Tijucanismos
O livro reúne 15 crônicas do advogado e escritor Eduardo Goldenberg, além de ilustrações do artista plástico e arquiteto Humberto Hermeto. Eduardo tem a capacidade de descrever o que parece corriqueiro e banal com aguçada delicadeza e um necessário senso de humor. Nesta coletânea estão alguns de seus textos que num primeiro olhar parecem ser sobre sua família ou seu bairro, mas na realidade tratam de muitas famílias, muitos lugares, uma infinidade de experiências. A Tijuca é seu ponto de partida para olhar o mundo e o leitor vai se encantar com isso. ___ “O Edu cronista — para mim, um dos maiores — lembra muito uma imortal cena de Mané Garrincha em um Botafogo x Vasco que já revi duzentas vezes: Mané vai, volta, segue, retorna, pisa na redonda e, subitamente, dá o bote de cascavel matreira para consumar o drible. O turbilhão de lembranças tijucanas, os arremessos ao passado, as pausas, desvios, conduzem ‘garrinchianamente’ Edu ao texto de placa.” Luiz Antonio Simas “O Edu é esse bairro e esse livro. E quando o autor se mistura à sua obra a ponto de não desaparecer, mas ser, de fato, aquilo que escreve, o leitor acaba por viver a história como se escrevesse junto, maravilhado, como empunhasse também em suas mãos aquilo que lê.” Luana Carvalho
O livro reúne 15 crônicas do advogado e escritor Eduardo Goldenberg, além de ilustrações do artista plástico e arquiteto Humberto Hermeto. Eduardo tem a capacidade de descrever o que parece corriqueiro e banal com aguçada delicadeza e um necessário senso de humor. Nesta coletânea estão alguns de seus textos que num primeiro olhar parecem ser sobre sua família ou seu bairro, mas na realidade tratam de muitas famílias, muitos lugares, uma infinidade de experiências. A Tijuca é seu ponto de partida para olhar o mundo e o leitor vai se encantar com isso.
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“O Edu cronista — para mim, um dos maiores — lembra muito uma imortal cena de Mané Garrincha em um Botafogo x Vasco que já revi duzentas vezes: Mané vai, volta, segue, retorna, pisa na redonda e, subitamente, dá o bote de cascavel matreira para consumar o drible. O turbilhão de lembranças tijucanas, os arremessos ao passado, as pausas, desvios, conduzem ‘garrinchianamente’ Edu ao texto de placa.”
Luiz Antonio Simas
“O Edu é esse bairro e esse livro. E quando o autor se mistura à sua obra a ponto de não desaparecer, mas ser, de fato, aquilo que escreve, o leitor acaba por viver a história como se escrevesse junto, maravilhado, como empunhasse também em suas mãos aquilo que lê.”
Luana Carvalho
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Eduardo
Goldenberg
tiju
canis
mos
nganam-se as pitonisas
de evidências que acham
que a relação de Eduardo
Goldenberg com a Tijuca
é baseada no afeto. Não é. Afeto é
coisa que Edu sente pelos amigos.
Entre Edu e a Tijuca o sentimento
que prevalece é o do assombro; o
do mais absoluto espanto — do
menino que ele sempre foi — que,
em certo momento, vira arte para
não virar morte.
O Edu cronista — para mim, um dos
maiores — lembra muito uma imortal
cena de Mané Garrincha em um
Botafogo x Vasco que já revi duzentas
vezes: Mané vai, volta, segue, retorna,
pisa na redonda e, subitamente, dá
o bote de cascavel matreira para
consumar o drible. O turbilhão de
lembranças tijucanas, os arremessos
ao passado, as pausas, desvios,
conduzem ‘garrinchianamente’ Edu
ao texto de placa.
tijucanismos
Eduardo
Goldenberg
tiju
canis
mos
Copyright © Eduardo Goldenberg.
