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Página 2 A VOZ DO VALE De 11 a 17 de agosto de 2019<br />
José Carlos Santos Peres<br />
COMO ELES FALAM<br />
O vereador Roberto Araujo (DEM) falou em<br />
demagogia, em recente edição deste jornal, referindo-se<br />
a uma possível proposta que daria entrada<br />
na Câmara sugerindo redução salarial no<br />
Demonstrativo dos vereadores.<br />
O substantivo usado pelo vereador - cuidaremos<br />
neste texto apenas da questão semântica e<br />
de seu uso, por enquanto – faz parte do repertório<br />
político, bem menos em outras atividades, já que<br />
demagogia tem mais a ver com política, mesmo.<br />
São demagogos os políticos, em maior ou menor<br />
gradação; utilizam de uma fala sem consistência<br />
com o real. Exceções confirmam a regra.<br />
A fala como instrumento para qualificar um ato<br />
quando não condiz com a realidade; a fala como<br />
engodo para ludibriar o incauto, sem compromisso<br />
algum com os princípios elementares onde a verdade<br />
deveria ser prevalente.<br />
A demagogia é uma postura enraizada no fazer<br />
dos nossos políticos. Quando estão na chamada<br />
bancada situacionista desdobram-se para<br />
agradar o Executivo. Mas são os primeiros a pularem<br />
fora da barca se, por exemplo, num caso<br />
de impropriedade administrativa, o gestor cair<br />
nas malhas da Justiça.<br />
Ingênuo é o Gestor que não percebe que esse<br />
apoio demagógico tem um custo que passa pelo<br />
que de pior existe na política: a prática do toma-lá-<br />
-dá-cá. Está sendo usado, e não percebe.<br />
O Brasil está dominado pela saúva da demagogia.<br />
Poucos conseguem estar com o Executivo sem<br />
lhe puxar o saco; poucos conseguem estar numa<br />
bancada oposicionista com a equidistância necessária<br />
para fiscalizar os atos e procedimentos sem<br />
se portar como um Pit bull enraivecido.<br />
A demagogia na política brasileira é “democrática”.<br />
Melhor dizendo: ecumênica. A prática consta<br />
do perverso receituário de políticos estando eles na<br />
Situação ou na Oposição.<br />
A verdade é que precisamos de políticos melhor<br />
preparados, mais cultos, mais inteligentes,<br />
mais produtivos.<br />
Políticos interessados no bem comum; compromissados<br />
com a lógica do servir e suficientemente<br />
capazes de ocupar uma Tribuna num Parlamento<br />
qualquer sem lamber como cachorrinho de madame,<br />
e sem morder como um Pit bull desmiolado.<br />
E precisamos de Gestores - prefeitos, governadores,<br />
presidente – suficientemente capazes de, à<br />
primeira lambida, chamar a “carrocinha”, não sem<br />
antes vacinar-se que esse vírus da mediocridade,<br />
tão em evidência no Brasil atual, pega!<br />
Poesia<br />
Santos Peres<br />
GAVETA DO TEMPO<br />
Do armário sonhos batem asas:<br />
retalhos de dores arquivadas,<br />
pétalas de frisos envelhecidos<br />
que um dia a paixão reteve;<br />
cheiro de alfazema-esquecida<br />
no diário que o tempo não apagou...<br />
Uma foto distorcida<br />
que a passagem da vida maturou.<br />
Do armário a solidão tem peso<br />
nas poucas coisas guardadas:<br />
ossos de um esqueleto chamado tempo<br />
corroído pela saudade.<br />
MEMÓRIA<br />
1963 – TORNEIO RIO/SÃO PAULO<br />
SANTOS (campeão) – 3 x FLAMENGO – 0<br />
Estádio: Maracanã<br />
Árbitro: Romualdo Arpi Filho<br />
Público: 45.988<br />
SANTOS: Gilmar; Lima, Mauro e Dalmo; Calvet e<br />
Zito; Dorval, Mengálvio, Coutinho (Batista), Pelé e Pepe.<br />
Técnico: Lula<br />
FLAMENGO: Mauro; Murilo (Joubert), Luis Carlos<br />
e Vanderlei; Jordan e Nelson. Espanhol, Nelsinho,<br />
Henrique, Gerson e Alfredinho. Técnico: Flávio Costa<br />
Gols: Coutinho, Dorval e Pelé<br />
José Carlos Santos Peres<br />
OS GIRASSÓIS<br />
ESTÃO MORTOS<br />
Era preciso dizer-lhe dos poemas esquecidos,<br />
