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COM PENAS DE ANJO<br />

E A EXPIAÇÃO DO DEMO<br />

José de Matos-Cruz<br />

29 de Agosto de 2002<br />

Subitamente, Rui Ruivo suspendeu o voo,<br />

girando sobre si mesmo para atenuar as sequelas da<br />

fricção. É certo que a envergadura como Infante Portugal<br />

lhe proporcionava, ainda, uma resistência inexpugnável.<br />

Porém, a brusca assunção da sua condição humana, por<br />

uma recorrência entre a textura física e a premência<br />

anímica, tornava-o já vulnerável. Quando o prodígio<br />

heróico se ia atenuando, o Infante Portugal debatia-se,<br />

então, como Rui Ruivo entre a sobrevivência e a<br />

imortalidade.<br />

Era o instante mais perigoso dessa extraordinária<br />

metamorfose. Uma vertigem em que, ao privilégio<br />

transcendente, se sobrepunha a identidade secreta, e o<br />

conflito de paladino - estrénuo defensor dos<br />

desprotegidos, incansável combatente pela justiça - cedia<br />

aos caprichos mesquinhos do estatuto burguês. Para o<br />

Infante Portugal, além de sucumbir a uma íntima<br />

rendição, era a vergonha dolorosa de estar circunscrito ao<br />

exibicionismo literal como Rui Ruivo. Afinal, o mito<br />

soçobrava em sua própria vitimação!<br />

Suavemente, o Infante Portugal poisou junto aos<br />

pés do Cristo-Rei, a contemplar Lisboa - quando o<br />

pôr-do-sol cumpria o leito coleante do Rio Tejo, até<br />

transformar-se na foz em Oceano Atlântico. Também ele<br />

era, já, Rui Ruivo na essência, embora com o trajo<br />

emulativo ainda a sujeitá-lo, qual colete-de-fraldas. Em<br />

tal persistência híbrida, bastava-lhe aguardar a mutação<br />

primordial - uma danse macabre em que o dínamo estelar<br />

se introvertia no crepúsculo dos seus transes mais<br />

aniquiladores.<br />

Pouco depois, pela calada da noite, um impecável<br />

Rui Ruivo estava ao volante do seu fogoso Matrix,<br />

sulcando a Marginal - até ao Condomínio Alípio Ayres<br />

onde residia, a poucos quilómetros de Cascais. Na manhã<br />

seguinte, o advogado distinto voltaria aos seus negócios<br />

para-jurídicos - com tanto recurso e prestígio, entre a<br />

clientela da alta finança ou da baixa política - a partir de<br />

um discreto palacete na Rua de Rufino Picão e Chagas,<br />

quase ao virar para o Largo de Camões... Até mais um<br />

apelo exacerbado, nacional, expiatório, que o arrebatasse<br />

como Infante Portugal.<br />

Aliás, a complexa consciência de Rui Ruivo não se<br />

transcendia pela normalidade - antes oscilava numa<br />

amálgama, sublimatória, dos seus excessos e contradições.<br />

Também, ele nada contribuíra para se virtualizar como<br />

Infante Portugal - tudo ocorrera durante uma visita<br />

trivial à Exposição 98, em que foi investido por um<br />

fenómeno de fervor ingente, telúrico, inexplicável.<br />

Porquê tal pessoa, e tanto assim?<br />

Qual a herança? Sob que sortilégio?<br />

- É o destino... - discorrera Pereira Dias ao<br />

deparar-se Rui Ruivo, em missão do Infante Portugal,<br />

com o seu errático antecessor, algures nos labirintos<br />

sórdidos da Musgueira. Aí, rebentado e, entretanto,<br />

reformado enquanto Condestável Lusitano, exilou-se<br />

aquele que por sua vez, desde a Exposição de Portugal no<br />

Mundo, vinha perpetuando uma ínclita estirpe em que se<br />

fundamentava o imaginário triunfal da irrealidade pátria.<br />

Celebração do fausto. Desígnio ancestral.<br />

Humildade e dignidade. Perante um Pereira Dias<br />

já catártico, Rui Ruivo transfigurou-se na autopremonição<br />

do desempenho aventuresco.<br />

Entre passado e futuro.<br />

Um povo em bruto. Iniciação do Infante<br />

Portugal. O gesto e a gesta. Incongruência como<br />

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