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Intertextualidade

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MÓDULO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA<br />

Autor: Luiz Carlos Junqueira Maciel/Gilberto Xavier da Silva<br />

Eixo Temático III<br />

A Literatura Brasileira e outras Manifestações Culturais:<br />

INTERTEXTUALIDADE<br />

O presente módulo tem como objetivo geral o reconhecimento e a explicação das relações<br />

intertextuais em diferentes obras da literatura brasileira.<br />

Os objetivos específicos que o módulo procura atingir levam em conta:<br />

• Tópico 31.0: Relacionar as diferentes concepções de autor de fazer literário a contextos<br />

históricos e literários diferentes;<br />

• Tópico 31.3: Comparar concepções de autor e de fazer literário presentes em textos literários<br />

de uma mesma época ou de época diferentes da história da literatura brasileira;<br />

• Tópicos 39.6; 40.6; 41.6; 42.6; 43.6; 44;6; 45.6; 46.6: Reconhecer e explicar relações<br />

intertextuais entre diferentes obras da literatura brasileira; estabelecer relações<br />

intertextuais entre textos literários e produções culturais de outras áreas (cinema,<br />

televisão, rádio, jornal impresso, artes plásticas, música, etc.).<br />

<strong>Intertextualidade</strong><br />

A intertextualidade pode ser entendida como um diálogo entre textos. Segundo Julia<br />

Kristeva, “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absosrção e<br />

transformação de um outro texto” 1 .<br />

exemplo:<br />

Na leitura de um livro, acabamos sempre nos deparando com outros livros. Vejamos um<br />

Depois de algum tempo de conversa, ela me pegou pela mão, me levou para a<br />

varanda, disse venha ver o Cruzeiro que a linda Sofia não quis fitar a pedido de Rubião. É<br />

triste mas é muito bonito o final do Quincas Borba, do Machado de Assis. Você se lembra?<br />

Como esquecer, é um belo romance, dos meus preferidos de Machado, disse eu.<br />

(DOURADO, Autran .Confissões de Narciso. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1997, p.133)<br />

1 KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. p.72.


Se tomarmos o romance Quincas Borba, de Machado de Assis, a todo momento<br />

tropeçaremos em passagens como esta, com referências a outros livros, no caso, às obras de Álvares<br />

de Azevedo, poeta da segunda geração romântica brasileira, e de Shakespeare, poeta e dramaturgo<br />

inglês (1564-1616):<br />

Nessa noite, Rubião sonhou com Sofia e Maria Benedita. Viu-as num grande<br />

terreiro, apenas vestidas de saia, costas inteiramente despidas; o marido de Sofia,<br />

armado de um azorrague de cinco pontas de couro, rematando em bicos de ferro,<br />

castigava-as despiedadamente. Elas gritavam, pediam misericórdia, torciam-se,<br />

alagadas em sangue, as carnes caíam-lhe aos bocados. Agora, por que razão Sofia<br />

era a Imperatriz Eugênia, e Maria Benedita uma aia sua, é o que não sei dizer com<br />

exatidão. ‘São sonhos, sonhos, Penseroso!’ exclamava um personagem do nosso<br />

Álvares de Azevedo. Mas eu prefiro a reflexão do velho Polonius, acabando de ouvir<br />

uma fala tresloucada de Hamlet: ‘ Desvario embora, lá tem o seu método’.<br />

(ASSIS, Machado de. Quincas Borba. 5 ed. São Paulo: Ática, 1982. p. 115)<br />

Os provérbios, os ditos populares sempre são inseridos nos textos, numa forma elementar de<br />

intertextualidade. Em um mesmo dia, em seções diferentes da Folha de S. Paulo, encontramos<br />

quatro provérbios diferentes. Ei-los:<br />

Há uma expressão de que não gosto, mas que é de uso banal e cotidiano: “O<br />

mar não está para peixe.” É a constatação de um tempo adverso.<br />

(Coluna de José Sarney, 11/05/2001)<br />

Zé Cabala, furioso e com o dedo em riste, vociferou:<br />

- Recolha o filhote de equino da perturbação pluviométrica!<br />

Desesperado, o cliente olhou para Gulliver, que traduziu:<br />

- Pode tirar o cavalinho da chuva!<br />

(Coluna de José Roberto Torero, 11/05/2001)<br />

E que nós, jornalistas, comecemos a definir critérios para separar o joio do trigo e<br />

impedir a disseminação dessa praga ( serviço precário da assessoria de imprensa).<br />

(Coluna de Luís Nassif, 11/05/2001)<br />

Como diz a sabedoria popular: aqui se faz, aqui se paga!<br />

(Coluna de Luiz Carlos Mendonça de Barros, 11/05/2001)<br />

No diário de Helena Morley, Minha vida de menina, os provérbios ocorrem com<br />

abundância, como no exemplo abaixo:<br />

Eu ouvia tudo calada. Para encurtar a conversa eu disse: “Não se<br />

incomodem tanto comigo, minhas amigas: lembrem-se do ditado: Casamento e<br />

mortalha no céu se talha.<br />

(MORLEY, Helena. Minha vida de menina. 18ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, l997.)<br />

O procedimento intertextual a partir do provérbio é amplamente usado pelo autor mineiro<br />

Luís Giffoni, em seu romance A árvore dos ossos, como se vê no monólogo interior de uma<br />

personagem:


A esperança é a última que morre. Se demorar muito, a esperança acaba<br />

enterrada pelo desassossego. Entramos num mato sem cachorro. Cova aberta, chuva<br />

incerta. Chuva atrasada, colheita quebrada. Se fugir o bicho pega; se ficar, o bicho<br />

come. O melhor é cavucar sem parar. Quem pára, pensa. Quem pensa, sofre. Quem<br />

gosta de sofrer?<br />

(GIFFONI, Luís. A árvore dos ossos. Belo Horizonte: Pulsar, 1999.)<br />

Silviano Santiago, em seu romance contemporâneo Heranças 2 usa e abusa do expediente<br />

intertextual, principalmente no reaproveitamento de provérbios e expressões populares:<br />

Não agüentava mais. Soltei os cachorros. (p.169)<br />

Não é bom misturar alhos com bugalhos, vida comercial e vida pessoal. (p.176)<br />