Todos os direitos desta edição reservados
à MV Serviços e Editora Ltda.
revisão
Marília Gonçalves
ilustrações
Humberto Hermeto
projeto gráfico
Patrícia Oliveira
cip-brasil. catalogação na publicação
sindicato nacional dos editores de livros, rj
Elaborado por Camila Hartmann — crb 7/6472
G566t Goldenberg, Eduardo, 1969
Tijucanismos / Eduardo Goldenberg;
[ilustração Humberto Hermeto]. – 1. ed. – Rio
de Janeiro : Mórula, 2021.
116 p. : il. ; 19 cm.
Inclui bibliografia e índice
isbn 978-65-86464-37-5
1. Crônicas brasileiras. I. Hermeto,
Humberto. II. Título.
21-70136 cdd: 869.8
cdu: 82-94(81)
Rua Teotônio Regadas 26 sala 904
20021_360 _ Lapa _ Rio de Janeiro _ RJ
www.morula.com.br _ contato@morula.com.br
/morulaeditorial /morula_editorial
Pra Flávia Piana, a Morena. Esse livro não existiria
se não fosse ela, minha primeira leitora,
minha mais sincera e assídua crítica, água da
minha sede, minha fonte permanente não só de inspiração,
mas sobretudo de transformação. Inquieta,
brilhante, corajosa, é a ela, precipuamente, que dedico
esse livro que escrevi ao seu lado, curiosamente fora
da cidade do Rio.
Pra Teresa de Araújo Machado, minha afilhada
(tijucana!) mais nova, presente que ganhei em 2019
de sua mãe e de seu pai, Clara e Thales, quando achei
que não viveria, de novo, aos 50 anos, essa emoção de
ser-padrinho.
E em memória de Aldir Blanc, a quem conheci,
com quem convivi e de quem morro de saudade todos
os dias.
9 prefácio luana carvalho
15 introdução
21 de frente pro crime (que não foi)
27 as obsessões de meu pai
31 aeroportos, uma obsessão tijucana
37 um embate médico
43 nas aleias do caju
49 debute no engenho novo
57 suspense na tijuca
65 um jeito tijucano de educar ou minha mãe
é uma mulher de peito
71 frio polar na tijuca
77 vai virar sopa
83 lições de pedagogia
89 mais pedagogia tijucana
95 macumba na maternidade
101 bebemos um assalto na tijuca
107 mazal tov
113 sobre o autor
prefácio
luana carvalho
“muitos são os livros dentro desse livro”, escreveu
Fernando Koproski sobre “Atrás das Linhas Inimigas
de Meu Amor”, de Leonard Cohen. Tijucanismos não
só é um livro com muitos livros dentro, mas também
muitas pessoas dentro de uma só. Eduardo é cheio de
gente. E um sistemático incorrigível: organiza tão bem
suas memórias que, ainda que possamos nos perder
na quantidade de nomes da árvore genealógica que
nos apresenta, ele jamais se extravia. Edu — vou me
dar direito ao apelido — seria capaz, agora mesmo,
numa mesa de bar, de falar todo esse preâmbulo sem
consultas. Nenhum sobrenome. Não esquece. Um
sequer. Inclusive contaria, com os mesmos detalhes —
e sempre uma nova informação imperdível —, todas
as histórias que vocês vão ler adiante de maneira tão
[ 9 ]
magnética que não foi difícil perceber, na sua escrita,
os possíveis movimentos do corpo e o rabo de galo na
mão enquanto não chega o chope de perfeito colarinho.
Na esquina de casa a R$ 4,50. Ou no balcão do
Roberto. Roberto é uma dessas pessoas dentro do Edu.
Lugares também moram no Edu. Não o contrário.
Bares, ruas, praças, barbearia (a mesma há mais de 50
anos), clubes, restaurantes, ponto da praia (o mesmo há
mais de 30 anos), cozinhas, casas da família, centros de
macumba, casas dos amigos, um cinema, um aeroporto.
Quando Edu fala da Tijuca é como se descrevesse um
órgão de seu corpo. Edu e a Tijuca cresceram juntos.
