11.04.2013 Views

METODOLOGIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA, REALISMO CRÍTICO E TEORIA PÓS ...

METODOLOGIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA, REALISMO CRÍTICO E TEORIA PÓS ...

METODOLOGIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA, REALISMO CRÍTICO E TEORIA PÓS ...

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>METODOLOGIA</strong> E <strong>FILOSOFIA</strong> <strong>DA</strong> <strong>CIÊNCIA</strong>, <strong>REALISMO</strong> <strong>CRÍTICO</strong> E <strong>TEORIA</strong><br />

<strong>PÓS</strong>-KEYNESIANA<br />

RESUMO<br />

Fabrício Jose Missio (CEDEPLAR)<br />

O objetivo deste trabalho é fazer um survey no intuito de resgatar alguns dos debates travados<br />

no âmbito da filosofia da ciência, desde o positivismo lógico até o realismo crítico, a partir<br />

dos críticos mais referidos nesses debates, a saber, Popper, Kuhn e Lakatos, bem como de<br />

algumas posições metodológicas acerca da discussão sobre objeto e método em economia,<br />

tais como as apresentadas em Mill e Robbins, passando pelos aspectos da metodologia da<br />

economia positiva fridmaniana. Não obstante, a ênfase do trabalho será na retomada dos<br />

argumentos que integram o realismo crítico de Lawsons (1997) e de sua inter-relação com a<br />

teoria pós-keynesiana. As considerações finais apontam para a existência de confluência entre<br />

estas duas abordagens.<br />

ABSTRACT<br />

The objective of this work is to do a survey in order to rescue some of the debates within the<br />

philosophy of science from logical positivism to critical realism, from the critics referred to in<br />

these debates, namely, Popper, Kuhn and Lakatos, and, in some locations methodological<br />

discussion about the object and method in economics, such as those presented in Mill and<br />

Robbins, through the aspects of the methodology of positive economics fridmaniana.<br />

Nevertheless, the emphasis of the work will be resumed in the arguments that make up the<br />

critical realism of Lawsons (1997) and their interrelationship with the post-Keynesian theory.<br />

The conclusions point to the existence of confluence between these two approaches.


1 Introdução<br />

O realismo em filosofia da ciência surge como forma de escapar da crise do caráter<br />

prescritivo da metodologia tradicional 1 . Mais especificamente, deve-se considerar que esta<br />

última, fundada no empirismo, parte de uma visão de mundo de que existe uma realidade<br />

objetiva independente da mente humana e de que o conhecimento científico só pode ser<br />

gerado a partir da observação de fenômenos empíricos. Evidentemente, por várias razões, essa<br />

abordagem enfrentou uma série de críticas, conforme pode ser observado nos debates<br />

metodológicos que envolveram Popper, Kuhn e Lakatos, entre outros.<br />

Para alguns economistas, o realismo crítico ganha destaque porque suas prescrições<br />

metodológicas possibilitam o encontro de fundamentos filosóficos alternativos a forma até<br />

então predominante de se fazer ciência. Nesse sentido, alguns autores identificam no realismo<br />

crítico os fundamentos filosóficos da escola pós-keynesiana, ainda que dentro dessa escola<br />

isso não seja consensual.<br />

Para entender este ponto, é necessário considerar que, por um lado, a abordagem pós-<br />

keynesiana estuda a atividade econômica a partir do entendimento de um conjunto complexo<br />

de crenças e proposições que caracterizam o mundo em que os agentes atuam. Logo, o ponto<br />

de partida para a pesquisa econômica deve ser as particularidades, as características, as<br />

instituições e atores humanos, considerados propriedades enraizadas e cotidianas das<br />

atividades econômicas do mundo real. Em outras palavras, deve-se partir do entendimento da<br />

economia como processos não-ergódicos formados por estruturas políticas, econômicas e<br />

sociais incorporadas em um processo histórico que torna a realidade transmutável, cuja<br />

mudança ocorre pela interação da ação humana com as estruturas mencionadas e cuja própria<br />

ação humana é derivada, em parte, de fatores éticos, culturais, políticos e ideológicos.<br />

Por outro lado, o realismo crítico defende que o cientista deve buscar “campos de<br />

conhecimento” ou “níveis de realidade” que estão além daqueles possíveis pelas experiências/<br />

observações empíricas. Ou seja, existe uma realidade que não é transparente, mas que precisa<br />

ser conhecida para haver uma melhor compreensão do mundo. Existem, portanto, no mundo<br />

estruturas não empíricas subjacentes aos fenômenos, que delimitam e possibilitam os estados<br />

das coisas e eventos verificados em nível empírico. Isso significa, em outras palavras, superar<br />

a visão empirista, popperiana ou qualquer de suas derivações utilizadas pela economia<br />

mainstream.<br />

Tendo em vista o que foi exposto, o objetivo do trabalho é fazer um survey com alguns<br />

dos principais argumentos (e referências) que retomam essa discussão, em especial, no que<br />

tange aos fundamentos filosóficos do Realismo crítico, tendo como objetivo evidenciar a tese<br />

em si e algumas das contribuições posteriores que discutem a interação entre o realismo<br />

crítico e a escola pós-keynesiana. Para cumprir com o objetivo, o trabalho encontra-se<br />

dividido em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais. A seção 2 faz<br />

uma breve recuperação dos principais autores envolvidos nos debates metodológicos com<br />

maior influência sobre os economistas, a saber, Popper, Kuhn e Lakatos e a seguinte recupera<br />

a posição metodológica de Mill e Robbins. A seção 4 apresenta o positivismo lógico e o<br />

realismo crítico e a seguinte discute a adequação do realismo crítico na qualidade de<br />

fundamento filosófico da escola pós-keynesiana.<br />

1 Além do realismo crítico, surgiram outras correntes metodológicas, como as que defendem, ou o niilismo<br />

metodológico (FAYERABEND, 1975) ou o pluralismo metodológico, sem negar a existência de uma realidade<br />

objetiva ao alcance do entendimento; ou ainda, aquelas que negam a precedência do conhecimento científico<br />

sobre outras formas de conhecimento, ou até mesmo a possibilidade de existência do primeiro. Neste caso, há<br />

correntes metodológicas que negam qualquer critério de demarcação ou de avaliação de teorias, enquanto outras<br />

propõem a precedência da linguagem e das criações conceituais e teóricas sobre a realidade objetiva<br />

(VASCONCELOS et al., 1999).<br />

1


2 Filosofia da Ciência e Metodologia Econômica: Popper, Khun e Lakatos<br />

Ao tratar de questões filosóficas e metodológicas, é possível afirmar que a ciência<br />

econômica teve seu caminho influenciado principalmente pelos lógico-positivistas (Círculo de<br />

Viena), pelo popperianismo, por Kuhn e Lakatos e, mais recentemente, pela interpretação<br />

retórica de McCloskey. Todavia, há de se considerar que ainda hoje a interpretação<br />

popperiana constitui a interpretação responsável pelos fundamentos científicos da corrente<br />

dominante (neoclássica) do pensamento econômico (HERSCOVICI, 2002).<br />

A discussão iniciada pelos lógico-positivistas tinha por objetivo a busca de um (único)<br />

método verdadeiramente científico capaz de ser aplicado a todas as disciplinas que<br />

almejassem o status de ciência. O objetivo era encontrar um critério de demarcação capaz de<br />

definir uma separação clara entre o conhecimento científico e o conhecimento não-científico<br />

(metafísico), sendo o critério proposto o método a ser empregado para obter determinadas<br />

conclusões, qual seja, a observação. Mais especificamente, para estes pensadores constitui<br />

conhecimento científico o conhecimento que é provado (ou passível de prova) a partir da<br />

observação. Nesse sentido, fazem parte do seu modelo teórico apenas afirmações de<br />

fenômenos que podem ser observáveis. Em síntese, o conhecimento científico é construído<br />

pela indução a partir de uma base segura obtida pela observação e a medida que aumenta o<br />

número de dados estabelecidos pela observação e pelo experimento, novas leis e/ou teorias de<br />

maior generalidade e escopo são construídas pelo raciocínio indutivo. Isso significa dizer que<br />

o crescimento da ciência é tido como contínuo, para frente e para o alto, conforme o fundo de<br />

dados de observação aumenta.<br />

Não obstante a emergência de certo “consenso” com a respeito a esta epistemologia<br />

proposta pelos lógico-positivistas, alguns problemas e paradoxos ligados à noção de<br />

confirmação 2 foram sendo expostos ao longo do tempo por autores dedicados ao estudo da<br />

metodologia da ciência. Ainda que estas observações já estivessem presentes na primeira<br />

metade do século XX, é somente na sua segunda metade, após Karl Popper apresentar suas<br />

críticas à lógica positivista, que a posição hegemônica se desfaz, cedendo lugar à crescente<br />

aceitação da tese popperiana falsificacionista.<br />

O objetivo de Popper era examinar, de forma extensiva, os problemas da demarcação e<br />

da indução. No entanto, como o problema da indução é apenas outra face do problema da<br />

demarcação, a solução apresentada para este último valeria também para o primeiro<br />

(POPPER, 1963, p. 83). A tese da demarcação parte do princípio de que o “científico” deve<br />

ser potencialmente falseável pela observação empírica, isto é, deve existir pelo menos um<br />

enunciado básico empírico sobre o qual a teoria pode ser testada. Logo, ao contrário dos<br />

lógico-positivistas, Popper não identifica verificação empírica com cientificidade, mas<br />

cientificidade com falseabilismo. Nessa perspectiva, um investigador falsificacionista admite<br />

livremente que a observação é orientada pela teoria e a pressupõe. As teorias são interpretadas<br />

como conjecturas especulativas ou suposições criadas livremente pelo intelecto humano no<br />

sentido de superar problemas encontrados por teorias anteriores e dar uma explicação<br />

adequada do comportamento de alguns aspectos do mundo. Uma vez propostas, as teorias<br />

especulativas devem ser rigorosa e inexoravelmente testadas por observação e experimento.<br />

Teorias que não resistem a testes observacionais e experimentais devem ser eliminadas e<br />

2 De forma preliminar, é possível argumentar que o critério de demarcação adotado pelos lógico-positivistas<br />

incorre em pelo menos dois problemas fundamentais, a saber: i) não é possível verificar conclusivamente uma<br />

proposição científica em virtude do problema da testabilidade infinita, ou seja, não se pode assegurar que uma<br />

proposição até então confirmada passe necessariamente pelo próximo teste empírico, de forma que sempre existe<br />

a possibilidade de que uma proposição até então confirmada e, portanto, considerada científica, venha a ser<br />

refutada; e ii) a utilização pela ciência de termos teóricos constituiu um problema nessa abordagem, porque os<br />

termos teóricos são, por definição, não empíricos, e, sim, metafísicos.<br />

2


substituídas por conjecturas especulativas ulteriores. Nesse sentido, a ciência progride por<br />

tentativa e erro, por meio de conjecturas e refutações (CHALMERS, 1994).<br />

Segundo Marin e Fernández (2003), deve-se observar que a aplicação do critério de<br />

demarcação dentro dessa abordagem, antes de buscar separar ciência de metafísica como<br />

queria os lógico-positivistas, visava a avaliar teorias e ajuizar suas pretensões (p. 03). Nesse<br />

sentido, surge a necessidade de estabelecer um critério capaz de auxiliar na decisão de se uma<br />

teoria é aceitável ou não por meio de argumentos empíricos; ou seja, trata-se de examinar as<br />

condições de aceitação frente a observações e experimentações empíricas, podendo a teoria<br />

resistir ao teste e, assim, ser corroborada ou, caso contrário, ser refutada.<br />

