Revista Dr Plinio 275
Fevereiro de 2021
Fevereiro de 2021
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Publicação Mensal<br />
Vol. XXIV - Nº <strong>275</strong> Fevereiro de 2021<br />
Revelando as intenções<br />
de muitos corações
Flávio Lourenço<br />
Pedra de escândalo<br />
Q<br />
uando o Profeta Simeão<br />
teve nos braços o Menino<br />
Jesus e entoou o seu famoso<br />
cântico Nunc dimittis servum<br />
tuum, Domine... – Senhor,<br />
agora envia em paz o teu servo...<br />
–, ele disse que Nosso Senhor foi<br />
enviado como pedra de escândalo<br />
para a perdição e salvação de<br />
muitos, e para que se conhecessem<br />
as cogitações ocultas dos corações.<br />
Portanto, Nosso Senhor foi mandado<br />
para salvar a todos, mas a<br />
perdição daqueles que O recusassem<br />
não significava o fracasso<br />
d’Ele, e sim um elemento intrínseco<br />
à sua Missão, ou seja, criar<br />
condições para os justos conhecerem<br />
a verdade e se salvarem, para<br />
os ímpios manifestarem a sua<br />
impiedade e, não se arrependendo,<br />
irem para o Inferno.<br />
Christianus alter Christus – o<br />
cristão é um outro Cristo. Também<br />
nós somos pedra de escândalo<br />
posta para a salvação e a perdição<br />
de muitos, e para que se revelem<br />
as cogitações dos ímpios. A<br />
nossa missão é, pois, suscitar nas<br />
pessoas a definição, para a salvação<br />
dos bons.<br />
Apresentação do Menino<br />
Jesus no Templo - Catedral de<br />
Notre-Dame, Anvers, Bélgica<br />
(Extraído de conferência de<br />
31/1/1966)
Sumário<br />
Publicação Mensal<br />
Vol. XXIV - Nº <strong>275</strong> Fevereiro de 2021<br />
Vol. XXIV - Nº <strong>275</strong> Fevereiro de 2021<br />
Revelando as intenções<br />
de muitos corações<br />
Na capa, Nossa Senhora<br />
do Bom Sucesso - Real<br />
Convento da Imaculada<br />
Conceição, Quito, Equador.<br />
Foto: Gabriel K.<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
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ao Assinante<br />
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Segunda página<br />
2 Pedra de escândalo<br />
Editorial<br />
4 Revelando as cogitações de muitos corações<br />
Piedade pliniana<br />
5 Prece para fazer bem uma meditação<br />
Dona Lucilia<br />
6 Lição de confiança<br />
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
10 A importância do apostolado<br />
leigo na “consecratio mundi” - II<br />
Denúncia profética<br />
16 As portas do Inferno não<br />
prevalecerão contra a Igreja<br />
Revolução Industrial<br />
19 RevoluçãoIndustrial e intemperança<br />
Perspectiva pliniana da História<br />
22 Amor, obediência e veneração<br />
pela Cátedra de São Pedro<br />
Calendário dos Santos<br />
26 Santos de Fevereiro<br />
Hagiografia<br />
28 A justiça e a misericórdia<br />
se oscularam<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
31 Como um voo angélico<br />
Última página<br />
36 Admirável lição de confiança<br />
3
Editorial<br />
Revelando as cogitações de muitos corações<br />
A<br />
s revelações de Nossa Senhora do Bom Sucesso a Sóror Mariana de Jesús Torres tratam muito sobre<br />
o papel do Equador e da América do Sul sob o ponto de vista da Contra-Revolução. A Santíssima<br />
Virgem faz profecias muito precisas a respeito da Revolução na América do Sul, da batalha entre<br />
revolucionários e contrarrevolucionários, e da vitória que Ela assegurará para estes últimos.<br />
A Mãe de Deus quis aparecer e fazer-Se venerar ali sob a invocação de Nossa Senhora do Bom Sucesso,<br />
da Candelária ou da Purificação, apelativos referentes a um mesmo episódio narrado no Evangelho e<br />
contemplado no quarto mistério gozoso do Rosário.<br />
Que relação há entre a Purificação e tudo quanto Nossa Senhora predisse a propósito da Revolução e<br />
Contra-Revolução na história da América do Sul, do papel deste Continente no mundo e, afinal, da vitória<br />
dos contrarrevolucionários?<br />
Nessa passagem do Evangelho Nosso Senhor é chamado pelo Profeta Simeão de pedra de escândalo,<br />
ou seja, de divisão, para que se revelem as cogitações de muitos corações.<br />
Ora, não há dúvida de que a Contra-Revolução constitui uma pedra de escândalo contínua nesta nossa<br />
época em que mais nenhuma aberração escandaliza. Entretanto, que aplicação haveria para estas palavras:<br />
“para que se revelem as cogitações de muitos corações”?<br />
Consideremos que Simeão esperou a vida inteira para ver o Messias e, quando O encontrou, discerniu<br />
n’Ele a pedra de escândalo e anunciou isto com amor e entusiasmo, como sendo uma das missões específicas<br />
d’Aquele Menino.<br />
Nosso Senhor manifestou tudo quanto está no Evangelho a respeito dos desígnios de Deus relativos à<br />
salvação dos homens. Entretanto, quem são aqueles cujas cogitações Ele revelou?<br />
Particularmente os fariseus.<br />
E como Ele o fez?<br />
Denunciando e desmascarando as intenções daqueles hipócritas que, embora se desagradassem com a<br />
pregação e a Pessoa do Divino Mestre, evitavam atacá-Lo publicamente, porque não queriam revelar as<br />
suas cogitações. Por isso, vinham com perguntas capciosas, tentando conservar oculta a própria posição.<br />
Em nossos dias, aqueles que lutam pela Contra-Revolução são chamados a imitar o Divino Redentor<br />
especialmente a este título de pedra de escândalo e a assumir, mutatis mutandis, todas as lutas e sofrimentos<br />
que, em Nosso Senhor, culminaram na Paixão, Morte e Ressurreição.<br />
A meu ver, aqui está o nexo entre nós e a devoção a Nossa Senhora do Bom Sucesso, que explica para<br />
onde devem se orientar nossos passos e projeta uma luz sobre nossa piedade.<br />
Com efeito, nos vários episódios da vida do Salvador, devemos procurar contemplar como Ele foi obrigando<br />
as cogitações a se revelarem. Por exemplo, um dos fatos mais marcantes foi a ressurreição de Lázaro.<br />
Após este milagre espetacular, tornaram-se manifestas as intenções dos fariseus que comentaram entre<br />
si: “É preciso matá-Lo.”<br />
Também quando o populacho, instigado pelos agentes do Sinédrio, preferiu Barrabás a Nosso Senhor,<br />
revelaram-se quais eram as cogitações dessa gente. E, por fim, na Crucifixão de Jesus, uma vez mais foram<br />
elas reveladas.<br />
Assim, do início ao fim, continuamente, Nosso Senhor Jesus Cristo apresentou-Se como pedra de escândalo.<br />
Então, nós podemos orar ao Homem-Deus, por meio de sua Mãe Santíssima, dizendo: “Ó Divina Pedra de<br />
Escândalo, posta para a revelação das cogitações de muitos corações, dos hipócritas e fariseus, tende piedade<br />
de nós e dai-nos, pelos vossos méritos infinitos, a força que mostrastes nesses lances de vossa vida terrena.” *<br />
* Cf. Conferência de 12/2/1982.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Luis Samuel<br />
A Virgem e o<br />
Menino (acervo<br />
particular)<br />
Prece para fazer bem<br />
uma meditação<br />
Ave, Maria, Filha bem-amada do Padre Eterno, Mãe admirável de Deus Filho,<br />
Esposa fidelíssima do Espírito Santo!<br />
Ave, ó minha Mãe e Senhora, soberana do mundo, Rainha dos Corações<br />
e auxílio onipotente de todos os que a Vós recorrem e em Vós confiam!<br />
Coloco-me mais especialmente neste momento em vossa presença, pedindo-Vos<br />
vossa assistência e que me obtenhais a graça para, em união convosco, fazer bem esta<br />
meditação.<br />
Vós bem conheceis as dificuldades que terei, em consequência de minha dissipação<br />
constante, de minha preguiça mental, de meu relaxamento interior.<br />
Suplico-Vos, portanto, ó Esposa sem mácula do Divino Espírito Santo, vossas luzes,<br />
vossos favores, vossa misericórdia, enfim, para que eu possa tirar todo proveito<br />
desta meditação, para vossa maior honra, glória e serviço. Assim seja.<br />
5
Dona Lucilia<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Lição de<br />
confiança<br />
Considerando<br />
os exemplos<br />
de ilustres<br />
antepassados, Dona<br />
Lucilia hauria os<br />
princípios que<br />
lhe serviam de<br />
fundamento para a<br />
prática da virtude<br />
da confiança.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. Gabriel José Rodrigues<br />
dos Santos<br />
Para compreender o papel da<br />
confiança na minha vida é<br />
preciso considerar esta virtude<br />
na história de Dona Lucilia.<br />
Ancestrais exemplos<br />
de confiança<br />
Minha mãe pertencia a uma<br />
das antigas famílias de São Paulo,<br />
às quais se costumam chamar de<br />
“paulistas de quatrocentos anos”,<br />
e estava habituada à ideia de que<br />
6
Joaquim José Insley Pacheco (CC3.0)<br />
poderia ocorrer com ela o mesmo<br />
que se dera com alguns de seus antepassados,<br />
os quais, embora fossem<br />
pessoas de muita projeção e<br />
importância, capazes de realizar<br />
grandes esforços e se tornarem célebres<br />
por praticarem ações insignes<br />
para cumprir seu dever e a vontade<br />
de Deus, estiveram por vezes<br />
sujeitos a riscos de sofrerem terríveis<br />
fracassos. Foi o que se deu<br />
com o avô dela, a quem não cheguei<br />
a conhecer, <strong>Dr</strong>. Gabriel José<br />
Rodrigues dos Santos.<br />
Ele era um homem alto, com porte<br />
muito nobre, dotado de uma capacidade<br />
oratória digna de nota. Ao<br />
mesmo tempo, um político exímio e<br />
capaz de se impor com firmeza. Entretanto,<br />
compreendia os “azares”,<br />
as dificuldades da política e, por causa<br />
disso, também as derrotas que<br />
não raras vezes ela impunha.<br />
Dom Pedro II<br />
Joaquim José Insley Pacheco (CC3.0)<br />
Brigadeiro Tobias de Aguiar<br />
A narração de um episódio de sua<br />
história pode nos dar uma ideia de<br />
como era a mentalidade dele e qual<br />
o papel da confiança<br />
em sua vida.<br />
Passando do brejo<br />
para o forno,<br />
de Secretário de<br />
Estado a tropeiro<br />
Duque de Caxias<br />
Sendo muito bom<br />
político e orador, esse<br />
meu bisavô tornou-<br />
-se logo Secretário de<br />
Estado – uma espécie<br />
de ministro – do Governador<br />
de São Paulo<br />
daquele tempo, Rafael<br />
Tobias de Aguiar 1 .<br />
Houve em São Paulo<br />
uma revolução contra<br />
o Imperador, à qual<br />
Tobias de Aguiar aderiu,<br />
e <strong>Dr</strong>. Gabriel acabou<br />
“embarcando nessa<br />
canoa”.<br />
As tropas comandadas<br />
pelo Duque de<br />
Caxias 2 invadiram São<br />
Paulo e meu bisavô teve<br />
de fugir, de noite, escondendo-se<br />
no atual Parque Dom Pedro II, que<br />
era então um pântano enorme onde<br />
havia muita vegetação. Ali passou<br />
a noite inteira, metido no charco, o<br />
grande político e orador que dançara<br />
com a Imperatriz, causando sensação<br />
na corte.<br />
Depois, com o auxílio de correligionários,<br />
conseguiu partir para Sorocaba,<br />
uma das cidades mais próximas<br />
de São Paulo.<br />
Porém, não tardou para que os soldados<br />
do Duque de Caxias chegassem<br />
àquele lugar. Ao ouvir a notícia<br />
da entrada das tropas na então pequena<br />
Sorocaba, e vendo que facilmente<br />
o encontrariam, procurou refúgio<br />
na casa de um padeiro conhecido<br />
e simpatizante seu. Este lhe disse:<br />
— Minha casa é pequena e qualquer<br />
pessoa nota que o senhor está<br />
aqui. Só vejo uma solução: o meu<br />
forno está apagado e é enorme; o senhor<br />
entra nele e fica aí até a tropa<br />
passar adiante.<br />
Assim, o Secretário de Estado<br />
passou do brejo para o forno. Mas<br />
vendo que se continuasse naquela cidade<br />
por mais tempo seria capturado,<br />
disfarçou-se de tropeiro e, com a<br />
intenção de se refugiar na Argenti-<br />
Sébastien Auguste Sisson (CC3.0)<br />
7
Dona Lucilia<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
na, engajou-se numa tropa que conduzia<br />
gado rumo ao Sul do Brasil.<br />
<strong>Dr</strong>. Gabriel é descoberto<br />
pela esposa de seu patrão<br />
Tendo partido de Sorocaba e estando<br />
já a caminho do Rio Grande<br />
do Sul, seu patrão resolveu vender<br />
algumas cabeças de gado a um sujeito<br />
interessado em comprá-las. Contudo,<br />
na hora do pagamento começou<br />
uma discussão intérmina e não<br />
havia meio de entrarem em acordo.<br />