Pau que nasce torto, até a cinza é torta – dizia Seu Nestor. (p.210)<br />

Em outras passagens desse romance, as referências intertextuais são mais complexas. Se<br />

você já tiver lido um dos mais importantes romances de José de Alencar, Iracema, há de se recordar<br />

da seguinte passagem:<br />

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.<br />

Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna,<br />

e mais longos que seu talhe de Palmeira.<br />

(ALENCAR, José de. Iracema. 28 ed. São Paulo Ática, 1995. p. 16)<br />

Em Heranças, lemos, na página 162: Além, muito além do prato de sobremesa... Observa-se<br />

que o escritor retomou o texto de Alencar em forma de paródia. Esse termo, paródia, será explicado<br />

mais adiante. Por enquanto estamos mostrando como que a definição dada no início deste módulo<br />

procede, isto é, que todo texto se constrói a partir de outros textos.<br />

Silviano Santiago, também em Heranças, ora retoma Carlos Drummond de Andrade,<br />

apropriando-se de um trecho do conhecido poema “No meio do caminho”: Há sempre uma pedra<br />

no meio do caminho dos amantes apaixonados (p.201); ora faz citações de obras cinematográficas,<br />

como se lê na página 193, em que o autor refere-se ao filme Os pássaros, de Alfred Hitccock: O<br />

ambiente praieiro é propício ao alvoroço dos gigolôs. Assemelham-se aos pássaros do famoso<br />

filme de Hitchcock. Ora ainda o romancista incorpora trechos de canções brasileiras, como se<br />

constata na página 208:<br />

Silvinha Telles lançava nova canção de Antonio Maria. “Suas mãos”. Sucesso absoluto nas<br />

paradas. (...) Denise e eu escutávamos e admirávamos Silvinha Telles ao vivo:<br />

As suas mãos, onde estão?<br />

Onde está o seu carinho?<br />

Onde está você? (p.208)<br />

2 SANTIAGO, Silviano. Heranças. Rio de Janeiro: Rocco, 2008)


Exercício 1:<br />

O provérbio não aparece como base intertextual em que alternativa?<br />

A) O velho caindo morto/ Aladim correu ligeiro/ Tirou-lhe do bolso a lâmpada/ E disse mui<br />

prazenteiro:/Hoje o feitiço virou/ Por cima do feiticeiro.(Patativa do Assaré)<br />

B) As pessoas valem o que vale a afeição da gente, e é daí que mestre Povo tirou aquele<br />

adágio que quem o feio ama bonito lhe parece. (Machado de Assis)<br />

C) O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços<br />

neurastênicos do litoral. (Euclides da Cunha)<br />

D) Daí, sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossa noite, na rebaixa do engenho, deitados<br />

em couros e esteiras – nem se tinha o espaço de lugar onde rede armar. (Guimarães Rosa)<br />

A resposta é a alternativa C, pois o texto não é inspirado em provérbio, embora se tenha<br />

tornada célebre essa frase de Os sertões, de Euclides da Cunha. O trecho de Guimarães Rosa<br />

inspira-se no ditado “À noite todos os gatos são pardos”. Os outros dois, explorados por Patativa<br />

e Machado são muito conhecidos.<br />

A intertextualidade torna-se mais complexa quando parte de textos menos populares, de<br />

autores eruditos, de mitos remotos. Ela pode ser utilizada através de vários procedimentos, como<br />

veremos a seguir.<br />

Citação<br />

texto:<br />

Em sua forma simples, a citação ocorre ao se inserir o título da obra e seu autor no novo<br />

Os grandes livros contribuíram para formar o mundo. A Divina Comédia, de<br />

Dante, por exemplo, foi fundamental para a criação da língua e da nação italianas.<br />

Certos personagens e situações literárias oferecem liberdade na interpretação dos<br />

textos, outros se mostram imutáveis e nos ensinam a aceitar o destino.<br />

(ECO, Umberto. In: Folha de S. Paulo, Caderno “Mais”, 18/02/2001)<br />

Verifica-se também que há citação, quando um determinado autor retoma um trecho de obra<br />

alheia, incorporando-o explicitamente ao seu. Esse expediente evidencia-se, no texto escrito, pelo<br />

uso de marcadores como as aspas: é uma transcrição parcial e literal de um outro texto, como se<br />

pode verificar na seguinte passagem do Hino Nacional Brasileiro:


Do que a terra mais garrida<br />

Teus risonhos lindos campos têm flores<br />

“Nossos bosques têm mais vida”<br />

Nossa vida em teu seio mais amores.<br />

Observe que o verso “Nossos bosques têm mais vida” está entre aspas. Isso porque o autor de<br />

nosso hino o apropriou do poema “Canção do exílio”, do poeta romântico Gonçalves Dias.<br />

A citação pode também ocorrer na abertura de um livro ou texto. A esse tipo de expediente<br />

dá-se o nome de epígrafe. Os contos do escritor mineiro Murilo Rubião são precedidos por textos<br />

bíblicos; tais epígrafes indicam, orientam e tematizam as narrativas, geralmente pontuadas por uma<br />

dimensão trágica, como aponta o texto que introduz os contos reunidos em O convidado:<br />

"Ao sobrevir-lhes de repente a angústia, eles buscarão a paz, e não haverá."<br />

Ezequiel, VII, 25.<br />

(RUBIÃO, Murilo. O convidado. 4 ed. São Paulo: Ática, 2000)<br />

A citação, quando excessiva, pode prejudicar o texto. O romancista Autran Dourado tem<br />

uma visão crítica a esse respeito:<br />

Alusão<br />

Releia os clássicos, ninguém melhor do que os romanos entenderam esta patifaria<br />

que se chama Direito. (...) Se a causa vale pouco, não tem sentido gastar latim. E mais: se<br />

você tem certeza do direito do seu constituinte, seja claro, curto, limpo e objetivo. Se há<br />

alguma dúvida, use o mais possível as citações, Chiovenda, von Jhering, Planiel, Gurvich,<br />

Jellinek e Kelsen, são apropriados. Nossos juízes, embora não os leiam, adoram. Gaste o<br />

latim, de que eles não entendem patavina. Em larga escala se o juiz for burro e ignorante.<br />

Caso contrário, sobretudo se o juiz for culto e inteligente, o que é raríssimo, seja moderado.<br />

Se lembre: inteligente pouca, o que em vernáculo quer mais ou menos dizer: "ao inteligente<br />

poucas palavras (bastam)". (...) O latim e os tratadistas servem mais, além de confundir, é<br />

para aumentar os honorários.<br />

(DOURADO, Autran. Confissões de Narciso. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1997, p.33.)<br />