Nesse sentido, o “passo final” do falsificacionismo depende de como a teoria se<br />

comporta durante o estágio de teste. Se as implicações da teoria não são consistentes com a<br />

evidência, então a conjuntura é falsificada e deve ser substituída por uma nova conjuntura que<br />

não deve ser ah hoc relativa à original; isto é, uma nova conjuntura deve ser construída<br />

unicamente para evitar as anomalias empíricas. Se a teoria não é falsificada pela evidência,<br />

então ela é considerada corroborada e aceita provisoriamente. Nesse contexto, em termos do<br />

crescimento da ciência, uma nova teoria será aceita como digna da consideração dos cientistas<br />

se ela for mais falsificável que sua rival e especialmente se ela prevê um novo tipo de<br />

fenômeno. Assim, a ênfase na comparação de graus de falsificabilidade de uma série de<br />

teorias possibilita evitar o problema de especificar exatamente quão falsificável é uma teoria<br />

isolada, uma vez que se deve considerar que o número de falsificadores potenciais de uma<br />

teoria será sempre infinito.<br />

Do ponto de vista dos economistas, o ponto mais importante são os aspectos<br />

metodológicos - a escolha entre metodologias, não meramente o que é científico e não<br />

científico – o que coloca, no âmbito dessa discussão, uma dificuldade adicional em termos da<br />

metodologia popperiana, uma vez que ela requer a falseabilidade prática das teorias<br />

científicas. Segundo Hands (1993), enquanto existe um número de razões pelas quais os<br />

economistas utilizam o falsificasionismo popperiano como sendo desejável<br />

metodologicamente, o fato é que o falsificacionismo é raramente praticado em economia. Nas<br />

palavras do autor;<br />

The disagreement between critics and defenders of falsificationism is not whether<br />

it has been practiced, basically it has not, but rather whether it should be<br />

practiced. The real questions are whether the profession should ‘try harder’ to<br />

practice falsificationism though it has failed to do so in the past, and the related<br />

question of whether the discipline of economics would be substantially improved<br />

by a conscientious falsificationist practice (1993, p. 63).<br />

Algumas das críticas que o falsificacionismo tem recebido explicitamente como<br />

metodologia econômica podem ser assim identificadas: (i) Problema Duhem-Quine: em<br />

primeiro lugar, a complexidade do comportamento humano requer o uso de numerosas<br />

condições iniciais e forte simplificação dos pressupostos. Algumas dessas restrições podem<br />

ser falsas (divisibilidade dos bens), outras logicamente infalseáveis (retornos decrescentes),<br />

outras podem ser logicamente falseáveis, mas praticamente infalseáveis (teoria da escolha do<br />

consumidor). Mesmo que seja possível testar, o teste será muito difícil na falta de ambiente<br />

controlado de laboratório. Em segundo lugar, há muitas questões e desacordos sobre as bases<br />

empíricas em economia, ou seja, é sempre possível observar que o que foi observado não é<br />

realmente o desemprego involuntário ou o lucro econômico. Por fim, mesmo que esses<br />

problemas sejam resolvidos, é sempre possível que nas ciências sociais ocorram efeitos<br />

feedback que não existem nas ciências físicas (mudança de expectativas). (ii) As técnicas<br />

qualitativas de comparação estatísticas não permitem a realização de testes severos, enquanto<br />

a corroboração comum é “muito fácil”. (iii) A regra popperiana para o progresso do<br />

desenvolvimento teórico (non ah hocness) é raramente apropriada em economia. Economistas<br />

3


estão frequentemente empenhados em achar novas explicações para fatos bens conhecidos,<br />

ou, alternativamente, em explicar fenômenos bem conhecidos por meio de poucas restrições<br />

teóricas. O que constitui “progresso” em teoria econômica é complexo e uma questão em<br />

aberto, mas é evidente que qualquer resposta sustentável requer padrões mais liberais do que<br />

o falsificacionismo estrito de Popper (HANDS, 1993).<br />

Diante dessas (e de outras) críticas e da necessidade de levar em conta as complexidades<br />

das principais teorias cientificas, os estudiosos da filosofia da ciência passaram a admitir que<br />

nem a ênfase na derivação indutiva das teorias da observação, nem o esquema<br />

falsificacionista foram capazes de estabelecer, tal como se propuseram, um critério de<br />

demarcação entre ciência e não ciência. Em outras palavras, essas abordagens foram<br />

incapazes de produzir uma caracterização adequada da gênese e do crescimento de teorias<br />

realisticamente complexas. Nessa perspectiva, desenvolveu-se a concepção de que é<br />

necessário considerar as teorias como estruturas organizadas; concepção esta ancorada nos<br />

seguintes motivos: i) o estudo histórico revela que a evolução e o progresso das principais<br />

ciências mostram uma estrutura que não é captada pelos relatos indutivista e falsificacionista;<br />

ii) é somente por meio de uma teoria coerentemente estruturada que os conceitos adquirem<br />

um sentido preciso, ou seja, existe certa dependência da observação em relação à teoria; e iii)<br />

a necessidade da ciência crescer.<br />

Assim, na última metade do século XX, alguns esforços foram empreendidos no sentido<br />

de compreender o progresso da ciência através do construto de teorias na condição de<br />

estruturas complexas organizadas. Especificamente, difundiu-se cada vez mais a perspectiva<br />

de não considerar o desenvolvimento das ciências tão somente a partir das sequências de<br />

teorizações, experimentos e argumentações, mas de buscar enriquecer a compreensão do<br />

fenômeno científico a partir das práticas científicas e dos mecanismos sociais de negociação e<br />

legitimação (dessas práticas). Dois dos principais avanços nesse sentido foram propostos por<br />

Kuhn (1962) e Lakatos (1979).<br />

A teoria da ciência de Kuhn foi desenvolvida como uma tentativa de fornecer uma<br />

abordagem mais coerente com a situação histórica, tendo como característica-chave a ênfase<br />

dada ao caráter revolucionário do progresso científico, sem que este implique abandono de<br />

uma estrutura teórica mediante a sua substituição. Sem entrar em detalhes na já conhecida<br />

abordagem de Kuhn, cumpre apenas destacar o traço essencial desempenhado pelas<br />

características sociológicas das comunidades científicas. Mais especificamente, por um lado,<br />

tem-se que a noção de paradigma desenvolvida pelo autor circunscreve o que o cientista<br />

observa e problematiza; enquanto, por outro, a consideração de diferentes paradigmas<br />

científicos fomenta uma abordagem socioconstrutivista das ciências. Assim, busca-se<br />

compreender a prática e o desenvolvimento científico como equivalente a qualquer instituição<br />

social, isto é, como fruto de negociações e acordos entre grupos.<br />

Para retomar a essência deste pensamento, destaca-se a forma como surgem e/ou<br />

desaparecem os paradigmas científicos. Inicialmente, divide-se a evolução da ciência em duas<br />

fases, uma pré-paradigmática e uma pós-paradigmática. Na primeira, existe uma grande<br />

variedade de escolas (pesquisadores) que disputam o mesmo espaço a partir de concepções de<br />

natureza distintas. Nesse caso, não há uniformidade de propósitos, e os cientistas não<br />

conseguem chegar a acordos estáveis. Todavia, ao longo do tempo, algumas escolas<br />

apresentam desenvolvimentos que podem sobressair-se sobre os demais, em virtude de fatores<br />

como a adequação de suas prescrições com um ambiente favorável ao recebimento dessas<br />

ideias ou em virtude da superioridade da retórica dos integrantes dessa comunidade cientifica<br />

quanto comparadas com as outras, entre outros. Nesse caso, a atividade desorganizada e<br />

diversa que precede a formação da ciência torna-se eventualmente estruturada e dirigida, e a<br />

comunidade científica passa, então, a ater-se a um único paradigma.<br />

4


A segunda fase advém da consolidação do paradigma, o que caracteriza a existência de<br />

uma determinada ciência; ou seja, somente a consolidação de um paradigma caracteriza o<br />

empreendimento de uma determinada comunidade como sendo cientifica e é o estudo dentro<br />

desse que capacita o estudioso a se integrar a esta comunidade. Segundo Chalmers (1993), um<br />

paradigma é composto de leis, técnicas e suposições teóricas gerais adotadas por uma<br />

comunidade científica específica. Os estudiosos que trabalham dentro dessa comunidade<br />

praticam aquilo que Kuhn chama de ciência normal, sendo responsáveis por articular e<br />

desenvolver o paradigma em sua tentativa de explicar e de acomodar o comportamento de<br />

alguns aspectos relevantes do mundo real.<br />

Não obstante, nessa tentativa de explicar o mundo real, os cientistas encontram<br />

dificuldades, problemas que não são resolvidos, falsificações aparentes ou explicações pouco<br />

convincentes denominadas anomalias (fatos que não são cobertos pelas explicações do<br />

paradigma vigente). Com o surgimento e multiplicação destas anomalias, o processo de<br />

crescimento teórico promovido pela tradição vigente é interrompido, gerando-se uma fase de<br />

crise do paradigma. Este momento de crise, caracterizado por uma multiplicação de<br />

problemas sem resolução, exige uma resposta. Quando não se encontram saídas dentro do<br />

paradigma atual, ocorrem revoluções científicas (grandes rupturas) que derrubam de vez a<br />

tradição normal da ciência vigente até então (VIEIRA e FERNÁNDEZ, 2006). A mudança<br />

descontínua constitui, portanto, uma revolução científica.<br />

Por fim, cumpre destacar ainda dois pontos da teoria de Khun. O primeiro refere-se ao<br />

fato de o autor ter criticado o falsificacionismo popperiano em duas grandes frentes: por um<br />

lado, o autor defendeu que a filosofia da ciência não deve se ocupar apenas com questões<br />

demarcacionistas e com critérios normativos, mas, sim, deve também estudar as relações<br />

sociais e compromissos assumidos entre os cientistas que compartilham de uma mesma linha<br />

de pesquisa (HAUSMAN, 1992); por outro lado, o autor critica a visão popperiana da<br />

dinâmica do conhecimento científico como uma trajetória linear “evolucionária”, uma vez que<br />

para ele, este ciclo alterna períodos de ciência normal, com teorias e práticas bem definidas e<br />

revoluções científicas. O segundo ponto refere-se a duas características da atividade cientifica<br />

que estão presentes em Kuhn e ausentes em Popper: a ideia de que uma ciência é<br />

historicamente contextualizada e a ideia de que os paradigmas, assim como a própria ciência,<br />

são socialmente construídos 3 .<br />

A segunda tentativa notável de analisar teorias como estruturas organizadas foi<br />

empreendida por Lakatos (1979) com sua “Metodologia dos Programas de Pesquisa<br />