<strong>Dr</strong>. Gabriel, que tinha pressa em<br />
partir dali porque corria grande risco<br />
de ser preso, notou que o problema<br />
estava nos cálculos matemáticos<br />
errados, pois ambos não sabiam fazer<br />
as contas. Então, interferiu na<br />
negociação e, com muita destreza,<br />
apresentou-lhes a solução. Os negociantes<br />
ficaram muito satisfeitos, e<br />
assim puderam continuar a viagem.<br />
Ora, a esposa do chefe da tropa<br />
presenciara a cena e, estando a sós<br />
Duque de Caxias na Guerra do Paraguai<br />
le apuro, vendo o dinheiro acabar, de<br />
repente ele ouviu uma voz conhecida<br />
que cantava em português. Ele prestou<br />
mais atenção e reconheceu ser<br />
uma negra escrava da mãe dele.<br />
Ele foi correndo à janela e chamou<br />
a mulher. Ao entrar onde ele<br />
estava, a primeira coisa que ela fez<br />
foi tirar um xale que a cobria e desamarrar<br />
uma espécie de colete no<br />
qual estavam costuradas, por dentro,<br />
uma grande quantidade de moedas<br />
de ouro. Então contou sua aventura.<br />
Preocupada com a situação do filho,<br />
a mãe de meu bisavô mandara<br />
essa escrava de confiança viajar de<br />
São Paulo para a Argentina à procura<br />
do <strong>Dr</strong>. Gabriel José Rodrigues<br />
dos Santos para lhe entregar essas<br />
moedas.<br />
Chegando à fronteira, ela precisava<br />
atravessar a ponte limítrofe entre<br />
Brasil e Argentina, guarnecida por<br />
soldados brasileiros e que ninguém<br />
podia atravessar sem permissão. Como<br />
essa mulher não tinha autorizacom<br />
seu marido, disse-lhe:<br />
— Você não percebeu<br />
que esse homem<br />
que está trabalhando<br />
para você<br />
não é tropeiro?<br />
— Mas por que<br />
você diz isto?<br />
— Veja com que<br />
facilidade ele fez as<br />
contas. Você acha<br />
que um simples tropeiro<br />
é capaz disso?<br />
— Hum, é verdade...<br />
— Para evitar encrencas<br />
para nós, vá<br />
e pergunte quem é<br />
ele. De repente é um<br />
fugitivo político...<br />
O chefe dos tropeiros<br />
seguiu o conselho<br />
da mulher e<br />
interrogou meu bisavô,<br />
o qual acabou<br />
por revelar sua identidade.<br />
Surpreso, o patrão<br />
tirou o chapéu<br />
e disse:<br />
— <strong>Dr</strong>. Gabriel<br />
José Rodrigues dos<br />
Santos! Pois saiba<br />
que sou um grande<br />
admirador do senhor.<br />
Conte comigo<br />
para o que precisar.<br />
Na Argentina,<br />
recebendo o<br />
socorro materno<br />
Por fim, ele conseguiu<br />
chegar até a<br />
fronteira com a Argentina<br />
e ingressar<br />
nesse país. Mas ali<br />
não tardou a que lhe<br />
faltassem os meios de<br />
subsistência. Quando<br />
se encontrava naque-<br />
Conselheiro Crispiniano<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
8
ção e nem meios de obtê-la, começou<br />
a produzir doces que ora vendia,<br />
ora dava de graça para os soldados<br />
brasileiros.<br />
Certo dia ela quis atravessar a<br />
ponte, mas os guardas suspeitaram<br />
do pedido dela e disseram:<br />
— Nós deixamos passar, mas temos<br />
que revistar você antes.<br />
Ela respondeu:<br />
— Isso não! Ninguém toca em<br />
mim, eu proíbo absolutamente.<br />
Declarou isso com tal dignidade<br />
que não ousaram revistá-la, e deixaram-na<br />
passar. E lá foi ela com o coletezinho<br />
repleto de ouro.<br />
Já em terras argentinas, ela começou<br />
a perguntar por um exilado brasileiro,<br />
mas ninguém sabia informar.<br />
Então ela resolveu ir andando pela<br />
cidade, cantando uma canção que<br />
meu bisavô conhecia, confiando que<br />
ele ouviria e viria à janela. E assim<br />
aconteceu. Ele a reconheceu e se encheu<br />
de dinheiro.<br />
A vitória da confiança<br />
<strong>Dr</strong>. Gabriel José ficou ainda morando<br />
algum tempo na Argentina,<br />
até receber o recado de que o Governo<br />
imperial estava disposto a dar<br />
anistia aos revoltosos caso não se levantassem<br />
mais em armas. Ele aceitou<br />
e voltou para o Brasil. Mas a<br />
anistia não tinha sido concedida e,<br />
vindo a São Paulo, ele foi preso.<br />
No julgamento dele, o advogado de<br />
defesa foi o Conselheiro Crispiniano 3 ,<br />
muito amigo de meu bisavô, e era um<br />
famoso Conselheiro de Estado.<br />
O discurso de defesa feito pelo<br />
Conselheiro Crispiniano se tornou<br />
célebre pela ostentação do orador,<br />
cujas primeiras palavras ao subir à<br />
tribuna foram:<br />
— Egrégios membros do tribunal,<br />
a minha simples presença nesta tribuna<br />
prova a importância da causa<br />
que vou defender.<br />
Isso, na vida pacata da São Paulo<br />
daquele tempo, marcava muito:<br />
“Olhe o vaidoso!”<br />
Afinal, meu bisavô foi julgado e<br />
absolvido.<br />
Quando ele saiu do tribunal, os<br />
alunos da Faculdade de Direito e<br />
as moças da sociedade de São Paulo<br />
formaram uma ala ininterrupta<br />
da Praça João Mendes até a casa<br />
dele, na esquina da Rua 15 de Novembro<br />
com a Praça da Sé. À medida<br />
que meu bisavô passava, as<br />
moças iam jogando flores. Essa fase<br />
de carreira política dele estava<br />
encerrada.<br />
Aí está a vida desse antepassado<br />
de Dona Lucilia, feita de diversas<br />
tensões e situações difíceis, mas<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em agosto de 1995<br />
da qual mamãe tirava a lição de que,<br />
tendo confiança, ele vencia tudo.v<br />
(Extraído de conferências de<br />
29/6/1977 e 19/8/1995)<br />
1) Político e militar, um dos líderes<br />
da Revolução Liberal de 1842<br />
(*4/10/1794 - †7/10/1857).<br />
2) Luís Alves de Lima e Silva<br />
(*25/8/1803 - †7/5/1880).<br />
3) João Crispiniano Soares. Jurista<br />
e político paulista (*24/7/1809 -<br />
†15/8/1876).<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
9
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
A importância do apostolado<br />
leigo na “consecratio mundi” - II<br />
Cabe aos leigos tornar sagrada a própria sociedade temporal,<br />
tarefa que exige grande dedicação e a generosa disposição de<br />
a ela consagrar toda a existência. A quem seguir esta via de<br />
renúncia e entrega está prometida uma grande glória: viver<br />
nos braços de Maria Santíssima e sob a proteção d’Ela.<br />
Arquivo Nacional (CC3.0)<br />
Oque vem a ser a consecratio<br />
mundi?<br />
A sociedade temporal,<br />
como todas as coisas criadas, deve<br />
ser consagrada a Deus, oferecida<br />
a Ele e ordenada segundo os desígnios<br />
divinos, para assim colaborar<br />
em sua obra. Nisto consiste a consecratio<br />
mundi: tornar sagrada a própria<br />
sociedade temporal, tarefa que<br />
Pio XII 1 afirma ser especificamente<br />
dos leigos.<br />
Apostolado próprio<br />
e insubstituível<br />
Às vezes ouço pessoas elogiarem<br />
certos sacerdotes nos seguintes termos:<br />
“Fulano é formidável. Tem-se<br />
a impressão de que ele não é padre.<br />
É divertido, camarada, conversa sobre<br />
tudo, sabe quem ganhou a última<br />
competição, anda de lambreta.<br />
Ninguém imaginaria o que ele faz.<br />
De padre assim é que eu gosto: bem<br />
moderno e igual a nós.” E o pobre<br />
Pe. Fulano pensa do mesmo modo…<br />
Trata-se de uma concepção errada<br />
da condição sacerdotal. O padre<br />
é um ministro do Senhor. Ele<br />
faz parte do clero, daqueles chamados<br />
a viver numa atmosfera sagrada<br />
e não na que se move o comum dos<br />
homens. A sacristia e o Altar constituem<br />
o lugar próprio do padre e, se<br />
ele não está ali, tudo fica deserto e<br />
a igreja não funciona. Se há alguém<br />
que não deve levar a vida de um leigo<br />
é o padre.<br />
Então quem vai levar aos diferentes<br />
meios sociais a Palavra de Deus?<br />
Nós, os leigos. E, por isso, no discurso<br />
ao Segundo Congresso Mundial<br />
do Apostolado dos Leigos o Santo<br />
Padre Pio XII mostra bem que a<br />
Igreja está constituída de tal maneira<br />
que nunca haverá padres em número<br />
suficiente para atender às necessidades<br />
do apostolado. Para entrar<br />
nas faculdades, nas oficinas, nos<br />
bondes, nos ônibus, em qualquer<br />
parte, é preciso que haja leigos e que<br />
estes sejam portadores habituais da<br />
Palavra de Deus.<br />
Por uma razão de número e de<br />
missão própria, o apostolado leigo<br />
não é substituído pela ação do sacerdote.<br />
E, portanto, a principal tarefa<br />
do sacerdote não consiste em fazer<br />
tudo, mas em formar grupos de<br />
bons leigos, que por toda parte entrem,<br />
atuem e produzam aquela par-<br />
Papa Pio XII
Flávio Lourenço<br />
cela de bem que cabe à sociedade<br />
temporal realizar para a santificação<br />
das almas.<br />
Conta-se que, em certa ocasião,<br />
Pio XII perguntou a um grupo de<br />
cardeais com os quais conversava:<br />
“Eminências, o que é mais necessário<br />
para a santificação do mundo<br />
nos dias atuais?” Um cardeal pensou<br />
um pouco e respondeu que faltavam<br />
igrejas grandes, porque com igrejas<br />
tão pequenas ninguém ia à Missa.<br />
Outro disse que seria preciso desenvolver<br />
a imprensa católica, pois<br />
por meio dela todos ouviriam a Palavra<br />
de Deus. E um terceiro levantou<br />
o tema das missões. O Papa ouviu a<br />
todos e concluiu: “Nada disso é verdade.<br />
O mais necessário hoje é que<br />
em cada paróquia exista um punhado<br />
de leigos realmente católicos, que<br />
levem a Palavra de Deus à sociedade<br />
temporal. Se houvesse isto, a crise<br />
do mundo contemporâneo estaria<br />
conjurada.”<br />
Eu não apresento esse fato como<br />
argumento, porque não gosto de jogar<br />
com palavras pronunciadas pelos<br />
Papas em conversas particulares.<br />
Mas, si non è vero, è bene trovato 2 .<br />
Ainda que ele não as tenha dito, isso<br />
é verdade e eu estou inteiramente de<br />
acordo com o inventor dessa fábula,<br />
se foi inventada.<br />
Doação especial a Deus<br />
no estado laical<br />
Peregrinação a Saint-Josse-sur-Mer<br />
Museu de Belas Artes, Arras, França<br />
A Santa Missa - Museu J. Paul Getty, Califórnia<br />
Ora, se o apostolado dos leigos é<br />
tão necessário, percebe-se sem dificuldade<br />
que ele exige uma grande dedicação.<br />
Essa ação jamais será suficientemente<br />
desenvolvida se um certo<br />
número de leigos generosos não<br />
for além de um simples apostolado<br />
comum e não consagrar a ela sua vida,<br />
dentro do seu ambiente próprio.<br />
Compreendem-se, então, as diretrizes<br />
do Santo Padre Pio XII na Encíclica<br />
Sacra Virginitas, na qual ele<br />
afirma que o celibato representa o<br />
estado ideal, ainda que não se trate<br />
de padre nem de freira, porque, em<br />
si mesma considerada, a castidade<br />
perfeita significa uma doação maior<br />
a Deus nosso Senhor e proporciona<br />
mais tempo para servir à Igreja.<br />
Quer dizer, um movimento leigo<br />
não pode manter-se sem muitas pessoas<br />
que dediquem a vida inteira a<br />
ele, quase como um sacerdote, embora<br />
continuem nas fileiras do laicato.<br />
E essa doação especial a Deus, no es-<br />
GCI (CC3.0)<br />
11
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
tado leigo, é tão agradável a Ele que<br />
atualmente a Igreja conta com associações<br />
só de leigos, que continuam<br />
a morar em suas casas, mas praticam<br />
a pobreza, a castidade e a obediência<br />
para melhor atuarem no apostolado.<br />
Vê-se aí a importância que a Igreja<br />
dá a essa ideia do leigo que se conserva<br />
no mundo, nele trabalha para a<br />
salvação das almas e liga-se ao serviço<br />
de Deus pelo celibato, à semelhança<br />
do sacerdote. Trata-se de um apostolado<br />
em que muitos – intencionalmente<br />
não digo todos – consagram-se<br />
inteiramente, de tal maneira que renunciem<br />
a todas as coisas da Terra.<br />
Entretanto, cabe ressaltar que<br />
aqueles que constituem família devem<br />
continuar servindo a esse apostolado<br />
na medida em que os laços<br />
matrimoniais o permitam, sem deixar-se<br />
dominar pelo seguinte estado<br />
de espírito: “Faço apostolado porque<br />
quero, não sou obrigado a fazê-lo.”<br />
O Santo Padre Pio XII nos ensina<br />
o contrário: o leigo também está obrigado<br />
