cos da dominação européia durante o colonialismo, é nossopapel desconstruir tais imagens, que inferiorizam os africanose seus descendentes na América. É preciso fazer umduplo movimento de reconhecer a grande diversidade daspaisagens naturais, das culturas, das formas de organizaçãosocial e política do continente africano, e ao mesmo tempoidentificar certos elementos comuns que, a despeito de tantadiversidade, estão presentes em grande parte das sociedadesafricanas, especialmente ao sul do deserto do Saara.A existência de tal conjunto de características comuns, quecomporta, porém, a diversidade e a pluralidade, constitui oque alguns autores têm denominado de africanidade.No pensamento e na vida do Ocidente, economia é economia,política é política, religião é religião. Estas são esferas autônomas,com instituições em grande parte independentes:uma coisa é o Estado nacional, outra as igrejas, outra os bancos,e assim por diante. Porém, na África (especialmenteantes da colonização, mas de certa forma até hoje), essasesferas são inter-relacionadas e interdependentes. Ou seja,é muito difícil dizer se determinado fenômeno é “político”,“econômico” ou “religioso”, pois a visão de mundo dos africanosnão divide a realidade nestas categorias. Quando asutilizamos, devemos ter em mente que estamos nos valendode um instrumento de análise estranho à própria visão demundo tradicional africana. Procuraremos, assim, compreenderesta visão de mundo, valendo-nos de generalizaçõesque não se aplicam totalmente a nenhuma sociedadeafricana, mas que podem ser úteis para uma primeiraabordagem destas realidades múltiplas e complexas. Apartir disso, será possível compreender o papel da arte emtais sociedades, seus usos e sentidos.INDIVÍDUO, FAMÍLIA E ANCESTRALIDADEO indivíduo se reconhece e ganha existência social nas sociedadesafricanas, fundamentalmente, como membro deuma família. A família é a instância mais importante desocialização do indivíduo, bem como da organização e controleda vida em sociedade.O modelo de família africana, porém, não é o mesmo que ode família burguesa ocidental. Não se restringe a pai, mãee filhos. Lá, existe o que a Antropologia chama de famíliaextensa, que inclui um homem com uma ou mais esposas,suas filhas e filhos, por vezes com cônjuges e filhos, sobrinhoscom suas esposas e filhos, chegando a englobar,em uma mesma célula familiar, quatro ou cinco geraçõesde parentes vivos.Sim, parentes vivos, pois na verdade a família não começanem acaba nas gerações vivas. Ela começa muito antes, comtodos os ancestrais da linhagem, cujos nomes são guardadospela tradição oral, e, antes deles, aqueles de quem jánão se sabe os nomes e que passam a ocupar um lugarde intermediários entre os vivos da linhagem e o próprioSer Supremo. Mas a família tampouco termina na geraçãomais nova dos vivos, ela se estende no futuro até todas asgerações posteriores, que garantirão a continuidade donome e da memória dos vivos.Cada pessoa é, assim, fruto do casamento não só de umhomem e uma mulher, mas de duas linhagens, a materna ea paterna. No entanto, a herança que um indivíduo recebe– os bens materiais e o status social que ostenta – nãovem em geral das duas linhagens, mas sim de uma só. Casoesta transmissão da herança venha por parte da mãe, estasociedade é chamada de matrilinear. Do contrário, serápatrilinear. Se a herança, as responsabilidades e a participaçãopolítica do indivíduo no grupo social são herdadas dalinhagem da mãe, quem exerce a autoridade sobre ele é seutio materno (o irmão da mãe). Por sua vez, nas sociedadespatrilineares, a autoridade emana do pai e da sua linhagem.O poder sempre é exercido por homens, mesmo nassociedades matrilineares, nas quais o homem mais velhoassume o comando da linhagem. Essa pertença de um in-
divíduo a uma linhagem não quer dizer que a outra nãotenha influência em sua vida. Normalmente, se a herançados cargos e bens materiais (ou seja, o poder no planoterreno) vem da linhagem da mãe, é da linhagem do paique virá a herança do poder espiritual, o conhecimentoreligioso e mágico. O inverso também é verdadeiro: em sociedadespatrilineares, é da linhagem da mãe que vem opoder mágico-religioso.Neste sistema, quanto mais velho se é, mais prestígio einfluência se tem. O respeito é devido a todas as pessoasmais velhas (anciãos). Um homem da geração do pai, mesmosem ser da família, é tratado com o mesmo respeitoque o pai, assim como uma mulher da geração da mãe érespeitada e obedecida como a mãe.O CONCEITO DE FORÇA VITALDe onde vem este poder? Ele se fundamenta na idéia, presenteem praticamente todas as sociedades africanas,de que existe uma força vital, um princípio dinâmico daexistência, presente em todos os seres. A fonte primeirada força vital é o Criador. Os ancestrais divinizados, ouseja, homens que viveram há muito tempo e cuja históriafoi incorporada pelos mitos, como os grandes fundadoresde cidades e reinos e heróis civilizadores, são, depois doCriador, os que mais possuem força vital. Depois deles vêmos ancestrais das linhagens. Em seguida, nesta escala, estãoos homens vivos. Dentre estes, os mais velhos são osque mais possuem força vital. Assim, entendemos porqueeles têm mais prestígio e poder nas sociedades. É precisolembrar, porém, que todos os seres humanos, e tambémanimais, vegetais e minerais possuem, segundo a visão demundo africana, força vital, que pode ser aumentada, dividida,manipulada, diminuída. As religiões afro-brasileirastambém reconhecem o princípio da força vital, chamadapelos yoruba de axé.