Ai, Mouraria 2.0 Luís Filipe Silva Amália, gigante e intermitente, desenhada no céu, entra em força pela janela do quarto de Dulce, despertando-a do torpor gerado pelo capacete de sono. Estremunhada, Dulce ordena aos vidros que escureçam, para suavizar o brilho daquela imagem emitida pela poeira inteligente hoje lançada sobre o bairro. A fadista canta a plenos pulmões numa língua invulgar: ultimam-se os preparativos do Chuseok, que este ano também se festeja na Europa. A transmissão em directo ocorrerá dentro de poucas horas, e pretende juntar centenas de bairros de vários países, em que cada qual se propõe misturar o regional com o estrangeiro, honrando assim o acordo económico recém-celebrado com os novos amigos asiáticos. Irritada por não ter concluido o ciclo REM, o primeiro pensamento de Dulce vai para os resultados do leilão internacional de emprego, que confere de imediato no seu assistente pessoal, mas nem aí tem boas notícias: um grupo sul-americano tomou de assalto as ofertas mais procuradas com um dumping de salários. É a segunda vez nesta semana. Novamente desempregada até ao meio-dia, hora do próximo leilão, decide levantar-se e dar início a um dia que começa mal – ao menos que acabe em alegria, pois aguarda a chegada do filho de quatro anos, despachado ontem pelo segundo marido em contentor privado e selado cuja senha de abertura só os pais conhecem. Acede à imagem do rapaz, que dormita placidamente no avião de carga, algures sobre a baía da Biscaia. Em breve aterrará em Beja, e o contentor será colocado no camião dispensador que o trará a Lisboa. Até naquele aspecto a crise mundial faz mossa, espalhando a família pelo mundo – um dos maridos na Indonésia, o outro em Amsterdão até concluirem as suas empreitadas, e a necessidade de despachar rotineiramente os filhos pelo mundo para matar saudades. Será de considerar o aumento do agregado com um terceiro marido, ou uma segunda esposa? Vai fazer cálculos e pesar rendimentos, para abordar o assunto na próxima reunião virtual com os maridos. Escaldado pelas sucessivas crises e progresso trôpego, o mundo impõe cada vez mais um pensamento utilitário em áreas que em deviam imperar os sentimentos. A verdade é que, lembra-se Dulce, casamentos arranjados, sempre os houve… Mas não quer pensar mais nisso. Encomenda uma limpeza básica aos serviços do bairro. Em poucos minutos, uma sombra tapa a janela-interface e um alarme suave anuncia a chegada dos electrodomésticos dependurados nas calhas exteriores do prédio. Abrindo a portinhola, Dulce entrega a roupa suja da semana para lavagem a seco, enquanto balões rotativos com seis tentáculos sobem ao tecto de modo a aspergir desinfectantes aromáticos e alegres ratinhos saltam para a carpete e se põem a capturar poeiras e matérias orgânicas nos bigodes sensíveis e extra-longos, que prontamente devoram. Clareando novamente as janelas para as máquinas se conseguirem orientar, Dulce sai momentaneamente para a varanda. Suspensa no ar, comandada por impulsos 28
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