abandonados numa pasta qualquer pela impossibilidade<br />
de trazê-los à luz. Devolver, o que, de alguma<br />
maneira, lhe pertencia.<br />
Mas não se fala de poemas estando entre cebolas,<br />
pêssegos e serventias domésticas. Há de se<br />
tocar o sagrado, quando se fala de amor.<br />
Precisaria de algum raio de sol para a oferenda.<br />
Quem sabe uma canção qualquer do Chico: “Eu<br />
quero te contar das chuvas que apanhei/ das noites<br />
que varei/ No escuro a te buscar/ Eu quero te<br />
mostrar/ As marcas que ganhei/ Nas lutas contra o<br />
rei/ Nas discussões com Deus...”.<br />
Os poemas – quem sabe - perderam a lógica,<br />
que são outras as circunstâncias, embora<br />
ainda conservem o frescor no coração do homem<br />
quando ele revisita a gaveta, o vinho e<br />
o passado, sabendo, porém, que os girassóis,<br />
hoje, estão amarelecidos.<br />
Mas ainda é tempo, ele pensa, de devolver os<br />
poemas a quem de direito, mesmo sabendo que<br />
não há mais o porquê de nova semeadura:<br />
Não te fiz poesia/ Quando a tarde enquadrou/<br />
Teu sorriso// E meus olhos/Como açoite vazaram/<br />
Os prédios da cidade// Teu perfil na miragem/ Desenhava<br />
em relevo/ Todas as minhas esperas//.<br />
Quisera-te//<br />
Como quando se toma da fruta/ O primeiro gosto;/<br />
Pedra se afeiçoando// Ao cinzel/Elaborando-te<br />
ao tato amoroso//<br />
Quisera-te//<br />
Como cárcere deseja uma flor/ Voltada ao<br />
horizonte impossível.../ Mas vieram as sombras//<br />
E já não estavas/ Quando toquei o acorde/<br />
Da minha solidão//.<br />
José Carlos Santos Peres<br />
TODOS SOMOS LUSA<br />
Depois ele até vestiu camisa e tentou se desculpar.<br />
Mas o estrago já estava (está) feito: Abraham<br />
Weintraub, ministro da Educação, talvez inoculado<br />
pelo vírus da inconveniência que seu chefe distribui,<br />
ironizou a concentração de manifestantes, na<br />
Avenida Paulista, na última semana.<br />
No Twitter, o substituto de Vélez Rodrigues comparou<br />
o número de manifestantes contrários a algumas<br />
de suas medidas à frente do Ministério ao<br />
universo de torcedores da Lusa.<br />
Disse ele: “após 46 anos a Portuguesa Futebol<br />
Clube finalmente volta a ser Campeã Paulista. A<br />
Leões da Fabulosa levou todos os torcedores do<br />
time do Canindé para comemorar na Av. Paulista.<br />
A frota de combis congestionou a Al. Santos. O fornecimento<br />
de pães está suspenso até amanhã”.<br />
Claro que levou a invertida, num comunicado<br />
distribuído pela diretoria da Lusa: “o excelentíssimo<br />
ministro da Educação deveria se ocupar<br />
em temas mais nobres para nosso país do que<br />
fazer chacota com o sentimento de milhares de<br />
torcedores da Portuguesa”.<br />
Texto limpo, elegante, bem ao contrário do da<br />
brincadeirinha boba e desrespeitosa do ministro.<br />
Aliás, seguindo a linha de Velez, Weintraub escreveu<br />
combi e Portuguesa Futebol Clube...<br />
O texto, com a desinformação e a agressão ao<br />
sentimento dos torcedores retratam fielmente estes<br />
tempos obscuros da política brasileira.<br />
A brincadeira envolvendo torcedores, quando<br />
não ultrapassa certos limites, não só é aceitável<br />
como estimuladora. Enquanto torcedor, caso não<br />
ocupasse aquele importante cargo, Abraham entraria<br />
na roda, receberia o troco e tudo estaria no<br />
“faz parte”. Acontece que quando fala quem fala é<br />
o ministro, sendo assim, é oficial, tem relevância.<br />
Falar mal da Lusa é falar mal dos nossos times.<br />
Não interessa que atualmente ela se encontre na situação<br />
em que está: estamos falando de um símbolo,<br />
de uma simbologia que vai além do entendimento<br />
imediato. A Lusa é eterna. Quem não a entender assim<br />
não sabe o que é paixão, esse sentimento que<br />
move no futebol o rotor da solidariedade.<br />