E o Rio de Janeiro, o time do Flamengo. Edu existe
num espaço como se descrevesse sua cara. E assim o
livro se faz: Edu contando os dedos das mãos. Mas não
apenas das suas, de todas as pessoas que foram construindo
sua ideia de amor à vida. Nos parágrafos de
cada “causo”, “as tosses, os terços”, todos os sentidos;
o cheiro do Demoseille, ouvir Ebb Tide naquele piano,
comover-se com as sessões de slides, olhar uma foto,
chorar de saudade, querer visitar o Galeão. As mesas
de jantar de sua família, cada silhueta, o sorvete derretendo,
tudo atravessa. A Tijuca passa a ser qualquer
lugar onde se esteja lendo a Tijuca.
Me lembrei de um trecho do livro ‘Prólogos com
um prólogo de prólogos’, em que Borges escreve: “(…)
com o correr do tempo o historiador se transforma em
história (…). Houve épocas em que se liam as páginas
de Plínio em busca de precisões; hoje as lemos atrás
[ 10 ]
de maravilhas (…)”. Isso porque o Edu é esse bairro
e esse livro. E quando o autor se mistura à sua obra
a ponto de não desaparecer, mas ser, de fato, aquilo
que escreve, o leitor acaba por viver a história como
se escrevesse junto, maravilhado, como empunhasse
também em suas mãos aquilo que lê.
Além de muita ironia e palavras que irrompem feito
a passagem do tempo sambando na lama de sapato
branco — “bulha”, “piorra” e estrangeirismos muito
usados até os anos 90, como “peignoir” e “chauffeur” —,
Edu vai nos presenteando com o que há de melhor na
Zona Norte da cidade: Aldir Blanc, Nelson Rodrigues,
Luiz Antonio Simas, o Bar do Momo, o Bar Madrid, o
Bode Cheiroso, o CTI das Almas, a Orquestra Tabajara
de Severino Araújo, e sempre uma bela canção entrecortando
os fatos. O ritmo desse livro, a ginga com
que Edu pontua seus relatos — não a de Zé Eduardo
Agualusa, nem o remo de popa, tampouco a dos engenhos
de açúcar, mas aquela que se aprende caminhando
atento a toda gente, fazendo amigos por toda esquina,
ouvindo sambas debaixo de uma tamarineira —, é a
razão pela qual se dispara da primeira à última página
com a mesma sensação do avanço da bateria quando
eclode no sambódromo do Balança Mas Não cai —
os apitos do mestre de bateria da Mangueira — até a
dispersão na Apoteose; uma vida inteira em 70 minutos
— em cento e poucas páginas — e o sentimento de um
voo. Ligeiro e infinito. Às vezes algumas bolhas nos
pés pra nunca se esquecer o caminho.
[ 11 ]
Conheci o Edu através de minha mãe, Beth Carvalho.
Minha mãe gostava muito dele — e eles, do Brizola —
e frequentava seu antigo bar, Estephanio’s, ali entre
a São Francisco Xavier e a Avenida Maracanã, assim
como outras preciosidades: Délcio Carvalho, Moacyr
Luz, Nelson Sargento, João da Valsa, entre tantos.
Eram irmãos de samba e política. Foi meu primeiro
advogado, aos 19, na minha primeira crise financeira,
quando conheci a insônia. Edu me salvou.
Minha relação com a Tijuca é de amor, completamente.
Fui criada entre a Zona Sul e a Zona Norte; mãe
de Ipanema, pai de Bonsucesso. Mas minha família
materna vivia, em sua maioria, ali pelas bandas da
Barão de Mesquita. Peço licença pra falar um pouco de
mim, mas é porque esse livro fala de mim — na mesma
proporção em que fala de quem o lê, como disse. É
que me sinto mesmo muito honrada de escrever esse
prefácio, se é que podemos dar esse nome ao que eu
chamaria de concentração; a gente de fantasia com
um latão de cerveja na mão, a carteira de identidade
no baixo-ventre, com sorte alguma credencial enfiada
nos sapatos, acreditando na vida como nunca.
Foi assim que ficamos grandes amigos, eu e Edu:
grávidos. Esperando Mia e Leonel. Acreditando na
vida. Como nunca. Tudo culpa da Morena, essa mulher,
minha irmã de barriga. Essa mulher, mais mulher
impossível. Imenso elo, assim como minha mãe — e
não podia ser menos extraordinária —, que nos fez
família, afinal; o que sei é que sempre foi pra ser assim.