a fazer apostolado porque é fi-<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> com o uniforme da Linha de Tiro, em 1929<br />
lho da Igreja. A vida<br />
foi-lhe dada não<br />
para gozar, mas para<br />
ele carregar a<br />
Cruz de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo<br />
e santificar-se. Todos<br />
os problemas<br />
de carreira e outros<br />
desse teor são completamente<br />
secundários<br />
ante a santificação<br />
das nossas<br />
almas e a do<br />
próximo. Nesse esforço<br />
que os leigos<br />
desenvolvem, ninguém<br />
tem o direito<br />
de dizer que devem<br />
se sacrificar apenas<br />
aqueles que são<br />
muito inteligentes,<br />
organizadores e capazes.<br />
Não é assim.<br />
Aqui se aplica a parábola<br />
dos talentos:<br />
cada um deve prestar contas a Deus<br />
ainda que seja por<br />
um só talento recebido.<br />
Ai de nós se deixarmos<br />
o talento enterrado,<br />
sem fruto!<br />
Dois caminhos,<br />
uma escolha<br />
Lembro-me de<br />
uma série de problemas<br />
que se apresentaram<br />
a mim quando<br />
eu contava entre dezenove<br />
e vinte anos.<br />
Eu tinha muita vontade<br />
de fazer carreira<br />
e dispunha dos<br />
meios para isto. Por<br />
outro lado, vinha-me<br />
a ideia de dedicar-<br />
-me ao apostolado<br />
e a sensação viva do<br />
que eu poderia realizar<br />
pela Igreja.<br />
Parábola dos Talentos - Catedral de<br />
St. Colman, Cork, Irlanda<br />
Eu imaginava os dois caminhos. O<br />
primeiro, sem fazer apostolado: via-<br />
-me homem provecto, rico, bem colocado,<br />
usufruindo de todos os deleites<br />
que a vida pode dar. Depois imaginava-me<br />
fazendo apostolado e sentia<br />
que, neste caso, o mundo não me<br />
receberia bem e minha carreira ficaria<br />
gravemente prejudicada. Ademais,<br />
percebia que, se quisesse me<br />
conservar um homem reto, jamais<br />
conseguiria os cargos que desejava.<br />
Contudo, ao pensar na primeira hipótese,<br />
via-me com as mãos vazias de<br />
méritos e contemplando a Igreja, minha<br />
Mãe, esbofeteada, pisoteada, negada,<br />
abandonada, servida com negligência<br />
e ininteligência, por covardes<br />
que fugiam quando ela era seriamente<br />
atacada, enquanto eu me empanturrava<br />
do que a vida oferece, com o peito<br />
coberto de medalhas, sentado num<br />
palacete ou num automóvel de luxo,<br />
confesso que sentia náusea destas coisas,<br />
náusea de mim mesmo, náusea de<br />
tudo quanto não fosse o cumprimento<br />
Andreas F. Borchert (CC3.0)<br />
12
de meu dever. A visão de Jesus Cristo<br />
no Horto das Oliveiras e sendo crucificado,<br />
numa renovação de sua Paixão,<br />
fazia-me compreender que esta<br />
via não só me conduziria à perdição,<br />
mas também me daria um constante<br />
asco de mim mesmo.<br />
E hoje eu percebo que, se houvesse<br />
morrido nesse caminho, Deus teria<br />
me pedido contas das almas de todos<br />
aqueles que pertencem ao nosso<br />
Movimento. Eu Lhe responderia que<br />
não os conhecia e nada sabia a respeito<br />
deles. Então o Divino Juiz me diria:<br />
“Segundo os planos eternos de minha<br />
Providência, você deveria ter estabelecido<br />
relação com eles. Entretanto,<br />
na hora em que eles precisaram de<br />
sua ação direta ou indireta, você, pela<br />
sua covardia, pela sua ambição, pela<br />
sua falta de senso moral, pela sua<br />
fundamental indiferença em relação<br />
a Mim, pela sua vergonhosa adoração<br />
a si mesmo, você não sabia que essas<br />
pessoas existiam. Agora você será<br />
medido, pesado e julgado. E irá para<br />
o Inferno, porque todas as vezes que<br />
um daqueles que Me personificavam –<br />
pois todo católico é membro do meu<br />
Corpo Místico – precisou de você, era<br />
Eu que tinha sede de um bom conselho<br />
e você não Me deu, Eu que estava<br />
nu de forças para resistir ao adversário<br />
e você não Me vestiu. Eu lhe dei recursos<br />
para agir como devia, e você o que<br />
fez? Empanturrou-se de comida, inebriou-se<br />
de bebida, cobriu-se de condecorações<br />
e gloríolas, tornou-se um<br />
homem importante e se refestelou em<br />
palácios e cadillacs, mas a Mim deixou<br />
só.” Se isso me acontecesse, teria sido<br />
merecido.<br />
Responsabilidade do<br />
apóstolo, mesmo sendo leigo<br />
Recordo-me que, algum tempo<br />
depois de ter resolvido entrar para a<br />
Congregação Mariana e intencionalmente<br />
não fazer carreira, li um fato<br />
da vida de São João Bosco que muito<br />
me impressionou. Ele era menino e<br />
sonhou que homens de todas as raças<br />
cercavam sua cama, de mãos postas,<br />
pedindo-lhe que fosse logo até eles.<br />
Muito anos depois Deus lhe deu a interpretação<br />
do sonho. Os Salesianos<br />
são missionários e se espalharam pela<br />
Terra, e eram essas almas que eles<br />
deveriam evangelizar que estavam ao<br />
lado da cama de Dom Bosco pedindo<br />
que ele se apressasse, porque precisavam<br />
ser salvas.<br />
Se eu, aos vinte anos, houvesse tido<br />
um sonho assim, certamente veria<br />
os Anjos da Guarda de muitos dos<br />
que entraram e ainda entrarão em<br />
nosso Movimento pedindo que me<br />
apressasse.<br />
Mas o que vale para mim, vale para<br />
qualquer batizado. Se cada um pudesse<br />
ver as almas que deve edificar e salvar,<br />
veria também, ao lado do próprio<br />
leito, os Anjos da Guarda dessas almas<br />
pedindo que se apressasse. Porque os<br />
acontecimentos correm, o Inferno não<br />
dorme, o demônio trabalha constantemente<br />
e a todo momento almas se pre-<br />
Flávio Lourenço<br />
Jesus sendo cravado na Cruz - Museu Nacional de Port-Royal-des-Champs, França<br />
13
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Flávio Lourenço<br />
cipitam no Inferno. Compreende-se<br />
então a tremenda responsabilidade de<br />
um apóstolo, mesmo quando leigo. Devemos<br />
nos dedicar ao apostolado de alma<br />
e coração, como o bom sacerdote<br />
que vive para o seu ministério com toda<br />
a dedicação, pois sabemos quantas<br />
contas Deus nos pedirá do imenso bem<br />
que podemos fazer.<br />
Uma recompensa<br />
demasiadamente grande<br />
Deus bate no coração de cada um<br />
de nós dizendo: “Filho, vem e segue-<br />
-Me.” Houve um pintor alemão que<br />
fez um quadro representando Nosso<br />
Senhor batendo numa porta, como<br />
símbolo do Bom Pastor que bate<br />
à porta do coração humano. Quando<br />
foi exposta, a tela causou sensação.<br />
Então certa pessoa se aproximou<br />
do pintor e disse: “O quadro é<br />
muito bonito, mas falta uma coisa.<br />
O senhor se esqueceu de colocar fechadura<br />
na porta.” O pintor respondeu:<br />
“Fiz isso de propósito. A porta<br />
do coração não tem fechadura do lado<br />
de fora; ela só abre por dentro.”<br />
De modo análogo, o Divino Espírito<br />
Santo nos pede que Lhe abramos<br />
a porta. Dar-Lhe tudo, consagrar-<br />
-Lhe tudo é o que Deus pede de nós.<br />
E consagrar tudo não é consagrar<br />
muito, mas consagrar aquilo que dói<br />
mais. Aquele que tem mania de ser<br />
orgulhoso, que seja humilde. Aquele<br />
que tem tendência para a impureza,<br />
procure ser casto. Aquele que tem<br />
desejo de fazer carreira, procure apagar-se.<br />
Cada um dê a Nosso Senhor<br />
aquilo que lhe custa mais, porque Ele<br />
realmente o merece.<br />
Agora cabe uma palavra sobre a<br />
recompensa.<br />
Deus prometeu: “Eu mesmo serei<br />
a vossa recompensa demasiadamente<br />
grande” (cf. Gn 15, 1). Ou seja,<br />
Ele não dá uma recompensa, mas<br />
Ele é a recompensa! E nisso Se assemelha<br />
a um rei que diz aos seus soldados:<br />
“Não os condecorarei, não<br />
lhes concederei o título de duque,<br />
nem mesmo lhes entregarei meu trono;<br />
darei a Mim mesmo aos soldados<br />
que tiverem combatido por Mim.”<br />
Trata-se de uma recompensa verdadeiramente<br />
demasiada.<br />
Sebastião C.<br />
Jesus salva São Pedro<br />
enquanto caminha sobre as<br />
águas - Convento de Santa<br />
Maria Novella, Florença<br />
Essa recompensa não consiste apenas<br />
na salvação eterna, mas se inicia<br />
na Terra. Uma imagem pode ajudar a<br />
compreendê-lo. Imaginemos dois barcos<br />
que singram o Lago de Tiberíades.<br />
Um deles leva pescadores comuns, sobre<br />
os quais paira a proteção divina,<br />
segundo a Providência geral que Deus<br />
tem para com todos. No outro barco a<br />
situação é diferente... Os ventos soprarão<br />
sobre esta embarcação. Mas Nosso<br />
Senhor Se levantará e, como narra<br />
o Evangelho (cf. Mt 8, 26-27), os ventos<br />
e os mares Lhe obedecerão e a tormenta<br />
será aplacada. Às vezes Ele pedirá<br />
aos tripulantes do barco que andem<br />
sobre as águas, como São Pedro,<br />
e os sustentará.<br />
De mesmo modo, quem foi chamado<br />
por uma providência especial<br />
de Deus, tem direito e obrigação a<br />
uma confiança especial n’Ele.<br />
Deus exige muito daqueles<br />
aos quais deseja dar muito<br />
O sacrifício de Isaac - Igreja dos Clérigos, Porto, Portugal<br />
Quando tivermos problemas de<br />
vida interior sobremaneira difíceis e<br />
14
nebulosos, rezemos a Nossa Senhora,<br />
certos de que Ela nos ajudará a<br />
progredir. Quando nosso apostolado<br />
estiver em crise, rezemos a Nossa<br />
Senhora, certos de que sobre nós<br />
paira uma providência especialíssima.<br />
Quando surgirem dificuldades financeiras,<br />
lembremos que Deus ama<br />
aqueles que trilham a via da incerteza.<br />
Quando notarmos que as coisas<br />
se encrencam com facilidade, firmemo-nos<br />
na certeza de que somos do<br />
número daqueles a quem Deus protege.<br />
Quando ficarmos numa dependura,<br />
sem ter ninguém a quem apelar,<br />
e nos conservarmos em inteira<br />
paz, certos de que Deus nos ajudará,<br />
aí seremos verdadeiros filhos d’Ele.<br />
Então teremos o que Deus nos<br />
prometeu, isto é, a recompensa demasiadamente<br />
grande: após atravessarmos<br />
muitas dificuldades, nós O<br />
sentiremos ao nosso lado, constantemente<br />
nos protegendo e apoiando.<br />
Esta é a via da confiança especial na<br />
Providência, mas confiança em cada<br />
caso concreto, que tem direito de seguir<br />
aqueles que se entregam a Deus<br />
nesta vida.<br />
É bem conhecida a história de<br />
Abraão. Deus lhe prometera que seria<br />
pai de uma numerosa descendência,<br />
da qual nasceria o Messias. No<br />
entanto, este homem que daria origem<br />
a uma prole fecunda permanece<br />
estéril até velhice e, quando tem<br />
um filho, o Senhor lhe pede que o<br />
imole. Com uma confiança cega na<br />
Providência, ele não discute nem raciocina.<br />
E só no momento em que o<br />
sacrifício está interiormente realizado,<br />
a ponto de ele levantar o braço<br />
para o golpe, que o Anjo aparece e<br />
o detém. Diante desta prova de confiança<br />
o mensageiro celeste lhe diz<br />
que sua descendência seria mais numerosa<br />
que as estrelas do céu e as<br />
areias do mar.<br />
Às vezes Deus exige muito de<br />
nós, para dar muito também. A raça<br />
dos que vivem na dependura é a raça<br />
daqueles a quem Deus nunca faltará.<br />
Desejemos a graça de ficar, pelo<br />
menos algumas vezes, neste estado,<br />
de renunciar a todas as coisas da<br />
Terra para só almejar as do Céu, de<br />
compreender essa vocação especial,<br />
da qual teremos de prestar contas<br />
severíssimas. Mas compreendamos<br />
tudo isso à luz do amor de Nossa Senhora,<br />
que tem um amor inexprimível<br />
por cada um de seus filhos e os<br />
ampara sempre.<br />
A vida de renúncia e de dedicação<br />
completa do leigo tem esta grande<br />
glória: é uma vida nos braços de<br />
Maria e sob a proteção d’Ela. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
21/1/1958)<br />
1) Cf. Alocução ao Segundo<br />
Congresso Mundial do<br />
Apostolado dos Leigos,<br />
5/10/1957.<br />
2) Do italiano: “Se não é<br />
verdadeiro, está bem<br />
achado.”<br />
Daniel A.<br />
15
Teodoro Reis / Walterpeitz (CC3.0)<br />
Denúncia profética<br />
As portas do Inferno<br />
não prevalecerão<br />
contra a Igreja<br />
Em meio às ondas encapeladas do mal que investem contra a Igreja<br />