Científica” (MSRP). O MSRP de Lakatos é claramente parte da tradição popperiana em<br />

filosofia da ciência, mas é também motivado filosoficamente pela história da ciência de Khun.<br />

Assim como a abordagem Kuhntiana, a abordagem de Lakatos também é bem conhecida e,<br />

nesse sentido, retoma-se a seguir apenas a sua essência. Para Lakatos, a unidade de análise<br />

primária na ciência é o “programa de pesquisa” em vez da teoria cientifica. Mais<br />

especificamente, o programa de pesquisa científico é definido como o conjunto de regras, ou<br />

heurística, que governa a pesquisa dentro de cada programa. Este é constituído por um hard<br />

core, por uma heurística positiva e negativa e pelo cinto protetor.<br />

O hard core é constituído fundamentalmente por pressuposições metafísicas que<br />

definem o programa e são tratadas como irrefutáveis pelos seus praticantes. A heurística<br />

negativa de um programa é a exigência de que, durante o desenvolvimento do programa, o<br />

núcleo irredutível deve permanecer intacto e sem modificações. Ou seja, os pesquisadores não<br />

questionam o hard core do programa, pois consideram o conjunto de hipóteses irrefutável e o<br />

3 Para Kuhn, a própria conversão de pesquisadores de um paradigma para outro é um fenômeno associado à<br />

psicologia social, sendo que esta não ocorre em um único ponto do tempo, mas, sim, de maneira progressiva,<br />

afetando mais sensivelmente as gerações mais jovens.<br />

5


protegem da falsificação por um cinturão de hipóteses auxiliares e/ou condições iniciais. Por<br />

outro lado, a heurística positiva contém as regras pelas quais a pesquisa deve ser conduzida.<br />

Essas regras estabelecem como anomalias são tratadas e como o programa de pesquisa é<br />

desenvolvido.<br />

O cinto protetor do programa é constituído pelo conjunto de hipóteses e processos<br />

necessários à aplicação do hard core a problemas específicos, sendo que esses podem ser<br />

modificados sem envolver o programa em questão. Ou seja, qualquer inadequação na<br />

correspondência entre um programa de pesquisa articulado e os dados de observação não deve<br />

ser atribuída às suposições que constituem seu núcleo irredutível, mas a alguma outra parte da<br />

estrutura teórica. Logo, o cinto protetor não consiste somente nas hipóteses auxiliares<br />

explícitas que suplementam o núcleo irredutível, mas também em suposições subjacentes à<br />

descrição das condições iniciais e em proposições de observação, sendo resultado da interação<br />

do hard core, da heurística, e dos registros empíricos do programa (LAKATOS, 1979).<br />

De acordo com esta interpretação, os programas de pesquisa não são estáticos. Novos<br />

fatos são descobertos, novos problemas emergem e, assim, modificações devem ser feitas no<br />

cinto protetor. Lakatos, então, argumenta que os programas de pesquisa devem ser avaliados<br />

pela maneira como evoluem ao longo do tempo. Se as modificações feitas no programa não<br />

mais explicam as novas evidências, o programa torna-se degenerativo. Se por outro lado,<br />

modificações não somente explicam as anomalias mas também levam à predição de novos<br />

fatos, o programa torna-se progressivo (é teoricamente progressivo se novos fatos são preditos<br />

e empiricamente progressivo se novos fatos são corroborados). Finalmente, deve-se<br />

considerar que programas de pesquisa não existem de forma isolada, o que, em termos de<br />

avaliação, envolve a escolha entre programas competitivos. Lakatos afirma que o cientista<br />

deve abandonar programas de pesquisa degenerativos em favor dos progressivos, embora<br />

exista um problema com esse critério, dado que programas podem passar por ambas as fases.<br />

Nesse ponto, estabelece-se uma diferença fundamental entre Kuhn e Lakatos. Enquanto<br />

para o primeiro a escolha entre paradigmas é realizada com base na fé da comunidade<br />

científica no novo paradigma dominante, a escolha entre os programas de pesquisa, tal como<br />

propostos por Lakatos, fundamenta-se na capacidade preditiva das teorias que os compõem. A<br />

utilização da capacidade preditiva na atribuição de cientificidade e na escolha entre teorias é<br />

característica fundamental do instrumentalismo metodológico, sustentado, principalmente, por<br />

Milton Friedman, objeto de análise em seção posterior.<br />

Por fim, faz-se uma última observação em termos da comparação do pensamento de<br />

Lakatos com Popper. Ambos os autores concordam com a importância do conteúdo empírico<br />

para as teorias científicas, ou seja, para ambos, a relação entre fatos observados e teorias<br />

levantadas tem um caráter falsificacionista, sendo o conteúdo empírico uma das formas de<br />

detectar as anomalias responsáveis pelo progresso científico. Contudo, diferentemente de<br />

Popper, Lakatos defende que o hard core de um programa de pesquisa é imune a essas<br />

anomalias e, consequentemente, ao próprio falsificacionismo. Ademais, para o autor a<br />

capacidade de previsão é uma melhor demarcação de ciência progressiva do que a<br />

possibilidade de falsificação.<br />

Para Hands (1993), o lugar onde Lakatos difere de Popper é exatamente o lugar onde<br />

Lakatos é provavelmente vencedor em favor dos economistas, dado que isso acontece em<br />

áreas onde existe uma tensão substancial entre falsificacionismo e a prática atual dos<br />

economistas. O autor apresenta três principais fatores pelos quais a metodologia dos<br />

programas de pesquisa tem recebido a simpatia dos economistas: i) pela observação de que a<br />

teoria econômica formada por distintos paradigmas apresenta núcleos irredutíveis de<br />

hipóteses metafísicas, sendo que as diferenças dessas hipóteses demarcam esses próprios<br />

paradigmas; ii) pelo fato de que a metodologia lakatosiana é mais próxima do trabalho de<br />

investigação científica na economia do que o falsificacionismo popperiano ; e iii) a<br />

6


importância da metodologia lakatosiana para a construção de estudos na história do<br />

pensamento econômico. Todavia, ainda segundo o autor, uma discussão sobre a história da<br />

literatura lakatosiana é muito difícil de ser empregada porque os economistas têm escrito<br />

tomando muito pouco cuidado com a forma como utilizam esta terminologia. Esta falta de<br />

fidelidade tem resultado em “hard cores”, “heurística” e “fatos novos”, que têm pouca<br />

semelhança com a analogia lakatosiana ou com os termos que são usados na reconstrução das<br />

ciências físicas. Nesse sentido, para o autor, a conclusão geral que pode ser tirada dessa<br />

literatura histórica é que “in case the studies where the relevant language is consistent with<br />

lakatos, “progress”, and the prediction the novel facts it necessarily implies, has a rare<br />

occurrence” (HANDS, 1993, p. 69). Nessa mesma linha de raciocinio, Backhouse (1994)<br />

afirma que “for Marchi, as for Hands, economists find lakatosian methodology attractive<br />

because it provides a way of defending what they do” (p. 180).<br />

Cumpre argumentar que essa “nova visão”, amparada nos trabalhos de Kuhn e Lakatos<br />

ou em autores como Feyerabend, não chegou a constituir uma concepção preponderante na<br />

filosofia da ciência, mas os questionamentos que ela suscitou com relação ao que deve ou não<br />

ser aceito como ciência passaram a fazer parte do rol de preocupações dos economistas.<br />

3 Objeto e Método em Economia: Mill e Robbins<br />

Nos anos recentes, tem sido observado um aumento no interesse ligado a questões<br />

metodológicas em economia 4 . Segundo Monteiro (2003), três principais argumentos<br />

justificam a retomada dessas questões: i) o renascimento da discussão metodológica como<br />

fruto das controvérsias da filosofia da ciência sobre a própria natureza da ciência, tal como<br />

observado na seção anterior; ii) a crise na qual passa a ciência econômica desde o começo da<br />

década de 1970, com a quebra do consenso em torno da chamada síntese neoclássica; e iii) a<br />

crescente utilização da abordagem econômica por outras ciências sociais.<br />

Sendo assim, retoma-se sumariamente a discussão sobre objeto e método em economia<br />

a partir de dois dos seus principais expoentes, no intuito de resgatar alguns elementos parte da<br />

discussão metodológica que antecedeu a visão instrumentalista fridmaniana dominante em<br />

grande parte do século XX. Para tanto, ainda que as preocupações metodológicas remontem<br />

aos escritos de Sênior (1827), o ponto de partida será o trabalho de Stuart Mill (1836)<br />

intitulado “On Definition of Political Economy”. Assume-se como referência este trabalho,<br />

pois parte-se do pressuposto de que as discussões metodológicas no campo das ciências<br />

sociais, assim como propostas por alguns autores, são particularmente necessárias na medida<br />

em que não existe consenso entre os cientistas a respeito do tipo de explicação que deve ser<br />

considerado como válido. Ou ainda, admite-se que, apesar de as explicações nas ciências<br />

sociais apresentarem características comuns às ciências naturais, certos atributos sociais são<br />

de sua exclusividade e, assim, exigem maior cuidado quando da investigação científica.<br />

Em sua obra, especialmente no capítulo intitulado “Da Definição de Economia Política<br />

e do Método de Investigação Próprio a Ela”, como o próprio nome revela, o autor faz uma<br />

discussão sobre a definição da economia política como ciência, abordando seu campo de<br />

pesquisa e objeto de estudo e, simultaneamente, explicitando os pontos que a diferem das<br />

outras áreas do conhecimento. Nesse sentido, essas reflexões metodológicas podem ser<br />

sintetizadas em quatro argumentos: (i) o conhecimento humano é dividido entre ciência física<br />

e ciência moral ou psicológica; (ii) a razão fundamental da distinção entre essas ciências<br />

resulta da operação conjunta de leis da matéria e leis da mente humana; (iii) essas leis são tão<br />

dessemelhantes em sua natureza que seria contrário a todos os princípios de arranjo racional<br />

misturá-las como parte do mesmo estudo - sendo assim, em todos os métodos científicos elas<br />

4 Boa parte desse interesse remete-se à discussão acerca do papel que a metodologia desempenha, ou deve<br />

desempenhar, em economia. Nesse caso, existem autores como Blaug (1993) que defendem não apenas a<br />

importância da metodologia, mas também a necessidade de se adotar um procedimento metodológico específico,<br />

como McMloskey, para quem a metodologia não é apenas inútil, mas também prejudicial (MONTEIRO, 2003).<br />

