altas doses de uso<br />

controlado. Na triste e cruel realidade,<br />

esses autistas não estão exatamente<br />

mentalmente estáveis: estão dopados.<br />

E se as medicações de fato são tão<br />

importantes quanto necessárias para<br />

muitos autistas, o aumento de medicações<br />

e doses são uma resposta à<br />

necessidade de apoio multidisciplinar<br />

com terapias.<br />

Eu vivi esse grande e triste dilema por<br />

muitos anos com meu filho autista.<br />

Vivi a angústia continua de encontrar<br />

para ele na rede pública somente<br />

as consultas com o psiquiatra e a<br />

prescrição de inúmeros medicamentos<br />

em doses que muitas vezes<br />

resultavam em efeitos colaterais<br />

bastante desconfortáveis ao autista<br />

e ao pai. Olhos vermelhos, andar<br />

cambaleante e salivação eram os<br />

efeitos sempre visíveis! Mas as medicações<br />

tinham um outro efeito que<br />

somente eu presenciava nas noites e<br />

madrugadas: a respiração ofegante...<br />

Muitas noites passei sem dormir<br />

por ele se manter acordado. Muitas<br />

noites passei sem dormir angustiado<br />

por vê-lo dormir ofegante.<br />

Quando questionados sobre esses<br />

efeitos, se limitavam a esclarecer que<br />

eram normais. Além disso, diziam que<br />

ainda tinha margem para aumentar a<br />

dose, caso necessário. Sem as consultas<br />

médicas e o uso das medicações, o<br />

que era ruim pelos efeitos colaterais<br />

poderia ficar pior com os episódios de<br />

crises de agressividade.<br />

Crises que por vezes aconteciam<br />

mesmo no uso das medicações. Crises<br />

em que Lucas Gabriel, meu filho<br />

autista severo, se mordia nos braços<br />

e mãos e mordia outras pessoas à sua<br />

volta. Crises de quebradeiras, quando


31<br />

quebrava em casa tudo que conseguia<br />

quebrar. E era praticamente tudo que<br />

ele quebrava nessas crises... Crises<br />

alimentadas também pela difícil<br />

convivência com a mãe, que tem<br />

esquizofrenia. Diversas vezes fui<br />

chamado com urgência em casa por<br />

minha mãe porque o autista severo, já<br />

adolescente e forte, estava quebrando<br />

tudo numa crise de agressividade... E<br />

quando chegava em casa encontrava<br />

uma praça de guerra e um autista severo<br />

no meio dos destroços de móveis<br />

e eletrodomésticos.<br />

Ainda assim, gosto sempre de lembrar<br />

que o autismo severo não se resume<br />

a crises de agressividade. Antes e<br />

depois dessas crises, é possível acontecer<br />

momentos de carinho vindos<br />

do autista com beijos e abraços.<br />

Abraços desajeitados com o braço envolvendo<br />

o pescoço e beijos por vezes<br />

lambuzados. Carinhos que acontecem<br />

naturalmente... Principalmente quando<br />

o autista também recebe carinho.<br />

Outra realidade marcante no autismo<br />

severo é a ausência de autonomia e a<br />

necessidade de companhia e auxílio<br />

constante. Ajudas necessárias<br />

inclusive nas situações básicas, na<br />

higiene pessoal por exemplo. E essa<br />

necessidade de apoio constante segue<br />

na adolescência e na vida adulta. Nos<br />

autistas não verbais, a ausência da<br />

fala é um desafio extra para o autista,<br />

a família e até mesmo profissionais na<br />

área de saúde clínica. A dificuldade<br />

na comunicação não verbalizada e<br />

não compreendida plenamente tanto<br />

pelos autistas como por seus cuidadores,<br />

muitas vezes é, também, a causa<br />

de crises.<br />

A realidade do autismo severo reflete<br />

também na saúde mental e física<br />

dos seus cuidadores na família, que<br />

muitas é somente a mãe cuidadora.<br />

Mães que acabam sofrendo tanto pela<br />

realidade do filho autista como pela<br />

sua própria realidade. Mães cansadas<br />

fisicamente e mentalmente... Mães<br />

que sofrem como vítimas da depressão,<br />

ansiedade e outras situações<br />

negativas na mente e no corpo. Mães<br />

sem o apoio necessário e sem esperança<br />

para o futuro do filho autista<br />

para o tempo em que esse autista será<br />

órfão. Esperando respostas, perguntam<br />

verbalmente ou silenciosamente:<br />

“Onde meu filho vai morar?”, “Quem<br />

vai cuidar do meu filho?”<br />

Para esses casos, que são muitos,<br />

as moradias assistidas com equipe<br />

multidisciplinar é uma alternativa!<br />

Entretanto, há uma resistência dos<br />

governos em investir nesse modelo<br />

de acolhimento e tratamento profissional<br />

e humano às pessoas autistas<br />

como parte de políticas públicas. Na<br />

realidade, em função da ausência de<br />

tratamento desde o diagnóstico e ao<br />

longo dos anos, a situação de muitos<br />

desses autistas vai se complicando na<br />

infância, adolescência e chega na vida<br />

adulta.<br />

E a mais cruel realidade no autismo<br />

severo que muitos desconhecem,<br />

ou ignoram, é que muitos autistas<br />

severos chegam à adolescência com<br />

crises frequentes de agressividade e<br />

a família desesperada não consegue<br />

controlar a situação.<br />

Há uma máxima equivocada de<br />

que para cuidar de autistas basta<br />

amor e paciência. Paciência e amor<br />

são realmente muito importantes,<br />

mas nem de longe são suficientes.<br />

Nos bastidores do autismo severo,<br />

as crises de agressividade parecem<br />

erupções vulcânicas. São vulcões<br />

temporariamente adormecidos<br />

que podem despertar a qualquer<br />

momento. Para onde correr?<br />

A quem recorrer?<br />

Nesses casos em que até mesmo<br />

médicos e medicações não conseguem<br />

mais controlar a situação de crises<br />

de agressividade no autismo severo,<br />

a triste recomendação à família: a<br />

institucionalização para tratamentos<br />

e qualidade de vida desses autistas.<br />

Essa é uma outra realidade bastante<br />

preocupante, triste e desconhecida da<br />

maioria.<br />

Centenas de autistas severos estão<br />

nesse momento institucionalizados<br />

no Brasil. Num sistema praticamente<br />

manicomial, muitas instituições<br />

recebem esses autistas sem a<br />

equipe multidisciplinar necessária.<br />

São clínicas, abrigos e hospitais psiquiátricos<br />

que recebem esses autistas<br />

em convênio com o poder público que<br />

foi condenado em processo judicial a<br />

oferecer todo o tratamento necessário<br />

por meio da institucionalização.<br />

Contudo, o que acontece na prática de<br />

muitas instituições é um tratamento<br />

que se resume ao acompanhamento<br />

do médico psiquiatra e os cuidados<br />

pela equipe de enfermagem com as<br />

medicações de rotina e medicações<br />

extras administradas nos momentos<br />

de crises desses autistas, além das<br />

contenções com amarras de pano.<br />

Posso afirmar que, infelizmente,<br />

conheço essa realidade do autista<br />

severo institucionalizado não apenas<br />

de ouvir falar. Sou testemunha ocular<br />

dessas preocupantes situações. Hoje,<br />

sou pai e padrasto de autistas severos<br />

adultos que, infelizmente, estão temporariamente<br />

institucionalizados em<br />

diferentes instituições. Com minha<br />

Maria, trabalhamos muito no preparo<br />

de uma nova vida para nossos rapazes<br />

autistas.<br />

A angústia da separação é imensa!<br />

Além dessa angústia, sigo protestando<br />

minha revolta contra esse sistema<br />

manicomial em que autistas são tratados.<br />

Um exemplo dessa desumanidade<br />

contra as pessoas autistas é local<br />

onde está meu enteado e mais cinco<br />

autistas severos adultos, que funciona<br />

há três anos de maneira inadequada e<br />

irregular.<br />

Autistas que raríssimas vezes veem<br />

e sentem a luz solar em momentos<br />

ao ar livre... Autistas severos sem o<br />

necessário acompanhamento multidisciplinar,<br />

sendo cuidados apenas<br />

pela equipe de enfermagem.<br />

Para uma verdadeira e completa conscientização<br />

sobre o autismo, expor essas<br />

realidades sobre o autismo severo<br />

é absolutamente imprescindível!<br />

Eliseu Acácio, pai e ativista<br />

pela causa autista.