Católica, tenhamos a coragem de remar contra a maré, seguindo<br />
os exemplos dos Santos. Façamos violência aos Céus por orações,<br />
sacrifícios, zelo e combatividade para que em torno de nós as portas do<br />
Inferno não prevaleçam contra a ação vivificadora da Esposa de Cristo.<br />
Apromessa divina do Salvador,<br />
de que as portas do Inferno<br />
não prevalecerão contra a Santa<br />
Igreja, não equivale a dizer que em<br />
uma dada região ou em um determinado<br />
país esteja livre o Catolicismo de ser<br />
completamente banido e extirpado.<br />
Não deixemos nos levar<br />
por um estado eufórico<br />
de vazio otimismo<br />
É indestrutível a Igreja. A malícia<br />
dos homens, porém, transformou em<br />
deserto pagão, herético ou cismático,<br />
muitos lugares em que a Esposa<br />
de Cristo antes espargia o leite e o<br />
mel de sua Doutrina e de sua missão<br />
salvadora.<br />
O Oriente cristão em grande parte<br />
foi assim esmagado pela infidelidade<br />
do Islã. Para citar exemplos<br />
mais recentes, temos a Suécia, antes<br />
cristianíssima, e onde o desenvolvimento<br />
da heresia protestante acarretou<br />
a extirpação completa da Igreja<br />
Católica em uma determinada época.<br />
Na Inglaterra, durante os reina-<br />
dos de Henrique VIII e de Isabel,<br />
o culto católico foi quase completamente<br />
extinto, passando a ter uma<br />
existência clandestina, e a Ilha dos<br />
Santos, como era chamada, veio a<br />
ser país de missão, ficando a cura de<br />
almas ali confiada a sacerdotes que,<br />
para desempenhar o sagrado ministério,<br />
tinham de usar disfarces a fim<br />
de ocultar sua identidade. Do mesmo<br />
modo, nestes trinta anos de bolchevismo,<br />
sabemos a que frangalhos<br />
foi reduzido o trabalho apostólico da<br />
Santa Sé na Rússia soviética.<br />
16
É indefectível a Igreja, mas esta<br />
certeza não nos deve levar a um estado<br />
eufórico de vazio otimismo idêntico<br />
ao dos habitantes de Bizâncio –<br />
da Bizâncio dominada pela política<br />
do Baixo Império –, os quais porfiavam<br />
em fechar os olhos à realidade<br />
dos muçulmanos acampados a poucas<br />
léguas de suas portas.<br />
Nossa atitude em relação a esta<br />
verdade consoladora deve ser pautada<br />
pelo exemplo dos Santos que a<br />
Igreja suscitou.<br />
Jansenismo, a heresia mais<br />
sutil que o diabo engendrou<br />
Ao ensejo da canonização de São<br />
Luís Maria Grignion<br />
de Montfort, vem a<br />
propósito lembrar seu<br />
exemplo e o de São<br />
Vicente de Paulo, no<br />
tocante a este ponto.<br />
Viveram estes dois<br />
Santos em uma época<br />
e em um lugar dominado<br />
por dois perniciosos<br />
inimigos da unidade<br />
católica. Embora<br />
emergindo vitoriosa<br />
de uma luta encarniçada<br />
contra a heresia<br />
protestante, achava-se<br />
a França subjugada<br />
pelo galicanismo<br />
e pelo jansenismo.<br />
O galicanismo, que<br />
transferia para César<br />
os direitos de Deus,<br />
abria as portas ao erro<br />
religioso do jansenismo,<br />
entre outras<br />
razões por dificultar a<br />
aceitação do pronunciamento<br />
da Santa Sé<br />
em matéria de doutrina.<br />
João Duvergier de<br />
Hauranne 1 , Abade de<br />
Saint-Cyran e um dos<br />
mais destacados che-<br />
A França, porém, providencialmente<br />
encontrou em São Vicente<br />
de Paulo e em São Luís de Montfort<br />
dois articuladores seguros<br />
do movimento<br />
de resistência contra<br />
tal investida heterodoxa,<br />
os quais se conduziram<br />
nesse emaranhado<br />
cipoal de insidias<br />
como verdadeiros<br />
campeões da Fé<br />
e da sã Doutrina, não<br />
temendo nem a perseguição<br />
dos maus<br />
nem a incompreensão<br />
dos bons no desempenho<br />
da missão que<br />
lhes reservara a Providência,<br />
de combate<br />
a tão terrível e perniciosa<br />
heresia. Para<br />
eles a crença na indefectibilidade<br />
da Igreja<br />
serviu de incentivo,<br />
não para uma atitude<br />
cômoda de complacência<br />
com o erro<br />
pelo temor de atiçar<br />
o ódio dos maus e<br />
de criar inimigos, mas<br />
para conclamar os fiéis<br />
a se abrigarem sob<br />
o estandarte do Rei<br />
invencível a que alude<br />
Santo Inácio, visto<br />
que as portas do Infes<br />
jansenistas, assim se abria a São<br />
Vicente de Paulo, quando tentava<br />
“catequizá-lo” para a sua seita: “Calvino<br />
não havia sido partidário de uma<br />
causa assim tão má, apenas a havia<br />
defendido mal.”<br />
Não fosse o jansenismo a heresia<br />
mais sutil que o diabo engendrou,<br />
como diz Fleury… “Vendo que os<br />
protestantes, separando-se da Igreja,<br />
se condenaram a si próprios, e<br />
que haviam sido censurados por esta<br />
separação, tomaram os jansenistas<br />
por máxima fundamental de sua<br />
conduta não se separarem jamais exteriormente<br />
do Catolicismo, protestando,<br />
pelo contrário, sua submissão<br />
às decisões da Igreja, com o cuida-<br />
Prédica de São Vicente de Paulo - Museu<br />
Nacional do Palácio Mansi, Lucca, Itália<br />
do de achar todos os dias novas sutilezas<br />
para explicá-las, de modo que<br />
parecessem submissos sem mudar de<br />
sentimentos.”<br />
Insistindo, assim, em permanecer<br />
dentro da Igreja e tudo fazendo para<br />
impedir ou protelar uma condenação<br />
de seus erros pérfidos e sutis,<br />
tornavam os jansenistas assaz delicada<br />
a situação de seus adversários.<br />
A finalidade dessa heresia<br />
era trabalhar pela completa<br />
ruína da Religião Católica<br />
Flávio Lourenço<br />
17
Denúncia profética<br />
ferno não prevalecem contra a Igreja,<br />
mas se acham escancaradas para tragar<br />
as almas dos infelizes transviados<br />
e para estreitar e restringir os espaços<br />
da caridade de Cristo.<br />
A nenhum dos dois se pode aplicar<br />
o terrível epiteto de cães mudos,<br />
a que se referia o Profeta Isaías. São<br />
Vicente, diante dos erros do jansenismo,<br />
desejava, segundo Rohrbacher 2 ,<br />
que os membros de sua Congregação,<br />
embora evitando discussões estéreis,<br />
“falassem claramente quando as circunstâncias<br />
o exigissem, sem receio<br />
de criarem inimigos”.<br />
“Que Deus não permita, dizia São<br />
Vicente, que esses fracos motivos, que<br />
enchem o Inferno, impeçam os missionários<br />
de defender os interesses de<br />
Deus e de sua Igreja!” Foi à luz deste<br />
princípio que ele rejeitou o conselho<br />
de um seu irmão de hábito, de deixar<br />
cada um crer nessas matérias controversas<br />
o que julgasse a propósito.<br />
“É preciso, adverte o Santo, que<br />
tenhamos todos unius labii 3 , de outro<br />
modo nós nos dilaceraremos<br />
uns aos outros. Obedecer<br />
neste ponto não é submeter-<br />
-se a um superior, mas a Deus<br />
e ao sentimento dos papas,<br />
dos concílios e dos Santos. E<br />
se qualquer um dos nossos assim<br />
não agir, será melhor retirar-se,<br />
a convite mesmo de<br />
seus companheiros.”<br />
Não parou, porém, aí o zelo<br />
de São Vicente. Além de<br />
batalhar pela obtenção de um<br />
rescrito apostólico contra os<br />
erros jansenistas, tudo fez para<br />
que essa decisão pontifícia<br />
fosse aceita por toda a França,<br />
tão convencido estava do<br />
perigo por que passava a filha<br />
primogênita da Igreja diante<br />
das maquinações da cabala,<br />
que tinha João Duvergier de<br />
Hauranne e Jansênio por chefes<br />
e cuja finalidade era trabalhar<br />
pela completa ruína da<br />
Religião Católica.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
“Tenhamos a coragem de<br />
remar contra a maré”<br />
Seguindo as pegadas de São Vicente<br />
de Paulo, São Luís de Montfort<br />
haveria de ser alvo do ódio dos<br />
sectários jansenistas por toda a sua<br />
vida de apóstolo da sã Doutrina.<br />
A um amigo de sacerdócio que o<br />
censurava por provocar contradição,<br />
crítica e perseguição por toda parte,<br />
assim respondia Grignion de Montfort:<br />
“Se a sabedoria consistisse em<br />
não fazer falar de si, os Apóstolos fizeram<br />
muito mal em sair de Jerusalém;<br />
São Paulo, pelo menos, não devia<br />
fazer tantas viagens, nem São Pedro<br />
arvorar a Cruz sobre o Capitólio.<br />
Semelhante sabedoria, sem dúvida,<br />
não teria assustado a sinagoga,<br />
que teria deixado em paz os primeiros<br />
discípulos do Salvador; mas, então,<br />
estes não teriam jamais conquistado<br />
o mundo.”<br />
Era de outra natureza a sabedoria<br />
de São Luís de Montfort. “O que me<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1947<br />
faz dizer que obterei a divina sabedoria,<br />
diz ele em carta dirigida à Irmã<br />
Maria Luísa de Jesus, são as perseguições<br />
que sofri e que estou sofrendo<br />
todos os dias.”<br />
Não é o discípulo maior que o Mestre,<br />
e todo aquele que combate pela<br />
boa causa pode estar certo de que o<br />
“homem inimigo” não o poupará.<br />
Dizia o jansenista de Saint-Cyran<br />
a São Vicente de Paulo que Deus se<br />
achava cansado com os pecados dos<br />
homens em certos países, e por isso<br />
lhes queria tirar a Fé, da qual se haviam<br />
tornado indignos, sendo uma temeridade,<br />
portanto, ir-se contra os desígnios<br />
do Alto, defendendo a Igreja, quando o<br />
próprio Deus resolvera perdê-la.<br />
Não copiemos, por nossa fraqueza<br />
e conivência com o espírito do<br />
mundo, esse triste exemplo de derrotismo<br />
jansenista, nem o vazio otimismo<br />
dos bizantinos.<br />
Em meio às ondas encapeladas do<br />
mal, que hoje ameaçam a Civilização<br />
Católica, tenhamos a coragem de remar<br />
contra a maré, seguindo<br />
o exemplo de São Vicente de<br />
Paulo, o apóstolo da caridade,<br />
e de São Luís de Montfort, o<br />
apóstolo da verdadeira devoção<br />
à Santa Mãe de Deus: fazendo<br />
violência aos Céus por<br />
nossas orações, por nossos<br />
sacrifícios, por nosso zelo e<br />
combatividade, para que em<br />
torno de nós as portas do Inferno<br />
não prevaleçam contra<br />
a ação vivificadora da Santa<br />
Igreja.<br />
v<br />
(Extraído de O Legionário<br />
n. 781, 27/7/1947)<br />
1) Jean-Ambroise Duvergier de<br />
Hauranne (*1581 - †1643).<br />
2) René François Rohrbacher<br />
(*1789 - †1856), sacerdote e historiador<br />
francês.<br />
3) Do latim: uma só língua (cf.<br />
Gn 11, 1).<br />
18
Divulgação (CC3.0)<br />
Revolução Industrial<br />
Revolução<br />
Industrial e<br />
intemperança<br />
A temperança é uma virtude cardeal cujo<br />
efeito próprio é auxiliar cada uma das demais<br />
virtudes a exercer-se perfeitamente. O vício<br />
oposto, a intemperança, foi especialmente<br />
desencadeada na sociedade em fins da<br />
Idade Média, mas a Revolução Industrial<br />
imprimiu-lhe um ritmo vertiginoso.<br />
Devemos considerar os elementos<br />
constitutivos da intemperança,<br />
enquanto produzida<br />
artificialmente pela Revolução<br />
Industrial.<br />
Um processo lento que<br />
se torna vertiginoso no<br />
início do século XX<br />
O papel da Revolução Industrial,<br />
como desencadeadora de todas as intemperanças,<br />
fica mais claro se tomarmos<br />
em consideração que a temperança<br />
é uma virtude cardeal cujo<br />
efeito próprio, conjugada com as demais<br />
virtudes, é auxiliar cada uma de-<br />
las a exercer-se perfeitamente. Por<br />
exemplo, a fortaleza, em certo sentido,<br />
pode existir em um homem sem<br />
a temperança: um grande batalhador,<br />
um corajoso, um Ferrabrás, tem elementos<br />
muito característicos da virtude<br />
da fortaleza; porém só a praticará<br />
com perfeição se for temperante.<br />
A intemperança foi especialmente<br />
desencadeada em fins da Idade<br />
Média. Portanto, quando a Revolução<br />
Industrial arrebentou já havia<br />
séculos de intemperança estabelecidos.<br />
Apesar disso, ela imprimiu,<br />
à sua maneira, um ritmo vertiginoso<br />
àquilo que já vinha mar alto. A análise<br />
de algumas fotografias dos Estados<br />
Unidos, no início do século XX,<br />
pode nos ajudar a compreender o<br />
modo pelo qual a Revolução Industrial<br />
produziu esse efeito.<br />
Em termos de História francesa,<br />