7


são colocadas separadamente; e (iv) a definição de uma ciência está inseparavelmente ligada à<br />

do método filosófico da ciência.<br />

Na tentativa de encontrar uma definição para a ciência da economia política, partindo da<br />

análise das versões existentes, como a proposta por Adam Smith (1776), e na demonstração<br />

da sua incompletude, Mill (1974) mostra que o conhecimento humano pode ser dividido em<br />

duas naturezas: aqueles pertencentes à ciência física e aqueles pertencentes à ciência moral.<br />

Em primeiro lugar, o autor mostra que a definição de economia política de Smith confunde<br />

ciência e arte e, em segundo lugar, que a definição mais amplamente aceita de que a<br />

“economia política nos informa acerca das leis que regulam a produção, distribuição e<br />

consumo da riqueza” anexada do argumento de que “a economia política, diz-se, está para o<br />

Estado assim como a economia doméstica está para a família” (MILL, 1974, p. 293), é<br />

errônea, porque a sua ilustração contém a mesma noção de economia política refutada na<br />

definição anterior, ou seja, admite a adoção de um conjunto de regras necessárias para manter<br />

uma família relativamente bem suprida.<br />

Segundo o autor, embora a definição não esteja sujeita à mesma objeção que a sua<br />

ilustração, ela está longe de ser irrecuperável, isso porque o termo riqueza está envolto por um<br />

“nevoeiro de associações” que não permite que nada do que é visto através delas se mostre<br />

distintamente. Nas palavras do autor;<br />

A distinção real entre a economia política e a ciência física deve ser procurada em<br />

algo mais profundo do que a natureza do objeto de estudo; que, de fato, é na maior<br />

parte comum a ambas. A economia política e as bases científicas de todas as artes<br />

úteis têm na verdade um mesmo objeto de estudo - notadamente, os objetos que<br />

conduzem a conveniência e satisfação dos homens, mas elas são, no entanto,<br />

ramos distintos do conhecimento Mill (1974, p. 302).<br />

Observa-se, assim, a distinção entre os dois ramos do conhecimento científico, ambos<br />

com objetos de estudo bem delimitados: para a ciência moral, a mente humana; para a ciência<br />

física, tudo aquilo que não esteja relacionado à mente humana. Nessa perspectiva, argumentase<br />

que as leis da mente e as leis da matéria são distintas a ponto de ser impossível conjugá-las<br />

em um mesmo estudo. Todavia, grande parte das ciências morais pressupõe a ciência física,<br />

mas pouco das ciências físicas pressupõem a ciência moral. Isso significa que a economia<br />

política, como investigação das leis da mente, pressupõe todas as ciências físicas, em grande<br />

parte, porque não existem fenômenos que dependem exclusivamente das leis da mente. Não<br />

obstante, chama-se atenção para o fato de que a definição de uma ciência está<br />

inseparavelmente ligada à do método filosófico da ciência, ou seja, à natureza do processo<br />

pelo qual suas investigações devem ser conduzidas. Nesse caso, o conhecimento das ciências<br />

morais e da economia política em particular estaria baseado no método a priori (mistura do<br />

método de indução e de raciocínio), o que significa raciocinar a partir de uma hipótese<br />

assumida. O economista político, então, raciocina a partir de assunções e não a partir de fatos.<br />

As passagens a seguir ilustram essas afirmações;<br />

Por fim, uma última observação relaciona-se ao fato de que apesar de todas as<br />

operações – como o fato de a humanidade acumular riqueza e empregá-la na produção de<br />

outra riqueza ou sancionar, por acordos mútuos, a instituição da propriedade e estabelecer leis<br />

para evitar que os indivíduos usurpem uns aos outros – serem resultado de uma pluralidade de<br />

motivos, estas operações são consideradas pela economia política decorrentes unicamente do<br />

desejo de riqueza. Nesse caso, a ciência procede investigando as leis que governam essas<br />

várias operações sob a suposição de que o homem é determinado, pela necessidade de sua<br />

natureza, a preferir uma maior porção de riqueza. Isso não acontece porque o economista<br />

político é ridículo a ponto de supor que a humanidade assim se constitui, mas porque este é o<br />

modo pelo qual a ciência deve necessariamente proceder. Sendo assim, quando um efeito<br />

8


depende de uma concorrência de causas, estas causas devem ser estudadas em particular e<br />

suas leis devem ser investigadas separadamente (MILL, 1974).<br />

Com base no que foi exposto, é possível sintetizar o pensamento de Mill ao afirmar que<br />

o que diferencia a economia das outras ciências sociais é o fato de esta ciência ser regida pela<br />

premissa do homem econômico racional, utilitário e maximizador. Para tanto, a economia<br />

emprega o método a priori, pois o indutivo experimental não se aplica aos fatos econômicos<br />

que são complexamente determinados, sendo difícil isolar causas e realizar experiências<br />

controladas. Os princípios básicos da economia se baseiam na natureza humana, qual seja, o<br />

homem econômico que procura o máximo de riqueza com o mínimo de esforço. Assim, a<br />

economia é uma ciência abstrata que raciocina a partir de princípios e não de fatos<br />

(CORAZZA, 2009).<br />

Segundo BLAUG (1993), é possível identificar três elementos dessa abordagem que<br />

estão presentes na teoria econômica contemporânea: o homem econômico, o método dedutivo<br />

e a cláusula ceteris paribus. O homem econômico encontra-se presente, por exemplo, na<br />

conhecida teoria do consumidor, onde este é, por aspectos puramente econômicos, capaz de<br />

maximizar a sua satisfação. A presença do método dedutivo, por sua vez, é a base na qual os<br />

manuais de economia são construídos, apresentando um corpo coerentemente interligado por<br />

deduções corroboradas pela matemática e acomodadas por um conjunto de premissas, em<br />

geral, arbitrárias. Por fim, há de se considerar a título de ilustração que os modernos textos de<br />

economia são repletos de enunciados axiomáticos como, por exemplo, quando empregam<br />

funções bem comportadas e mercados competitivos equilibrados, o que somente se torna<br />

possível mediante a utilização da cláusula ceteris paribus.<br />

O segundo trabalho a ser resgatado corresponde ao “An Essay on The Nature and<br />

Significance of Economic Science”, de Lionel Robbins (1932). Neste trabalho, a economia<br />

passa a ser entendida como um processo de escolha dos meios para a obtenção de<br />

determinados fins, ou ainda, "economics is the science which studies human behavior as a<br />

relationship between ends and scarce means which have alternative uses" (ROBBINS, 1994,<br />

p. 16). A economia é, então, definida como a ciência que estuda a conduta humana como uma<br />

relação entre meios e fins. Todavia, para que esta conduta seja susceptível de consideração<br />

econômica, devem estar presentes as seguintes condições: quanto aos meios, esses devem ser<br />

escassos, pois se fossem perfeitamente abundantes o problema econômico simplesmente não<br />

existiria, e passíveis de usos alternativos, caso contrário, não haveria possibilidade de<br />

decisões diferentes; quanto aos fins, a condição é que sejam múltiplos, pois se só existisse um<br />

também não poderia haver decisões diferentes, e hierarquizáveis por ordem de importância.<br />

Após a definição do que consiste o subject-matter da economia, o autor se propõe a<br />

investigar as limitações e a significância das generalizações associadas a este objeto. Segundo<br />

ele, as proposições da teoria econômica, assim como toda teoria cientifica, são obviamente<br />

deduções de uma série de postulados, sendo principais aquelas envolvendo fatos relacionados<br />

ao modo em que a escassez de bens se mostra na realidade. Nesse contexto, o<br />

desenvolvimento de aplicações mais complicadas dessas preposições envolve o uso de uma<br />

maior multiplicidade de postulados subsidiários, o que o leva a afirmar que a verdade das<br />

deduções derivadas dessa estrutura depende da sua consistência lógica e que sua<br />

aplicabilidade depende da existência da situação postulada. Todavia, chama-se atenção para o<br />

fato de que se deve ter cuidado ao analisar a “natureza do material” em ciência econômica.<br />

Isso porque não se presume que qualquer uma das muitas possíveis formas de condições de<br />

concorrência ou de monopólio, por exemplo, deve necessariamente sempre existir. Além<br />

disso, torna-se importante perceber quão amplamente aplicáveis são as principais hipóteses<br />

sobre as quais a teoria econômica está estruturada, e é nesse sentido que o problema da<br />

escassez se torna relativamente importante, pois é aplicável, segundo Robbins, onde e quando<br />

as condições que dão origem a fenômenos econômicos estão presentes.<br />

9


Ademais, o autor se contrapõe à posição dos que defendem que as generalizações em<br />

economia são essencialmente “historico-relative”. Ou seja, não é verdade que as principais<br />

suposições são historico-relative, no sentido de que sua validade é limitada a certas condições<br />

históricas e de que fora delas não tem relevância para análise do fenômeno social. Para o<br />

autor, ninguém que tenha realmente analisado o tipo de deduções que podem ser retiradas<br />

desses pressupostos pode duvidar da utilidade de uma análise a partir dos mesmos e, somente<br />

a não percepção disto e uma preocupação exclusiva com os pressupostos subsidiários<br />

poderiam fundamentar qualquer visão de que as leis da economia são limitadas a<br />

determinadas condições de tempo e espaço, que são meramente de caráter histórico, e assim<br />

por diante.<br />

Como mencionado, o objeto da economia refere-se à existência de meios escassos com<br />

alternativas utilizações. Todavia, há de se considerar que inerente a esta concepção está o<br />

pressuposto de que existem valorizações relativas, ou seja, a ideia de que diferentes bens têm<br />

diferentes usos e que esses diferentes usos têm diferentes significados para a ação, tal que<br />

para uma dada situação um vai ser preferível a outro. É exatamente a existência dessas<br />

valorizações relativas que geram equívocos, porque alguns autores associam a noção de<br />

valorização relativa como dependente de uma doutrina psicológica particular, o que é negado<br />

pelo autor. Segundo Robbins, o fato de o “homem” atribuir valores particulares a coisas<br />

particulares é uma questão que diz respeito à psicologia ou mesmo à psiquiatria. Não<br />

obstante, do ponto de vista econômico, tudo o que o economista precisa assumir é que<br />

diferentes possibilidades oferecem diferentes incentivos e que esses incentivos podem ser<br />

arranjados em ordem de intensidade. Nesse caso,<br />

The various theorems which may be derived from this fundamental conception are<br />

unquestionably capable of explaining a manifold of social activity incapable of<br />

explanation by any other technique. But they do this, not by assuming some<br />

particular psychology, but by regarding the things which psychology studies as the<br />

data of their own deductions. Here, as so often, the founders of Economic Science<br />

constructed something more universal in its application than anything that they<br />

themselves claimed (ROBBINS, 1932, p. 86).<br />

Alguns autores têm argumentado no sentido da necessidade de se descartar a<br />

subjetividade dessa estrutura analítica. Todavia, a valorização é um processo subjetivo, ela<br />

não pode ser observada. Mesmo que o objeto da economia fosse limitado à explicação de<br />

coisas observáveis, o autor chama a atenção para o fato de que seria impossível explicá-las<br />

sem invocar elementos da subjetividade ou de natureza psicológica. Portanto, nas explicações<br />

dos economistas devem ser incluídos elementos psicológicos. Sendo assim, não é possível<br />

entender conceitos como escolha ou a relação de meios e fins - que são centrais na ciência<br />

econômica - em termos da observação de dados externos. Isso não significa que a concepção<br />

de conduta intencional implique um indeterminismo final, mas, sim, que ela envolve elos da<br />

cadeia de explicação causal que são psíquicos, não físicos. O que se torna relevante para as<br />

ciências sociais não é se juízos individuais de valor são corretos no sentido último da filosofia<br />

do valor, mas se eles são elos essenciais da cadeia de explicação causal.<br />

4 Positivismo lógico e Realismo Crítico<br />

No artigo intitulado “The Methodology of Positive Economics”, Milton Friedman<br />