Conto<br />
Santos Peres<br />
CAMINHOS<br />
TRANÇADOS<br />
Sabia dele no ruído tímido das dobradiças do<br />
portão. Quase um código, ou talvez acanhamento<br />
por estar, agora num quase fim de vida, buscando<br />
estreitar uma relação perdida. Recebia-o, com seus<br />
passos trôpegos superando um pequeno desnível<br />
na calçada, mal calculando a aldrava enferrujada.<br />
Vinha com o seu pouco dizer... Tanto tínhamos naqueles<br />
anos de trigal em que cavalgávamos ancinhos<br />
em canção ritmada de labor; nas horas de descanso<br />
com o fardel aberto sobre tijolos. Dividíamos o pão e<br />
o salame, o feijão amortecido na farofa com talos de<br />
linguiça e cenoura. Nosso banquete, Pai.<br />
Agora, de frente para a televisão, mal sustenta o<br />
copo com café... Lembra, Pai: bebíamos do mesmo<br />
cantil. Camaradas! Vencedores de tantas batalhas:<br />
nossos destroços e nossas pontes arruinadas.<br />
Hoje, por que não dividimos esse mesmo copo?<br />
Ele sorria desanuviando o rosto, apontando o canário<br />
chapinha banhando-se na areia da estrada; a rês<br />
nos acompanhando por quilômetros, rente à cerca.<br />
Lembra, Pai? O punhado de gabiroba ali pertinho<br />
da estrada, só desviando um tantinho de nada... De<br />
repente o grito lancinante espantando os pássaros<br />
e a vida adormecida daqueles campos. Rasgado,<br />
medonho, profundo... O Grito!<br />
Ao acordar em casa, horas depois – quanto tempo?<br />
- todas as mães do local acedendo velas e rezando<br />
uma reza sem fim. Um homem num avental<br />
branco, desculpando-se pelo pouco poder fazer.<br />
Foram em seus olhos, Pai, daquele azul do seu<br />
Mediterrâneo, que consegui perceber a dor mais<br />
pesada do mundo: chumbo quente escorrendo<br />
os rios de sua face. E como brilharam depois,<br />
num mar imenso, quando tomei de suas mãos o<br />
vidro com álcool envolvendo a cascavel... Nem<br />
a Andaluzia de sua eterna saudade, se visitada,<br />
lhe daria tamanha alegria.<br />
Agora estamos olhando para o nada da televisão,<br />
para o branco-cadáver da parede desta sala de poucos<br />
móveis e tantos abandonos. Não há mais canário<br />
banhando-se em areia quente de estrada, farnel<br />
repartido ao meio e bolo de fubá de mãe preparado<br />
com o açúcar do desvelo. Não mais o doce bailado<br />
do trigal ao ritmo enérgico dos ancinhos.<br />
O trem... Eu nunca lhe disse isso: o trem correu<br />
rente às cercas de lascas de guarantã, naquela<br />
manhã da despedida, e em cada rês assustada,<br />
Pai, eu via aquela que nos acompanhava, todo dia,<br />
a caminho de casa. Alguma coisa daquele olhar<br />
baço, daquele acostumado em estar ali, da paisagem<br />
que nos unia no pertencimento da terra em<br />
que homem e animal se misturam e se completam.<br />
Sabe, Pai, a última curva sequestrou o menino... A<br />
última curva fechou-me um mundo. Assim eu pensara,<br />
naquele momento em que a estrada saia da areia<br />
para a paralela de aço. Uma estrada sem volta.<br />
Hoje, Pai, a cicatriz na perna é a herança que trago.<br />
Só troquei de caminhos, e sei disso quando lembro<br />
que a cobra foi enterrada pela mãe no fundo do<br />
quintal com orações agradecidas de todas as mães<br />
daquele lugar. Mas eu sei... Ah, nós sabemos, Pai,<br />
que aqueles seus olhos azuis banhados em lágrimas<br />
não deixaram o veneno se espalhar pelo meu corpo.<br />
Agora, Pai, cuidado ao descer o desnível...<br />
Um dia hei de retirar toda a terra para nos facilitar<br />
o caminho. Para o ruído das dobradiças, porém, não<br />
colocarei lubrificante. É que eu preciso desse código<br />
para espantar a dor da solidão... E não me deixar<br />
com a sensação de que não foi apenas a cobra que<br />
mãe enterrou no fundo do quintal, naquela tarde.<br />
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