poderíamos situar o início da Revolução<br />
Industrial no reinado de Luís<br />
Filipe 1 . A máquina a vapor e coisas<br />
congêneres tiveram uma expansão<br />
muito lenta no começo, não sendo<br />
suficiente para desatarraxar logo<br />
os costumes. Este fenômeno verificou-se<br />
também nos Estados Unidos.<br />
A partir de certo momento essa<br />
Revolução foi tomando intensidade<br />
e, em 1850, já estavam postas todas<br />
as condições para seu amplo cres-<br />
19
Revolução Industrial<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Passeios pela praia em Soabreeze, Flórida, no início do século XX<br />
A humanidade preparava-se para<br />
os efeitos da Primeira Guerra Mundial.<br />
Porém, quando eclodiu a Segunda<br />
Guerra Mundial, os maiôs já<br />
tinham invadido as praias e as pessoas<br />
se preparavam para os efeitos do<br />
comunismo.<br />
É interessante considerar que essa<br />
presença junto ao mar e esses prazeres<br />
campestres têm um bisneto: a<br />
ecologia. Não quer dizer que a pessoa<br />
seja ecologista por passear no campo.<br />
Contudo, trata-se de uma reação contra<br />
o costume das pessoas, no século<br />
XIX, de ficarem todo o tempo em<br />
casa, fechadas, com horror às excursões.<br />
Essa reação, feita de um modo<br />
intemperante, provoca uma explosão<br />
cujo bisneto é a ecologia.<br />
E pelo modo como eles viam a natureza,<br />
os trajes tinham que dar no<br />
nudismo. Por exemplo, o traje campestre<br />
de uma alemã de tempos anteriores<br />
que faz um passeio no mato<br />
é adequado a essa finalidade. Mas<br />
a mulher que passeia no mato sem a<br />
indumentária apropriada, de repente<br />
quer encolher a saia ou qualquer<br />
outra coisa, etc. É forçoso.<br />
Eu acho que a vida social é, talvez,<br />
dos vários aspectos de uma sociedade,<br />
o mais indicativo de uma<br />
psicologia, de uma mentalidade. E<br />
como tal tem uma importância hiscimento.<br />
E meio século mais tarde,<br />
ao despontar o século XX, ela já tivera<br />
tempo à vontade para se desenvolver.<br />
Entrada dos Estados<br />
Unidos na Primeira<br />
Guerra Mundial<br />
É muito pitoresco notar, pelos trajes<br />
desse período, como a velha Europa<br />
mantinha ainda “acorrentados”<br />
os Estados Unidos que, por si, queriam<br />
ir muito mais longe. Um exemplo<br />
característico é o passeio das famílias<br />
pela praia. Embora já indicasse<br />
um desejo de entrar no mar, os<br />
vestidos lembram as senhoras nas<br />
ruas de Berlim, na mesma época.<br />
Percebe-se, no contexto histórico<br />
geral, que a psicologia americana era<br />
louca para avançar muito mais nesse<br />
tempo, mas como as senhoras de<br />
Berlim, e também as de São Petersburgo,<br />
Viena, Paris, Londres, andavam<br />
todas assim, as norte-americanas<br />
não ousavam ir além.<br />
Quando este prestígio da Europa,<br />
que funcionava como freio da intemperança,<br />
se rompeu? Com a entrada<br />
dos Estados Unidos na Primeira<br />
Guerra, como grande potência mundial.<br />
De maneira que, se quiséssemos<br />
classificar as consequências his-<br />
tóricas desse conflito, sob o ponto de<br />
vista de ambientes e costumes, diríamos<br />
que o grande acontecimento,<br />
com a queda da Áustria, do último<br />
Sacro Império, foi, em certo sentido,<br />
a ruína da Europa inteira diante do<br />
poderio norte-americano.<br />
Comunismo, ecologia, nudismo<br />
Notem a contradição entre os trajes<br />
e as atitudes das mulheres nesse<br />
ambiente campestre. Esse jogo já<br />
cheira ao esporte, ao estádio, a tudo<br />
quanto conduz à masculinização da<br />
mulher. Entretanto, nas roupas a influência<br />
da velha Europa se impõe.<br />
Mulheres numa partida de golfe nas Olimpíadas de 1900<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
20
tórica enorme, mais como documento<br />
do que como acontecimento. Mas<br />
como acontecimento também tem<br />
muita importância.<br />
Saudação de um<br />
mundo sem tradição<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Banda americana entre os anos 1900-1909 - Minesota, Estados Unidos<br />
Então chegou o automóvel! É interessante<br />
nas primeiras corridas de<br />
carro notar o estado de espírito do<br />
triunfo. Estão todos triunfantes e<br />
querendo se mostrar, como se participassem<br />
um pouco da proeza dos<br />
competidores. Não havia heroísmo<br />
nenhum dentro disso. Não arriscaram<br />
a vida em nada.<br />
É a alegria vivaz de quem saúda<br />
o advento de uma era nova, como<br />
que dizendo “Viva o progresso!”<br />
É a despedida do passado, a ruptura<br />
com a tradição e a saudação de um<br />
mundo sem tradição.<br />
As pessoas saúdam nisso um estado<br />
de espírito despreocupado, prático,<br />
libertado de considerações sentimentais<br />
ou metafísicas do século passado,<br />
livre dos vínculos tradicionais<br />
que ainda amarravam o homem às regras<br />
de educação difíceis, complexas,<br />
às normas de agir subtis, etc. É a técnica<br />
se libertando do pensamento.<br />
Outro efeito da Revolução Industrial,<br />
que não aparece nessas fotografias,<br />
é a arte moderna. A arte<br />
procurou adaptar-se à Revolução<br />
Industrial, e nessa adaptação ela encontrou<br />
um modo sofismado de se<br />
reduzir ao caixotão e às formas simplicíssimas.<br />
Isso ainda não havia surgido<br />
no tempo em que foram tiradas<br />
essas fotografias.<br />
Na foto do concerto de banda, nota-se<br />
a seriedade ainda existente antes<br />
da Primeira Guerra Mundial,<br />
misturada com os costumes futuros.<br />
Tudo isto iria desaparecer. Não<br />
devemos transformar essas considerações<br />
num histórico da alma norte-americana,<br />
mas procurar os efeitos<br />
da Revolução Industrial sobre tudo<br />
isso.<br />
Esses trajes, que as pessoas usavam<br />
só no campo, tornaram-se depois<br />
a indumentária para viajar em<br />
trem, ônibus, automóvel a toda velocidade,<br />
em suma viver no regime de<br />
negócios americano. Todos os ritmos<br />
da Revolução Industrial convidavam<br />
para isso.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
10/9/1986)<br />
1) Reinou de 1830 a 1848.<br />
La Vie au Grand Air (CC3.0)<br />
Gordon Bennett Cup, em 1904<br />
21
Perspectiva pliniana da História<br />
Richard (CC3.0)<br />
Amor,<br />
obediência<br />
e veneração<br />
pela Cátedra<br />
de São Pedro<br />
Cátedra de São Pedro<br />
Basílica do Vaticano<br />
A Cátedra de São Pedro lembra o supremo<br />
governo da Igreja Católica Apostólica Romana.<br />
Se as vicissitudes humanas podem dar a essa<br />
Cátedra brilho maior ou menor, ou até rodeá-la<br />
de trevas, ela é sempre a mesma. Nosso amor<br />
à Santa Igreja é absolutamente sem limites<br />
e acima de todas as coisas da Terra, e deve<br />
incidir de modo especial sobre a Cátedra de<br />
São Pedro, qualquer que seja o seu ocupante.<br />
Vatican Museums (CC3.0)<br />
Arespeito da festa da Cátedra<br />
de São Pedro, Dom Guéranger,<br />
em sua obra L’Année<br />
Liturgique, cita um trecho do Sermão<br />
82 de São Leão Magno. Eis os dizeres<br />
deste Santo Pontífice:<br />
A Providência preparou o<br />
Império Romano para a<br />
pregação do Evangelho<br />
O Deus bom, justo e todo-poderoso,<br />
que jamais negou sua misericórdia<br />
22<br />
São Leão Magno<br />
Museu do Vaticano
ao gênero humano, e que pela abundância<br />
de seus dons forneceu a todos<br />
os mortais os meios de conhecermos<br />
o seu Nome, nos secretos desígnios<br />
de seu imenso amor, teve piedade da<br />
cegueira voluntária dos homens e da<br />
malícia que os precipitava na degradação,<br />
enviou o seu Verbo, que Lhe é<br />
igual e coeterno.<br />
Ora, esse Verbo, tendo-Se feito carne,<br />
tão estritamente uniu a natureza<br />
divina à natureza humana que o abaixamento<br />
da primeira até nossa abjeção<br />
tornou-se para nós o princípio da<br />
elevação mais sublime.<br />
Mas, a fim de difundir no mundo<br />
inteiro os efeitos desse favor, a Providência<br />
preparou o Império Romano<br />
e deu-lhe tão grandes limites que<br />
ele abarcava em seu vasto meio a universalidade<br />
das nações. Foi feita uma<br />
coisa muito útil à realização da obra<br />
projetada, que os diversos reinos formassem<br />
uma confederação de um império<br />
único, a fim de que a pregação<br />
geral chegasse mais rapidamente aos<br />
povos, unidos que já estavam sob o regime<br />
de uma só cidade.<br />
Roma, dominada<br />
pelo demônio, foi<br />
conquistada por Cristo<br />
Esta cidade, desconhecendo o divino<br />
Autor de seus destinos, fizera-se escrava<br />
dos erros de todos os povos, no<br />
instante mesmo em que ela os tinha<br />
sob suas leis e acreditava possuir uma<br />
grande religião, porque não rejeitava<br />
nenhuma mentira. Mas quanto mais<br />
duramente foi dominada pelo demônio,<br />
mais maravilhosamente foi conquistada<br />
por Cristo.<br />
Com efeito, quando os doze Apóstolos,<br />
após terem recebido do Espírito<br />
Santo o dom de falar todas as línguas,<br />
espalhados pelos quatro cantos<br />
da Terra, e que tomaram conta deste<br />
mundo onde deviam difundir o Evangelho,<br />
o Bem-aventurado Pedro, príncipe<br />
dos Apóstolos, recebeu como herança<br />
a cidadela do Império Romano,<br />
a fim de que a luz da verdade que se<br />
manifestava para a salvação de todas<br />
as nações se propagasse mais eficazmente,<br />
difundindo-se no centro desse<br />
Império sobre o mundo inteiro.<br />
Qual a nação, com efeito, que não<br />
contava com numerosos representantes<br />
nessa cidade? Qual povo ignorava<br />
o que Roma ensinava? Era lá que deviam<br />
ser esmagadas as opiniões de Filosofia,<br />
dissipadas as vaidades da sabedoria<br />
terrestre, o culto dos demônios<br />
seria confundido, destruída enfim<br />
a impiedade de todos os sacrifícios, no<br />
mesmo lugar onde uma superstição<br />
hábil reunira tudo o que os diversos<br />
erros haviam produzido.<br />
A unidade civil do<br />
Império Romano<br />
preparou a aceitação<br />
da unidade religiosa<br />
A primeira ideia que aparece neste<br />
texto é de que a humanidade estava<br />
extremamente degradada, e Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo, Segunda Pessoa<br />
da Santíssima Trindade, encarnou-Se,<br />
realizando por esta forma uma descida<br />
que era imensa – porque do mais<br />
alto dos Céus, do infinito, para uma<br />
condição degradada –, mas há uma<br />
correspondência entre o enorme dessa<br />
descida e a extraordinária ascensão<br />
que o gênero humano teve. Porque,<br />
assim como Deus Se humilhou imensamente<br />
encarnando-Se, nós fomos<br />
incomensuravelmente elevados pela<br />
Encarnação d’Ele.<br />
Há uma expressão que diz:<br />
“Quanto maior a altura, tanto maior<br />
o tombo.” Aqui se poderia afirmar,<br />
salvadas as proporções: “Quanto<br />
maior o tombo, maior a altura.”<br />
Quanto mais Deus Se humilhou,<br />
tanto mais nós fomos prodigiosamente<br />
levantados por Ele. Então,<br />
vem acentuada aqui a imensa misericórdia<br />
do dia de Natal, que patenteia<br />
aos homens a elevação sublime e incompreensível<br />
da natureza humana<br />
pela união hipostática na Segunda<br />
Pessoa da Santíssima Trindade.<br />
O segundo pensamento é o seguinte:<br />
esse favor da Providência só<br />
daria todos os seus resultados pela<br />
constituição do Império Romano.<br />
Porque era um Império enorme que<br />
continha, dentro de seu bojo, todas<br />
as nações da orla do Mediterrâneo e<br />
muitas outras ainda. Como se sabe,<br />
o Império Romano estendeu-se até<br />
o atual território da Inglaterra e um<br />
Maquete representando Roma durante o<br />
reinado de Constantino (306-337)<br />
Jean-Pierre Dalbéra (CC3.0)<br />
23
Perspectiva pliniana da História<br />
Gabriel K.<br />
Triunfo de Constantino na Ponte Mílvia<br />
Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque<br />
pouco o da Escócia; e que na linha<br />
sul ele tocou as lindes da Etiópia.<br />
A África do Norte era povoada,<br />
fértil e intensamente latina no tempo<br />
dos romanos, e o poder destes afundou<br />
pela Pérsia adentro, tocando<br />