(1953) estabelece uma das mais influentes posições sobre a metodologia da economia<br />

(instrumentalismo metodológico), levando Hausman (1992b, p. 162) a afirmar que “it is the<br />

only essay on methodology that a large number, perhaps the majority, of economists have<br />

ever read”. Apesar de criticado por uma legião de especialistas, seja pelas falhas de sua<br />

argumentação, seja por não representar de maneira adequada a prática efetiva dos<br />

economistas, o artigo tornou-se bastante conhecido entre os mesmos, especialmente em<br />

função dos intensos debates e controvérsias que suscitou (e ainda suscita) no que concerne às<br />

10


suas sugestões a respeito da importância do realismo dos “pressupostos” em teorias<br />

científicas.<br />

Para expor seu pensamento, o autor inicialmente parte da distinção entre ciência<br />

positiva e ciência normativa, sendo a primeira definida como “um corpo de conhecimentos<br />

sistematizados sobre o que é”, enquanto a segunda refere-se a “um corpo de conhecimentos<br />

sistematizados discutindo critérios sobre o que deveria ser”. A economia estaria sujeita a uma<br />

constante “confusão” entre esses dois caracteres, o que expõe a necessidade de<br />

reconhecimento de uma ciência positiva distinta da economia política. Diante dessa confusão,<br />

a análise empreendida por Friedman (1953) preocupa-se principalmente com alguns<br />

problemas metodológicos que surgem na construção da "ciência positiva distinta" ou, mais<br />

precisamente, em reconhecer a possibilidade da economia enquanto ciência positiva autônoma<br />

e discutir as questões metodológicas envolvendo tanto a sua construção, como a avaliação de<br />

teorias e hipóteses científicas em termos de sua “objetividade”.<br />

Nesse contexto, para cumprir com suas pretensões, o autor enfatiza os objetivos da<br />

economia positiva destacando que, em principio, esta é independente de qualquer posição<br />

ética ou de julgamentos normativos. Para o autor, a missão da economia positiva é fornecer<br />

um sistema de generalizações que podem ser usados para fazer previsões corretas sobre as<br />

consequências de qualquer alteração das circunstâncias. Nesse caso, seu desempenho deve ser<br />

julgado pela precisão, alcance e pela conformidade com a experiência das previsões que ele<br />

produz. Sendo assim, “positive economics is, or can be, an "objective" science, in precisely<br />

the same sense as any of the physical sciences” (FRIEDMAN, 1953, p. 04).<br />

Aqui ressalta-se a ideia implícita de que o objetivo único e último da teoria consiste na<br />

sua capacidade preditiva e a de que o próprio julgamento de uma teoria, como pertencente à<br />

“ciência positiva”, deve ocorrer pela precisão e pelo alcance de suas previsões. É justamente<br />

este critério que permite a Friedman sugerir que o método das ciências econômicas deve ser o<br />

mesmo daquele utilizado pelas ciências naturais. Ainda nesse contexto, o autor chama atenção<br />

para o fato de que a Economia normativa não pode ser independente da economia positiva.<br />

Assim, qualquer conclusão política necessariamente repousa em uma previsão sobre as<br />

consequências de se fazer uma coisa melhor do que outra, uma previsão que deve basear-se –<br />

implícita ou explicitamente - na economia positiva. Nesse caso, discordâncias seriam<br />

perfeitamente aceitáveis e cabíveis no âmbito da adoção de políticas econômicas, ou seja, na<br />

esfera da economia “normativa”; mas não seriam no caso da economia positiva, já que<br />

poderiam e deveriam ser “resolvidas” por sua objetividade. Assim, no desenvolvimento da<br />

teoria econômica, o consenso sobre a "política" econômica correta depende muito menos do<br />

progresso da economia normativa que do progresso da economia positiva, a qual gera<br />

conclusões que são e merecem ser amplamente aceitas.<br />

O objetivo último da economia positiva é, então, “the development of a "theory" or,<br />

"hypothesis" that yields valid and meaningful (i.e., not truistic) predictions about phenomena<br />

not yet observed” (FRIEDMAN, 1953, p. 07). Não obstante, a teoria é em geral uma mescla<br />

complexa de dois elementos: uma “linguagem”, designada a promover um método sistemático<br />

e organizado de raciocínio, e um corpo de “hipóteses substantivas” designada a abstrair<br />

características essenciais da realidade complexa. Visto como linguagem, uma teoria não tem<br />

nenhum conteúdo substantivo, na medida em que é apenas um conjunto de tautologias<br />

utilizadas para organizar o material empírico e simplificar sua compreensão. Nesse caso, seu<br />

julgamento depende parcialmente da lógica e parcialmente da evidência empírica: a lógica<br />

garante certa coerência e completude; e os fatos, a contrapartida empírica. Vista como um<br />

corpo de “hipóteses substantivas”, a teoria deve ser julgada a partir de seu poder preditivo em<br />

relação à classe de fenômenos que pretende explicar. Sendo assim, seu julgamento depende da<br />

evidência empírica coletada apenas a partir da comparação de previsões com a realidade e a<br />

11


esta evidência cabe mostrar se a teoria será “aceita” como válida ou “rejeitada”. Segundo o<br />

autor:<br />

(…) the only relevant test of the validity of a hypothesis is comparison of its<br />

predictions with experience. The hypothesis is rejected if its predictions are<br />

contradicted ("frequently" or more often than predictions from an alternative<br />

hypothesis); it is accepted if its predictions are not contradicted; great confidence<br />

is attached to it if it has survived many opportunities for contradiction. Factual<br />

evidence can never "prove" a hypothesis; it can only fail to disprove it, which is<br />

what we generally mean when we say, somewhat inexactly, that the hypothesis has<br />

been "confirmed" by experience (FRIEDMAN, 1953, p. 8-9).<br />

Nesse contexto, duas considerações devem ser feitas: em primeiro lugar, diante de<br />

hipóteses alternativas igualmente consistentes com a evidência disponível, o autor sugere que<br />

a escolha deva ser em alguma extensão arbitrária, embora haja um consenso geral de que as<br />

considerações relevantes são sugeridas pelos critérios de “simplicidade” e “fecundidade”. O<br />

primeiro critério está associado à ideia de que é mais simples uma teoria se menor for o<br />

conhecimento inicial necessário para fazer uma previsão; e o segundo, de que uma teoria é<br />

mais "frutífera" se maior for a precisão da predição dela resultante e maior for o número de<br />

linhas de pesquisas abertas por ela. Em segundo lugar, há de se considerar que a evidência<br />

empírica é importante em duas fases, quais sejam, na elaboração das hipóteses e no teste de<br />

sua validade. Na fase de elaboração, ela seria, ao mesmo tempo, um veículo para sua<br />

formulação, e, mais importante, um meio para garantir que suas implicações não estivessem<br />

de antemão contraditadas pela experiência anterior. Por outro lado, se uma hipótese fosse<br />

compatível com a evidência empírica, esta deveria ser testada a partir de suas previsões,<br />

comparando-se tais previsões com novas evidências (VIEIRA, 2009).<br />

É neste ponto, entre a validação das hipóteses e o papel da evidência empírica, que<br />

emerge a polêmica posição fridmaniana a respeito do “realismo” dos pressupostos. Para o<br />

autor, a crença de que as hipóteses poderiam ser testadas pelo “realismo” de seus pressupostos<br />

é equivocada, pois para ele não importa se as hipóteses iniciais são realistas ou verdadeiras,<br />

desde que sejam úteis para produzir boas previsões sobre a realidade. Aliás, o autor sugere<br />

que a relação tende a ser inversa, no sentido de que as hipóteses, por serem simplificações da<br />

realidade são, em geral, irrealistas;<br />

In so far as a theory can be said to have "assumptions" at all, and in so far as their<br />

"realism" can be judged independently of the validity of predictions, the relation<br />

between the significance of a theory and the "realism" of its "assumptions" is<br />

almost the opposite of that suggested by the view under criticism. Truly important<br />

and significant hypotheses will be found to have "assumptions" that are wildly<br />

inaccurate descriptive representations of reality, and, in general, the more<br />

significant the theory, the more unrealistic the assumptions (in this sense). The<br />

reason is simple. A hypothesis is important if it "explains" much by little, that is, if<br />

it abstracts the common and crucial elements from the mass of complex and<br />

detailed circumstances surrounding the phenomena to be explained and permits<br />

valid predictions on the basis of them alone. To be important, therefore, a<br />

hypothesis must be descriptively false in its assumptions; it takes account of, and<br />

accounts for, none of the many other attendant circumstances, since its very<br />

success shows them to be irrelevant for the phenomena to be explained<br />

(FRIEDMAN, 1953, p. 14-15).<br />

4.1 Realismo Crítico<br />

Uma das alternativas metodológicas a esta concepção instrumentalista pode ser<br />

encontrada na ontologia filosófica do realismo crítico, que se contrapõe à filosofia dos lógicopositivistas<br />

e dos adeptos da ciência como “programas de pesquisa”, e que foram suscitados<br />

12


originalmente em A Realist Theory of Science, escrito por Roy Bhaskar (1975). Todavia, esta<br />

filosofia crítico-realista ingressa nas discussões metodológicas em economia pelo trabalho de<br />