32<br />

Acho que a maior regra de todas, quando você tem<br />

um filho autista, é ter BOM SENSO e BOM HUMOR!<br />

Meu filho, Gabriel, é autista. Teve o<br />

diagnóstico aos 3 anos. Logo depois,<br />

recebi um panfleto de uma fonoaudióloga<br />

com umas “dicas” que eu<br />

deveria seguir.<br />

Dizia mais ou menos assim:<br />

1) converse com seu filho sobre tudo;<br />

2) dance com ele;<br />

3) cante;<br />

4) olhe nos olhos;<br />

5) use frases curtas.<br />

Tinham outras regras também, mas<br />

essas eu as coloquei em prática há 16<br />

anos. Converso com ele sobre tudo e<br />

quando o “negócio aperta”, solto um:<br />

me ajuda aí... Falo tanto né que ele<br />

também responde tudo com né! Ele<br />

fala pouco, meio embolado. Mas o<br />

som da voz dele acalma minha alma<br />

e alegra meu coração. Adora cantar.<br />

Tem um repertório meio eclético!<br />

Já cantou muito “hoje é festa lá no<br />

meu ap., pode aparecer” do Latino...<br />

até o clássico do Roberto “como é<br />

grande, o meu amor por você. Acho<br />

que a maior regra de todas, quando<br />

você tem um filho autista, é ter BOM<br />

SENSO e BOM HUMOR! Porque você<br />

vai precisar.<br />

Já passei por muitas situações complicadas!<br />

O maior desafio do autismo<br />

é o comportamento inadequado. Vou<br />

descrever algumas: estávamos no<br />

Prezunic (supermercado). Eu, ele e a<br />

psicóloga, que estava ensinando-o a<br />

fazer compras. Neste dia, ele estava<br />

com sinusite, deveria estar sentindo<br />

dor, mas na maioria das vezes, temos<br />

que descobrir que eles estão doentes...<br />

Meu filho chega e diz: mãe, estou<br />

com dor na garganta, no ouvido! A<br />

psicóloga era muito confusa, dava<br />

várias ordens ao mesmo tempo e ele<br />

se desorganizou e quando estava<br />

colocando alguns legumes na sacola,<br />

ele deu um tapa no nariz dela, o<br />

nariz sangrou, ela foi ficando verde e<br />

desmaiou... Gabriel chorava, queria se<br />

bater, ficou desorganizado...<br />

Um homem começou a falar alto que<br />

tinha que chamar a polícia, que o meu<br />

filho não podia andar solto por aí...<br />

Respirei fundo, pedi a dois funcionários<br />

do mercado que segurasse os braços<br />

do meu filho, cada um de um lado<br />

para ele não se bater, chamei a moça<br />

do mercado para acudir a psicóloga,<br />

ela rapidamente voltou a si.<br />

Parei, olhei para o meu filho, muitas<br />

pessoas do nosso lado, discutindo<br />

com o homem, eu limpei o seu rosto,<br />

com um pacotinho de lenço de papel<br />

que uma senhora colocou na minha<br />

mão e sai daquela situação com ele.


33<br />

Ele se acalmou, fomos para o setor de<br />

frios e parece que nada daquilo tinha<br />

acontecido. Sempre vejo as atitudes<br />

das pessoas “boas” no mundo, porque<br />

elas sim são a maioria!<br />

A psicóloga, um tempo depois, mandou<br />

a sócia dela encaminhar meu<br />

filho para o NEC, instituto em Boston,<br />

que demora alguns anos só para responder<br />

um formulário! Por isso, acho<br />

que a grande sacada é o treinamento<br />

dos pais, para não ficarmos na mão de<br />

nenhum terapeuta!<br />

Teve outro episódio no shopping. Ele<br />

tinha pedido o dia inteiro para ir ao<br />

shopping. Fomos! Eu, ele e a cuidadora.<br />

Ele pediu para ir num restaurante<br />

self-service. Shopping lotado, feriado<br />

escolar. Ele monta seu prato, sentamos<br />

numa mesa e de repente, ele joga o<br />

prato no chão!<br />

O shopping inteiro parou! Silêncio<br />

absoluto! Nessa hora, eu gostaria te ter<br />

me transformado num avestruz e ter<br />

enterrado minha cabeça na grama, no<br />

chão, em qualquer lugar. Mas como<br />

não me transformei, respirei fundo,<br />

não me atrevi a olhar para o lado, ouvi<br />

uma voz lá no fundo oferecendo para<br />

ajudar. Agradeci. E falei sério com o<br />

moleque: “Você vai pegar tudo o que<br />

você jogou no chão”.<br />

Fiz ele catar todos os cacos do prato e<br />

colocar na bandeja. Depois nos levantamos<br />

como se nada tivesse acontecido.<br />

Ele foi brincar num parquinho.<br />

Eu queria entender porque o autista<br />

se desorganiza do nada! Tem muitas<br />

outras histórias! Muitas! Mas tudo que<br />

vivemos valeu a pena. Hoje, aos 19<br />

anos, ele se comporta muito bem, sabe<br />

esperar, é muito obediente, sabe se<br />

controlar. O autista tem que ter limite,<br />

tem que ser educado, ele não pode<br />

fazer tudo que quiser, porque é autista!<br />

Eles não têm medo de correr na rua<br />

e ser atropelado, por exemplo, cabe<br />

a nós, responsáveis, ensiná-los a ter<br />

medo, a cantar, a dançar... Eu falo com<br />

o meu filho desde pequeno que<br />

“a vida é dura”...<br />

mas que vale a pena!<br />

ANDRÉA OLIVEIRA é jornalista<br />

e mãe da Rafaela, de 27 anos e do<br />

Gabriel, autista, de 19.