quase até na Índia. De algum modo,<br />
se podia dizer que o mundo conhecido<br />
era todo romano. Ou seja, houve<br />
uma unificação de incontáveis nações<br />
sob um só Império, e São Leão Magno<br />
mostra porque esta unificação serviu<br />
para a difusão do enorme benefício<br />
que houve, em que Cristo se Encarnasse<br />
e elevasse a natureza humana.<br />
Ele, então, dá algumas razões.<br />
Uma razão, muito rapidamente<br />
mencionada, é ligada ao fato de que<br />
onde há um só Estado, sem fronteiras,<br />
cabe mais facilmente a ideia de<br />
uma só religião. E por causa disso<br />
a unidade civil do Império Romano<br />
preparava as mentes para a aceitação<br />
de uma unidade religiosa.<br />
A Roma dos Papas<br />
Depois ele desenvolve uma ideia<br />
mais viva, que é a seguinte: a cidade<br />
de Roma era como que um coração<br />
mantendo dentro de si, com movimentos<br />
de sístole e diástole, um sangue<br />
que circulava por todo o Império.<br />
Em Roma havia habitantes de<br />
todas as partes do Império, que ou<br />
ali moravam e exerciam influência<br />
sobre suas respectivas províncias, ou<br />
estavam sempre em viagem e assim<br />
levavam a influência de Roma para<br />
os últimos recantos.<br />
De um modo ou de outro, Roma<br />
era como um coração que havia<br />
atraído para si pessoas de todo o Império,<br />
e depois mandava para longe<br />
funcionários, legionários e todo<br />
o aparelho administrativo e militar<br />
romano. De maneira que, cristianizando<br />
a cidade de Roma, estava conquistado<br />
o ponto estratégico para a<br />
cristianização do Império. Feita a<br />
cristianização do Império, estava potencialmente<br />
cristianizado o mundo.<br />
Então ele explica que, por um desígnio<br />
soberano de Deus, Roma foi<br />
escolhida para ser a cidade do Papa<br />
porque era uma cidade estratégica,<br />
onde este benefício da salvação podia<br />
se tornar mais geralmente conhecido.<br />
Daí vem a Cátedra de São Pedro,<br />
a qual se trata de venerar, posta no<br />
centro de influência do mundo inteiro,<br />
e que inoculou em todo o orbe a<br />
regeneração católica, a verdadeira<br />
Fé, disseminou a Igreja.<br />
É bonito verificar como a Providência<br />
age de um modo político interessante.<br />
E eu não recuo diante da palavra<br />
“político”. Enquanto a Igreja era<br />
pequena e fraca, tornava-se necessário<br />
que a sede d’Ela fosse na mais importante<br />
cidade do mundo, para poder espalhar<br />
a sua influência. Mas depois<br />
que a Igreja se difundiu por todo o orbe,<br />
convinha que o Papa, tornado personagem<br />
humanamente poderosíssimo,<br />
não convivesse na mais importante<br />
cidade do mundo com o maior poder<br />
temporal, porque sairia fricção. E<br />
em certo momento, tornou-se necessário<br />
que Roma não fosse mais a capital<br />
política do mundo.<br />
Então, Constantino deixou Roma<br />
e se transladou para Bizâncio. Atribuem<br />
alguns esta ideia a que exatamente<br />
o Imperador não incomodasse<br />
o papa, mas isso é um pouco discutido,<br />
porque Roma já não era capital<br />
do Império. A capital do Império<br />
era Milão, Ravena, e nunca mais Roma<br />
veio a ser a capital de um país que<br />
fosse uma potência internacional.<br />
Nós tivemos a Roma dos Papas,<br />
que foi sempre um pequeno Estado<br />
temporal. Depois a carnavalesca<br />
Roma dos Saboias, capital do reino<br />
da Itália. Esta Roma foi capital de<br />
um Estado de alguma importância na<br />
Europa, mas não de um poder político<br />
e militar mundial. De uma influência<br />
cultural mundial, sim; de um poder<br />
político e militar mundial, não.<br />
24
Vitold Muratov (CC3.0)<br />
Amor sem limites ao papado<br />
e à Cátedra de São Pedro<br />
Poderia começar a aparecer, então,<br />
uma espécie de opressão da Roma<br />
civil, poderosa, sobre a Roma religiosa.<br />
O que se passou? Ocorreu a<br />
coisa mais inesperada do mundo. Para<br />
tocar para a frente a obra de humilhação<br />
do Papa, a Roma dos Saboias<br />
foi uma Roma constitucional e depois<br />
se transformou numa república. Mas<br />
quando se fizeram as eleições, verificou-se<br />
que a maior influência eleitoral<br />
da Itália era o Papa. E hoje em<br />
dia, por detrás do governo democrata-cristão,<br />
é o Papa que governa.<br />
De maneira que os papéis se inverteram<br />
e, em vez de ser a Roma<br />
civil que governa a Roma religiosa,<br />
nós temos, até certo ponto, a Roma<br />
religiosa que governa a Roma civil.<br />
E assim, o desígnio de que o papado<br />
fosse opresso pelo poder civil não<br />
ser realizou.<br />
Será o melhor possível esse governo<br />
democrata-cristão? Uma coisa é<br />
verdadeira: se São Pio X estivesse no<br />
Sólio Pontifício, a Itália seria a nação<br />
mais bem governada do mundo.<br />
Quanto a isto não há dúvida!<br />
Quando se fala da<br />
Cátedra de São Pedro,<br />
refere-se naturalmente<br />
ao móvel da cátedra.<br />
No fundo da Igreja de<br />
São Pedro há uma cátedra<br />
em bronze, feita por<br />
Bernini 1 , cercada de resplendores,<br />
recebendo<br />
por isso o nome de “a<br />
glória de Bernini.” Essa<br />
cátedra é oca e dentro<br />
se encontra o pequeno<br />
trono de madeira, que<br />
São Pedro usava em Roma,<br />
o qual até hoje se<br />
conserva para veneração<br />
dos fiéis e é exposto<br />
em certas ocasiões.<br />
A cátedra simbolicamente<br />
lembra o poder, o<br />
papado, o pontificado, a<br />
continuidade dessa instituição,<br />
através de todos<br />
os homens tão diferentes<br />
que a têm ocupado. Recorda, então,<br />
o supremo governo da Santa Igreja<br />
Católica Apostólica Romana.<br />
Se as vicissitudes humanas podem<br />
dar brilho maior ou menor, ou até<br />
rodear de trevas essa Cátedra, ela é<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1966<br />
sempre a mesma. O supremo governo<br />
da Igreja é a cabeça da Igreja. Quando<br />
se ama alguém, se ama sobretudo<br />
sua face, sua cabeça. Portanto, nosso<br />
amor à Santa Igreja Católica Apostólica<br />
Romana, que é um amor absolutamente<br />
sem limites e acima de todas<br />
as coisas da Terra, deve incidir especialmente<br />
sobre o papado e a Cátedra<br />
de São Pedro, qualquer que seja o<br />
seu ocupante. Porque esse é Pedro, a<br />
quem foram dadas as chaves dourada<br />
e prateada, a do Céu e a do poder indireto<br />
na Terra.<br />
E a este Pedro nós osculamos, em<br />
espírito, os pés, como expressão de homenagem<br />
e de adesão. Porque em relação<br />
à Cátedra de São Pedro, nosso<br />
amor, nossa obediência, nossa veneração<br />
absolutamente não têm limites.v<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
(Extraído de conferência de<br />
17/1/1966)<br />
Altar da Cátedra de São Pedro, Vaticano<br />
1) Gian Lorenzo Bernini (*1598 -<br />
†1680), arquiteto e escultor italiano.<br />
25
WGA (CC3.0)<br />
C<br />
alendário<br />
Beato João de Fiesole<br />
1. Beato Reginaldo de Orleans,<br />
presbítero (†1220). Passando por Roma<br />
e animado pela pregação de São<br />
Domingos, fez-se dominicano, fundou<br />
o grande convento de Bolonha e<br />
deu novo vigor ao de Paris.<br />
2. Apresentação do Senhor. Ver página<br />
2.<br />
Beato Luís Brisson, presbítero<br />
(†1908). Sacerdote da diocese de<br />
Troyes, fundou as congregações das<br />
Irmãs Oblatas e dos Oblatos de São<br />
Francisco de Sales.<br />
3. São Brás, bispo e mártir (†c. 320).<br />
Santo Oscar, bispo (†865).<br />
Beata Maria Helena Stollenwerk,<br />
virgem (†1900). Junto com Santo Arnaldo<br />
Janssen, fundou a Congregação<br />
das Servas Missionárias do Espírito<br />
Santo, em Steyl, Holanda. Após deixar<br />
a função de superiora, se entregou<br />
à Adoração Perpétua.<br />
4. São Nicolau Studita, monge<br />
(†868). Abade do Mosteiro de Studion,<br />
em Constantinopla, hoje Istambul,<br />
Turquia. Foi exilado várias vezes<br />
por defender o culto às imagens.<br />
dos Santos – ––––––<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
5. Santa Águeda, virgem e mártir<br />
(†c. 251).<br />
Santo Avito, bispo (†518). Converteu<br />
ao Catolicismo São Segismundo, rei da<br />
Borgonha. Defendeu as Gálias da heresia<br />
ariana. Faleceu em Vienne, França.<br />
6. São Paulo Miki e companheiros,<br />
mártires (†1597).<br />
São Mateus Correa, presbítero e<br />
mártir (†1927). Durante a perseguição<br />
contra a Igreja, se recusou a revelar<br />
um segredo de Confissão e por isso<br />
foi fuzilado em Durango, México.<br />
7. V Domingo do Tempo Comum.<br />
São Ricardo, leigo (†c. 720). Pai dos<br />
santos Vinebaldo e Valburges, morreu<br />
quando ia com seus filhos em peregrinação<br />
da Inglaterra para Roma.<br />
8. São Jerônimo Emiliani, presbítero<br />
(†1537).<br />
Santa Josefina Bakhita, virgem<br />
(†1947).<br />
Santo Estêvão, abade (†1124).<br />
Fundador da Ordem de Grandmont,<br />
perto de Limoges, França. Com sua<br />
vida austera atraiu numerosos discípulos.<br />
Beato Leopoldo de Alpandeire<br />
9. Beato Leopoldo de Alpandeire,<br />
religioso (†1956). Irmão leigo capuchinho,<br />
que exerceu o ofício de hortelão,<br />
porteiro, sacristão e esmoler. Faleceu<br />
em Granada, Espanha.<br />
10. Santa Escolástica, virgem<br />
(†c. 547).<br />
Beata Eusébia Palomino Yenes,<br />
virgem (†1935). Trabalhou em diversas<br />
casas de família até se tornar religiosa<br />
salesiana, onde deu testemunho<br />
de humildade, em Valverde del Camino,<br />
Espanha.<br />
11. Nossa Senhora de Lourdes.<br />
12. São Ludano, peregrino (†1202).<br />
Natural da Escócia, filho do príncipe<br />
Hildebold, dedicou-se ao serviço dos<br />
doentes e construiu hospitais e orfanatos.<br />
Morreu em Northeim, Alemanha,<br />
quando ia em peregrinação às<br />
basílicas dos Apóstolos.<br />
13. São Paulo Lê-Văn-Lôc, presbítero<br />
e mártir (†1859). No tempo do imperador<br />
Tu Ðúc, foi decapitado às portas<br />
da cidade vietnamita de Thi-Nghè.<br />
14. VI Domingo do Tempo Comum.<br />
São Cirilo, monge (†869) e São<br />
Metódio, bispo (†885).<br />
Beato Vicente Vilar David, mártir<br />
(†1937). Durante a perseguição religiosa,<br />
acolheu sacerdotes e religiosas em<br />
sua casa e por recusar-se a renegar a<br />
Fé, foi fuzilado em Valência, Espanha.<br />
15. São Cláudio de La Colombière,<br />
presbítero (†1682). Sacerdote jesuíta,<br />
superior do Colégio de Paray-<br />
-le-Monial, França, que com seus retos<br />
conselhos, conduziu muitas pessoas<br />
ao amor de Deus.<br />
16. São Maruta, bispo (†a. 420).<br />
Presidiu o Concílio de Selêucia, restaurou<br />
as Igrejas arruinadas na perseguição<br />
do rei Sapor e recolheu as relíquias<br />
dos mártires da Pérsia para serem<br />
veneradas na cidade de sua sede<br />
26
––––––––––––––– * Fevereiro * ––––<br />
episcopal, a atual Silvan, Turquia, que<br />
passou a chamar-se Martirópolis.<br />
17. Sete Santos Fundadores dos<br />
Servitas (†1310).<br />
18. Beato João de Fiesole, presbítero<br />
(†1455). Religioso dominicano e<br />
pintor de fama mundial, mais conhecido<br />
como Fra Angelico, possuía uma<br />
alma profundamente contemplativa.<br />
Morreu no convento de Santa Maria<br />
sopra Minerva, em Roma.<br />
19. Beato José Zaplata, religioso e<br />
mártir (†1945). Religioso da Congregação<br />
do Sagrado Coração de Jesus,<br />
deportado da Polônia para o campo de<br />
concentração de Dachau, Alemanha,<br />
onde morreu vítima dos maus tratos.<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
20. São Leão, bispo (†c. 787). Religioso<br />
beneditino eleito Bispo de Catânia,<br />
Itália. Dedicou com grande diligência<br />
ao cuidado dos pobres e lutou<br />
contra os iconoclastas.<br />
21. I Domingo da Quaresma.<br />
São Pedro Damião, bispo e Doutor<br />
da Igreja (†1072).<br />
Beato Reinaldo de Orleans<br />
dou o Instituto das irmãs dos Anjos<br />
da Guarda, em Bilbao, Espanha.<br />
Butinone Bernardino (CC3.0)<br />
Gachepi (CC3.0)<br />
24. Beata Josefa Naval Girbés, virgem<br />
(†1510). Consagrada a Deus no<br />
mundo, dedicou-se em Algemesí, Espanha,<br />
à catequese das crianças.<br />
Santo Avito<br />
Beato Vicente Vilar David<br />