Tony Lawson (1997), intitulado Economics and Reality. Como destacado por Fucidji (2006),<br />

existem boas representações do realismo crítico na literatura, de forma que o que se segue tem<br />

apenas o objetivo de retomar alguns aspectos específicos dessa interpretação, no intuito de<br />

mostrar, por um lado, a inadequação dos métodos explanatórios da moderna economia<br />

neoclássica à natureza dos objetos da realidade e, por outro, a adequação dos métodos de<br />

pesquisa social aos objetos da realidade social.<br />

Inicialmente, cumpre observar que a referida obra pode ser entendida como defesa da<br />

aplicação do Realismo Transcendente para a análise das teorias econômicas, uma vez que<br />

combina a filosofia realista de Bhaskar, que propõe uma nova visão da realidade para orientar<br />

o conhecimento e a ciência, e a preocupação de Lawson em reorientar a investigação das<br />

teorias econômicas para ontologia e em propor uma teoria da realidade social na condição de<br />

sistema aberto.<br />

Antes de iniciar esta discussão, faz-se um breve esboço da definição da economia<br />

ortodoxa contemporânea, que será a base sobre a qual Lawson desenvolve sua abordagem e<br />

apresenta suas críticas. Segundo o autor, essa economia pode ser identificada a partir de três<br />

concepções: a primeira concepção mais ou menos universal na economia ortodoxa<br />

contemporânea, que tem suas raízes no positivismo, é de que o agente humano é<br />

essencialmente passivo respondendo ao conhecimento de estímulos externos, ou seja, em<br />

teoria econômica o agente usualmente responde aos “sinais” de preços do mercado; a segunda<br />

concepção, novamente enraizada no pensamento positivista, refere-se à relutância em tolerar<br />

questões metodológicas; e, por fim, a terceira refere-se à visão particular dessa abordagem em<br />

relação à ciência. Com relação a esta última, o argumento apresentado é de que a<br />

característica essencial da economia ortodoxa contemporânea é o compromisso com a fórmula<br />

“Se evento X, então evento Y” como uma condição generalizada, imagem ou objetivo de, ou<br />

ideal para ciência. Lawson (1994) cita a passagem de Allais (1992) como síntese dessa visão:<br />

The essential condition of any science is the existence of regularities which can be<br />

analyzed and forecast. This is the case in celestial mechanics. But it is also true of<br />

many economic phenomena. Indeed their thorough analysis displays the existence<br />

of regularities which are just as striking as those found in the physical sciences.<br />

This is why economics is a science, and why this science rests on the same general<br />

principles and methods as physics (p. 25)<br />

Essa concepção fundamental é pressuposta por muitos econometristas, assim como o<br />

raciocínio axiomático-dedutivo é em termos de construção da teoria ortodoxa pura.<br />

Simplistamente, a suposta generalizada relevância de ambos para a ortodoxia repousa sobre a<br />

conjecturada validade universal desta imagem particular da ciência. Assim, o que é<br />

(particularmente) notável é a maneira com que tais métodos ortodoxos são considerados pelos<br />

seus proponentes como sendo tão obviamente universais em sua legitimidade ou escopo que a<br />

sua automática adoção, em qualquer contexto, é, em efeito, considerada irrepreensível.<br />

Observa-se que o que une essas concepções é a filosofia positivista. O positivismo, ao<br />

menos em termos de Hume, constitui uma teoria do conhecimento, de sua natureza e de seus<br />

limites. Essencialmente, é a reivindicação de que o conhecimento humano toma a forma de<br />

percepção ou impressão de experiências. Isso implica que a consideração da realidade (ou da<br />

ontologia) constitui um evento atomístico. O ponto é, se o conhecimento particular é um<br />

evento atomístico percebido pela experiência, então qualquer conhecimento geral, incluindo o<br />

científico, deve estar de acordo com os padrões que tal evento revela no espaço e no tempo.<br />

Da perspectiva de Hume, então, somente são essas as classes de generalizações imagináveis.<br />

Em outras palavras, ciência deve tomar a forma da elaboração de constantes conjugações de<br />

eventos - isto é, regularidades da forma “se evento X então evento Y” – que constituem a base<br />

13


para a economia ortodoxa contemporânea. Ademais, cumpre observar que, em adição a esta<br />

ontologia, a teoria social positivista suporta a concepção da ação humana como um sensor<br />

passivo de eventos atomísticos e do registro de suas constantes conjugações.<br />

Por outro lado, o Realismo Transcendente como filosofia reconhece a existência de uma<br />

realidade intransitiva que precede e é independente do conhecimento, embora esta seja<br />

inteligível e, por isso, o conhecimento e a ciência buscam explicá-la. Em outros termos,<br />

admite-se a distinção entre os domínios transitivo e intransitivo do conhecimento. O objeto de<br />

estudo da ciência é intransitivo no sentido de que existe, é duradouro e age de forma<br />

independente do processo de sua identificação; os mecanismos, as tendências e as estruturas<br />

causais, que são designadas por leis causais, são irredutíveis ao conhecimento delas e, pelo<br />

menos em algumas partes, resistem e agem de forma independente do seu conhecimento. Por<br />

outro lado, é transitivo porque as teorias científicas utilizadas pelo pesquisador para conhecer<br />

seu objeto de estudo fazem parte deste domínio, constituído de “fatos, observações, teorias,<br />

hipóteses, suposições, palpites, intuições, especulações, anomalias etc., que condicionam todo<br />

conhecimento ulterior, e em particular, facilitam e tornam-se ativamente transformados pela<br />

laboriosa prática social da ciência” (LAWSON, 1997, p.25). Nesse caso, conhecimento é um<br />

produto social ativamente produzido por meios de produtos sociais antecedentes – embora<br />

esteja engajado continuamente, ou interagindo, com seu objeto de estudo (intransitivo).<br />

Nessa concepção, em contraposição ao realismo empírico, o mundo não é composto<br />

somente de eventos e da experiência e impressão deles resultantes, mas também de<br />

(irredutíveis) estruturas e mecanismos, poderes e tendências que, embora talvez não sejam<br />

diretamente observáveis, ainda assim governam, produzem e estão na base dos eventos atuais<br />

da nossa experiência. Três domínios dessa realidade são, nessa perspectiva, observados: (i) a<br />

dimensão empírica, ligada à percepção sensorial dos fenômenos; (ii) a dimensão realizada,<br />

entendida como o locus dos eventos, estado de coisas, fenômenos e fatos resultante de causas<br />

emergentes; e (iii) a dimensão real, entendida como campo de forças que podem vir a<br />

propiciar as causas dos eventos, apesar de sua existência ser latente ou potencial, pois<br />

depende de mecanismos e condições para sua operação. Assim, o caráter transcendente está<br />

na rejeição da exclusividade da dimensão empírica.<br />

A questão que deve ser ressaltada é que esses domínios não são somente<br />

ontologicamente distintos, mas, crucialmente, eles são desincronizados. Então, enquanto a<br />

experiência está desincronizada dos eventos, também alguns eventos estão tipicamente<br />

desincronizados dos mecanismos que os governam. Eventos, em outras palavras, são<br />

multiplamente determinados por vários fatores que governam as causas e, portanto,<br />

dificilmente podem ser compreendidos (somente) mediante observação, experiência e<br />

impressão. Nessa perspectiva, o realismo transcendental é diferente pois admite o mundo<br />

composto, em partes, por objetos que são estruturados – no sentido de que são irredutíveis<br />

aos eventos da experiência - e intransitivos - no sentido de que existem e agem<br />

independentemente de sua identificação. Sendo assim, a ciência não está confinada a procurar<br />

conjunções constantes de eventos, mas em buscar identificar e iluminar as estruturas e<br />

mecanismos, poderes e tendências que governam ou facilitam os fenômenos da experiência.<br />

Em outras palavras, a atividade experimental, os resultados e a aplicação do conhecimento<br />

determinado experimentalmente fora de situações experimentais podem ser acomodados<br />

somente invocando a ontologia do realismo transcendental - de estruturas, poderes,<br />

mecanismos e tendências - que governam e estão por trás do fluxo de eventos em um mundo<br />

essencialmente aberto. Sendo assim, é fácil observar que no realismo Transcendental a<br />

inteligibilidade da realidade não passa pela regularidade dos eventos, mas, sim, pela<br />

identificação das causas que emergem das forças estruturais.<br />

Em síntese, o realismo transcendente suporta uma concepção alternativa de ciência, que<br />

se refere à identificação da estrutura e de mecanismos que governam os eventos da<br />

14


experiência. Dado que as estruturas subjacentes não se manifestam facilmente nos eventos, o<br />

objetivo da ciência é reconhecido como necessário, possível e não trivial. Nessa perspectiva, o<br />

conhecimento progride com as teorias existentes, com as suposições, hipóteses e anomalias,<br />

vindo a ser transformado nos laboratórios de ciência da prática social. Isso significa que nesta<br />

concepção (de ciência) os agentes intervêm e manipulam a realidade, ou seja, consente-se<br />

uma teoria social amparada por meio de indivíduos e instituições que são, por sua vez,<br />

admitidos como estruturas sociais. Esses são assim reconhecidos como possuindo capacidades<br />

de transformação, como indivíduos inteligentes, competentes e capazes de intervenção e de<br />

manipulação da realidade de modo que, entre outras coisas, esta se torna mais fácil de<br />

avaliação e/ou mais facilmente revelada.<br />

É ancorado nessa filosofia que Lawson desenvolve seus argumentos. Segundo o autor,<br />

um dos objetivos primários do realismo crítico é identificar a natureza e as características<br />

básicas do mainstream econômico. Nesse caso, identifica-se como característica principal<br />

dessa abordagem a modelagem de sistemas fechado. Por sistema fechado, entendem-se as<br />

situações em que as regularidades da forma “se evento X, então evento Y”. Os métodos de<br />

análise e os modelos de explicações formulados sobre a pressuposição de que regularidades<br />

são necessárias em ciência são denominados de dedutivistas. Logo, a interpretação dedutivista<br />

caracteriza o mainstream econômico e constitui-se no erro essencial da economia moderna.<br />

Isso porque a regularidade de eventos, da forma como é presumida no dedutivismo, somente<br />

ocorre sob certas condições específicas.<br />

Assim, metodologicamente Lawson critica a ortodoxia por adotar uma posição<br />

dedutivista baseada no realismo empírico. A crítica realista ao positivismo centra-se na<br />

limitação do realismo empirista ou, mais especificamente, na sequência lógica empregada do<br />

realismo empirista à epistemologia positivista. Ademais, a incoerência do dedutivismo não é<br />

uma questão da inadequação dos critérios do teste empírico, mas da incapacidade de<br />

explicação baseado na atividade experimental, proveniente de uma ontologia filosófica que<br />

reduz o objeto das ciências a padrões de eventos empíricos. Em outras palavras, a crítica<br />

mostra que, se alteradas as orientações filosóficas iniciais, a teoria ortodoxa revela suas<br />

incoerências, justamente por adotar de forma acrítica uma modalidade de explicação científica<br />

dedutivista.<br />

Segundo o autor, o dedutivismo pode ser definido como “the collection of theories (of<br />

science, explanation, scientific progress, and so forth) that is erected upon the regularity<br />

conception of laws in conjunction with the just noted principle of theory assessment”<br />