34<br />

O Que Ensinar? (do leve ao severo)<br />

Na vida, cada indivíduo aprende uma<br />

série de coisas, algumas são aprendidas<br />

de maneira mais natural, sem<br />

planejamento, o que ocorre em todos<br />

os momentos. Já outras muitas coisas<br />

são ensinadas intencional e planejadamente,<br />

sobretudo nesta instituição<br />

a que denominamos de escola.-<br />

A escola ensina coisas como leitura,<br />

multiplicação, História do Brasil,<br />

entre outros. Para que tudo isto e<br />

muito mais seja ensinado, há uma<br />

programação que é gradual, isto é,<br />

começando com coisas mais fáceis até<br />

habilidades complexas. Ocorre que<br />

para a escola ensinar o que ensina<br />

da forma que ensina, ela precisa de<br />

certos pré-requisitos que são aprendidos<br />

mais ou menos naturalmente,<br />

tais como ouvir e entender o idioma,<br />

atender a instruções, rastrear objetos<br />

com o olho, entre muitos outros.<br />

Mas crianças com autismo ou outros<br />

transtornos do neurodesenvolvimento<br />

podem não emitir estes comportamentos<br />

conforme o esperado para a<br />

idade.<br />

Pessoas com TEA leve normalmente<br />

possuem a maior parte dos pré-requisitos<br />

escolares e as adaptações necessárias<br />

podem ser mais de produção<br />

de arranjos para o desenvolvimento<br />

de habilidades sociais, mas pessoas<br />

na faixa severa do espectro podem<br />

estar muito distantes do currículo<br />

formal. Não é incomum ver pessoas<br />

com maior comprometimento e que<br />

não conseguiram aprender a ler e<br />

escrever, em aulas de português, tomando<br />

lições de Oração Coordenada<br />

Subordinada Assindética, o que é um<br />

flagrante desvio do projeto inclusivo.<br />

Que fazer então?<br />

O currículo único para toda uma sala<br />

de aula, não é o cenário ideal, mas é o<br />

que conseguimos prover maciçamente<br />

por meio dos serviços educacionais<br />

usuais. No entanto, uma população<br />

com desenvolvimento atípico exige<br />

um serviço atípico. Há dois extremos<br />

para os quais este currículo comum<br />

pode ser insuficiente, os estudantes<br />

com superdotação (para os quais é necessário<br />

o enriquecimento curricular)<br />

e com deficiências (para os quais são<br />

necessárias adaptações de variada natureza)<br />

é precisamente para isto que<br />

serve o serviço de Educação Especial.<br />

No caso da criança com autismo, o<br />

ideal é que o professor(a) especialista<br />

em Educação Especial domine<br />

protocolos de avaliação adequados<br />

para o público com que trabalha, por<br />

exemplo: em uma creche, o Portage e<br />

o VB-MAPP; no Ensino Fundamental<br />

inclusivo, o VB-MAPP e o PEAK;<br />

na Educação Especial o ABLLS-R e<br />

o AFLS, entre muitos outros (só dei<br />

exemplos), além de eventuais avaliações<br />

específicas.<br />

A partir desta avaliação é que se deve<br />

elaborar o Plano de Ensino Individualizado<br />

– PEI, aproximando-o sempre<br />

do currículo da escola o máximo pos-<br />

sível. Isto nos permite reconhecer, de<br />

maneira sistematizada, quais as habilidades<br />

deveriam estar presentes no<br />

comportamento do aluno e que, como<br />

decorrência dos prejuízos inerentes<br />

aos transtornos do neurodesenvolvimento,<br />

não estão.<br />

Esse plano pode prever alterações de<br />

abordagem (privilegiando pistas visuais,<br />

por exemplo), de conteúdo (enfatizando<br />

pré-requisitos para outros<br />

comportamentos, por exemplo), de<br />

velocidade (ajustando-se ao indivíduo)<br />

entre outras dimensões do currículo.<br />

Imagine uma criança hipotética,<br />

Joana, com TEA, que não consegue<br />

acompanhar um objeto com o olhar,<br />

tornando impossível sua alfabetização.<br />

O que deve a educação fazer,<br />

pedir aos terapeutas que ensinem<br />

este comportamento? Resignarem-<br />

-se? A resposta correta é: estabelecer<br />

o rastreio visual como um objetivo<br />

curricular para este indivíduo, com<br />

procedimentos de ensino, mensuração<br />

de resultados e metas específicas.<br />

Fazemos nossa parte e esperamos<br />

que a biologia faça a dela. Quando há<br />

qualquer desequilíbrio nesta relação,<br />

a suplementação de aprendizagem<br />

da criança se torna nosso horizonte<br />

fundamental.<br />

PROF. LUCELMO LACERDA<br />

pesquisador em autismo<br />

e inclusão


35<br />

ADAPTAÇÃO<br />

CURRICULAR:<br />

ferramenta<br />

indispensável na<br />

inclusão escolar<br />

Quando o assunto é aprendizado e<br />

inclusão escolar podemos elencar<br />

uma diversidade de “dificultadores”<br />

que vão desde a falta de estrutura da<br />

escola até a ausência de capacitação<br />

de professores. Vou além, também temos<br />

a ausência de comprometimento<br />

de muitas famílias que ainda insistem<br />

em achar, comodamente, que<br />

educação e aprendizado é somente<br />

responsabilidade da escola, bem como<br />

destaco a falta de dedicação de terapeutas<br />

que acham que não precisam<br />

estar juntos ao estabelecimento de<br />

ensino para proceder ao tratamento<br />

efetivo do seu paciente.<br />

Discorro sempre sobre a necessidade<br />

de união da família, da escola e dos<br />

terapeutas no processo de inclusão.<br />

Claro que não estou deixando o<br />

Estado de fora. Este também tem seu<br />

papel, entre outros, criando normas,<br />

fiscalizando e, no caso específico das<br />

escolas públicas, dando suporte de<br />

âmbito formal e material.<br />

Dentro do processo de aprendizado<br />

do aluno de inclusão é necessário o<br />

emprego de ferramentas que vêm<br />

proporcionar planejamento e efetividade.<br />

Dentre elas, cito o Programa<br />

de Ensino Individualizado, conhecido<br />

como PEI. Trata-se de currículo adaptado<br />

a ser produzido pelo professor e<br />

equipe pedagógica da escola com o fim<br />

de, além de planejar, traçar metas que<br />

serão fundamentais no processo de<br />

desenvolvimento do aluno. Quando<br />

o educando é assistido por terapeutas<br />

(psicólogos, psicopedagogos, terapeutas<br />

ocupacionais, fonoaudiólogos...)<br />

é importante que sejam consultados<br />

acerca da construção deste PEI, pois<br />

têm condições de indicar quais são os<br />

programas/métodos que facilitarão o<br />

aprendizado do seu paciente.<br />

Infelizmente, vemos que poucas escolas<br />

têm se interessado em confeccionar<br />

o PEI, deixando de lado um rico<br />

instrumento composto por metodologias,<br />

materiais (adaptados ou não),<br />

objetivos, conteúdos e avaliação. Ao<br />

deixar de produzir e currículo adaptado,<br />

a escola perde a oportunidade de<br />

ter maior condição de proporcionar<br />

o máximo de desenvolvimento do<br />

aluno de inclusão, tendo em vista que<br />

se trata de planejamento individual e,<br />

assim sendo, mais preciso e efetivo.<br />

No entanto, há de se ressaltar que<br />

existe legislação que disponha acerca<br />

da necessidade de currículo adaptado<br />

e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei<br />

nº13.146/2015) veio ao encontro desse<br />

entendimento. Veja-se o que diz o<br />

artigo 28:<br />

ART. 28. INCUMBE AO PODER PÚBLICO ASSEGU-<br />

RAR, CRIAR, DESENVOLVER, IMPLEMENTAR, INCEN-<br />

TIVAR, ACOMPANHAR E AVALIAR: (...)<br />

V - ADOÇÃO DE MEDIDAS INDIVIDUALIZADAS E<br />

COLETIVAS EM AMBIENTES QUE MAXIMIZEM O<br />

DESENVOLVIMENTO ACADÊMICO E SOCIAL DOS<br />

ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA, FAVORECENDO<br />

O ACESSO, A PERMANÊNCIA, A PARTICIPAÇÃO E A<br />

APRENDIZAGEM EM INSTITUIÇÕES DE ENSINO; (...)<br />

§ 1O ÀS INSTITUIÇÕES PRIVADAS, DE QUALQUER NÍ-<br />

VEL E MODALIDADE DE ENSINO, APLICA-SE OBRIGA-<br />

TORIAMENTE O DISPOSTO NOS INCISOS I, II, III, V,<br />

VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVI,<br />

XVII E XVIII DO CAPUT DESTE ARTIGO, SENDO<br />

VEDADA A COBRANÇA DE VALORES ADICIONAIS DE<br />

QUALQUER NATUREZA EM SUAS MEN<strong>SA</strong>LIDADES,<br />

ANUIDADES E MATRÍCULAS NO CUMPRIMENTO<br />

DES<strong>SA</strong>S DETERMINAÇÕES.<br />

Lembrando que todas as escolas estão<br />

inseridas neste artigo. A concessão<br />

para funcionar é pública, portanto, as<br />

escolas particulares também devem<br />

confeccionar o currículo adaptado,<br />

que é uma medida de ensino individualizada,<br />

para o aluno de inclusão.<br />

Conforme diz a psicopedagoga Letícia<br />

de Pádua, “cada criança tem suas<br />

peculiaridades no aprender e são<br />

essas individualidades que darão<br />

norte ao professor da conduta<br />

que deverá ter com ela, para<br />

que a mesma possa assimilar os<br />

comportamentos e conteúdos<br />

acadêmicos”.<br />

A profissional ainda acrescenta que,<br />

independente de estarmos lidando<br />

com uma criança autista, síndrome de<br />

Down ou qualquer outra que necessitará<br />

de uma avaliação diagnóstica,<br />

plano de ensino e metodologias diferenciadas<br />

são muito importantes:<br />

1 - CONHECER MELHOR O ALUNO;<br />

2 - AVALIAR AS DIVER<strong>SA</strong>S<br />

COMPETÊNCIAS/HABILIDADES;<br />

3 - ESTABELECER AS METAS E<br />

ELA BORAR UM CRONOGRAMA;<br />

4 – AVALIAR E REAVALIAR,<br />

CONTINUAMENTE.<br />

Com essas ações, o aluno terá seu<br />

direito ao aprendizado respeitado e<br />

poderá desenvolver suas habilidades.<br />

Não adaptar o currículo é discriminar<br />

a pessoa autista.<br />

TATIANA TAKEDA é professora<br />

universitária e de pós-graduações, servidora<br />

pública, advogada, membro da Comissão<br />

dos Direitos das Pessoas com Deficiência<br />

da OAB/GO, vice-presidente da Comissão<br />

de Inclusão Social e Defesa da Pessoa com<br />

Deficiência do IBDFAM/GO, mestre e especialista<br />

em Direito, pós-graduada em Ensino<br />

Estruturado para Autistas, especializa em<br />

Direito Educacional, administradora da<br />

página www.tatianatakeda.com.br e dos<br />

perfis sociais @direitoeinclusao (instagram)<br />

e Direitos e Inclusão das Pessoas com Deficiência<br />

– Prof. Tatiana Takeda (facebook), e autora<br />

da Coleção de Ebooks Viva a Diferença<br />

(download gratuito em www.ludovica.com.br).


36<br />

Encorajando os pais a serem agentes de<br />

transformação do universo de seu filho com autismo<br />

Iniciar este artigo com palavras encorajadoras<br />

faz parte da minha vida<br />

e trajetória de 30 anos de trabalho na<br />

APRAESPI a pessoas com TEA.<br />

Acreditem, estimulem e estimulem,<br />

seu filho tem potencial para alcançar<br />

um desenvolvimento além do<br />

esperado.<br />

Nas pessoas com autismo o espectro<br />

que a criança desenvolve desde<br />

pequena nos enganam com o rótulo<br />

da dificuldade de interação social e<br />

comportamentos restritos e estereotipados<br />

(como descreve-se o diagnóstico<br />

segundo o DSM-5), pois não vamos<br />

deixar que vençam nossas expectativas.<br />

Tudo depende do caminho de<br />

estimulação que traçamos.<br />

E deixo claro que foram as pessoas<br />

com TEA (transtorno do espectro autista)<br />

e seus familiares que me inspiraram<br />

a ter esta postura, como diz uma<br />

mãe muito querida Rebeca Becker<br />

“Nós somos verdadeiros<br />

soldados de transformação”.<br />

Explicando sobre os caminhos a ser<br />

tomado na estimulação a pessoa com<br />

TEA é importante ter noção de que a<br />

formação da comunicação, linguagem<br />

e fala é de suma importância a ser<br />

desenvolvida.<br />

Muitas das atividades comuns em<br />

ambientes de primeira infância<br />

podem não parecer educativas. Na realidade,<br />

pesquisas mostram que essas<br />

atividades são na verdade ferramentas<br />

de aprendizagem que promovem<br />

o desenvolvimento intelectual das<br />

crianças, principalmente em crianças<br />

com desenvolvimento atípico.<br />

Por que cantamos canções de ninar<br />

e estimulamos o encaixe com blocos<br />

com as crianças e o que elas aprendem<br />

com essas atividades? O desenvolvimento<br />

intelectual responde a<br />

essas questões e investiga a ligação<br />

entre as melhores práticas na educação<br />

infantil e a ciência do desenvolvimento<br />

infantil.<br />

A ciência explica que por meio dessas<br />

brincadeiras estimulamos na criança<br />

sua atenção compartilhada e suas<br />

funções executivas, tão necessárias<br />

no desenvolvimento integral da<br />

criança com TEA.<br />

A atenção compartilhada e funções<br />

executivas se referem à necessidade<br />

de estimulação entre o objeto e a<br />

criança. O adulto ao fazer a intervenção<br />

em crianças com TEA, deve<br />

ter claro a necessidade deste engajamento,<br />

pois é nesta tríade (adulto-objeto-criança)<br />

que iniciamos as mais<br />

necessárias ramificações neurológicas<br />

da criança.<br />

Ao fazer essa tríade estamos potencializando<br />

o contato visual da criança<br />

com TEA, centralizando-se na estimulação<br />

das percepções do que se vê,<br />

faz e executa. Associado a essa estimulação<br />

temos em evidência métodos<br />

comportamentais que dirigem nossas<br />

atitudes para esse engajamento.