[ 12 ]
No velório de minha mãe, tive o súbito desejo de
chamar Edu para dizer algumas palavras. Foi o discurso
mais justo e bonito que aconteceu. Edu nos salvou.
De todas as emoções que esse livro provoca, o nascimento
do Leonel é imbatível. Pra mim, nas páginas e
na vida. Edu mais uma vez me salvou; parindo esses
parágrafos — eternizando seu coração e o modo como
guarda a Tijuca — que mais parecem um irmão pro
seu filho. Pro nosso filho, Leonel. Pros nossos filhos,
Leonel e Mia. Pros filhos de todos nós. Muito obrigada,
Edu. Salve você!
[ 13 ]
[ 14 ]
introdução
nasci em 27 de abril de 1969, no Rio de Janeiro, no
bairro da Tijuca (onde mais?), no Hospital Venerável
Ordem Terceira da Penitência, na rua Conde de Bonfim,
de frente pro morro do Borel. Sou bisneto de Eugenio
Augusto Monteiro de Barros, nascido em 22 de novembro
de 1893, e de quem herdei — embora não o tenha conhecido,
sempre me disseram as mais velhas — a verve
que me caracteriza.
Meu bisavô Eugenio exerceu, durante muitos anos,
o alto cargo de contador da Companhia Nacional de
Navegação Costeira. Foi presidente da então poderosa
União dos Empregados do Comércio do Rio de
Janeiro e deputado federal classista, tendo assinado a
Constituição de 1934. Casou-se em 17 de maio de 1913
(mesmo dia e mesmo mês de nascimento de minha mãe),
[ 15 ]
com Mathilde Veloso, que passou a se chamar Mathilde
Veloso Monteiro de Barros, minha bisavó, minha Bia,
torcedora do Botafogo, com quem convivi até os 13 anos
de idade. Ela, filha de Francisco Veloso, português, e
de Julia Pinheiro Veloso, de família natural de São
João da Barra. Minha bisavó foi a grande matriarca,
a mais-velha das mais-velhas, contadora de histórias
impressionantes e uma figura emblemática.
Meus bisavós moravam na Gávea, num casarão na
Marquês de São Vicente, e depois se mudaram pra Tijuca,
onde também viveram num casarão na rua Gonçalves
Crespo, de pé até hoje, entre as ruas Afonso Pena e
Campos Sales. Nesse casarão, moraram com todos os
filhos, mesmo depois de casados — até que cada um,
devagarzinho, foi picando a mula pra morar noutro lugar
(quase todos na Tijuca). Da casa da Gávea, nem sinal.
Tiveram sete filhos. A primeira, uma menina, Maria
Florinda, que morreu de tétano no dia em que completou
15 anos — a quem, evidentemente, não conheci. O
segundo, Francisco de Paula Monteiro de Barros, meu tio
Chico, que se casou no Rio de Janeiro em 19 de setembro
de 1942 com Noêmia Cardoso Monteiro de Barros,
filha de Francisco Cardoso, do Piauí. Separaram-se a
certa altura, e tio Chico se casou com outra mulher,
em Brasília — eu nunca mais o vi. Tiveram, tio Chico
e tia Noêmia, dois filhos: Eugenio Augusto Miranda
Monteiro de Barros (o mais divertido dos meus tios),
que se casou (e depois se separou) com Sonia Maria
Gonçalves Monteiro de Barros, e Luiz Carlos Monteiro
[ 16 ]
de Barros. Moravam, meu tio Chico e minha tia Noêmia,
num casarão no Engenho de Dentro cujo jardim, na
entrada, tinha uma estátua do Cristo Redentor, da
Branca de Neve e dos sete anões.
Meus bisavós tiveram, ainda, a terceira filha, Carlinda
Maria Monteiro de Barros, minha tia Linda, que se casou
com meu tio Beneval. Tiveram dois filhos: Alexandre
e Maria Vitória, minha madrinha. Moravam na Tijuca,
na rua Afonso Pena, quase na esquina da Martins Pena,
num prédio sem elevadores. O quarto filho foi Silvio
Augusto Monteiro de Barros, meu tio Silvio — ele, um
botafoguense empedernido —, que se casou no Rio de
Janeiro, em 25 de setembro de 1943, com Irene Guerra.