A alusão é uma forma indireta, incompleta ou subentendida de citação: a referência ao<br />

autor ou texto alheio é feita sutilmente.<br />

Veja, por exemplo, ao longo do romance de Cyro dos Anjos, O amanuense Belmiro 3 , as<br />

alusões à obra Don Quixote, de Miguel de Cervantes:<br />

Amigo Quixote, todos os cavaleiros andantes já se recolheram e não há mais<br />

dulcinéias. (p.38)<br />

É, afinal, um excelente moço e nenhuma culpa tem de não me ter sido útil na<br />

aventura em que muito me aproximei do herói manchego. (p.66)<br />

3 ANJOS, Cyro dos. O amanuense Belmiro. 8 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.


Paráfrase<br />

E o Cavaleiro da Triste Figura se pôs em marcha, pela sua Dulcinéia.(p.124)<br />

A paráfrase é uma espécie de interpretação de um texto com palavras próprias,mantido<br />

o pensamento original; ou, ainda, uma intertextualidade que assinala uma semelhança entre o<br />

texto original e o derivado, levando em conta que a diferença, se houver, não é substancial,<br />

mas constitui uma "adaptação" do original.<br />

Veja um exemplo de Cyro dos Anjos, em seu citado romance, onde faz a seguinte<br />

paráfrase de Shakespeare:<br />

Algum político importante deve estar a chegar. Ah! É verdade, o chefe da<br />

Seção pediu-me que comparecesse ao desembarque do Ministro. Ir, ou não ir, eis a<br />

questão. (p.105)<br />

Fernando Sabino, em Amor de Capitu, faz paráfrase de Dom Casmurro, de Machado de<br />

Assis. Se o original é narrado na primeira pessoa, Sabino transformou o relato com o foco narrativo<br />

na terceira pessoa. Vamos propor uma questão sobre dois trechos dessas obras:<br />

Texto 1<br />

Exercício 2:<br />

Tão logo viu José Dias desaparecer no corredor, Bento deixou o esconderijo e correu até a<br />

varanda do fundo. Não quis saber das lágrimas da mãe, por conta da promessa que ela fizera<br />

dezesseis anos antes, quando ele fora concebido.<br />

Texto 2:<br />

Tão depressa vi desaparecer o agregado José Dias no corredor, deixei o esconderijo, e corri à<br />

varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem das causas que as fazia verter a minha mãe. A<br />

causa eram provavelmente os seus projetos eclesiásticos, e a ocasião destes é a que vou dizer, por<br />

ser já então história velha; datava de dezesseis anos.<br />

Com base nos textos, assinale a afirmação INCORRETA:<br />

A) O texto 1 pertence à recriação de Fernando Sabino e o texto 2 é o original de Machado de Assis.<br />

B) O texto 1, ao omitir a condição de agregado de José Dias, altera profundamente o foco narrativo<br />

do romance.<br />

C) O texto 2 faz referência aos "projetos eclesiásticos" de Dona Glória, isto é, à sua intenção de ver<br />

seu filho padre.<br />

D) De modo geral, o texto recriado por Fernando Sabino busca simplificar a linguagem de<br />

Machado de Assis.


A resposta a ser assinalada é a opção B, pois em nada altera o foco narrativo da obra o fato<br />

de, nesse trecho, não haver referência à condição de José Dias como agregado. Em outros pontos<br />

de sua narrativa, Sabino explicita isso.<br />

Paródia<br />

Tradicionalmente, a paródia é definida como um escrito que imita uma obra literária, de<br />

forma crítica. É um texto que subverte a mensagem do texto que o inspirou.<br />

Leia o texto de Millôr Fernandes, cujo título já indica a intenção paródica: “Que o Manuel<br />

Bandeira me perdoe, mas... vou-me embora de Pasárgada”, uma vez que o original é “Vou-me<br />

embora pra Pasárgada” (grifo nosso).<br />

Vou-me embora de Pasárgada<br />

Sou inimigo do rei<br />

Não tenho nada que quero<br />

Não tenho e nunca terei<br />

Vou-me embora de Pasárgada<br />

Aqui eu não sou feliz<br />

A existência é tão dura<br />

As elites tão senis<br />

Que Joana, a louca da Espanha<br />

Ainda é mais coerente<br />

Do que os donos do país.<br />

A gente só faz ginástica<br />

Nos velhos trens da central<br />

Se quer comer todo dia<br />

A polícia baixa o pau<br />

E como já estou cansado<br />

Sem esperança num país<br />

Em que tudo nos revolta<br />

Já comprei ida sem volta<br />

Pra outro qualquer lugar<br />

Aqui não quero ficar.<br />

Vou-me embora de Pasárgada.<br />

Pasárgada já não tem nada<br />

Nem mesmo recordação<br />

Nem a fome e a doença<br />

Impedem a concepção<br />

Telefone não telefona<br />

A droga é falsificada<br />

E prostitutas aidéticas<br />

Se fingem de namoradas.<br />

E se hoje acordei alegre<br />

Não pensem que vou ficar<br />

Nosso presente já era


Nosso passado já foi.<br />

Dou boiada pra ir embora<br />

Pra ficar só dou um boi<br />

Sou inimigo do rei<br />

Não tenho nada na vida<br />

Não tenho e nunca terei<br />

Vou-me embora de Pasárgada.<br />

(FERNANDES, Millôr. In: Jornal do Brasil, 18-3-2001)<br />

A paródia da oração “Pai Nosso” foi utilizada num anúncio veiculado na imprensa:<br />

SÓ O ROCK'N'ROLL SALVA<br />

Elvis Presley que estais no Céu,<br />

Muito escutado seja Bill Haley,<br />

Venha a nós o Chuck Berry,<br />

Seja feito barulho á vontade,<br />

Assim como Hendrix, Sex Pistols e Rolling Stones.<br />

Rock and roll que a cada dia nos melhora,<br />

Escutai sempre Clapton e Neil Young,<br />

Assim como Pink Floyd e David Bowie,<br />

Muddy Waters e The Monkees.<br />

E não deixeis cair o volume do som<br />

102,1 de estação.<br />

Mas livrai-nos do Axé<br />

Amém!<br />

(fanáticos, uni-vos! KISS, 102,1 FM)<br />

(In: Folha de S. Paulo : 13 de Novembro de 2005)<br />

Pelos exemplos dados anteriormente, podemos perceber que a paráfrase posiciona-se ao<br />

lado da ideologia dominante, é uma continuidade. A paródia caminha para o lado das diferenças. A<br />

paráfrase caminha para o lado da condensação, para as semelhanças. Desse modo, a paródia<br />

apresenta-se como um efeito centrífugo, descentralizador, enquanto a paráfrase apresenta-se como<br />

um efeito centrípeto, centralizador, uma vez que retoma o processo de construção do texto<br />

apropriado, mantendo a sua ideologia, os seus efeitos de sentido.<br />

Próxima da paráfrase, numa primeira leitura, estaria a tradução. Antes da intertextualidade<br />

ser referendada como conceito crítico operatório, o tradutor era considerado mero transcodificador<br />

de línguas. Recentemente, a atividade de tradução ganhou novos contornos, sendo também vista<br />

como uma forma intertextual, quase como seu sinônimo.