(LAWSON, 1997, p. 14). O cerne da crítica é justamente a noção da existência de padrões ou<br />

de regularidades empíricas. Isso porque, se a questão gira em torno de identificar ou postular<br />

regularidades na forma “se evento X, então evento Y”, há de se considerar que esta conjunção<br />

constante de eventos surge apenas em sistemas fechados, de tal forma que a universalidade e<br />

aplicabilidade deste dedutivismo requer que a realidade seja encarada como tal. Neste ponto,<br />

cabem duas observações: em primeiro lugar, deve-se destacar que para Lawson a regularidade<br />

de eventos é espaço-temporalmente restrita, artificialmente produzida ou mesmo raramente<br />

encontrada no mundo natural e social e, portanto, ela não pode ser considerada premissa para<br />

sua inteligibilidade. Ademais, a realidade a ser explicada não é apenas aquela que aparece<br />

empiricamente com a identificação de regularidades, mas também, e de forma mais frequente,<br />

aquela relacionada à mudança e à variação dos eventos. Para explicar essas observações – de<br />

que as regularidades dos eventos são restritas a situações específicas e de que a ciência é<br />

exitosa mesmo onde essas regularidades não são evidentes – necessita-se, portanto, incluir nos<br />

argumentos da ontologia mainstream estruturas subjacentes das coisas, seus poderes,<br />

mecanismos e tendências que, se acionados, agem mesmo que seus efeitos não se manifestem<br />

diretamente. Isso significa que certas coisas, em virtude de suas estruturas intrínsecas, têm<br />

poderes que podem existir sem serem acionados, ou se acionados, podem produzir um<br />

15


conjunto de mecanismos e tendências que não se manifestam diretamente por causa da<br />

existência de forças opostas.<br />

Em segundo lugar, deve-se considerar que os sistemas fechados se caracterizam pela<br />

adoção de condições intrínsecas e extrínsecas. A primeira condição é aquela que garante<br />

identificar determinado elemento pelo fato de o mesmo manter suas propriedades e<br />

regularidade em quaisquer condições, enquanto a segunda se refere à possibilidade de<br />

isolamento dos elementos e variáveis que produzem resultados regulares. As questões<br />

ontológicas ligadas a essas condições dizem respeito à possibilidade de, por um lado,<br />

identificar estruturas e instituições sociais que tenham como características as regularidade e,<br />

por outro, a possibilidade de estabelecer as relações fixas entre elas e isolá-las frente às<br />

demais variáveis. Ora, acontece que, no caso da realidade social, as estruturas não funcionam<br />

sozinhas e, portanto, suas forças não são automaticamente operacionalizadas pois dependem<br />

da relação entre estrutura e agente. Nesse caso, segundo Arienti (2009), deve-se abandonar o<br />

realismo empírico em favor do Realismo Transcendente, pois o mundo não se esgota nos<br />

eventos empíricos e seus estados imediatamente dados ao sujeito cognoscente, mas possui leis<br />

e mecanismos subjacentes ao curso de eventos observados.<br />

A relação mencionada entre estrutura e agente é de fundamental importância na análise<br />

da esfera social e, em especial, na crítica ao mainstream referente à sua incapacidade de<br />

explicação da escolha individual. Todavia, antes de analisar estas questões, é necessário<br />

responder às seguintes indagações: Por qual método pode o conhecimento das subjacentes<br />

estruturas, etc., ser obtido? Ou ainda, se importantes características da realidade, incluindo as<br />

do mundo social, são intransitivas e estruturadas, por qual processo se pode conhecê-las? A<br />

resposta sugerida pelo realismo crítico a estas indagações é de que, dado que a ciência se<br />

revela uma prática social trabalhosa que se preocupa em revelar as estruturas que governam<br />

os fenômenos de interesse, e dado o caráter aberto do mundo, segue-se que o raciocínio<br />

metodológico deve ser construído envolvendo vários estágios de investigação. Para tanto, o<br />

método essencial de investigação não é nem a indução nem a dedução, mas a retrodução. Este<br />

método consiste em identificar as estruturas que potencialmente geram forças relevantes para<br />

influenciar fatos e fenômenos e discernir as tendências que se combinam e se efetivam (ou se<br />

anulam) para, em última instância, causar o realizado.<br />

No intuito de mostrar que o realismo transcendental é relevante para a esfera social,<br />

empreende-se essa abordagem para analisar o processo de escolha humana. Segundo Lawson,<br />

esta questão é problemática porque os economistas são incapazes de reconciliar a escolha real<br />

com o seu projeto de “modelagem” econômica. Assinala-se que a escolha real pressupõe que<br />

todo indivíduo poderia ter agido de forma diferente da maneira como efetivamente agiu.<br />

Portanto, a condição necessária para que a escolha seja real é que os sistemas sejam abertos,<br />

nos quais os eventos sempre poderiam ter sido diferentes. Mas a possibilidade da escolha<br />

humana pressupõe não somente que os eventos possam ser diferentes, mas também que os<br />

agentes possuam alguma concepção do que estão fazendo e o que pretendem obter com sua<br />

atividade, i.e., “se a escolha é real, então as ações humanas devem ser intencionais sob certa<br />

descrição” (LAWSON, 1997, p.30). A ação intencional, por sua vez, pressupõe conhecimento<br />

do ambiente no qual o agente pretende realizar suas finalidades, e o conhecimento pressupõe<br />

suficiente durabilidade do objeto de estudo. Acontece que, se cientificamente a regularidade<br />

dos eventos relevantes não ocorre na esfera social, então a durabilidade do conhecimento das<br />

práticas humanas deve estar em um nível diferente, em que as estruturas que governam, mas<br />

são irredutíveis aos eventos, incluem as atividades humanas.<br />

Intencionalidade humana e escolha indicam, então, que são as causas materiais ou as<br />

estruturas que facilitam a ação intencional. A questão é saber se essas estruturas podem ser<br />

ditas sociais (entendidas como dependentes da intencionalidade humana) e se elas existem. Se<br />

elas existirem, a possibilidade de sua identificação vai permitir a percepção de seus efeitos.<br />

16


Ou seja, na determinação da ciência social deve-se reconhecer que a ciência emprega não<br />

somente um critério perceptual, mas também causal, no estudo da realidade de um postulado<br />

objeto. Isso porque, admite-se como capacidade da entidade, cuja existência é posta em<br />

questão, facilitar a mudança nas coisas materiais.<br />

Aceitando a propriedade de dependência da ação humana como um critério para social e<br />

conhecendo o critério causal atribuído a realidade, é fácil ver que estruturas sociais<br />

identificáveis existem. Todavia, convém destacar que enquanto as esferas sociais e naturais<br />

são caracterizadas similarmente por estruturas subjacentes ao curso dos eventos, elas diferem<br />

nas estruturas sociais. Isso porque a estrutura social e a ação humana se pressupõem<br />

mutuamente. Sendo assim, e dado que a estrutura social é dependente do agente humano, ela<br />

sempre somente se manifesta na atividade humana. Então, considerando a natureza aberta<br />

desta ação, segue-se que a estrutura social somente pode estar presente em sistemas abertos.<br />

Como consequência, leis econômicas devem ser interpretadas como tendências, e estas se<br />

manifestam na regularidade de eventos somente muito raramente (LAWSON, 1997). Isso<br />

posto, evidencia-se o fato de que o realismo transcendental, por um lado, carrega uma<br />

concepção de esfera social e, por outro, como destacado por Cavalcante (2007), que ao adotar<br />

o dedutivismo como método de explicação científica o mainstream econômico mostra-se<br />

incapaz de explicar um ponto central à sua construção teórica, qual seja, a escolha individual.<br />

Por outro lado, observa-se que na aplicação do realismo crítico para a análise dos<br />

objetos da realidade social, Lawson parte da distinção entre as ciências sociais e as ciências<br />

naturais, ainda que admita o significado do Realismo Transcendente para ambas as áreas. A<br />

ênfase, neste caso, é mostrar que isso é uma conclusão da investigação ontológica ou do<br />

argumento transcendental, não uma premissa. Não obstante, observa-se que a perspectiva<br />

transcendental até então elaborada possui alto nível de generalidade e abstração, o que não<br />

permite caracterizar a legitimidade da pesquisa na esfera social, incluindo suas<br />

particularidades. Assim, para que isso seja possível, torna-se necessário retomar<br />

explicitamente a questão da ontologia social. Esta ontologia pode ser retomada a partir da<br />

análise do modelo de transformação da atividade social e do caráter relacional da concepção<br />

material da realidade social. No primeiro caso, o ponto de partida é o entendimento de que a<br />

sociedade e a economia dependem da ação humana e de suas concepções. No entanto, não se<br />

deve confundir a ideia de dependência com determinação.<br />

A estrutura social depende da ação e das concepções humanas, mas, sobretudo, é<br />

condicional à intencionalidade desta ação. Sendo assim, ela não pode ser tratada como fixa, ao<br />

mesmo tempo em que ela não pode ser tratada como uma criação do indivíduo, porque a ação<br />

intencional do indivíduo pressupõe a priori sua existência. Consequentemente, o conceito<br />

relevante é a reprodução ou transformação – os indivíduos reproduzem ou transformam a<br />

estrutura social. Em outras palavras, a sociedade sempre preexiste aos sujeitos, no sentido de<br />

que não existe um estado de natureza no qual os indivíduos, despojados de qualquer forma de<br />

sociabilidade, resolvem criar um ambiente social (CAVALCANTE, 2007). A ação<br />

intencional possui tanto um caráter reprodutivo, responsável pela relativa durabilidade das<br />

estruturas sociais, quanto um caráter transformativo, na medida em que os sujeitos são<br />

dotados da capacidade de escolher entre cursos de ação a priori indeterminados.<br />

Com essa concepção de transformação da atividade social em vigor, vários tipos de<br />

consequências de, e para, a perspectiva do realismo crítico emergem. A primeira a ser<br />

destacada é que, por causa do potencial sempre presente da ação humana transformadora<br />

sobre as estruturas sociais, estas últimas serão, no máximo, apenas relativamente duradouras,<br />

sendo inescapavelmente espaço-temporalmente delimitadas ou geo-historicamente<br />

fundamentadas. A segunda consequência é que o fenômeno a ser explicado – no mundo<br />

social, os fenômenos que as estruturas sociais governam - são atividades sociais.<br />

17


Por outro lado, destaca-se a concepção de que o material da realidade social é altamente<br />

relacional. Ou seja, se as ações humanas e as estruturas sociais são coisas diferentes, então é<br />

necessário desenvolver alguma concepção de aproximação, uma que permite a possibilidade<br />

de o indivíduo agir com base em suas próprias razões, enquanto, ao fazê-lo, ao mesmo tempo<br />

contribui para a reprodução da estrutura social. Nesse caso, é fundamental distinguir dois<br />

tipos de relação: externa e interna. Dois objetos ou aspectos são ditos como sendo<br />

externamente relacionados se nenhum é constituído por relações representativas para o outro,<br />

enquanto dois objetos são internamente relacionados se eles assim o são por força de sua<br />

relação com os demais. Para a ciência social, e de acordo com o realismo crítico, são de<br />

particular importância as relações internas que se mantêm entre as posições sociais, pois todo<br />

sistema e estrutura social dependem ou pressupõem essas relações.<br />

Nesse ponto, o autor distancia-se da ontologia reducionista atomística – em que os itens<br />

são relacionados externamente - ou orgânica – em que as totalidades são internamente<br />

relacionadas. Segundo este, a priori não há razão para supor que uma ou outra, ou qualquer<br />

combinação dessas, vai ser relevante em qualquer investigação particular. Todas as questões<br />

ou assuntos são determinados somente no contexto da análise empírica específica. A<br />

posteriori, entretanto, o mundo social parece ser caracterizado por alto grau de<br />

relacionalidade interna, ou complexas combinações de estruturas interna ou totalmente<br />

relacionadas (LAWSON, 1994).<br />

Observa-se, portanto, que a relação agente-estrutura se torna central na ontologia das<br />

teorias sociais. A possibilidade de transformação está dada tanto pela ação dos agentes sobre<br />

as estruturas existentes, quanto pelos limites impostos por elas. Essa condição estabelece ao<br />