37<br />

Esses métodos comportamentais<br />

que se referem ao ABA (Análise do<br />

Comportamento Aplicada), TEACCH<br />

(Tratamento e Educação para Autistas e<br />

Crianças com dificuldades relacionadas<br />

à Comunicação) e demais intervenções<br />

comportamentais são as estratégias<br />

que iremos ter para que a estimulação<br />

seja integrada, potencializando os<br />

estímulos que tanto é necessário para<br />

criança com TEA.<br />

Portanto, formas de lidar, como o que<br />

falar, como falar e quando falar com<br />

a criança, tem um significado determinante<br />

para o seu desenvolvimento,<br />

pois é desta maneira que iremos ter<br />

a significância quase que “mágica” do<br />

contato visual da criança, do seu leve<br />

sorriso ou expressão emocional e da<br />

sua verdadeira percepção do meio<br />

com o início do contato social.<br />

Esses momentos são “mágicos”, pois<br />

conseguimos com atitudes diferenciadas<br />

de estimulação, a magia do contato<br />

da criança com TEA e o início da<br />

significância dela com o mundo. Esses<br />

momentos são maravilhosos e são<br />

deles que necessitamos ter com mais<br />

frequência na vida desta criança.<br />

Os pais, após terem conhecimento<br />

desses métodos, devem agir constantemente<br />

com atitudes diferenciadas e<br />

assim o universo de conhecimento da<br />

criança estará garantido para que seja<br />

capaz de ampliar suas percepções e o<br />

que o meio social espera dela.<br />

As orientações dos profissionais das<br />

áreas de Fonoaudiologia, Psicologia,<br />

Psicopedagogia, Terapia Ocupacional,<br />

Psiquiatria e Neurologia que são envolvidos<br />

nos cuidados e estimulação<br />

da criança com TEA são as “gotinhas<br />

diárias” da transformação das atitudes<br />

das crianças e seus pais.<br />

É de suma importância que a mudança<br />

com técnicas comece em casa,<br />

para que a postura dos “soldados de<br />

transformação” tenha seu verdadeiro<br />

significado.<br />

Deixo bem claro que não podemos<br />

negligenciar tais técnicas e condutas<br />

medicamentosas, quando necessário,<br />

pois não devemos deixar escapar um<br />

segundo de uma conduta e direcionamento<br />

correto de intervenções,<br />

porque delas dependem o futuro de<br />

seu filho.<br />

Tenho a oportunidade de fazer<br />

parte de uma equipe que por meio de<br />

atitudes interligadas, que chamamos<br />

de intervenções interdisciplinares, fazemos<br />

a diferença na vida das pessoas<br />

com TEA e seus familiares.<br />

Entendo que quando temos a noção<br />

das técnicas e a importância dessas<br />

intervenções nos detalhes de cada<br />

atitude da criança com TEA, podemos<br />

proporcionar um universo de estímulos<br />

e compreensão integrada com o<br />

objetivo efetivo de conexões neurológicas<br />

e compreensão da criança e o<br />

meio em que esta vive.<br />

Com muita importância quero<br />

ressaltar que os “soldados de transformação”<br />

são também as auxiliares<br />

de classe que compõem o quadro de<br />

funcionários da APRAESPI, pois estudam<br />

e são capacitadas com as técnicas<br />

e aplicam com muita clareza, sabem o<br />

que fazer e como fazer para a estimulação<br />

necessária à criança com TEA.<br />

Portanto, os métodos devem ser aplicados<br />

por todos a todo momento, de<br />

maneira integrada para que a criança<br />

compreenda sempre o que está fazendo<br />

e como deve fazer, porque são<br />

desses momentos de intervenção que<br />

mais necessitam.<br />

Desta forma compreendo que os<br />

métodos são fáceis de serem aplicados<br />

apenas necessitamos de algumas doses<br />

de sistematização, perseverança,<br />

determinação, dedicação e persistência<br />

para que a significância exista na<br />

vida de cada pessoa com TEA.<br />

Não se assustem com todos esses<br />

adjetivos de postura, o universo de<br />

uma pessoa com TEA nos ensina que<br />

quando agimos desta forma é você<br />

que ganha um universo diferente<br />

com um olhar diferente e com uma<br />

vida cheia de significados especiais e<br />

sentimentos únicos e das mais profundas<br />

emoções.<br />

Ganhe esta emoção<br />

profunda de gratificação<br />

pela vida e venha<br />

também ser um<br />

“SOLDADO DE<br />

TRANSFORMAÇÃO”.<br />

ELI<strong>SA</strong>BETE FERNANDES R. PEREI-<br />

RA Coordenadora da Unidade de<br />

Atendimento ao TEA da APRAES-<br />

PI; Psicóloga e mestre em<br />

Distúrbios do desenvolvimento


38


39


40<br />

AUTISMO SEVERO:<br />

a incessante busca pela independência<br />

Créditos nas fotos: Humberto Luiz/ Candelabro Filmes<br />

Com a falta de moradias assistidas no<br />

Brasil, pais se preocupam com o futuro<br />

dos filhos que atingem a maioridade<br />

incapazes de se estabelecer sozinhos.<br />

Entre todos os receios citados por pais<br />

de autistas severos quando o assunto<br />

é futuro, um dos principais é a<br />

busca pela independência. De acordo<br />

com uma pesquisa da The National<br />

Autistic Society, apenas 4% das<br />

pessoas com autismo vivem de forma<br />

independente, e 30% têm um estilo<br />

de vida semi-independente, residindo<br />

em moradias assistidas. No Brasil,<br />

onde essa opção ainda é praticamente<br />

inexistente, pais se preocupam cada<br />

vez mais com os filhos que estão no<br />

grau mais severo do espectro e prestes<br />

a completar a maioridade.<br />

Esta é a realidade da publicitária<br />

Camila Nogueira, que tem um filho<br />

autista de 14 anos. Ela lista as atividades<br />

que luta para ensinar a Miguel<br />

desde pequeno. “Colocar uma roupa,<br />

saber escovar os dentes e preparar a<br />

própria comida. São coisas que qualquer<br />

um já aprendeu, mas ele tem<br />

mais dificuldades”, explica.<br />

PRIMEIROS PASSOS<br />

Para Camila, a busca pela independência<br />

do filho é um processo constante<br />

e que exige muita paciência.<br />

Com ajuda da Análise do Comportamento,<br />

o menino aprendeu a realizar<br />

algumas atividades, mas essas<br />

práticas ainda precisam ser supervisionadas.<br />

“A idade psicológica dele está por<br />

volta de 10, 11 anos. Esses dias, por<br />

exemplo, ele tomou banho e não<br />

lavou cabelo.Às vezes esquece de<br />

lavar partes do corpo que tem mais<br />

dificuldade de sentir, como tomar<br />

banho de meia, não lavar o pé e não<br />

perceber que estava molhado, que a<br />

meia ainda estava no pé”, conta.<br />

Mais que a terapia, a mudança na estrutura<br />

do relacionamento entre mãe<br />

e filho também foram essenciais para<br />

garantir uma melhoria nesse sentido.<br />

“Chegou uma hora que a gente precisava<br />

desenvolver essa personalidade<br />

do Miguel, e por mais incrível que<br />

pareça, o que mais funciona nesse<br />

processo é eu não ficar tão junto. A<br />

mãe fala pelo filho, faz pelo filho.<br />

Então eu ter me afastado deu para<br />

o Miguel mais espaço. Hoje ele está<br />

muito mais independente”, analisa.<br />

Para o psicólogo Fábio Coelho,<br />

especialista em autismo, comemorar<br />

todas as conquistas também faz parte<br />

desse processo. “No autismo severo<br />

geralmente os ganhos podem ser<br />

bem lentos, o que pode desmotivar<br />

pais e familiares. Para que isso não<br />

ocorra, é super importante que os<br />

pais aprendam a sorrir nas pequenas<br />

conquistas, elogiar, festejar. Além<br />

de reforçar a aprendizagem do filho,<br />

aumentando as chances da habilidade<br />

continuar ocorrendo, essa valorização<br />

pode servir para impulsionar<br />

outras conquistas e, também, elevar a<br />

autoconfiança dos pais”, explica.<br />

É exatamente esse tipo de atitude que<br />

Camila procura reforçar sempre que<br />

nota um avanço significativo em Miguel,<br />

como o fato de conseguir tomar<br />

banho, trocar de roupa e, ainda assim,<br />

esquecer a toalha molhada em cima


41<br />

Créditos nas fotos: Humberto Luiz/ Candelabro Filmes<br />

da cama.<br />

“Penso: ‘como todo adolescente, ele<br />

está deixando a toalha em cima da<br />

cama’. Para chegar nesse ponto, teve o<br />

ponto que ele aprendeu a arrancar a<br />

roupa, tomar o banho, se secar com a<br />

toalha, se enrolar nela, porque antes<br />

ele passava pelado para o quarto, trocar<br />

de roupa. Quer dizer, estamos na<br />

última parte do processo, que é botar<br />

a toalha no banheiro de novo”.<br />

JURIDICAMENTE FALANDO<br />

É comum que pais de autistas severos<br />

entrem na justiça com um pedido de<br />

curatela após eles completarem 18<br />

anos. A prática é garantida pela Lei<br />

nº 13.146, de 2015 (Estatuto da Pessoa<br />

com Deficiência), e significa que, uma<br />

vez aceita, a curatela declara incapacidade<br />

daquela pessoa.<br />

Em outras palavras, “o interditado<br />

não mais poderá comandar os atos na<br />

vida civil, portanto, faz-se necessário<br />

a nomeação de um curador, que<br />

