Celso Nassar Divulgação O GESTO POR TRÁS DAS RECEITAS CULINÁRIAS O chef Celso Nassar é formado em gastronomia pelo IESB, ex-sócio do Buongustaio Ristorante - Brasília Existe algo de fantástico no grande negócio da gastronomia mundial. Os programas televisivos com temática culinária estão cada vez mais presentes nos canais abertos e fechados, pois a evolução da cozinha com suas técnicas e equipamentos modernos proporcionam um verdadeiro fascínio com a transformação de produtos brutos em pratos executados à perfeição e valorizados pela impecável apresentação. EVOKEJUN2019
Muitos desses produtos, exóticos ou não, se tornaram conhecidos ou deixaram de sofrer injustos preconceitos graças aos programas de televisão, aos livros e revistas especializados, que deram a necessária visibilidade ao trabalho de talentosos profissionais de cozinha que souberam extrair o melhor daquilo que um ingrediente pode oferecer, de sorte que, atualmente, é possível encontrá-los em feiras, armazéns e mercados dos grandes centros. Entretanto, não é suficiente ter nas mãos um ótimo produto. É preciso, segundo os grandes chefs, saber respeitá-lo, conhecer sua natureza, origem, sazonalidade e, sobretudo, nas palavras do chef Alex Atala, utilizá-lo “no seu melhor momento”, isto é, prepará-lo da maneira e no tempo corretos, “exponencializando” o sabor natural dos ingredientes. Lembro-me ainda hoje das palavras do grande chef Laurent Suaudeau, quando do meu primeiro curso no ano de 2004 em sua famosa escola, admoestando-nos acerca da impossibilidade de se obter um grande prato com um péssimo ingrediente, mas perfeitamente possível fazer um péssimo prato com um grande produto. Entretanto, além dos bons ingredientes e da ótima qualidade dos utensílios e equipamentos modernos disponíveis no mercado, há, ainda, outro elemento pouco comentado, mas de grande importância para quem pretende ingressar no mundo da gastronomia pela via profissional ou apenas de forma amadora. Refiro-me ao aspecto gestual de quem exerce o nobre ofício de cozinheiro. Observar uma cozinha profissional de alta gastronomia em plena atividade é algo fascinante. O cenário composto por bancadas, fornos e fogões com seus desassossegados cozinheiros de dólmãs brancas permite notar, apesar da tensão e da adrenalina presentes, a harmonia e o sincronismo com que os trabalhos são organizadamente executados, não sendo exagero compará-lo ao de uma orquestra regida por seu maestro. Ao comando da marcha dos pratos pelo chef ou subchef, as brigadas sabem o quê, como e quando executar suas tarefas para que todos os pedidos cheguem à mesa do cliente na temperatura ideal, com textura perfeita e com o sabor e apresentação impecáveis. Mas nada disso seria possível, se não houvesse a necessária organização, o conhecimento, a disciplina e o respeito à hierarquia dentro do ambiente de cozinha. Os cozinheiros novatos, bem assim os estagiários e comins, aprendem com os chefs de partida e também com os cozinheiros mais experientes, e a observação à capacidade gestual, à postura e à expressão corporal é o início e o caminho mais eficiente para bem assimilar os fundamentos da cozinha clássica e moderna. Observar atentamente os movimentos das mãos e a postura corporal pode parecer algo sem muita importância para quem pretende executar uma receita, mas o que diferencia um bom cozinheiro é a sua capacidade de assimilar e replicar com perfeição os ensinamentos que lhe foram passados e isso inclui, além de outros conhecimentos, saber manusear uma faca, um fouet, uma espátula e até mesmo a forma correta empregar as mãos no uso do saco de confeitar. A título de ilustração, ha uma divertidíssima cena no filme de animação Ratatouille, em que o rato Remy, inspirado pelo livro do falecido e estrelado chef Auguste Gusteau intitulado “Qualquer um pode cozinhar”, e escondido sob o “toque blanche” do inexperiente Linguini, coordena-lhe os movimentos de braços e pernas, tal qual uma marionete, de modo a permitir que seu parceiro tenha um atrapalhado, porém eficiente desempenho na execução dos pratos. Fantasia à parte, o filme contou com a colaboração técnica de alguns profissionais de cozinha, inclusive do estrelado chef americano Thomas Keller, que deram o necessário suporte para que produtores e animadores conseguissem transmitir o máximo da realidade de uma cozinha comercial, inclusive com respeito ao gestual da equipe de cozinheiros e dos garçons do restaurante. Não raro, cozinheiros amadores se frustram com o resultado de uma receita que foi seguida à risca e acabam concluindo, equivocadamente, que não levam jeito para a coisa ou que o chef, propositalmente, omitiu o “pulo do gato”. De fato, há um grande número de receitas mal redigidas e incompletas, mas engana-se quem pensa que o sucesso de uma receita se restringe ao mero passo-a-passo nela contida. Há, todavia, o lado invisível da receita que pressupõe o conhecimento mínimo de técnicas que não são possíveis de serem transcritas no corpo do seu texto, sob pena de transformá-la em um vasto e cansativo manual e, sobretudo, porque muitos procedimentos são compreensíveis apenas mediante a observação do gesto. EVOKEJUN2019