São Germano, abade (†c. 667).<br />
Procurando defender com diálogos<br />
pacíficos os habitantes vizinhos do<br />
mosteiro de Grandfelt, Suíça, foi atacado<br />
por ladrões e morto atravessado<br />
por uma lança.<br />
22. Festa da Cátedra de São Pedro<br />
Apóstolo. Ver página 22.<br />
São Papias, bispo (†séc. II). Bispo<br />
de Hierápolis, Frígia (atual Turquia).<br />
Foi companheiro de São Policarpo,<br />
recolheu fatos narrados por testemunhas<br />
dos Apóstolos e escreveu vários<br />
comentários sobre os Evangelhos.<br />
23. São Policarpo, bispo e mártir<br />
(†c. 155).<br />
Beata Rafaela Ybarra de Vilallonga,<br />
fundadora (†1900). Mãe de sete<br />
filhos, que com o assentimento do esposo,<br />
emitiu os votos religiosos e fun-<br />
25. Beato Ciríaco María Sancha y<br />
Hervás, bispo (†1909). Bispo de Toledo<br />
e Valência, Patriarca das Índias e<br />
fundador da Congregação das Irmãs<br />
da Caridade do Cardeal Sancha, em<br />
Toledo, Espanha.<br />
26. Santa Paula de São José Calasanz,<br />
virgem (†1889). Fundadora do<br />
Instituto das Filhas de Maria das Escolas<br />
Pias, em Barcelona, Espanha.<br />
Tinha como lema: Piedade e letras.<br />
27. Beata Maria da Caridade Brader<br />
do Amor do Espírito Santo, virgem<br />
(†1943). Religiosa franciscana enviada<br />
da Suíça para Pasto, Colômbia,<br />
onde fundou a Congregação das Irmãs<br />
Franciscanas de Maria Imaculada.<br />
28. II Domingo da Quaresma.<br />
São Romão, abade (†463). Seguindo<br />
o exemplo dos antigos anacoretas, foi<br />
viver como eremita na região do Jura,<br />
França, e depois se tornou pai espiritual<br />
de muitos monges. Ver página 28.<br />
27
Hagiografia<br />
A justiça e a misericórdia<br />
se oscularam<br />
Há espíritos que fazem admiravelmente o bem por meio<br />
da severidade, e outros que o realizam, dentro da medida<br />
do razoável, pela brandura e suavidade. Uns imitam mais<br />
Nosso Senhor enquanto expulsava os vendilhões do Templo;<br />
outros, enquanto Ele perdoava Santa Maria Madalena.<br />
Flávio Aliança<br />
A28 de fevereiro a Igreja comemora<br />
a festa de São Romão,<br />
abade. Temos a comentar<br />
uma ficha biográfica tirada da<br />
obra de Daras, Les Vies des Saints.<br />
Lutar corajosamente<br />
contra o demônio<br />
São Romão, nascido em 399, na<br />
Borgonha, foi fundador de um famoso<br />
convento na região do Franco Condado.<br />
Desde jovem retirou-se para a<br />
solidão, sendo mais tarde seguido por<br />
seu irmão, São Licínio. Conta-se que<br />
levavam uma vida que consideravam<br />
de paz e felicidade, quando o demônio<br />
resolveu interrompê-la. Cada vez<br />
que se punham de joelhos para rezar,<br />
o demônio fazia cair sobre eles uma<br />
chuva de pedras cortantes, que os feriam<br />
e impediam de continuar. Ambos<br />
resistiram por algum tempo, mas,<br />
vendo que nada conseguiam, decidiram<br />
abandonar o retiro. Ao chegarem<br />
a uma aldeia, foram hospedados por<br />
uma pobre mulher que lhes perguntou<br />
de onde vinham. Não sem alguma<br />
vergonha, narraram toda a verdade.<br />
— Vós deveríeis, disse a mulher, lutar<br />
corajosamente contra o demônio e<br />
não temer os embustes e ódio daquele<br />
que tão frequentemente foi vencido<br />
pelos amigos de Deus. Se ele ataca os<br />
homens, é por medo de que eles, por<br />
suas virtudes, subam ao lugar de onde<br />
a perfídia diabólica o fez cair.<br />
Ao saírem dessa casa, consideraram<br />
a sua fraqueza e quão pouco haviam<br />
combatido. Voltaram sobre seus passos<br />
e, com orações e paciência, venceram<br />
o inimigo.<br />
São Licínio era severíssimo<br />
e São Romão agia<br />
com brandura<br />
Mais tarde, tendo já fundado numerosos<br />
mosteiros, os dois irmãos visitavam<br />
essas fundações com frequência. São Licínio<br />
era severíssimo, não perdoando o<br />
menor deslize. São Romão, ao contrário,<br />
era bem mais misericordioso.<br />
Aconteceu que São Licínio, visitando<br />
um convento na Alemanha, encontrou<br />
na cozinha excessiva quantidade<br />
de legumes e peixes. Escandalizado<br />
com aquilo, fez cozinhar tudo<br />
junto para castigo dos monges. A comida<br />
saiu tão repugnante que doze religiosos<br />
deixaram a casa, não suportando<br />
a penitência. São Romão teve<br />
28<br />
Cristo expulsa mercadores do Templo<br />
Museu Palazzo Rosso, Gênova
Flávio Lourenço<br />
Jesus comendo na casa do fariseu Simão - Museu de Belas Artes, Rennes, França<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
uma visão sobre esse acontecimento e,<br />
quando Licínio voltou, disse-lhe:<br />
— Meu irmão, é melhor não visitar<br />
as ovelhas do que ir vê-las para dispersá-las.<br />
Resposta de São Licínio:<br />
— Não tenhais pena, meu caro irmão!<br />
Não é preciso purificar o campo do<br />
Senhor e separar a palha do bom grão?<br />
Os que se foram eram doze orgulhosos<br />
em quem o Senhor não mais habitava.<br />
São Romão concordou. Mas daí em<br />
diante chorava tão profundamente, magoado<br />
com a partida dos monges, que<br />
Deus, atendendo suas preces, reconduziu<br />
mais tarde os doze recalcitrantes ao<br />
convento. A ele se apresentaram voluntariamente<br />
para fazer penitência.<br />
São Romão e São Licínio<br />
Combatentes varonis<br />
Nesta narração há uma série de<br />
fatos interessantes para considerar.<br />
Em primeiro lugar, encontramo-<br />
-nos em face da admirável floração<br />
de Santos ocorrida depois da queda<br />
do Império Romano do Ocidente.<br />
Vemos dois irmãos que levam uma<br />
vida de grande santidade, num lugar<br />
ermo, em meio a uma natureza<br />
amena, bucólica, felizes sem os<br />
atrativos das coisas da cidade, nem<br />
do mundo.<br />
Podemos imaginar, nas horas de<br />
oração, esses irmãos ajoelhados, rezando<br />
um ao lado do outro – assim<br />
os representaria uma iluminura –,<br />
Nossa Senhora aparecendo no alto e<br />
sorrindo para eles.<br />
Então, um primeiro ato é o da felicidade<br />
eremítica e bucólica desses<br />
dois irmãos, que vivem numa atmosfera<br />
terrena encimada por um céu<br />
parecido com o ar diáfano daqueles<br />
firmamentos azuis de Fra Angelico.<br />
Em seguida, vem a provação. O<br />
demônio, que lhes tem ódio, emprega<br />
um modo de castigá-los muito interessante:<br />
uma chuva de pedras cortantes.<br />
Eles, tão bonzinhos, tão direitinhos...<br />
vem uma chuva medonha<br />
de pedras cortantes e os molesta.<br />
Procuram, então, rezar direito, mas<br />
afinal de contas as pedras são muito<br />
sérias e eles resolvem sair.<br />
Encontram, por fim, uma boa mulher<br />
que habita uma choupana no<br />
campo. Ela perdeu o marido, tem<br />
um filho que mora longe e de quem<br />
apenas recebe, de vez em quando,<br />
uma carta; com uma perna inchada,<br />
doente, reumática, reza o tempo inteiro<br />
e vive só para Deus.<br />
Essa mulher, provada por sofrimentos<br />
e cheia de sabedoria, recebe<br />
os dois e, naturalmente, primeiro<br />
lhes oferece algo para comer, ajuda<br />
a curar alguma ferida causada pelas<br />
pedras e depois pergunta o que há.<br />
Fora está chovendo torrencialmente,<br />
eles estão abrigados na casinha<br />
da mulher e lhe contam o ocorrido.<br />
Ela suspira, põe os olhos num crucifixo<br />
e afirma:<br />
29
Hagiografia<br />
— Irmãos, andastes mal...<br />
E lhes diz a verdade.<br />
Eles, compungidos, passam a noite<br />
em prece. Na manhã seguinte, voltam<br />
para o ermo e vão lutar contra o demônio.<br />
São dois guerreiros contra o<br />
maligno que emergem dessa atmosfera<br />
azul e rosa-claro, ouro rutilante, os<br />
quais, a partir desse momento, transformam-se<br />
em lutadores varonis. É a<br />
formação deles que assim se enuncia.<br />
Esse era o ambiente e o modo pelo<br />
qual a graça operava nessa época. Portanto,<br />
não se trata de lenda, mas é o<br />
estilo da ação de Deus nesse período.<br />
Os diferentes métodos devem<br />
ser utilizados de acordo<br />
com o sopro da graça<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Depois – na ficha saltam-se vários<br />
anéis intermediários –, eles nos aparecem<br />
numa posição pomposa, majestosa.<br />
São dois Santos veneráveis, cuja fama<br />
de santidade reuniu em torno deles<br />
vários conventos que lhes<br />
obedecem. Tornaram-se patriarcas,<br />
provavelmente já de<br />
barbas brancas, mais sábios,<br />
mais provados na vida do que<br />
aquela mulher, derrotaram os<br />
demônios, enfrentaram os adversários,<br />
fizeram viagens perigosas<br />
passando por lugares<br />
onde havia feras, pontes mal<br />
construídas, bandidos, tempestades,<br />
tudo enfrentaram<br />
por causa de Deus Nosso Senhor.<br />
Estão no zênite de suas<br />
vidas, porém mais uma vez um<br />
episódio entre eles se dará.<br />
Há uma certa medida de severidade<br />
e de brandura que deve<br />
ser utilizada de acordo com<br />
o sopro da graça e com o modo<br />
pelo qual o Divino Salvador<br />
quer conduzir os espíritos.<br />
Existem espíritos que só sabem<br />
fazer bem por meio da severidade<br />
suma, e realizam um bem<br />
admirável. Há outros espíritos<br />
que, dentro da medida do razoável,<br />
quase se diria que estão no extremo<br />
oposto: são muito brandos, muito<br />
suaves, e fazem bem pela sua brandura<br />
e suavidade. Uns imitam mais Nosso<br />
Senhor enquanto expulsava os vendilhões<br />
do Templo; outros enquanto Ele<br />
perdoava Santa Maria Madalena.<br />
Começam a governar esses mosteiros.<br />
São Licínio visita um deles e,<br />
encontrando irregularidades, aplica<br />
uma correção severa. Entretanto a<br />
Igreja é multíplice, e São Romão tinha<br />
o espírito diverso de seu irmão.<br />
Notem a sutileza e o conteúdo teológico<br />
interessantíssimo do fato: São<br />
Romão lamentou tal atitude e censurou<br />
São Licínio. Este deu-lhe uma<br />
resposta esplêndida, explicando tudo.<br />
São Romão, suspirando, concordou.<br />
Severidade e doçura<br />
aliadas à força da oração<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1967<br />
Mas a Providência quis que a misericórdia<br />
não saísse derrotada. Onde<br />
São Licínio tinha feito bem em<br />
expulsar, São Romão fez bem em<br />
pedir que voltassem. Este se pôs a<br />
chorar, e vê-se então o velho com<br />
as barbas brancas, numa atitude enternecida,<br />
pensando naquelas almas,<br />
as lágrimas cristalinas de olhos<br />
cristalinos, que correm ao longo de<br />
uma face alva e emaciada e chegam<br />
a cair no chão, enternecem o Anjo<br />
da Guarda e encontram eco diante<br />
de Nossa Senhora, a Qual, por<br />
sua vez, tem sempre audiência diante<br />
de Deus. Maria Santíssima pede.<br />
Resultado: os monges, que São<br />
Licínio com tão boa vassoura varrera,<br />
voltam. Não regressam como<br />
ele tinha varrido, mas emendados<br />
por uma ação que está para além<br />
das vias normais da graça: não é o<br />
corretivo de São Licínio, mas uma<br />
bela superação dele. A graça conseguiu<br />
a conversão daqueles que a<br />
justiça, a tão bom título e tão oportunamente,<br />
tinha castigado. Iustitia<br />
et pax osculatæ sunt, diz o<br />
Salmo (85, 11) – a justiça e<br />
a paz se oscularam. Aqui se<br />
poderia afirmar que a justiça<br />
e a misericórdia se oscularam.<br />
E termina assim, num<br />
encantador happy end, esta<br />
ficha.<br />
Que São Romão nos consiga<br />
essa candura de alma, tão<br />
extraordinariamente agradável,<br />
para praticarmos a virtude.<br />
Mas que tenhamos também<br />
a compreensão dos métodos<br />
de São Licínio, e não<br />
apenas a ternura empregada<br />
por São Romão. E nos façam<br />
parecidos com eles: São Licínio<br />
nos dê toda a sua severidade;<br />
e São Romão, a sua doçura<br />
com sua força de oração,<br />
pois sem esta de nada lhe valeria<br />
a doçura. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
28/2/1967)<br />
30
Luzes da Civilização Cristã<br />
Como um voo<br />
Alberto Luccaroni (CC3.0)<br />
angélico<br />
Assim como o gótico, no seu início, manifestava uma força muito<br />
grande, com riquezas de graça, delicadeza e leveza que só depois<br />