exercerá a curatela desta pessoa”. De<br />

acordo com a advogada e especialista<br />

em direito dos autistas, Diana Serpe,<br />

uma mudança na lei permite que esta<br />

interdição seja apenas parcial.<br />

“A interdição completa não é mais<br />

uma regra, que nem era antigamente.<br />

Obviamente algumas pessoas vão ser<br />

declaradas absolutamente incapazes,<br />

mas, no geral, as pessoas podem não<br />

ter discernimento para vender um<br />

apartamento, mexer na conta do<br />

banco, mas podem se apaixonar e<br />

casar, como é o caso de uma pessoa<br />

com síndrome de Down, por exemplo”,<br />

explica.<br />

Ela ainda reforça acreditar que, no<br />

caso de autistas severos, cerca de 90%<br />

dos pais devem conseguir a curatela<br />

por meio de interdição. “O que houve<br />

é uma tomada de decisão assistida,<br />

ou seja, precisa comprovar mesmo,<br />

entrar com processo e provar que a<br />

pessoa precisa mesmo para que haja<br />

essa intervenção”, analisa.<br />

FUTURO<br />

Pensar no futuro e em como os<br />

autistas severos vão se virar depois<br />

que os pais morrerem também é<br />

uma preocupação constante. “Minha<br />

expectativa para o futuro do Miguel<br />

é que ele vá viver com os amigos dele<br />

numa residência inclusiva, que ele vá<br />

trabalhar. Quem sabe ter um relacionamento<br />

afetivo, acho que seria muito<br />

legal para ele. Sonho para ele uma<br />

vida digna, simples, que ele tenha<br />

amigos, que ele tenha um trabalho,<br />

que se realize como ser humano, seja<br />

feliz”, diz Camila.<br />

A residência inclusiva citada por ela<br />

é comum em outros países e proporciona<br />

a pessoas com autismo, ou<br />

outros transtornos terem uma rotina<br />

estruturada e receber os cuidados<br />

necessários vindos de cuidadores<br />

especializados para a fim de ter uma<br />

vida digna.<br />

No Brasil, ainda existem poucas moradias<br />

assistidas para autistas.<br />

Uma delas é o Residencial Terapêutico<br />

Viver, em Porto Alegre (RS). A<br />

iniciativa partiu de da experiência<br />

própria da estudante de jornalismo<br />

Fernanda Ferreira, que se juntou<br />

a outros familiares de pessoas no<br />

espectro e fundou a Organização Não<br />

Governamental (ONG) que deu início<br />

aos trabalhos no local.<br />

Ainda no âmbito privado, o local<br />

conta com doações de pessoas físicas<br />

para se manter e ainda não oferece a<br />

moradia assistida em tempo integral.<br />

No entanto, uma parceria com uma<br />

clínica já oferece um esquema de<br />

hotel, no qual os autistas passam o<br />

fim de semana. “Uma vez por mês<br />

eles vêm, passam o fim de semana e<br />

fazem atividades, saem, vão ao teatro,<br />

ao cinema”, diz.<br />

Para Camila, além do apoio das<br />

instituições governamentais e da<br />

criação de novas moradias assistidas<br />

no Brasil, é também dever dos pais<br />

acreditarem no potencial dos filhos,<br />

apesar de tudo.<br />

“Sempre digo que temos que<br />

ser descrentes em relação aos<br />

médicos, mas muito crentes<br />

em relação aos nossos filhos.<br />

A coisa que eu mais falo para<br />

essas mães que estão chegando<br />

agora é: ‘Acredita no teu<br />

filho. Ele é gente, ele não é o<br />

autismo, não é uma doença.<br />

É uma pessoa ali dentro, um<br />

ser humano. Investe nele, leva<br />

para passear, para conhecer o<br />

mundo e ver o que acontece’”,<br />

conclui.<br />

GABRIELA Jornalista,<br />

autora de ‘Singularidades<br />

- Um Olhar sobre o Autismo’,<br />

editora do Portal<br />

Singularidades<br />

Créditos nas fotos: Humberto Luiz/ Candelabro Filmes


42


43


44<br />

Todos podem comunicar, inclusive todos<br />

com necessidades complexas<br />

Quando falamos que comunicação é<br />

para todas as pessoas com autismo,<br />

queremos dizer que é para todos.<br />

“Mas, e meu filho que não tem um<br />

bom controle motor”, ele também!<br />

“Mas, e minha aluna que não parece<br />

entender”, ela também! “Mas, e meu<br />

paciente que não se foca em uma só<br />

atividade nem por 2 minutos”, ele<br />

também! Mas, mas, mas... Sim!<br />

Comunicação é para todos, inclusive<br />

para as crianças, jovens e adultos com<br />

necessidades complexas. Então, eu<br />

sou uma psicóloga trabalhando com<br />

comunicação alternativa e suplementar,<br />

ou comunicação aumentativa e<br />

alternativa (CAA). Então, você mãe,<br />

pai, ou professora de uma criança<br />

com autismo que não fala, ou não fala<br />

mais de algumas palavras soltas ou<br />

frases, este artigo é para você!<br />

Muitos me perguntam, “o que essa<br />

psicóloga está trabalhando com<br />

comunicação?” Eu respondo! Comecei<br />

trabalhando com suporte positivo<br />

para comportamento, isso quer dizer<br />

que eu comecei trabalhando com<br />

crianças com “problemas” de comportamento.<br />

Eu chamo problemas, e coloco “entre<br />

parênteses” porque para a gente<br />

que está de fora os comportamentos<br />

parecem problemas, pois incluem<br />

bater, morder, gritar, jogar coisas, não<br />

engajar em tarefas e atividades, ter<br />

comportamentos ao contrário do que<br />

está sendo pedido, ignorar pedidos,<br />

entre outros.<br />

Todos esses comportamentos parecem<br />

problemas para nós, mas para<br />

a pessoa com autismo podem ser a<br />

única maneira que conseguem agir,<br />

ou mesmo podem ser maneiras que<br />

compensam por diferenças no processamento<br />

sensório-motor do ambiente,<br />

e mesmo pelas diferenças em como<br />

responder para esse meio.<br />

E vejam que enfatizo que o problema<br />

é o comportamento e não a criança ou<br />

jovem. Quando chamamos a criança<br />

ou jovem de problema ou mesmo<br />

nomeamos a pessoa como agressiva,<br />

estamos dando uma identidade de<br />

problema ou agressiva à pessoa, e<br />

quando isso vira identidade e quem<br />

a pessoa é, é assim que ela se comportará<br />

e mudanças de ação são mais<br />

difíceis. Um dia conto mais para vocês<br />

sobre a pesquisa que fiz descrevendo<br />

as consequências de descrever as<br />

nossas crianças como problemas.<br />

Comportamentos problema, então,<br />

são comuns e principalmente em<br />

pessoas com autismo que não desenvolvem<br />

linguagem verbal. Vamos<br />

refletir, uma pessoa que não consegue<br />

se expressar e se fazer entendida, e<br />

desenvolve comportamentos que chamamos<br />

de problema, será uma coincidência?<br />

Você já ficou tão frustrado<br />

que não conseguiu se comunicar?<br />

Ficou tão frustrado que quis gritar,<br />

bater e ou simplesmente sair andando?<br />

Eu já! Quando percebemos que<br />

somos todos mais parecidos do que<br />

diferentes, vemos que tais comportamentos<br />

são parte da gama de comportamentos<br />

possíveis para pessoas<br />

que não se comunicam verbalmente,<br />

e que mesmo a sua comunicação não<br />

verbal, seus gestos expressões e sinais<br />

são limitados.<br />

Isso significa que a função de muitos<br />

dos comportamentos problema ou<br />

agressivos é comunicar uma ideia, necessidade,<br />

ou uma frustração por não<br />

conseguir fazê-lo. Talvez, essa funcio-


45<br />

nalidade tenha perdido o sentido ao<br />

longo do caminho, e o aluno não mais<br />

se comporta daquela maneira devido<br />

a uma necessidade em si, talvez tenha<br />

entrado na rotina ou se acostumado<br />

a se comportar assim, mas em algum<br />

momento a funcionalidade existia.<br />

Enfim, oferecer uma estratégia de<br />

comunicação funcional é quando<br />

tentamos substituir um comportamento<br />

não funcional, como gritar<br />

ou bater, por uma tentativa ou ação<br />

comunicativa. Por exemplo, quando a<br />

minha aluna não quer engajar na atividade<br />

proposta e ela grita por alguns<br />

minutos seguidos, eu quero ensinar<br />

que ela simplesmente pode apontar<br />

para o cartão escrito NÃO, ou fazer<br />

um sinal de não com a mão. Portanto,<br />

eu tentava, e ainda continuo a oferecer,<br />

maneiras funcionais de crianças<br />

e jovens comunicarem necessidades<br />

e ideias. Aliás, normalmente em<br />

CAA trabalhamos com crianças mais<br />

velhas e jovens. Isso se deve ao fato<br />

de que todas as outras estratégias são<br />

tentadas anteriormente à CAA.<br />

Então, quando me perguntam, tem<br />

idade máxima para comunicação?<br />

Não! Todos podem comunicar, não<br />

importa a idade. Quando se vê que<br />

uma criança ou jovem, realmente<br />

procura um cartão, pois quer comunicar-se,<br />

e sente-se reforçada, não<br />

precisando mais utilizar aquele comportamento<br />

anterior (não funcional<br />

ou agressivo) para se comunicar, é<br />

libertador. E a partir daí, a prática e o<br />

treino lhe darão mais e mais instrumentos<br />

para se comunicar e, assim<br />

precisa utilizar menos os comportamentos<br />

que recorria anteriormente.<br />

A partir da comunicação funcional,<br />