Pastiche<br />

Apresentando elementos próximos e ao mesmo tempo distantes da paródia, encontra-se o<br />

pastiche, que muitos, equivocadamente, vêem como seu sinônimo. É certo que tanto paródia quanto<br />

pastiche envolvem imitação. Entretanto, o pastiche associa-se à imitação de um estilo, ou à<br />

apropriação de um gênero sem, com isso, necessariamente, querer criticá-lo.<br />

Contemporaneamente, o pastiche pode ser visto como uma espécie de colagem ou<br />

montagem, tornando-se uma paródia em série ou colcha de retalhos de vários textos.<br />

A Bíblia tem servido de modelo para vários pastiches. Machado de Assis, em seu conto "O<br />

cônego ou a metafísica do estilo", faz um pastiche:<br />

"Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano, vem... As mandrágoras deram o seu<br />

cheiro. Temos às nossas portas toda a casta de pombos...”<br />

"Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhe façais<br />

saber que estou enferma de amor....”<br />

Era assim, com essa melodia do velho drama de Judá, que procuravam um ao outro<br />

na cabeça do cônego Matias um substantivo e um adjetivo...Não me interrompas,<br />

leitor precipitado.(...)<br />

Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou Sílvia. Viram-se, caíram nos braços<br />

um do outro, ofegantes de canseira, mas remidos com a paga. Unem-se, entrelaçam<br />

os braços, e regressam palpitando da inconsciência para a consciência. "Quem é<br />

esta que sobe do deserto, firmada sobre o seu amado?" pergunta Sílvio, como no<br />

Cântico; e ela, com a mesma lábia erudita, responde-lhe que "é o selo do seu<br />

coração", e que "o amor é tão valente como a própria morte.”<br />

(ASSIS, Machado de. "Várias histórias" In: Obra completa. V.II. Rio de Janeiro: Aguilar, l959)<br />

Observe como uma crônica publicada no jornal Folha de S. Paulo, Carlos Heitor Cony faz<br />

pastiche de Guimarães Rosa, particularmente do estilo da narrativa de Grande sertão: veredas:<br />

Pois é. Tenho dito. Tudo aleivosia que abunda nesses cercados.<br />

Maisquenada. Foi assim mesmo, eu juro, Cumpadre Quemnheném não me<br />

deixa mentir e mesmo que deixasse, eu mentia. Lorotas! Porralouca no<br />

juízo dos povos além das Gerais! Menina Mágua Loura deu? Não deu.(...)<br />

Compadre Quemnheném é que sabia, sabença geral e nunca<br />

conferida, por quem? Desculpe o arroto, mas tou de arofagia, que o doutor<br />

não cuidou no devido. Mágua Loura era a virge mais pulcra das Gerais.<br />

Como a Santa Mãe de Deus, Senhora dos Rosários, rogai por nós! (...)<br />

(Carlos Heitor Cony, Folha de S. Paulo, 11-09- 1998)<br />

Um curioso exemplo de pastiche, que impressionará quem gosta de futebol, foi feito pelo<br />

escritor José RobertoTorero, numa crônica sobre o campeonato brasileiro da série B, em 2006,<br />

comentando o empate entre Portuguesa e Atlético MG. O autor recorre ao estilo dos folhetins de<br />

faroeste e designa os clubes como se fossem pistoleiros do velho oeste americano:


(...) Um curioso duelo aconteceu entre Jesse Bacalhau e Rob Gallo.<br />

Jesse era o lanterna, e Rob, o líder. Mas foi Jesse, conhecido como o mais<br />

azarado os caubóis, quem acertou o primeiro tiro.<br />

As coisas pareciam estar mudando para ele. Pareciam. Apenas<br />

pareciam. Pois Rob Gallo, depois de disparar vários tiros que rasparam em<br />

seu oponente (um até arrancou o lápis que estava atrás da orelha de Jesse),<br />

mandou uma bala em endereço certo e deixou tudo igual.<br />

Por conta do empate, Gallo não é mais o líder da tabela. Mas ainda<br />

está em segundo, com 58 pontos, cinco à frente de Paul T. Guar, o caubói<br />

que só usa vermelho. Quanto ao simpático Jesse Bacalhau, continua em<br />

último. Se o campeonato acabasse hoje ele seria rebaixado junto com<br />

Django Villa Nueva, o índio Guarani e Sam Raymond.<br />

(...) Sim, porque não se pode piscar em Série B Village. Aqui é matar<br />

ou morrer.<br />

(TORERO, José Roberto . Folha de S. Paulo, 2 de novembro de 2006)<br />

O pastiche, no mundo atual, em que a inovação estilística não é mais possível, tudo o que<br />

restou é imitar os estilos mortos, falar através das máscaras e com as vozes dos estilos do museu<br />

imaginário. Como um curioso exemplo desse processo, o crítico americano Frederic Jameson<br />

analisa a saga de Guerra nas estrelas, de George Lucas, como um filme de nostalgia 4 . Guerra nas<br />

estrelas não é um filme histórico sobre nosso próprio passado intergalático. Uma das experiências<br />

culturais mais importantes para as gerações entre os anos 1930 a 1950 era o seriado vesperal de<br />

sábado à maneira de Buck Rogers – vilões de mundos desconhecidos, verdadeiros heróis<br />

americanos, heroínas em apuros e as cenas de suspense à beira do abismo, no instante final, cujo<br />

miraculoso desenlace haveria de ser visto no sábado seguinte.<br />

Nessa perspectiva, Guerra nas estrelas reinventa esta experiência sob forma de pastiche,<br />

isto é, não mais existe qualquer motivação para uma paródia de tais seriados, pois eles acabaram há<br />

muito tempo. O filme, ao contrário de uma crítica banal dessas formas já mortas, satisfaz um anseio<br />

profundo (talvez dissesse mesmo reprimido) de vivê-las novamente: é um objeto complexo através<br />

do qual, em um plano primeiro, crianças e adolescentes podem deliciar-se plenamente das<br />

aventuras, enquanto o público adulto pode matar um desejo mais profundo e propriamente<br />

nostálgico de retornar àquele período antigo, de viver uma vez mais suas estranhas engenhocas<br />

estéticas do passado.<br />

Assim, essa série produzida por George Lucas não se constitui numa paródia ou mesmo<br />

numa sátira. A sátira não deve ser entendida como um processo ou um gênero intertextual, uma vez<br />

que ela não se relaciona diretamente com outros textos: sua fonte é a sociedade. Entretanto, o<br />

satirizador pode se inspirar num texto para a realização de suas críticas sociais, como pôde ser visto<br />

anteriormente em “Vou-me embora de Pasárgada”, de Millôr Fernandes.<br />

4 JAMESON, Frederic. “O pós-modernismo e a sociedade de consumo”. In: KAPLAN, Anne E. O mal-estar no pósmodernismo.<br />

Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. ( p. 25-44)


A sátira apresenta um efeito moralizante, denunciando os vícios e os defeitos sociais,<br />

revelando, nessa medida, uma certa tendência conservadora de proteger a sociedade, indignando-<br />

se com os vícios que a corrompem, através de sua ridicularização. O discurso satírico é<br />

moralista: carrega-se de uma ideologia para eliminar outra ideologia. E essa atitude contra-<br />

ideológica faz confundir sátira e paródia.<br />

O motivo da paródia liga-se a um outro texto discursivo, o da sátira liga-se ao tecido social,<br />

uma vez que ela se revela como uma manifestação que tem como referente o mundo, a sociedade.<br />

Seu objetivo é moral: ridiculariza para aperfeiçoar. Entretanto, como vimos, a sátira usa, não raro,<br />

formas de arte paródicas, para atingir o seu fim. A paródia pode manter relações com a sátira, mas<br />

mantém-se distinta dela. O que se observa é que sátira e paródia são gêneros que vêm sendo<br />

utilizados concomitantemente. Tanto um como outro implicam distanciamento crítico e, logo,<br />

julgamento de valor. Todavia, a sátira utiliza geralmente essa distância para fazer uma afirmação<br />

negativa acerca daquilo que é satirizado: distorcendo, depreciando, ferindo.<br />

Na paródia, no entanto, verifica-se não haver, necessariamente, um julgamento negativo<br />

sugerido no contraste irônico dos textos. Como exemplo, leia o seguinte poema de Adélia Prado,<br />

intitulado “Com licença poética”:<br />

Quando nasci um anjo esbelto,<br />

desses que tocam trombeta, anunciou:<br />

vai carregar bandeira.<br />

Cargo muito pesado pra mulher,<br />

esta espécie ainda envergonhada.<br />

Aceito os subterfúgios que me cabem,<br />

sem precisar mentir.<br />

Não sou tão feia que não possa casar,<br />

acho o Rio de Janeiro uma beleza e<br />

ora sim, ora não, creio em parto sem dor.<br />

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.<br />

Inauguro linhagens, fundo reinos<br />

- dor não é amargura.<br />

Minha tristeza não tem pedigree,<br />

já a minha vontade da alegria,<br />

sua raiz vai ao meu mil avô.<br />

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.<br />

Mulher é desdobrável. Eu sou.<br />

Observe que já a partir do título a autora posiciona-se de modo respeitoso ao texto por ela<br />

apropriado. O poema não revela uma postura de desacato ao texto de Carlos Drummond de<br />

Andrade, “Poema das sete faces”, que assim se inicia:


Quando nasci, um anjo torto<br />

desses que vivem na sombra<br />

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.<br />

Normalmente, a paródia é entendida apenas como uma oposição sistemática ao modelo<br />

apropriado. Entretanto, o prefixo “para” também significa “ao longo de”, sugerindo um grau de<br />

intimidade entre o texto parodiado e o texto original.<br />

Apropriação<br />

A apropriação às vezes é confundida com o plágio (que não é um procedimento intertextual,<br />

mas simplesmente um furto), a apropriação é um tipo de citação deslocada para um contexto<br />

estranho e até impertinente. Pode ser vista como forma radical da paródia (pois se aproxima mais<br />

desta do que da paráfrase) ou como forma de citação descontextualizada.<br />

Esse tipo de procedimento foi feito por Oswald de Andrade, em Pau-Brasil, na série de<br />

poemas sobre a "História do Brasil". Abaixo, dois exemplos extraídos do poema "Pero Vaz<br />

Caminha", para onde trechos da famosa carta foram deslocados:<br />

os selvagens<br />

Mostraram-lhes uma galinha<br />

Quase haviam medo dela<br />

E não queriam por a mão<br />

E depois a tomaram como espantados<br />

as meninas da gare<br />

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis<br />

Com cabelos mui pretos pelas espáduas<br />

E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas<br />

Que de nós as muito bem olharmos<br />

Não tínhamos nenhuma vergonha<br />

(ANDRADE, Oswald. Poesias reunidas. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. p.18)<br />

A técnica da montagem ou colagem, uma das formas de apropriação, foi explorada por<br />

Rubem Braga na crônica "Entrevista com Machado de Assis", em que o cronista simula um bate-<br />

papo com o criador de Brás Cubas. A crônica é estruturada com frases extraídas de livros<br />

machadianos, com destaque do romance Memórias póstumas de Brás Cubas. Vejamos um trecho:<br />

-Que tal acha o nome da Capital de Minas?<br />

- "Eu, se fosse de Minas, mudava-lhe a denominação. Belo Horizonte parece<br />

antes uma exclamação que um nome.”<br />

- E a respeito da ingratidão?<br />

- "Não te irrites se te pagarem mal um benefício; antes cair das nuvens que<br />

de um terceiro andar.”


- E a imprensa de escândalo?<br />

- "O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado.”<br />

(...)<br />

- Pode me dar uma boa definição de amor?<br />

- "A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada.”<br />

(...)<br />

- O amor dura muito?<br />

- "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada<br />

menos.”<br />

(...)<br />

- E os filhos?<br />

- "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa<br />

miséria.”<br />

- Muito obrigado, o senhor é muito franco em suas respostas.<br />

- "A franqueza é a primeira virtude de um defunto.”<br />

(BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. São Paulo: Círculo do Livro, [s/d]. p. 294)<br />

De forma similar, Luís Fernando Veríssimo construiu com a apropriação de vários<br />

provérbios, um conto ou uma crônica, recheada de humor e ironia:<br />

Incidente na casa do Ferreiro<br />

Pela janela vê-se uma floresta com macacos. Cada um no seu galho. Dois ou três olham o<br />

rabo do vizinho, mas a maioria cuida do seu. Há também um estranho moinho, movido por águas<br />

passadas. Pelo mato, aparentemente perdido — não tem cachorro — passa Maomé a caminho da<br />

montanha, para evitar um terremoto. Dentro da casa, o filho do enforcado e o ferreiro tomam chá.<br />