Tiveram, meu tio Silvio e minha tia Irene, uma única
filha, Carmen Silvia Monteiro de Barros, minha tia
Carmen, que se casaria com Pedro Hercos, meu tio
Pedro, o vascaíno mais fanático que já vi. Moravam
no Andaraí.
A quinta filha, minha avó, Mathilde Eugenia Monteiro
de Barros, casou-se com meu avô, Milton Montenegro
Braga (vovô era Flamengo, esteve no Maracanã em
1950 e nunca mais voltou, por força do trauma, ao
maior estádio do mundo). Moravam, quando nasci,
em uma vila na rua Professor Gabizo, na Tijuca, e
depois se mudaram para uma outra vila na rua São
Francisco Xavier, e depois para um apartamento no Lins
de Vasconcelos — onde morreu minha bisavó. Depois
da morte da grande matriarca, voltaram à Tijuca, para
um apartamento na rua General Espírito Santo Cardoso.
[ 17 ]
Tiveram uma única filha, minha mãe, Maria
Florinda Monteiro de Barros Braga. Maria Florinda
Braga Goldenberg depois do casamento com meu
pai, Isaac Goldenberg, filho de um judeu russo fugido
de Odessa, Oizer Goldenberg, e de uma judia, Elisa
Glicklich, quando solteira, Elisa Goldenberg depois
de casada. Minha avó paterna morreu sem aceitar o
casamento de papai com uma não judia. Mamãe, é
importante dizer, ganhou esse nome em homenagem
à filha caçula de meus bisavós, a que morreu de tétano
aos 15 anos. Meu avô paterno era Vasco, como meu pai.
O sexto filho, Carlos Henrique Monteiro de Barros,
meu tio Hique — também torcedor do Botafogo —,
casou-se com a tia Claurita e depois com a tia Francis,
tendo sempre morado na Tijuca. Tio Hique teve dois
filhos do primeiro casamento, Sonia e Julio Cesar, e a
Carla, com a segunda mulher. Tio Hique era da umbanda
e cavalo do caboclo Tupiara, o caboclo que anunciou,
assim que conheceu meu pai, que o velho Isaac viria
a ser cavalo do caboclo Tupinambá. Tupinambá que
apareceu diante do meu pai — é o que se conta, que
meu pai teve uma visão — no dia 26 de abril de 1969 a
fim de avisar que eu chegaria no dia seguinte. O sétimo
e último filho, Pedro Paulo Monteiro de Barros, solteiro.
Quase todos aqui lembrados estão mortos. Mas
vivem, todos eles, sem exceção, dentro de mim.
[ 18 ]
[ 19 ]
de frente
pro crime
(que não foi)
(
saí pra caminhar às seis da manhã. Na esquina
das ruas Lúcio de Mendonça com Moraes e Silva, por
volta das seis e meia, um corpo estendido no chão.
Estaquei diante do cadáver (era evidente tratar-se de
um cadáver) e perguntei ao primeiro que encontrei
pela frente:
— Assalto? — havia uma poça de sangue em volta
da cabeça do pobre-diabo.
— Nada… Caiu, do nada, bateu com a cabeça no
canteiro, morreu na hora… — e fez o sinal de cruz.
Mandei a caminhada e o exercício às favas, que
tijucano não perde furdunço por nada, nem exéquias
ao ar livre.
[ 21 ]
Um sujeito dobrou a esquina, tirou os fones dos
ouvidos e cantarolou a melodia de João Bosco, a letra
de Aldir Blanc:
— Tá lá o corpo estendido no chão… — e estacou,
ele também, diante do morto.
E eu vivi, de fato, um inusitado videoclipe para ‘De
frente pro crime’. Percebam como estou velho, quase
uma múmia, falando em videoclipe em 2021.