a ideia é sempre promover comunicação<br />

total. Ou seja, em todos os<br />

ambientes, utilizando uma variedade<br />

de recursos, as crianças e jovens conseguem<br />

se expressar. Nesse sentido,<br />

comecei a estudar e ver possibilidades<br />

no uso de tecnologia na CAA, especificamente<br />

na utilização de aplicativos<br />

em tablets. Quando pensamos em suporte<br />

à comunicação, temos que levar<br />

todas as características das pessoas<br />

com autismo em consideração, principalmente<br />

as questões sensório-motoras.<br />

Portanto, quero dividir com vocês<br />

a minha pesquisa sobre os princípios<br />

da utilização de CAA em tablets. As<br />

ideias abaixo vêm sendo exploradas<br />

em diversos aplicativos, o Inclusive,<br />

da Inclusive Todos é um deles.<br />

Os princípios listados abaixo são baseados<br />

nas características e questões<br />

levantadas para pessoas com TEA<br />

e outras condições e deficiências e<br />

como a utilização do aplicativo pode<br />

levar em conta essas características<br />

e dar suporte à comunicação dessas<br />

crianças e jovens.<br />

LEVANDO-SE EM CONSIDERAÇÃO<br />

QUESTÕES DE PLANEJAMENTO<br />

MOTOR E EXECUTIVO: PRINCÍPIOS<br />

DOS ASPECTOS FÍSICOS DO SISTE-<br />

MA DE COMUNICAÇÃO<br />

A. Utilização sistema de comunicação<br />

em equipamento eletrônico como<br />

um tablet que pode ser utilizado<br />

em diferentes ambientes da<br />

criança ajuda na generalização da<br />

função comunicativa do sistema,<br />

além da motivação pelo equipamento<br />

eletrônico.<br />

B. O feedback automático da resposta<br />

da tela sensível ao toque auxilia<br />

a experiência de causa e efeito e<br />

promove rapidez na compreensão<br />

da função comunicativa do<br />

aplicativo.<br />

C. A possibilidade de oferecer telas<br />

com as linhas e colunas estáticas,<br />

em que o vocabulário está sempre<br />

na mesma posição visuoespacial<br />

auxilia no planejamento visuoespacial<br />

para comunicação, antecipação<br />

e predição dos estímulos,<br />

o que auxilia na automatização<br />

para ampliação do repertório para<br />

comunicação, essencial para uma<br />

comunicação interativa eficaz.<br />

D. Na primeira tela, programa-se o<br />

que chamamos de vocabulário básico,<br />

o que significa que a pessoa<br />

consegue se comunicar basicamente<br />

em todos os ambientes com<br />

sim e não, mais e pare, e verbos<br />

como quero, ir, entre outros. Além<br />

disso o sistema baseia-se na utilização<br />

de vocabulários diversificados<br />

incluindo artigos, descritores<br />

como adjetivos e advérbios, e<br />

pronomes, não somente substantivos<br />

modelando a comunicação<br />

falada.<br />

E. Programam-se cores diferentes<br />

nas caixas dos símbolos para<br />

tipos diferentes de palavras, como<br />

pronomes, verbos, substantivos,<br />

etc. Essa codificação por cor dos<br />

símbolos é um recurso visual e<br />

cognitivo que auxilia o aprendizado<br />

por equivalência e a formação<br />

de frases.<br />

F. A opção do sintetizador de voz,<br />

que fala em voz alta as palavras<br />

selecionadas, e deve ser preferencialmente<br />

com o gênero de identificação<br />

da pessoa, promove um<br />

feedback auditório imediato para<br />

o indivíduo auxiliando o seu processamento<br />

multimodal (figura,<br />

palavra escrita e palavra falada).<br />

Tal recurso também facilita sua<br />

participação social no grupo em<br />

que está inserido, pois irá ouvir a<br />

ideia sendo comunicada.<br />

Levando-se em consideração questões<br />

sociais e relacionais: princípios<br />

da estrutura da interação<br />

A. a. Inicia-se a utilização do equipamento<br />

com o pedido de atividades<br />

de interesse da criança e que<br />

sejam motivadoras para elas. Por<br />

exemplo, a criança aciona “mais”<br />

para assistir mais do seu vídeo ou<br />

pedir mais do seu lanche favorito.<br />

B. Começamos com pedidos (acesso<br />

ao item, reforço imediato) e depois<br />

ampliar para descrições e comentários,<br />

ainda com seus temas de<br />

interesse. Pedidos têm uma relação<br />

direta com a representação e<br />

o acesso ao item (reforçamento),<br />

o que auxilia compreensão da<br />

utilização do equipamento como<br />

mediador de comunicação.<br />

C. Utilizam-se perguntas estruturadas<br />

e para quais a resposta esteja<br />

programada no equipamento de<br />

comunicação, evitando perguntas<br />

abertas com muitas possibilidades<br />

de respostas. Perguntas estruturadas<br />

têm opções implícitas nelas


46<br />

mesmas, mas mesmo com uma<br />

pergunta mais fechada a criança<br />

ou jovem não responder, o parceiro<br />

de comunicação pode oferecer<br />

as opções de resposta. Por exemplo,<br />

você pode oferecer duas cores<br />

de giz de cera, se uma criança está<br />

escolhendo uma para pintar.<br />

D. Utilizam-se essas perguntas estruturadas<br />

durante jogos e brincadeiras<br />

interativas para promover<br />

trocas com função comunicativa e<br />

motivadora. Por exemplo, vamos<br />

jogar bola, você quer a “grande” ou<br />

a “pequena”?<br />

LEVANDO-SE EM CONSIDERAÇÃO<br />

QUESTÕES DE APRENDIZAGEM:<br />

PRINCÍPIOS EDUCATIVOS<br />

A. Trabalhe com interações estruturadas<br />

com opções e alternativas<br />

(como “sim” e “não,” escolhas de<br />

jogos, cores de massinha, livro que<br />

irão ler, vídeo que irá assistir, etc.)<br />

para dar estrutura visual e repertório<br />

para promover a escolha da<br />

criança em itens de seu interesse.<br />

B. Modele o uso do equipamento<br />

para a criança ou jovem se familiarizar<br />

com seu uso. Dizer, “Ah, você<br />

está apontando para a porta, você<br />

quer <strong>SA</strong>IR?” E você pode acionar<br />

o símbolo “sair” e deixar o jovem<br />

sair.<br />

C. Ofereça a hierarquia de dicas para<br />

promover a resposta no tablet,<br />

incluindo apoio manual, gestual,<br />

verbal, visual, indireto, até a<br />

pessoa conseguir fazer de maneira<br />

independente. Quando começamos<br />

o processo podemos começar<br />

de menos para mais suporte. Isso<br />

quer dizer que você pode fazer<br />

a pergunta estruturada, e ver se<br />

a pessoa responde de maneira<br />

independente. Se ela não acionar<br />

nenhum símbolo, você pode mostrar<br />

onde a imagem de resposta<br />

está ou opções de resposta que<br />

estão no equipamento, suporte<br />

gestual. Se não houver resposta,<br />

você pode falar a resposta e<br />

mostrar (suporte verbal e gestual).<br />

Se não houver resposta, você pode<br />

dar apoio manual para acionar o<br />

símbolo (suporte manual). A ideia<br />

é que você está ensinando a pessoa<br />

a utilizar o equipamento, então<br />

faça uma pergunta que estimule<br />

uma resposta previsível, por<br />

exemplo o jovem está assistindo<br />

a um vídeo que gosta muito, e<br />

você pausa o vídeo. Você pergunta:<br />

“quer mais vídeo?” e traga o<br />

tablet para frente dele. Se ele não<br />

responder, você diz: “você quer<br />

MAIS vídeo?” Apontando para a<br />

palavra “mais” no sistema. Se ele<br />

não responder, você pode dizer: “se<br />

você quiser assistir a mais vídeo,<br />

acione a palavra ‘mais’”, auxiliando<br />

manualmente a criança a acionar<br />

o símbolo “mais”.<br />

D. Promova escolhas e comentários<br />

em ambientes em que o comportamento<br />

naturalmente ocorre. Tal<br />

prática oferece aprendizagem da<br />

pessoa inserida no contexto, sem<br />

necessidade de generalização posterior.<br />

Por exemplo, pedir “lanche”<br />

na hora de se alimentar, ou pedir<br />

para “sair” quando fora a hora de<br />

ir embora.<br />

E. Trabalhar aprendizagem sem erros,<br />

tanto na parte motora (dando<br />

apoio manual quando necessário,<br />

já descrito na hierarquia de<br />

dicas), quanto no tipo de pergunta,<br />

evitando perguntas que tenham<br />

resposta de certo e errado. Por<br />

exemplo, ao invés de perguntar:<br />

“que cor é essa massinha que estamos<br />

brincando?”, perguntar: “qual<br />

a cor de massinha que você quer<br />

brincar?”;<br />

F. Praticar os mesmos vocabulários<br />

constantemente, a prática é a<br />

única maneira de garantir planejamento<br />

motor adequado, comunicação<br />

mais automatizada e que<br />

dificuldades motoras não interfiram<br />

na acurácia da resposta.<br />

LEVANDO-SE EM CONSIDERAÇÃO<br />

A CONSEQUÊNCIA: PRINCÍPIOS DE<br />

REFORÇAMENTO<br />

A. Ofereça reforço, de preferência<br />

natural ao item ou ideia que foi<br />

comunicada, imediatamente após<br />

o símbolo ter sido acionado. Por<br />

exemplo, utilizar a comunicação<br />

em uma situação de brincadeira<br />

que a criança pode pedir “bolha de<br />

sabão” acionando o símbolo, ou um<br />

jovem pode pedir para “sair” para<br />

ir ao quintal.<br />

B. Redirecione a resposta se a pessoa,<br />

por exemplo, fez uma pergunta<br />

e sem apoio a criança escolheu<br />

