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RCIA - ED. 129 - ABRIL 2016

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Luís Carlos<br />

Vou pescar<br />

B<strong>ED</strong>RAN<br />

Sociólogo e articulista da Revista<br />

Comércio & Indústria de Araraquara<br />

Impossível jogar com a probabilidade<br />

de se prever, nem que for por<br />

apenas algumas horas, os fatos políticos<br />

que se sucedem a todo instante<br />

em nosso país, pelo menos desde a<br />

reeleição da presidente da República,<br />

tamanha a rapidez da sua ocorrência<br />

e que são acompanhados das mais<br />

esdrúxulas surpresas que invariavelmente<br />

sempre resvalam para o plano<br />

policial.<br />

E como não se pode negar que o<br />

assunto político-policial é o que está<br />

me-xendo com todos os brasileiros<br />

(além, claro, da crise econômica e<br />

ética), até que gostaria de dizer alguma<br />

coisa sobre isso; no entanto,<br />

qualquer opinião a esse respeito no<br />

momento em que escrevo esta crônica<br />

— porque a revista tem prazo<br />

certo e fatal para ser publicada —, já<br />

pode ser considerada ultrapassada, a<br />

não ser que ela se restrinja às vagas<br />

generalizações que podem caber em<br />

qualquer lugar, em qualquer tempo.<br />

Como não é este o caso e como<br />

me obrigo a escrever com uma até<br />

excessiva distância do dia da publicação,<br />

pois fui compelido pelos amigos<br />

a verificar in loco, depois de tantas<br />

enchentes, como estarão os rios e,<br />

principalmente, os peixes, é que escrevo<br />

esta crônica, antes mesmo de ir<br />

conferir esses dados, o que demandará<br />

alguns dias. Um sacrifício!<br />

Por quê? Porque os pescadores<br />

que costumam fugir da cidade, pelo<br />

menos os metidos a escrever, não<br />

desconhecem — o que foi provado<br />

e comprovado noutras ocasiões —<br />

que quando retornam aos seus lares<br />

sentem-se completamente vazios<br />

de ideias (desde que os celulares<br />

fiquem desligados, não se assista TV<br />

e sem leitura de jornais) e então, até<br />

engrená-las, pô-las em ordem, não<br />

apenas demandará um tempo precioso,<br />

como também não se terá certeza<br />

alguma de que sairá algo de interessante<br />

para o leitor.<br />

Então, já que é assim, vou dizer<br />

um pouco sobre alguns livros que estou<br />

lendo. O primeiro é o de Elias Canetti,<br />

prêmio Nobel de Literatura, que<br />

fala do filósofo chinês Confúcio (541<br />

a.C. – 479 a.C.) em seus ensaios,<br />

Consciência das Palavras.<br />

Assim Confúcio, nas palavras de<br />

Canetti, diz que tem aversão à eloquência<br />

porque as palavras, pelo seu<br />

uso constante e fácil, perdem seu valor.<br />

“A hesitação, a reflexão, o tempo<br />

que precede a palavra são tudo; mas<br />

também o que a sucede e que o poder<br />

jamais é para ele um fim em si, mas<br />

“E como não se pode negar que o assunto<br />

político-policial é o que está mexendo com<br />

todos os brasileiros (além, claro, da crise<br />

econômica e ética), até que gostaria de dizer<br />

alguma coisa sobre isso...”<br />

antes uma tarefa, a responsabilidade<br />

perante o coletivo”.<br />

“E que sua felicidade, que jamais<br />

tem fim, é o aprendizado, seu interesse<br />

por tudo que é antigo e relacionado<br />

com o humano e voltado para a<br />

ordem da vida”. O ser humano pode<br />

tudo, mas Confúcio não admite que<br />

ele seja explorado, que seja uma ferramenta<br />

de ou-trem, pois não se deve<br />

agir por cálculo. “O homem exemplar<br />

continua sendo aquele que não age<br />

por cálculo”.<br />

O filósofo não se interessa pela<br />

natureza do poder. E diz Canetti que<br />

aqueles pensadores que se interessam<br />

por ele, não somente o aprovam,<br />

como “se comprazem em servi-lo<br />

como conselheiros” e, evidentemente<br />

procuram levar vantagem disso.<br />

70<br />

Elias Canetti escreve<br />

sobre o chinês Confúcio<br />

Jornalista<br />

Andrzej<br />

Szczypiorski<br />

Outra obra interessante é a do jornalista<br />

polonês Andrzej Szczypiorski<br />

(1924-2000) que viveu em Varsóvia<br />

durante a Segunda Grande Guerra<br />

e chegou a ser preso num campo<br />

de concentração nazista. Nas palavras<br />

de uma das personagens de seu<br />

livro, A bela senhora Seidenman, diz<br />

que “(...) a vida é apenas o que passou.<br />

Não há outra vida a não ser a<br />

recordação, pois o futuro inexiste. A<br />

vida é o que foi cumprido, o que lembramos<br />

que aconteceu e passou para<br />

deixar uma recordação. A vida não<br />

pode ser o futuro, porque<br />

no futuro eu não existo.<br />

A minha vida é apenas o<br />

que já aconteceu — mais<br />

nada! Então pensar na<br />

vida é pensar no passado<br />

gravado na memória, e<br />

cada instante é passado.<br />

Além da memória, nada<br />

existe”.<br />

Voltando a Confúcio. Ele se recusa<br />

a responder perguntas sobre a morte.<br />

É o que diz: “Se ainda não se conhece<br />

a vida, como se poderia conhecer a<br />

morte?”. E fala que todo valor tem de<br />

ser dado à própria vida e, portanto, seria<br />

pura perda de tempo ficar a pensar<br />

na morte. “Vida e morte não são intercambiáveis,<br />

não são comparáveis, não<br />

se misturam. Permanecem distintas”.<br />

Um diz que vida é o que já se passou;<br />

outro, que não se conhece a vida<br />

e muito menos a morte. É por essas e<br />

outras que vou pescar para depois retornar,<br />

mas zerado de tanto imbróglio.<br />

Espero que, se e quando voltar, porque<br />

o País está muito confuso, já tenhamos<br />

algumas mudanças neste governo, se<br />

porventura ainda existir.

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