O de cujus jazia diante da portaria de um edifício
cujo porteiro assumira ares de repórter — sentia-se
importante naquele cenário, recebia os que se aproximavam
como se fosse o anfitrião de uma capelinha.
De dentro do prédio saiu uma senhorinha — uns
75 anos, fácil — trazendo numa das mãos uma garrafa
térmica, copos plásticos e noutra um prato com diversas
fatias quadradas de bolo de cenoura com cobertura de
chocolate. Saiu oferecendo:
— Gente, tá fresquinho, alguém quer?
O tal sujeito, ainda cantando:
— … baiana pra fazer pastel e um bom churrasco
de gato…
Em questão de minutos pintou um táxi. De dentro
saltou uma menina, coisa de uns 25 anos, em estado
de possessão. Urrava, gania, sapateava como uma
espanhola enfurecida:
— Papai! Papai! — e arremessou-se dramática e
subitamente sobre o corpo.
Houve um uivo coletivo de ohs e ahs naquela esquina.
As palavras voavam como gaivotas de papel: coitada,
[ 22 ]
coitado, mas tão moço, pobrezinha, que Deus o tenha
em bom lugar, descansou… e quando a órfã ouviu o
d-e-s-c-a-n-s-o-u lançou um olhar de ódio em direção
à multidão em volta, sem conseguir identificar de
quem partira o verbo infeliz.
Ainda estava de joelhos, a menina, quando desceu
um casal do mesmo prédio da velha do bolo: ambos
trazendo cadeiras de palhinha. Ele, usando Rider e
meia, disse, formal:
— Você não quer sentar-se um pouco?
A órfã, comovida, assoou-se pressionando o nariz
com o polegar e o indicador da mão esquerda, assentiu
e sentou-se. A velha do bolo atropelou uns membros da
assistência e estendeu o prato em direção à pobrezinha:
— Cenoura com chocolate. Fresquinho. Quer um
café?
A filha única — em menos de 15 minutos tínhamos
a biografia do morto — aceitou.
O que eu sei lhes dizer é que, antes das sete da
manhã, mais ou menos cinqüenta 1 pessoas se aglomeravam
em torno do corpo, a essa altura já cercado por
nove velas acesas e coberto por um caderno do jornal
— do dia — cedido por um transeunte sensibilizado
com o último esgar exposto ao sol.
1 [n.e.]: este livro foi revisado nos parâmetros determinados pelo
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no
Brasil desde 2009. Mantivemos o trema por opção. Trata-se de
uma das muitas obsessões do autor.
[ 23 ]
— … em vez de rosto, uma foto de um gol…
Um grupo cercou o corpo e deu de rezar de mãos
dadas. A filha recebeu um santo e deu de gargalhar.
Pediu cachaça, foram comprar. Antes mesmo de a
garrafa chegar à esquina o santo cantou pra subir, e
a órfã deparou-se com uma moça diante de si, que se
apresentou:
— Sou kardecista. Estava evangelizando o irmão
das trevas que se apossou de seu corpo.
A menina deu um coice, uns cinco ou seis trancos pro
alto e a plateia aplaudiu. A velhota gritou em direção
à varanda de seu apartamento:
— Ô, Cilene! Traz mais café que a coisa vai longe!
O boa-praça:
— quatro horas da manhã baixou o santo na
porta-bandeira…
A solidariedade fez com que chegassem o Corpo de
Bombeiros, uma ambulância do Samu e uma patrulhinha.
Todos alegaram a mesma coisa:
— Só transportamos feridos. Chamem o rabecão!
A menina — a órfã — continuava rodando em torno
do corpo, pisando firme, ritmado, visivelmente tensa.
— Caboclo, só pode ser! — disse um negão com um
bloco de jogo do bicho nas mãos.
Senti um cutucão nas costas.
— Tu não é o Edu? Do blog?
Timidamente, com a timidez agravada por conta
da presença do presunto, fiz que sim com a cabeça. O
sujeito, sem noção:
[ 24 ]
— Pô, deixa eu te dar um abraço aí… — e fui abraçado.
Subiu um evangélico numa das cadeiras de palhinha
e deu de pregar.