a resposta que não corresponde<br />

à pergunta. Assim, você pode<br />

direcionar com apoio manual para<br />

a resposta certa, sem enfatizar o<br />

erro em si. Tal princípio também<br />

está de acordo com aprendizagem


47<br />

sem erros, e a noção que a utilização<br />

de CAA é um processo de<br />

aprendizagem de se familiarizar<br />

com os itens e não;<br />

C. Termine em sucesso sempre.<br />

Garanta que cada tentativa de<br />

interação e comunicação termine<br />

com acesso ao item, ou com uma<br />

resposta verbal que demonstre<br />

que a pessoa foi ouvida. O uso do<br />

equipamento faz parte de uma<br />

interação, e uma interação bem-<br />

-sucedida termina com resposta de<br />

ambas as partes.<br />

D. Expanda o vocabulário após o<br />

aprendizado inicial combinando<br />

duas palavras, utilizando as<br />

mesmas palavras em diferentes<br />

ambientes. Por exemplo, a minha<br />

menina que escolhia “mais” para<br />

ter acesso a mais massinha, depois<br />

irá acionar “mais massinha”. Ir<br />

acrescentando palavras quando a<br />

criança ou jovem já dominar o pedido<br />

da atividade. Fazer o mesmo<br />

para comentários e outros tipos de<br />

comunicação.<br />

E. Ao expandir, proporcione uma<br />

atividade já aprendida após uma<br />

nova, que exija mais da criança ou<br />

jovem. Quando intercalamos uma<br />

atividade mais fácil com uma mais<br />

difícil, a pessoa continua motivada<br />

a manter atenção e esforço e<br />

continuar tentando as atividades<br />

mais difíceis.<br />

F. f. Espace o reforçamento para<br />

ampliação do repertório de comunicação<br />

e atividades comunicativas.<br />

Por exemplo, o jovem sempre<br />

podia escolher sua atividade mais<br />

motivadora, depois essa opção só<br />

é oferecida alternadamente a uma<br />

atividade diferente. Por exemplo, o<br />

jovem escolhia assistir aos vídeos,<br />

mas posteriormente ele irá escolher<br />

entre livro e jogo, e depois<br />

pode voltar ao vídeo.<br />

Dessa maneira você irá treinar<br />

vocabulário e habilidades diferentes<br />

dentro de um contexto de<br />

interação. Enfim, de maneira geral<br />

as estratégias acima descrevem<br />

princípios que justificam a utilização<br />

de um aplicativo como um<br />

recurso de CAA para pessoas com<br />

autismo.<br />

E como começar? Boa pergunta.<br />

VAMOS BAIXAR UM<br />

APLICATIVO E VAMOS LÁ!<br />

DE MANEIRA GERAL, PARA CO-<br />

MEÇAR A PROMOVER UMA INTE-<br />

RAÇÃO COMUNICATIVA DEVE SE:<br />

1. Seguir o interesse da pessoa,<br />

descubra o que a motiva e use<br />

durante o seu tempo juntos.<br />

2. Usar uma estratégia de acesso à<br />

atividade de interesse, que pode<br />

incluir:<br />

a. Dar opções de atividades para<br />

promover escolha, ou<br />

b. Colocar a atividade em um lugar<br />

de difícil acesso que a criança<br />

tenha que pedir.<br />

3. Depois, devemos dar suporte (modelagem<br />

ou dicas) para o pedido<br />

ou a escolha, para garantir que a<br />

criança toque no tablet para pedir<br />

ou comunicar o que quer.<br />

4. Logo em seguida o reforço, tanto<br />

verbal, quanto de acesso ao item<br />

ou atividade deve ser dado, portanto,<br />

deve-se engajar na atividade<br />

imediatamente com animação.<br />

5. Para ampliar ou expandir deve-<br />

-se fazer um comentário ou uma<br />

pergunta durante a atividade para<br />

promover resposta utilizando o<br />

equipamento<br />

a. Dar uma pausa e perguntar se a<br />

pessoa quer “mais”.<br />

b. Você achou isso “bom” ou<br />

“ruim”?<br />

6. Novamente, dar suporte (modelagem<br />

ou dicas) para que a criança<br />

use o tablet para responder.<br />

7. Logo em seguida, reforçar com a<br />

atividade ou item, e reforçar verbalmente<br />

e fazer um comentário.<br />

8. Repetir a interação ou iniciar<br />

outra para promover a resposta da<br />

criança ou jovem utilizando o app.<br />

9. E praticar, praticar e praticar, em<br />

diferentes situações, ambientes, e<br />

com diversos vocabulários!<br />

Eu já disse que todos com autismo<br />

podem comunicar?<br />

Inclusive todos com<br />

dificuldades complexas!<br />

VAMOS COMUNICAR!<br />

FERNANDA TEBEXRENI OR<strong>SA</strong>TI,<br />

Psicóloga, Doutora em Educação Especial<br />

e Inclusiva pela Universidade de Syracuse,<br />

Professora em Psicopedagogia da Universidade<br />

Presbiteriana Mackenzie.


48<br />

Escultura de Alexander Milov<br />

O cuidado com a nossa criança interior<br />

Quando descobrimos que nossa<br />

criança interior, ainda está ferida<br />

e carrega várias emoções de nossos<br />

pais, antepassados e principalmente<br />

da nossa mãe ou cuidadora; fica mais<br />

simples resolver os nossos conflitos<br />

internos e atuais.<br />

Desde o ventre materno, temos uma<br />

fusão emocional com a nossa mãe,<br />

todas as emoções que ela vivenciou<br />

durante a gestação é registrada em<br />

nosso inconsciente, e após o nascimento<br />

continuamos fusionados, por<br />

mais 2 anos. Como se estivéssemos<br />

num tanque emocional e juntas,<br />

temos que aprender a nadar. O ser<br />

humano é um mamífero que tem<br />

2 fases de formação: intrauterina<br />

e extrauterina, diferente de outros<br />

animais que já nascem, andam e vão<br />

em busca do leite materno, o bebê<br />

humano necessita de cuidados, para<br />

sobreviver.<br />

E durante esta fase, tudo que a mãe<br />

experimenta, inclusive as emoções da<br />

sua criança interior, da sua própria<br />

infância, são transferidas para o bebê,<br />

que vai crescendo e vai confrontando<br />

estas emoções, pois ele é o nosso<br />

próprio espelho; de nossas dores,<br />

traumas, emoções tóxicas, abandono,<br />

carência, violência, abuso...<br />

A maternidade nos concede a chance<br />

de uma autocura, de voltarmos à<br />

infância, resgatar a nossa criança<br />

ferida, cuidar e zelar por ela; que de<br />

alguma forma, sofreu danos emocionais<br />

e carrega uma dor que vai nas<br />

entranhas de nossa caverna emocional.<br />

Os nossos filhos são luz para<br />

as nossas sombras, eles literalmente<br />

colocam o dedo em nossas feridas não<br />

cicatrizadas e por isto, precisamos<br />

saber lidar com tantas emoções, que<br />

por vezes são cheias de dualidades.<br />

Os sentimentos se misturam e muitas<br />

vezes nem sabemos nomeá-los, só<br />

queremos é colo, aconchego, e a<br />

validação de nossas necessidades.<br />

Saber que tudo isto é normal, traz<br />

um grande alívio; afinal que mãe não<br />

surtou durante uma crise de choro de<br />

uma criança, choro de dor física ou<br />

emocional? Que mãe não chorou por<br />

se sentir impotente diante de uma<br />

situação? Que mãe não desejou parar<br />

o mundo e descer? Que mãe não<br />

desejou devolver a criança, por alguns<br />

minutos?<br />

Mas, a boa notícia é que tudo isto,<br />

pode ser trabalhado junto ao processo<br />

da criação de nossos filhos, que são<br />

nossos grandes mestres. A escola da<br />

maternagem, nos oferece a oportunidade<br />

de resgatar a nossa infância e<br />

de curar as nossas feridas, por meio<br />

de nossos filhos! Esta, é a maneira<br />

gentil que Deus nos concede a uma<br />

2ª chance, para o empoderamento e<br />

encorajamento frente aos desafios.<br />

Uma criança com TEA, estará nos<br />

confrontando em muitas ocasiões,<br />

pois além das suas angústias internas,<br />

carrega também as nossas sombras; e<br />

por vezes esta criança estará manifestando<br />

uma dualidade de sentimentos<br />

e emoções; que, se não estivermos<br />

muito alinhadas com o momento, não<br />

teremos recursos para lidar; e nos<br />

sentiremos impotentes. E isto ativa os<br />

nossos gatilhos da infância; emergindo<br />

sentimentos de medo, rejeição,<br />

abandono, carência, ciúmes, raiva,<br />

frustração..., que foram nomeados por<br />

vezes de “birra” e “criança mimada”.<br />

E os nossos filhos, estarão trazendo<br />

a oportunidade da nossa autocura,<br />

de acolhermos a nossa criança, de<br />

compreendermos o que realmente se<br />

passava, qual era o sentimento que<br />

nós estávamos vivenciando; e não o<br />

sentimento nomeado por quem estava<br />

cuidando e que desconhecia totalmente<br />

aquilo que ia fundo em nossa<br />

alma. A aceitação, acolhimento com<br />

amor, perdão e gratidão, são verdadeiros<br />

remédios da alma; só precisamos<br />

nos conectar com esta nossa criança<br />

interior ferida e que deseja ardentemente<br />

se expressar.<br />

Se você precisar de ajuda, posso lhe<br />

auxiliar neste processo, por meio da<br />

terapia, onde iremos investigar a sua<br />

infância, descobrir as sombras, nomeá-las<br />

e acolhe-las sem julgamentos,<br />

levando-as à luz e transmutando em<br />

amor; liberando desta forma a culpa,<br />

a vergonha, a rejeição e tantos outros<br />

sentimentos que vieram em algum<br />

momento que nos sentimos sem<br />

acolhimento.