Ferreiro — Nem só de pão vive o homem.<br />

Filho do enforcado — Comigo é pão, pão, queijo, queijo.<br />

Ferreiro — Um sanduíche! Você está com a faca e o queijo na mão. Cuidado.<br />

Filho do enforcado — Por quê?<br />

Ferreiro — É uma faca de dois gumes.<br />

(Entra o cego).<br />

Cego — Eu não quero ver! Eu não quero ver!<br />

Ferreiro — Tirem esse cego daqui!<br />

(Entra o guarda com o mentiroso).<br />

Guarda (ofegante) — Peguei o mentiroso, mas o coxo fugiu.<br />

Cego — Eu não quero ver!<br />

(Entra o vendedor de pombas com uma pomba na mão e duas voando).<br />

Filho do enforcado (interessado) — Quanto cada pomba?<br />

Vendedor de pombas — Esta na mão é 50. As duas voando eu faço por 60 o par.<br />

Cego (caminhando na direção do vendedor de pombas) — Não me mostra que eu não quero ver.<br />

(O cego se choca com o vendedor de pombas, que larga a pomba que tinha na mão. Agora são três<br />

pombas voando sob o telhado de vidro da casa).<br />

Ferreiro — Esse cego está cada vez pior!<br />

Guarda — Eu vou atrás do coxo. Cuidem do mentiroso por mim. Amarrem com uma corda.<br />

Filho do enforcado (com raiva) — Na minha casa você não diria isso! (O guarda fica confuso, mas<br />

resolve não responder. Sai pela porta e volta em seguida).<br />

Guarda (para o ferreiro) — Tem um pobre aí fora que quer falar com você. Algo sobre uma<br />

esmola muito grande. Parece desconfiado.<br />

Ferreiro — É a história. Quem dá aos pobres empresta a Deus, mas acho que exagerei.


(Entra o pobre).<br />

Pobre (para o ferreiro) — Olha aqui, doutor. Essa esmola que o senhor me deu. O que é que o<br />

senhor está querendo? Não sei não. Dá para desconfiar...<br />

Ferreiro — Está bem. Deixa a esmola e pega uma pomba.<br />

Cego — Essa eu nem quero ver...<br />

(Entra o mercador).<br />

Ferreiro (para o mercador) — Foi bom você chegar. Me ajuda a amarrar o mentiroso com uma...<br />

(Olha para o filho do enforcado). A amarrar o mentiroso.<br />

Mercador (com a mão atrás da orelha) — Hein?<br />

Cego — Eu não quero ver!<br />

Mercador — O quê?<br />

Pobre — Consegui! Peguei uma pomba!<br />

Cego — Não me mostra.<br />

Mercador — Como?<br />

Pobre — Agora é só arranjar um espeto de ferro que eu faço um galeto.<br />

Mercador — Hein?<br />

Ferreiro (perdendo a paciência) — Me dêem uma corda.<br />

(O filho do enforcado vai embora, furioso).<br />

Pobre (para o ferreiro) — Me arranja um espeto de ferro?<br />

Ferreiro — Nesta casa só tem espeto de pau.<br />

(Uma pedra fura o telhado de vidro, obviamente atirada pelo filho do enforcado, e pega na perna<br />

do mentiroso. O mentiroso sai mancando pela porta enquanto as duas pombas voam pelo buraco<br />

no telhado).<br />

Mentiroso (antes de sair) — Agora quero ver aquele guarda me pegar!<br />

(Entra o último, de tapa-olho, pela porta de trás).<br />

Ferreiro — Como é que você entrou aqui?<br />

Último — Arrombei a porta.<br />

Ferreiro — Vou ter que arranjar uma tranca.<br />

De pau, claro.<br />

Último — Vim avisar que já é verão.<br />

Vi não uma, mas duas andorinhas voando aí fora.<br />

Mercador — Hein?<br />

Ferreiro — Não era andorinha, era pomba. E das baratas.<br />

Pobre (para o último) — Ei, você aí de um olho só...<br />

Cego (prostrando-se ao chão por engano na frente do mercador) - Meu rei.<br />

Mercador — O quê?<br />

Ferreiro — Chega! Chega! Todos para fora!<br />

A porta da rua é serventia da casa!<br />

(Todos se precipitam para a porta, menos o cego, que vai de encontro à parede. Mas o último<br />

protesta).<br />

Último — Parem! Eu serei o primeiro.<br />

(Todos saem com o último na frente. O cego vai atrás).<br />

Cego — Meu rei! Meu rei!<br />

(In: O gigolô das palavras. Porto Alegre: L&PM Editores, 1982. p. 37-39)<br />

Exercício 3:<br />

Que tipo de procedimento intertextual foi utilizado no seguinte texto:<br />

COMO SERIA A HISTÓRIA DE CHAPEUZINHO VERMELHO NA MÍDIA ATUAL?


JORNAL NACIONAL<br />

(William Bonner): Boa noite. Uma menina chegou a ser devorada por um lobo na noite de ontem.<br />

(Fátima Bernardes): mas a atuação de um caçador evitou uma tragédia.<br />

FANTÁSTICO<br />

(Glória Maria): Que gracinha, gente! Vocês não vão acreditar, mas essa menina linda aqui foi<br />

retirada viva da barriga de um lobo. Não é mesmo querida?<br />

CIDADE ALERTA (Datena): Onde é que a gente vai parar, cadê as autoridades? A menina ia para<br />

a casa da avozinha a pé! Não tem transporte público! E foi devorada viva. Põe na tela! Tem um<br />

"link" para a floresta, diretor?<br />

CLÁUDIA<br />

Como chegar à casa da vovozinha sem se deixar enganar pelos lobos no caminho.<br />

O ESTADO DE S. PAULO<br />

Fontes confirmam que Lobo que devorou Chapeuzinho seria filiado ao PT.<br />

VEJA<br />

EXCLUSIVO! Ações do Lobo eram patrocinadas pelo governo LULA e o PT.<br />

Páginas Amarelas VEJA:<br />

"Está claro que houve tentativas de quebra de sigilo bancário da Chapéu por parte de Dilma e Tasso<br />

Genro. Eles têm que cair. " Arthur Virgílio<br />

ESTADO DE MINAS<br />

Chapeuzinho come o lobo enquanto o lenhador vai pra floresta com a vovó.<br />

ZERO HORA<br />

Avó de Chapeuzinho nasceu no RS.<br />

AGORA<br />

Sangue e tragédia na casa da vovó.<br />

CARAS<br />

Chapeuzinho fala a CARAS: - “Até ser devorada, eu não dava valor para muitas coisas da vida.<br />