se exprimiram, do mesmo modo, olhando para ele, no fundo de<br />
nossas almas católicas há um anseio de que algo novo, realmente<br />
magnífico ainda apareça. Nas obras do Espírito Santo não pode haver<br />
contradição. Tudo é lógica por mais que o passo seja enorme.<br />
ACatedral de Ravena, na Itália, é um edifício octogonal<br />
construído num estilo bizantino muito<br />
característico, com aquelas figuras em mosaico,<br />
típicas da arte bizantina, postas numa espécie de estado<br />
contemplativo, desligadas das circunstâncias concretas<br />
de tudo, sobre um fundo dourado.<br />
Os diversos estilos ao sopro do Espírito Santo<br />
Passar desse estilo para o românico constitui, sem dúvida,<br />
um salto. Não se deve confundir o românico com o greco-<br />
-romano. Este último é o estilo grego com pequenas adaptações<br />
feitas pelos romanos. O românico é uma adaptação que<br />
os bárbaros fizeram do estilo romano a algo existente na alma<br />
deles e que não havia no espírito da civilização romana.<br />
Quando consideramos um estilo mais próximo do românico,<br />
como é o da época de Ravena, não é fácil perceber<br />
que de lá surgirá o românico. Entretanto, ao ver o<br />
românico e depois o gótico, percebemos que o gótico estava<br />
nascendo no românico.<br />
Então, podemos dizer que o espírito de Ravena correspondia<br />
a alguma coisa do gótico, mas com interferência<br />
de algo violentamente diferente ligado ao romano antigo.<br />
Já do românico para o gótico, pelo contrário, continua<br />
em linha reta.<br />
Assim como o gótico, no seu início, manifestava uma força<br />
muito grande, com riquezas de graça, delicadeza e leveza<br />
que só depois se exprimiram, mas que já estavam presentes<br />
no gótico originário, poderíamos perguntar o seguinte:<br />
quando o gótico chegou a exprimir a sua delicadeza, a par<br />
de sua força, ele estava esgotado ou tinha mais algo?<br />
A força e a graça são posições ou valores harmônicos,<br />
mas tão diversos entre si que se diria, à primeira vista,<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Marie Thérèse Hébert & Jean Robert Thibault (CC3.0)<br />
Fachada e detalhes<br />
da Catedral de<br />
Ravena, Itália<br />
tratar-se de uma contradição. Mas, de fato, dentro das<br />
coisas da Igreja, como nas obras do Espírito Santo, não<br />
pode haver contradição. Tudo é lógica por mais que o<br />
passo seja enorme.<br />
Algo de novo ainda poderá surgir do gótico<br />
Tomado esse conjunto de força e de graça, qual é a nova<br />
perfeição contida potencialmente no espírito católico<br />
e que viria a se exprimir no Reino de Maria?<br />
Poder-se-ia conjeturar que fosse uma coisa muito ousadamente<br />
diversa e profundamente afim, mais ou menos<br />
como a capa leve e graciosa de uma rainha, capaz de<br />
tremular ao vento de tal maneira que uma pessoa pensasse<br />
ter sido a capa dilacerada pela ventania. Mas, na<br />
realidade, ela nunca se rasgou; voltou-se de um lado e<br />
de outro e deu, por vezes, uma impressão de fragmentação,<br />
porém um olhar bem exercitado perceberia a unidade<br />
que nunca se rompeu. Assim, nós poderíamos conjeturar<br />
o que seria o estilo do Reino de Maria.<br />
Algo, portanto, que seria uma continuação do gótico<br />
surpreendentemente descontínua na aparência, compensando,<br />
por assim dizer, a sensação de fim de caminho,<br />
de perfeição que não há como acrescer ao que o gótico<br />
trazia consigo.<br />
Há como crescer! Com um salto prodigioso, mas um<br />
salto de Anjo. Um voo, não um salto, numa direção inteiramente<br />
diversa, que apareceria e começaria a bri-<br />
Isatz (CC3.0)<br />
Darkugo (CC3.0)<br />
32
lhar de um modo superior à conjetura do espírito humano.<br />
Uma beleza que a graça faria ver em determinado<br />
momento. Então, a nossa exclamação de entusiastas<br />
do gótico, que quereríamos vê-lo conservado com veneração<br />
no esplendor do Reino de Maria, seria: “Ah, era isso<br />
mesmo que faltava!”<br />
Porque, embora olhando para o gótico tenhamos a<br />
impressão de não lhe faltar nada, no fundo de nossas almas<br />
católicas há um anseio de que algo novo, realmente<br />
magnífico, ainda apareça.<br />
Um golpe de gênio<br />
Dou um exemplo que pode chocar alguns rigoristas do<br />
gótico. Bernini 1 foi um artista muito marcado pela Renascença;<br />
entretanto, ele teve um golpe de gênio construindo<br />
aquela colunata do lado de fora da Basílica de<br />
São Pedro. Após ter visto essa colunata<br />
com olhos de homem maduro<br />
capaz de fazer uma análise, ficaram<br />
dois efeitos no meu espírito.<br />
Em primeiro lugar, um conjunto<br />
de colunas coberto, tendo, portanto,<br />
algo em comum com uma igreja<br />
ou casa, mas muito mais arejado<br />
do que qualquer destes ambientes;<br />
uma colunata fora da igreja,<br />
mas continuando o edifício sagrado,<br />
constitui uma espécie de meio-<br />
-termo harmônico entre o templo e o<br />
mundo profano, que agrada ao espírito<br />
conceber.<br />
O próprio traçado da colunata da<br />
Basílica de São Pedro é firme, lógico;<br />
neste ponto pouco renascentista<br />
por ser um traçado forte e sério, não<br />
tendo aquele aspecto trêmulo das<br />
coisas renascentistas.<br />
Ademais, a colunata é majestosa.<br />
Dir-se-ia que cada coluna é como<br />
um soldado invisível prestando armas<br />
e continência ao rei que passa.<br />
Neste caso é o mais alto Rei da Terra,<br />
o Papa, não considerado apenas<br />
como soberano dos Estados Pontifícios,<br />
mas como Rei deste Reino de<br />
tamanho mais do que cesáreo, que é<br />
Igreja Católica Apostólica Romana,<br />
a qual se estende sobre toda a Terra,<br />
penetra em todos os povos e abriga<br />
em si todas as raças.<br />
Outro efeito causado pela colunata<br />
em meu espírito é a ideia<br />
de que, depois de Bernini ter descoberto essa fórmula,<br />
ninguém construiu uma igreja tão magnífica que<br />
merecesse uma colunata, e se fizesse ficaria uma cópia<br />
desagradável porque pretensiosa. Por outro lado,<br />
mais ninguém teve talento para conceber um conjunto<br />
de colunas e dar-lhe um desenho novo, que não seja<br />
uma repetição da colunata de São Pedro. Ficou, portanto,<br />
uma coisa encalhada. Mas vejo na colunata de<br />
Bernini algo no qual talvez se pudesse vislumbrar um<br />
prenúncio falho, abortivo, de um elemento para o Reino<br />
de Maria.<br />
É uma hipótese que eu carrego de incertezas; mas fica-me<br />
uma impressão meio conjectural na alma de que,<br />
para o exterior de igrejas, alguma coisa assim se inventará<br />
no Reino de Maria, e para cuja elaboração essa<br />
obra de Bernini foi apenas um esboço.<br />
Igreja da Abadia de Maria Laach (estilo românico)<br />
Renânia-Palatinado, Alemanha<br />
Nikanos (CC3.0)<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
Deus deverá suscitar, a<br />
pedido de Nossa Senhora,<br />
um homem com talento<br />
Dentro da Basílica de São Pedro encontramos<br />
o Altar da Confissão, encimado por<br />
um dossel sustentado por quatro colunas<br />
também esculpidas por Bernini. Como todas<br />
as obras de arquitetura da grande épo-<br />
MarkusMark (CC3.0)<br />
Jean-Pol GRANDMONT (CC3.0)<br />
Colunata de Bernini - Praça de São Pedro, Vaticano<br />
Mathieu_Pinto (CC3.0)<br />
Altar da Confissão - Basílica de São Pedro, Vaticano<br />
ca da Itália, são feitas de mármore. Os mármores italianos<br />
são lindíssimos, e a pedra de que é construído aquele<br />
conjunto é muito bonita. Entretanto, as colunas não<br />
me agradam, por serem esculpidas num formato espiral<br />
grossão e mole.<br />
Mas está ali uma tentativa de representar algo que<br />
correspondesse à seguinte pergunta do espírito humano<br />
diante de uma coluna: “Esta coluna não poderia ter um<br />
traçado em que ela, sem deixar de ser coluna, sugeriria a<br />
ideia de um movimento mais elegante, mais leve?”<br />
O artista tentou dar a resposta com aquela fórmula.<br />
A meu ver, ele fracassou. Mas não haveria uma solução?<br />
Nesta procura de algo que fizesse com que a coluna, sem<br />
deixar de ser majestosa, alta e forte, apresentasse algo<br />
de ligeiro, que é quase a antítese da coluna? Admito a<br />
possibilidade de que seja assim, mas é uma incógnita.<br />
Deus deverá suscitar, a pedido de Nossa Senhora, um<br />
homem com talento igual ou talvez muito maior do que<br />
o de Bernini para apresentar uma fórmula nessa linha.<br />
Simplesmente em torno desses dois elementos – a colunata<br />
externa da Basílica de São Pedro e o sonho que<br />
as colunas do Altar da Confissão não realizaram – quiçá<br />
nascesse um estilo novo.<br />
34<br />
Visão Geral da Praça de São Pedro, Vaticano
Hipóteses que não se podem perder de vista<br />
Na Basílica de São Paulo, situada fora dos muros de<br />
Roma, há também elementos artísticos muito bonitos<br />
que apontam para um novo estilo, e cuja história conto<br />
resumidamente.<br />
No século XIX, aquela Basílica sofreu um incêndio que<br />
danificou gravemente os vitrais. Quando o Papa Pio IX<br />
mandou reconstruir a igreja, surgiu o problema de<br />
substituir os vitrais perdidos, por outros que estivesse<br />
à altura da beleza da Basílica. Às vezes, Deus Se<br />
compraz em ser glorificado pelos seus adversários. O<br />
Sultão da Turquia, maometano, ofereceu ao Pontífice<br />
chapas de alabastro muito finas e bonitas, que davam<br />
cada uma para encher o vácuo de uma janela.<br />
Assim, por presente desse filho de Maomé, apareceu<br />
uma forma de “vitral” muito bonita, porque<br />
tinha o indeciso da luz que penetra através de certo<br />
tipo de alabastro, com a delicadeza dos veios<br />
discretos, mas imaginosos, que as pedras por vezes<br />
apresentam.<br />
Pio IX não teve dúvida nenhuma e mandou colocar<br />
os alabastros.<br />
Em viagem a Roma, pude ver algumas dessas<br />
peças detidamente, e me veio ao espírito esta pergunta:<br />
“Será que matérias homogêneas e não mais<br />
com aquela riqueza cromática dos vitrais, mas com<br />
um colorido homogêneo e discreto, não representariam<br />
a nova fórmula de vitral no Reino de Maria?”<br />
Diz-se com entusiasmo o que eu vou afirmar<br />
sem entusiasmo: a indústria está muito avançada,<br />
e por isso se fabricam joias falsas com toda espécie<br />
de matérias levadas a altas temperaturas. Não haveria<br />
algum grande artista capaz de fabricar matérias<br />
mais bonitas do que o alabastro, e que, entretanto,<br />
representassem uma fórmula nova para os vitrais<br />
de uma igreja, de um palácio ou de um castelo?<br />
São hipóteses que não podemos perder de vista,<br />
compreendendo que se deve sentir nisto sempre<br />
o espírito gótico, e nunca o repúdio desse espírito.<br />
O espírito gótico presente, completado por<br />
mais uma ogiva, que seria o elemento novo por ele<br />
explicitado.<br />
Se pudéssemos imaginar como será um Santo no Reino<br />
de Maria, então conseguiríamos vislumbrar alguma<br />
coisa da arte nesse Reino.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 28/7/1989)<br />
1) Gian Lorenzo Bernini (*1598 - †1680), arquiteto e escultor<br />
italiano.<br />
Fachada da Basílica de São Paulo Extramuros, Roma<br />
Interior da Basílica de São Paulo Extramuros, Roma<br />
Berthold Werner (CC3.0)<br />
Tango7174 (CC3.0)<br />
35
Luis C.R. Abreu<br />
Admirável lição de confiança<br />
Estamos vivendo uma terrível hora<br />
de castigos, mas também uma<br />
admirável hora de misericórdia. A<br />
condição para isto é olharmos para Maria,<br />
a Estrela do Mar, que nos guia em<br />
meio às tempestades.<br />
Durante mais de cem anos, movida de<br />
compaixão para com a humanidade pecadora,<br />
a Santíssima Virgem, em Lourdes,<br />
tem nos alcançado os mais estupendos<br />
milagres. Esta piedade se terá extinguido?<br />
Têm fim as misericórdias de uma Mãe, e<br />
da melhor das mães? Quem ousaria afirmá-lo?<br />
Se alguém duvidasse, Lourdes lhe<br />
serviria de admirável lição de confiança.<br />
Nossa Senhora há de nos socorrer.<br />
(Extraído de Catolicismo n. 86,<br />
fevereiro de 1958)<br />
Nossa Senhora de Lourdes<br />
Capela a Ela dedicada,<br />
Mairiporã, Brasil