49<br />

“As flores de amanhã nascem<br />

das sementes plantadas hoje.”<br />

O Renascimento<br />

de cada dia<br />

A rotina com um autista em casa não é<br />

uma das tarefas mais fáceis. Se fôssemos<br />

enumerar a quantidade de preparativos<br />

até se conseguir sair de casa, assim<br />

como todo preparado emocional dos<br />

pais caso uma crise ocorra, ou ainda, a<br />

quantidade de terapias multidisciplinares<br />

que exigem atenção e continuidade<br />

em casa por parte dos familiares, ficaríamos<br />

aqui provavelmente por muito e<br />

muito tempo.<br />

De onde vem esta disposição por parte<br />

deles? Quem são estes pais? Como se<br />

sentem de verdade? Será que estão<br />

ou não autorizados a falar sobre suas<br />

dores e sobre o cansaço em meio a este<br />

caminho? Se faz necessário olharmos<br />

de perto para essas perguntas, e sermos<br />

honestos com o que sentimos a respeito<br />

dessa jornada, pois de fato, em vários<br />

momentos ela não é simpática e nem<br />

acolhedora com a gente. E como é possível,<br />

mesmo em várias situações desafiadoras,<br />

encontrarmos familiares com um<br />

sorriso no rosto, chamando seus filhos<br />

de “anjos na Terra”, encontrando um<br />

certo nível de paz interior frente a todas<br />

as adversidades que essa rotina propõe?<br />

Convido vocês a entrarem com respeito<br />

em suas próprias emoções, e a dialogar<br />

com elas. Para os momentos de dor, faltam-nos<br />

palavras, pois nenhum verbo<br />

é capaz de alcançar tremenda ausência<br />

de esperança dentro de cada um. Se nos<br />

falta o verbo, que a poesia possa nos<br />

representar.<br />

E assim, iniciamos esta matéria, com a<br />

ajuda de Carlos Drummond de Andrade,<br />

em trechos de seu poema intitulado:<br />

“A noite dissolve os homens”.<br />

“A noite caiu. Tremenda, sem esperança…<br />

Os suspiros acusam a presença<br />

negra que paralisa os guerreiros.<br />

E o amor não abre caminho na noite.<br />

A noite é mortal, completa, sem reticências.”<br />

Para falarmos sobre renascimento, é<br />

preciso falarmos sobre a morte, sobre a<br />

noite em nossas vidas, e sobre a tristeza<br />

da alma. O que morre dentro de nós, a<br />

cada necessidade de recomeço é aquilo<br />

de que não nos abastecemos mais: antigas<br />

crenças sobre as coisas, pessoas e<br />

situações que não são mais pertencentes<br />

a nossa realidade atual e principalmente,<br />

sobre as transformações que o dia<br />

a dia sofre, depois de passar a convivermos<br />

com o diagnóstico de autismo<br />

diariamente. Sim, podemos fazer alusão<br />

à noite escura, a uma total falta de percepção<br />

da luz em alguns momentos, pois<br />

é bem isto mesmo. Não existe maiores<br />

explicações quando estamos neste ponto,<br />

existe é o respeito por ela.<br />

Como se pudéssemos nos curvar perante<br />

a dor, para desta forma, esgotarmos<br />

todas as possibilidades de não a aceitar<br />

como parte de quem nos tornamos.<br />

Quando quem éramos clama por alguém<br />

que ainda não somos, de que forma<br />

nossa alma se comporta?<br />

É neste momento de dor e escuridão,<br />

que temos a oportunidade de escolher<br />

como reagiremos a tudo isso, e de que<br />

forma nossa dor cumprirá a sua função:<br />

Ela pode nos ensinar a viver em um<br />

novo formato, ainda desconhecido,<br />

mas necessário, ou ela pode nos fadar a<br />

morrer em vida por falta de recursos diversos<br />

dentro de nós mesmos. Recursos<br />

estes que dentro de um processo constante<br />

de autoconhecimento, chamamos<br />

de ressignificação, ou seja: termos a<br />

capacidade de aprendermos a dar um<br />

novo significado a tudo o que acontece<br />

ao nosso redor.<br />

O contato com o outro, me faz ter mais<br />

conhecimento sobre mim mesmo. O<br />

outro (nossos filhos), nos colocam em<br />

fogo cruzado com nosso estoque de<br />

paciência, com nosso poder de acalmar a<br />

eles e a nós mesmos, com nossa vontade<br />

em sermos pessoas melhores, e quiçá<br />

abertos a mudanças em nosso estilo<br />

de vida em detrimento a eles, se assim<br />

entendermos a necessidade de integrarmos<br />

todos estes sentimentos em nós.<br />

Caso contrário, alguns tenderão a sorrir<br />

mais ao longo de seu aprendizado, e<br />

outros tenderão a se aborrecer mais e a<br />

sorrir menos. Quem está certo? Ambos,<br />

pois cada um se comportará de acordo<br />

com o que se é em essência.<br />

A rotina pode esmagar emocionalmente<br />

a pessoa, mas a forma como ela irá<br />

reagir, não dependerá do outro, mas sim<br />

de seus próprios recursos internos.<br />

Vejam o que Drummond diz, em continuidade<br />

ao seu poema:<br />

“Aurora, entretanto eu te diviso,<br />

ainda tímida, inexperiente das luzes<br />

que vais ascender e dos bens que repartirás<br />

com todos os homens.”<br />

Poderíamos então, após um período<br />

de grande luto pelo o que já não somos<br />

mais, avistarmos uma possibilidade<br />

de equilíbrio? Estamos inclinados ao<br />

convite do “sim”. A Psicologia e seus estudos<br />

nos apontam que as experiências<br />

pessoais são como sementes, que elas<br />

representam tudo aquilo que pensamos,<br />

sentimos e fazemos a nós mesmos e<br />

aos outros, e que partir desta semente,<br />

saberemos se o fruto, nossa alma, estará<br />

atuando na vida de forma saudável ou<br />

não.<br />

E o poeta conclui:<br />

“Minha fadiga encontrará em ti o seu<br />

termo, minha carne estremece na certeza<br />

de tua vinda (...)<br />

Havemos de amanhecer.”<br />

Concluímos que mesmo por meio de<br />

tímidas atitudes, somos todos capazes<br />

de alinharmos nosso pensar ao nosso<br />

sentir, em prol de uma vida cada dia mais<br />

honesta sob o ponto de vista de quem<br />

somos capazes de ser, sem perfeição,<br />

mas respeitando nossas limitações e aos<br />

poucos, acentuarmos nossas habilidades,<br />

e aprendermos a outras tantas que nem<br />

sabíamos sermos capazes de fazer.<br />

Todos ganham com isso, pois não se constrói<br />

o novo, sem a morte do velho “eu”<br />

que carregamos. Isto é renascimento.<br />

Que cada um encontre a sua certeza e o<br />

seu alvorecer, pois como disse o poeta:<br />

“HAVEMOS DE AMANHECER.”<br />

LÚCIA COMITRE TAGLIERI<br />

CRP 06/76322<br />

Fundadora do Instituto Comitre – Núcleo<br />

de Estudos & Psicoterapia Avançada.<br />

Coordena o Projeto G.A.F.T ( Grupo<br />

de Acolhimento ao Familiar do TEA) em<br />

São Bernardo do Campo – SP. É Psicóloga, com bacharelado<br />

em Psicologia pela Unicamp, Pós graduação Psicologia<br />

Analítica pelo Instituto Pieron, Coach pela Sociedade<br />

Brasileira de Coaching, Especializada em Psicoterapia da<br />

criança e do adolescente , Formada em Regressão Terapêutica<br />

pela ABPR, com Aperfeiçoamento em Autismo e suas<br />

intervenções. Colunista da Revista SER Autista.<br />

Rua José Versolato, 111<br />

Sala 1002 Centro – SBC / SP<br />

Contato:<br />

lucia@institutocomitre.com.br<br />

WhatsApp: 11 99160.5630


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Amados leitores,<br />

Deleita-te no Senhor, e<br />

Ele satisfará o desejo do seu coração.<br />

Quantas vezes as notícias do dia a dia são capazes de gerar em nós sentimentos de incapacidade, inferioridade,<br />

medo e insegurança?<br />

Com alguns anos de ministério passei a entender que por vezes fui enganada acerca dos meus problemas, pela<br />

minha maneira errada de olhar para eles; um problema sim, uma impossibilidade jamais. Quando você entra numa<br />

guerra já se achando derrotado, certamente o será, a única alternativa para que isso não aconteça é mudar sua atitude.<br />

A Bíblia Sagrada nos traz um relato muito interessante de um rei por nome Josafá, que é surpreendido por<br />

uma notícia que abala sua estrutura, seu poderio e domínio, ele é completamente desarmado em sua totalidade ficando à<br />

deriva da situação.<br />

Não é diferente conosco, muitas vezes somos sugados pelas circunstâncias que sem a menor piedade sugam<br />

nossas forças, nosso ânimo e nossa coragem e até mesmo nossa fé.<br />

Josafá tinha um reino equilibrado, mas isso não impediu que um dia uma má notícia chegasse até ele. Três<br />

reinos haviam se juntado, é certo que, a quantidade de soldados e de armas sobrepujavam a do rei Josafá.<br />

E nós? Quantas vezes, quando tudo parece bem, algo começa a nos assolar, o que antes parecia uma fortaleza<br />

agora já começa a mostrar sua fragilidade, o que parecia seguro apresenta rachaduras. Então, aparecem os medos e com<br />

eles suas consequências, e logo estamos como Josafá, desesperados diante de uma má notícia.<br />

É nessa hora que Deus se levanta, quando não temos mais como fazer, quando literalmente chegamos ao nosso<br />

limite, então a única decisão a tomar é entregar tudo em Suas mãos e confiar; e foi exatamente o que Josafá fez, declarou<br />

a Deus sua fragilidade e impotência, seu medo e fracasso, rasgou seu coração sem reservas, sabendo que o único lugar de<br />

onde poderia vir um socorro seria Aquele.<br />

Nesses momentos de conflitos, Deus espera de nós atitudes!!!<br />

Prostração gera morte, atitude gera milagre, reaja aos confrontos.<br />

Quando o rei se posicionou, juntou o povo, orou a Deus, ele foi prontamente respondido,<br />

“Não temas, nem te assustes, nessa peleja não tereis que pelejar”.<br />

É lindo ver o cuidado de Deus conosco.<br />

Sempre vai haver uma motivação para tentar desconstruir a verdade de Deus para as nossas vidas, aquele<br />

sentimento na vida do rei Josafá de medo e incapacidade veio para confundi-lo acerca da verdade. Enquanto estiveres<br />

em Mim Eu estarei em vós, Josafá estava em Deus, então, não tinha porque temer, mas por causa da pressão ele cedeu.<br />

Aquela situação de fato aconteceu, aqueles exércitos desceram contra Josafá, mas antes mesmo da batalha<br />

Deus interveio, Ele sempre está pronto para intervir em nosso favor.<br />

Quando o medo veio, Josafá e seu povo buscaram a Deus com orações e cânticos, confiaram e contemplaram o<br />

seu mover, que assim sejamos nós também, confiar é o grande segredo, descansar é preciso.<br />

Deus abençoe a todos.<br />

Pastora Fabiana Ortiz


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