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A abóboda_Alexandre Herculano

O arquiteto português Afonso Domingues desenha uma complexa abóbada para o Mosteiro da Batalha, mas fica cego, em 1401, antes de a edificar… O rei D. João I contrata, então, um arquiteto irlandês, mestre Ouguet, para a terminar, que não acredita no projeto inicial. Uma delas desaba... a outra ainda hoje lá está! Mas a de quem?

O arquiteto português Afonso Domingues desenha uma complexa abóbada para o Mosteiro da Batalha, mas fica cego, em 1401, antes de a edificar… O rei D. João I contrata, então, um arquiteto irlandês, mestre Ouguet, para a terminar, que não acredita no projeto inicial. Uma delas desaba... a outra ainda hoje lá está! Mas a de quem?

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– Mestre Ouguet! – exclamou el-rei espantado.

– Mestre Ouguet! – gritou Frei Lourenço, com todos os sinais de assombro.

cousa.

– Mestre Ouguet! – repetiram os cavaleiros e fidalgos, para também dizerem alguma

– Quem fala aqui no meu nome? – rosnou David Ouguet, com voz comprimida e

sepulcral. – Malvados! Querem assassinar-me?! Querem arrojar sobre mim esse montão de

pedras, como se eu fora um cão judeu, que merecesse ser apedrejado?! Oh meu Deus, salvai a

minha alma! – E depois de breve silêncio, em que pareceu tomar fôlego: – Não vos chegueis aí!

– bradou ele. – Não vedes essas fendas, profundas como o caminho do Inferno? São escuras:

mas, através delas, lá enxergo eu o luar! Vós não, porque vossos olhos estão cegos... porque o

vosso bom nome não se escoa por lá!... Cegos?... Não vós!... mas ele! Ele é que se ri e folga em

sua orgulhosa soberba! Vede como escancara aquela boca hedionda; como revolve, debaixo das

pálpebras cobertas de vermelhidão, aqueles olhos embaciados!... Maldito velho, foge diante de

mim!... Maldito, maldito!... Curvada já no centro... senti-a escaliçar e ranger... Estavas tu

assentado em cima dela? Feiticeiro!... Anda, que eu bem ouço as tuas gargalhadas!... Não há um

raio que te confunda?... Não!

Dizendo isto, mestre Ouguet cobriu a cara com as mãos e ficou outra vez imóvel.

El-rei, os cavaleiros, os padres mais dignos que estavam de roda do estrado real, os reis

magos, os populares, todos olhavam pasmados para o arquitecto, que assim interrompera a

solenidade do auto. Silêncio profundo sucedera ao ruído que a aparição daquele homem

desvairado excitara. Milhares de olhos estavam fitos nesse vulto, que semelhava uma larva de

condenado saída das profundezas para turbar a festa religiosa. Por mais de um cérebro passou

este pensamento; em mais de uma cabeça os cabelos se eriçaram de horror; mas, dos que

conheciam mestre Ouguet, nenhum duvidou de que fosse ele em corpo e alma. Que proveito

tiraria o demónio de tomar a figura do arquitecto para fazer uma das suas irreverentes diabruras?

Só uma suposição havia que não era inteiramente desarrazoada: David Ouguet podia estar

possesso, em consequência de algum grave pecado; pecado que, talvez, tivesse omitido na última

confissão, que fizera na véspera de Natal. Isto era possível e, até, natural; que não vivia ele a

mais justificada vida. Supor que endoidecera parecia grande despropósito; porque nenhum

motivo havia para tal lhe acontecer, quando merecera os gabos de el-rei e de todos, por ter

levado a cabo a grandiosa obra que lhe estava encomendada. Estes e outros raciocínios, hoje

ridículos, mas, segundo as ideias daquela época, bem fundados e correntes, fazia o reverendo

padre-procurador Frei Joane, que tinha vindo assistir ao auto e estava em pé atrás do estrado,

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