Hoje sou outra pessoa”.<br />

ISTOÉ<br />

Gravações revelam que lobo foi assessor de influente político de Brasília.<br />

O FUXICO<br />

A toca do Lobo era na mata atrás da casa do Marcos Valério.<br />

EXAME<br />

Por que o atual modelo estatal favorece os negócios com lobos.<br />

ÉPOCA<br />

Exclusivo: Caixa do PT financiou atividades do lobo.<br />

(Fonte: www.midianarede.com.br)<br />

A estrutura desse texto é construída, basicamente, pela apropriação dos estilos de linguagem


de vários veículos midiáticos. Desse modo, observa-se a utilização do pastiche. Ao mesmo tempo, o<br />

texto satiriza e critica, de forma caricatural, a imparcialidade, a afetação e o sensacionalismo de<br />

certos órgãos da mídia.<br />

Exercício 4:<br />

APROPRIAÇÃO INDÉBITA<br />

Minha terra tem palmeiras,<br />

Eu não sabia de nada;<br />

As aves que aqui gorjeiam,<br />

Eu não sabia de nada.<br />

Nosso céu tem mais estrelas,<br />

A gente não tinha escolha,<br />

Nossos bosques têm mais vida,<br />

A gente não tinha escolha.<br />

Em cismar, sozinho, à noite,<br />

Era pegar ou largar;<br />

Minha terra tem palmeiras,<br />

Eu não sabia de nada.<br />

Minha terra tem primores,<br />

A gente não tinha escolha;<br />

Em cismar - sozinho, à noite -<br />

Era pegar ou largar;<br />

Minha terra tem palmeiras,<br />

Eu não sabia de nada.<br />

(André Vallias, Suplemento literário de Minas Gerais, n.1283, Belo Horizonte, Outubro de 2005)<br />

Com base no poema, pode-se afirmar que a intertextualidade:<br />

A) efetiva-se através de uma paráfrase da composição romântica de Gonçalves Dias.<br />

B) manifesta-se como paródia da “Canção do exílio”.<br />

C) preserva as mesmas rimas utilizadas no texto original.<br />

D) desdenha a estrutura reiterativa presente no poema tradicional.<br />

A resposta correta está na opção B: o poema mescla frases coloquiais aos versos originais, que<br />

são desfigurados, configurando o expediente da paródia da famosa composição romântica de Gonçalves<br />

Dias, que se caracteriza por ter uma estrutura repetitiva e explorar rimas, o que não ocorre no texto de<br />

André Vallias.


Exercício 5:<br />

As passagens transcritas apresentam um mesmo procedimento intertextual, EXCETO:<br />

A) Ilmo.Sr.Diretor do Imposto de Renda:<br />

antes de tudo devo declarar que<br />

já estou, parceladamente, à venda.<br />

não sou rico nem pobre, como o Brasil,<br />

que também precisa de boa parte<br />

do meu dinheirinho.<br />

Pago imposto de renda na fonte e no pelourinho.<br />

murchei em colégio interno durante seis anos<br />

mas não cheguei ao fim de nada,<br />

a não ser dos meus enganos.<br />

(Paulo Mendes Campos)<br />

B) Minha terra tem palmares<br />

Onde gorjeia o mar<br />

Os passarinhos daqui<br />

Não cantam como os de lá.<br />

(Oswald de Andrade)<br />

C) Quando eu nasci um anjo esbelto<br />

desses que tocam trombeta, anunciou:<br />

vai carregar bandeira,<br />

cargo muito pesado pra mulher,<br />

esta espécie ainda envergonhada.<br />

(Adélia Prado)<br />

D) Minha terra tem palmeiras<br />

onde canta o tico-tico<br />

enquanto isso o sabiá<br />

vive comendo o meu fubá.<br />

Ficou moderno o Brasil<br />

ficou moderno o milagre:<br />

a água já não vira vinho,<br />

vira direto vinagre.<br />

(Cacaso)<br />

As passagens exploram o procedimento da paródia, com exceção do texto de Paulo Mendes<br />

Campos que recorre ao expediente do pastiche, criando um poema a partir da imitação de um<br />

registro oficial. Oswald de Andrade e Cacaso retomam o texto de Gonçalves Dias, enquanto Adélia<br />

Prado parodia o início do “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade (“Quando nasci,<br />

um anjo torto,/ desses que andam na sombra/ disse: - vai, Carlos, ser gauche na vida”.)<br />

Um leitor, ao tornar-se escritor, põe em seu texto a memória de suas leituras. É o que faz o<br />

cronista Luís Giffoni, no seguinte texto:


UM LEITOR<br />

Detesto largar a leitura de um livro pelo meio, em respeito ao autor e ao livro em si, mas<br />

existem obras tão mal escritas ou superficiais que nada me acrescentariam se avançasse até o fim.<br />

Com o coração partido, lego-as à estante, uma tumba digna, ao lado de companheiros ilustres com<br />

quem partilhei horas agradáveis.<br />

Cada vez mais prefiro romances, contos e poemas que reflitam sobre a condição humana. A<br />

literatura de entretenimento puro, do tipo best-seller de ação, de mensagens esotéricas ou de<br />

humor escrachado, atual mania nacional, não me atrai.<br />

Alguns dos livros que mais amei também os deixei na estante, saboreados letra a letra,<br />

como se pudesse estendê-los para sempre, a própria história encarregada de reinventar-se. De tão<br />

bons, faltava coragem ou sobrava tristeza para chegar à última página. Assim aconteceu, no início<br />

da adolescência, com o “Encontro Marcado”, de Fernando Sabino. Mais tarde, o prazer adiado se<br />

repetiu com “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann. Se não se entende nem a cabeça dos<br />

autores, como se compreenderá a idiossincrasia dos leitores?<br />

Por outro lado, há aqueles livros que, sem perceber, já os estou relendo. O raciocínio anda<br />

preguiçoso? Socorro-me em “Ficções” ou “O Aleph”, de Jorge Luis Borges. Julguei impossível,<br />

durante a escrita de um romance, mergulhar mais fundo na alma? Valho-me dos “Ensaios”, de<br />

Montaigne. Ando tachando a humanidade de mesquinha? Salvo-a em Shakespeare. Estou de mau<br />

humor? Recupero-o com Machado de Assis. Busco uma síntese de nossos vícios e virtudes? Volto à<br />