O Trilha-Sonora — apelido cunhado na hora:
— um homem subiu na mesa do bar e fez discurso pra
vereador…
A hora passava e eu precisava partir. Me despedi
como se conhecesse aquela gente há anos. Meu tchau
gerou uma evasão em massa. E o cara, sem perder o
tempo:
— sem pressa foi cada um pro seu lado pensando
numa mulher ou num time…
[ 25 ]
sobre o autor
eduardo goldenberg é advogado e escritor.
Manteve no ar por 16 anos o blog ‘Buteco do Edu’. É
autor de ‘Meu lar é o botequim’ (Casa Jorge, 2005) e
‘De hoje não passa’ (Mórula, 2019), escrito a quatro
mãos com Júlio Bernardo. Nasceu na Tijuca e vive lá
até hoje, na praça Afonso Pena, próximo ao CTI das
Almas, com Flávia (a Morena), Leonel e Frida.
foto_francisco proner
1ª edição abril 2021
impressão meta
papel miolo pólen soft 80g/m 2
papel capa cartão supremo 300g/m 2
tipografia tiempos e neato
A galeria de personagens ‘goldenberguianos’
é impagável: Isaac, o pai
obsessivo; Doutor Lauro, o santo da
homeopatia; tia Noêmia; Doutor
Cambuquira; Seu Farias, o mecânico;
o cadáver tijucano; as velhas do edifício;
o Caboclo Tupinambá bradando e
dando flechadas dentro de uma maternidade;
a loura morta que atacava
crianças em banheiros; o menino que
prendeu a piroca no ralo da piscina;
a menina morta no dia do aniversário
de 15 anos... E o mais impressionante
é que esse livro de tantos personagens,
a rigor, só tem mesmo um: Eduardo
Goldenberg, o cavalo de toda a falange
da gira tijucana.
Convivendo com o autor, sou testemunha
de que Aldir Blanc clamava
aos ventos que sopram dos Alpes
Tijucanos por um livro como esse.
Edu, que não é maluco, sabe que a
gente pode até não atender pedido
de gente viva, mas de quem foi oló a
gente atende na hora. E Aldir, evidentemente,
é como o Jesuíno Galo Doido,
personagem de Jorge Amado que
engambela a morte ao virar caboclo
nos candomblés da Bahia para baixar
nos corpos das iaôs mais bonitas.
Aldir — Galo Doido do nosso terreiro
— certamente tá baixando em mendigos,
malandros velhos, cachorros de
praça, malucos, macumbeiros da
Tijuca. E Edu, a cada gole de cerveja
que toma com o cotovelo no balcão,
agora pode dizer ao Blanc, exu catiço
disfarçado em algum pinguço, que
a oferenda já está devidamente feita
e tem nome: Tijucanismos.
LUIZ ANTONIO SIMAS
Da grande árvore genealógica da família de Edu
Goldenberg — que mais parece um ‘Cem anos de
solidão’ tijucano —, saem as hilárias crônicas que
acompanham o autor da infância até o
nascimento de seu filho Leonel (como Brizola,
não como Messi, disse ele uma vez em um samba
na Ouvidor em homenagem ao Aldir). O umbigo
do menino foi plantado na praça Afonso Pena
(!!!), e talvez nada no mundo possa ser mais
tijucano que isso. Tijucanismos é uma ode ao
bairro, um passeio pelas suas ruas e bares, mas
também em memória das pessoas que habitaram
ou habitam esse lugar. O ápice do encontro se
encerra — com porre numa segunda chuvosa,
garçons do bar Madrid sendo servidos pelos
clientes, venda de empadão, livros autografados
pelo Simas — no épico dia da bebedeira do
assalto ao CTI das Almas. Como não se encantar
com a aura mítica de um bar que, depois de
assaltado, passou a ser motivo de inveja de todos
os bares vizinhos? Segredo tijucano narrado por
quem, como dizia o saudoso bardo a quem se
dedicam essas páginas, sabe colocar no mesmo
barco realidade e poesia.
JULIANA MONTEIRO
ISBN 978658646437-5
9 78 6 5 8 6 4 6 4 3 7 5