Bíblia. Comicha-me o ufanismo pelas conquistas modernas? Recorro a “Prometeu Acorrentado”,<br />

de Ésquilo.<br />

Os livros me emprestam muletas, me curam, me divertem, me emocionam, me inspiram. Em<br />

poucas horas de convívio com um deles, absorvo a experiência de uma vida inteira- ou de toda uma<br />

época. Ou descubro uma vez mais como somos todos humanos, uma obviedade que, hoje mais que<br />

nunca, as fábricas de mitos tendem apagar. Ou comprovo que na fragilidade e finitude mora nossa<br />

capacidade de avançar. Ou supro minha dose mínima diária de fantasia – ou de realidade. Ou<br />

desenvolvo meu senso crítico, aumentando as chances de sobreviver aos engodos do dia-a-dia. Ou<br />

chovo no molhado, o que às vezes é importante.<br />

Os livros descortinam veredas, mas cabe ao leitor escolher a trilha que tomará. Se ele gosta<br />

de best-seller, siga em frente, envolva-se com Sidney Sheldon e Paulo Coelho. Se quer algo bem<br />

mais requintado, tome Guimarães Rosa, Calvino, Faulkner ou Murilo Rubião.<br />

Enquanto o cinema e a televisão ativam poucas áreas do cérebro, a leitura exercita o dobro<br />

de neurônios e os mantém joviais. Ela democratiza a experiência comum a todas as gerações desde<br />

há milênios. Através dos livros, cada um ingere a condição humana de acordo com o próprio<br />

apetite. E o que é, no fundo, essa condição, senão a oportunidade de refletir sobre nós mesmos?<br />

(GIFFONI, Luís. O Tempo, 13-3-2001)<br />

Exercício 6:<br />

Todas as oposições abaixo podem ser estabelecidas pela leitura do texto, EXCETO<br />

A) leitura x cinema;<br />

B) Calvino x a Bíblia;<br />

C) Murilo Rubião x best-seller de ação;<br />

D) Guimarães Rosa x Paulo Coelho.


O texto não estabelece oposição entre o escritor italiano Ítalo Calvino e a Bíblia. Ambos<br />

são eleitos pelo cronista como leituras recomendáveis. Em outras passagens do texto pode-se<br />

verificar as outras oposições presentes na crônica.<br />

As diversas transformações verificadas na arte em geral têm levado muitos artistas a<br />

dialogarem não com a realidade aparente das coisas, mas com a realidade da própria linguagem.<br />

Dividindo e mesmo compartilhando o seu espaço com a TV, o cinema e o jornal, a linguagem<br />

literária, por exemplo, alargou-se internamente, ao se apropriar de uma vasta gama de materiais<br />

estilísticos e formais pertencentes a outros espaços artísticos.<br />

Não raro os romancistas contemporâneos utilizam-se de expedientes que são tipicamente do<br />

cinema, elaborando narrativas, em que se verifica nitidamente um narrador que mais parece um<br />

diretor cinematográfico, conduzindo as cenas do enredo da história, como se pode constatar em<br />

vários romances de Rubem Fonseca, como Vastas emoções e pensamentos imperfeitos e Agosto, por<br />

exemplo.<br />

Recentemente, tem-se retomado a idéia de Antropofagia, desenvolvida por Oswald de<br />

Andrade. O conceito de Antropofagia liga-se a uma visão crítica da história, da cultura, efetivando<br />

tanto apropriações como expropriações, pelo se caráter desconstrutor.<br />

A Antropofagia tem sido reativada, mas em novo contexto cultural, bastante distinto daquele<br />

que recebeu o Manifesto de 1928, de Oswald de Andrade, e também já diverso do movimento<br />

tropicalista, nos anos 1960, que a resgatou. Hoje, muitos artistas elaboram produções, apropriando-<br />

se ou devorando as diversidades de linguagens e códigos significativos, traduzindo crítica e<br />

criativamente o contexto social, político e cultural. À maneira de um canibal, o artista incorpora o<br />

outro, traduzindo-o e recontextualizando-o.<br />

Na música contemporânea, o sampler permite a conversão de trechos de música em sinal<br />

digital. Cada amostra sonora pode ser alterada, dando origem a novos sons, o que permite a<br />

gravação, manipulação e reutilização de fontes sonoras pré-gravadas.<br />

Hoje, observamos a existência de uma cultura caracterizada pela remixagem:<br />

A prática do remix tem criado polêmica, ao produzir<br />

gêneros étnicos e populares de música eletrônica (como o rap e as<br />

infinitas variações da warehouse music). Muitos grupos hoje<br />

desafiam os autores dos trechos que eles utilizam a identificar em<br />

que parte de suas músicas aparece o sampler (amostra colhida na<br />

imensa biblioteca de sons que o mundo oferece). O nível de<br />

manipulação do material sonoro é tal que se torna difícil<br />

identificar a música fonte.<br />

(In: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1626,1.shl. Acesso em 15/02/2009)


Neste módulo, você percebeu que a intertextualidade, seja a paródia seja a apropriação, por<br />

exemplo, mais que simples expedientes lúdicos, podem ser entendida como forma de reflexão<br />

crítica sobre a arte. Os autores, em diferentes épocas e estilos, recorreram a tal expediente para<br />

demonstrar maior consciência sobre o fazer artístico. A intertextualidade está diretamente associada<br />

à metalinguagem, pois ambos procedimentos são relacionais. Na intertextualidade, um texto<br />

absorve outros textos. Ambos procedimentos tornam o leitor mais crítico e reflexivo.<br />

Livros Sites<br />

• CAMPOS, Haroldo de. “Da razão<br />

antropofágica: diálogo e diferença na<br />

cultura brasileira”. In:<br />

Metalinguagem & outras metas. São<br />

Paulo: Perspectiva, 1992. (p. 231-<br />

256)<br />

• PAULINO, Graça et alii.<br />

<strong>Intertextualidade</strong>s: teoria e prática.<br />

Belo Horizonte: Lê, 1995.<br />

• PIGNATARI, Décio. Semiótica e<br />

literatura. 2 ed. São Paulo, Cortez,<br />

1974.<br />

• SANT’ANNA, Affonso Romano.<br />

Paródia, paráfrase & cia. São Paulo:<br />

Ática, 1985.<br />

Para saber mais, consultem:<br />

• www.literatura.pro.br/jcabral.htm<br />

• www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/M/metalinguagem.htm<br />

• www.portuguesdobrasil.net/pdf/a_literatura_em_xequ<br />

e.pdf<br />

• www.brasilescola.com/redacao/intertextualidade.htm

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