Realismo Crítico uma inovação como prescrição para orientar teorias na medida em que<br />

aceita, a priori, as múltiplas possibilidades na relação agente-estrutura, o que caracteriza uma<br />

ontologia de sistema aberto. Segundo Arienti (2009, p. 16-17), pode-se afirmar, então, que o<br />

Realismo Crítico dá um respaldo ontológico a teorias e análises, cabendo à ontologia desenhar<br />

um sistema aberto, à teoria explicar a relação estrutura-agente e indicar suas tendências e à<br />

análise explicar os resultados contingentes frente às alternativas. A pretensão é, nesse sentido,<br />

a formulação de uma teoria ontológica que, baseada na filosofia do Realismo Transcendente,<br />

apresente referências sobre a natureza do mundo social que orientarão as teorias sociais, ou,<br />

em outras palavras, a defesa da realidade social como um sistema aberto e estruturado em<br />

várias dimensões.<br />

5 Realismo Crítico e Teoria Pós-Keynesiana<br />

Como apontado por Lawson (1997, p. 300, nota 20), existe um crescente número de<br />

contribuições que envolvem uma estrutura realista igual ou semelhante à defendida pelo<br />

autor, que não só contribui no campo da economia na qualidade de teoria social, incluindo a<br />

metodologia econômica, mas também em muito daquilo que é interpretado como contribuição<br />

dos programas de pesquisas. No caso pós-keynesiano, o autor cita como representativos os<br />

trabalhos de Arestis (1990, 1992), Arestis e Chick (1992), Davis (1987, 1989) e Dow (1990,<br />

1991, 1995), entre outros. Não obstante, o próprio autor escreve alguns trabalhos em que<br />

reconhece a conexão entre essas abordagens. O que segue sintetiza alguns desses argumentos.<br />

Primeiramente, segundo Lawson (1999), deve-se reconhecer que o projeto<br />

sistematizado como realismo crítico é um projeto filosófico. Assim, ele não carrega<br />

diretamente quaisquer implicações concretas ou substantivas de política, uma vez que este é o<br />

papel que cabe às ciências específicas. Ou seja, este projeto é essencialmente não elaborado<br />

para a ciência (incluindo a ciência social) de forma que ele não pode agir substituindo a<br />

investigação. Todavia, isso não significa que este projeto é separado ou mesmo externo a<br />

prática social, ao contrário, ele possui suas raízes nelas. Ademais, como visto anteriormente,<br />

sua ontologia pressupõe que a realidade (natural e social) é estruturada, aberta e diferenciada,<br />

18


sendo a realidade social, em particular, especialmente dinâmica e constituída de um grau<br />

significante de totalidades internamente relacionadas.<br />

Acontece que não há qualquer parte deste projeto que revela ou investiga estruturas<br />

especificas. Logo, se a natureza do realismo crítico é essa, e não há um link direto entre ele e<br />

qualquer teoria científica social específica, a questão que emerge é no sentido de estabelecer a<br />

natureza da relação entre essa concepção e a tradição pós-keynesiana.<br />

Como observado, a característica reconhecida como essencial do projeto mainstream,<br />

qual seja, a aderência ao dedutivismo formal e a sua insistência sobre a universalidade desta<br />

aplicação, pressupõe que o mundo social é sempre fechado e a regularidade dos eventos é<br />

onipresente. Então, em linha com o realismo crítico, o pós-keynesianismo se opõe a esta<br />

concepção na medida em que reconhece que o mundo não é sempre fechado; que a<br />

regularidade dos eventos não são onipresentes; e que, em geral, o mundo é aberto e sujeito<br />

somente a fechamentos localizados (usualmente experimentais). Além disso, é fácil mostrar<br />

que a ênfase sobre a incerteza, os processos históricos e a escolha real revelam o<br />

compromisso do pós-keynesianismo com algo aberto, estruturado e ontologicamente<br />

dinâmico, tal como elaborado e sistematizado dentro da abordagem do realismo crítico.<br />

Especificamente, pode-se observar a oposição explícita da visão pós-keynesiana à ontologia<br />

positivista da conjugação de eventos constantes e de sua concepção de ciência, por exemplo,<br />

na rejeição da pressuposição ortodoxa usual em econometria de presença de ergodicidade e/ou<br />

estacionariedade econômica. O mesmo pode ser considerado com relação à crítica póskeynesiana<br />

à universalidade do raciocínio ortodoxo axiomático-dedutivo; ou ainda, na<br />

rejeição das ações humanas como receptoras passivas de fatos atomísticos, entre outros, pela<br />

ênfase dada à incerteza fundamental como prevalecente no mundo econômico real.<br />

Segundo Lawson (1994), a oposição ao positivismo pode ser explicado ainda pela<br />

discussão pós-keynesiana sobre ergodicidade, incerteza e metodologia, assim como por outras<br />

características proeminentes que estão de acordo com alternativa do realismo crítico. Dentre<br />

essas, destacam-se a ênfase pós keynesiana na visualização dos eventos como resultantes de<br />

instituições econômicas e políticas; na economia como processo histórico dinâmico, em que<br />

se sobrepõem questões relacionadas à distribuição e à troca; e na aceitação do objetivo de<br />

emancipação humana. Especificamente, a primeira característica alinha-se com a concepção<br />

do realismo transcendental de que a sociedade é estruturada e intransitiva, na qual<br />

anteriormente à experiência dos eventos e das ações humanas estão as estruturas ou condições<br />

que as governam e/ou produzem, mas que são irredutíveis a elas. A segunda característica<br />

relaciona-se à visão crítica realista de transformação da atividade social. Nessa concepção, as<br />

estruturas sociais são inescapavelmente geo-historicamente determinadas, sendo elaboradas<br />

pela reprodução/transformação da (transformadora) atividade social humana. Finalmente, a<br />

interdependente mas distinta natureza da ação e da estrutura social segue da possibilidade da<br />

emancipação humana pela sua ação estrutural, racional e intencional.<br />

Lawson (1999) chama atenção para o fato de que, ainda que os pós-keynesianos estejam<br />

em linha com o realismo crítico ao aceitar sua ex posteriori avaliação de que o mundo é<br />

aberto e estruturado, isso não significa que eles não se envolvam em métodos formais, como a<br />

econometria. Acontece que neste caso se reconhece que a possibilidade de sucesso desta<br />

técnica requer fechamentos locais, que são um caso especial, mas que não estão excluídos a<br />

priori. Ademais, o objetivo do realismo crítico, sobretudo para a economia, é trazer<br />

considerações ontológicas e indicar as reais possibilidades na esfera social e não determinar a<br />

priori quais possibilidades devem ser consideradas. Assim, os oponentes do realismo crítico<br />

não são os pós-keynesianos ou qualquer pessoa que tenta descobrir se, em certas condições,<br />

algum sistema fechado pode contribuir com algum esclarecimento. Em contraposição estão<br />

aqueles que defendem qualquer forma de dogma a priori. Então, o oponente genuíno é o<br />

19


projeto corrente mainstream, com sua a priori insistência de que o formalismo é o único<br />

método adequado e universalmente válido para a economia moderna.<br />

O trabalho de Dow (1999) também estabelece as conexões entre o realismo crítico e a<br />

abordagem pós-keynesiana. Para tanto, ele inicia questionando se o pós-keynesianismo é<br />

crítico realista e, em caso afirmativo, o que isso significa. Todavia, antes de se ater a essa<br />

discussão, abordam-se questões gerais sobre a significância e o pluralismo da fundamentação<br />

filosófica para as escolas de pensamento econômico. O foco é a escola pós-keynesiana.<br />

Do ponto de vista da significância da fundamentação filosófica, admite-se - ao contrário<br />

do pensamento mainstream – que o estudo dos princípios metodológicos pode esclarecer os<br />

debates intra e entre as escolas de pensamento e pode indicar a direção para futuras pesquisas.<br />

Nesse caso, o conhecimento desses princípios permite delinear, por exemplo, o póskeynesianismo,<br />

ao expor suas diferenças fundamentais com o mainstream econômico e ao<br />

identificar os pontos em comum e as diferenças existentes com as demais escolas nãomainstream.<br />

Isso é de fundamental porque muitos reconhecem que o pós-keynesianismo<br />

envolve diversas abordagens, métodos e influências que são apontadas como evidências de<br />

suas incoerências na condição de teoria e escola de pensamento. Nesse caso, para mostrar<br />

coerência é necessário explicar por que o que parece ser incoerente de uma perspectiva<br />

metodológica mainstream é de fato coerente sob a perspectiva metodologica pós-keynesiana.<br />

Sob esta perspectiva, ressalta-se que a tentativa de classificar a economia póskeynesiana<br />

como um método ou uma teoria compartilhada tem fracassado, pois esta análise<br />

revela o não entendimento da diversidade desta abordagem. Nesse caso, Dow (1999)<br />

reconhece a importância fundamental exercida pela comunicação. Utilizando o conceito de<br />

paradigma Kuhntiano, a autora mostra, por um lado, que o aprofundamento do conhecimento<br />

metodológico entre os economistas ocorre em um cenário em que coexistem vários<br />

paradigmas com problemas concomitantes de incomensurabilidade e, por outro, que dentro da<br />

ciência normal a metodologia tem o papel de prover o melhor entendimento dos<br />

desenvolvimentos passados. Nesse caso, o papel do metodologista é manter o foco sobre o<br />

nível da fundamentação, não somente para ajudar a ciência extraordinária, mas também para<br />

ajudar no desenvolvimento do paradigma por meio da ciência normal. Ademais, um papel<br />

adicional é ajudar na comunicação e na resolução de conflitos, esclarecendo a natureza dos<br />

desacordos que surgem (geralmente) da divergência de fundamentos. Em outros termos, todas<br />

as escolas de pensamento são definidas por seus fundamentos filosóficos e metodológicos e,<br />

portanto, cumpre aos metodologistas esclarecer assuntos a partir da sua compreensão, o que<br />

pode, especificamente, melhorar o entendimento e a definição do pós-keynesianismo.<br />

Feitas essas considerações, a autora analisa mais concretamente a relação entre o<br />

realismo crítico e o pós-keynesianismo. Citando Lawson (1994), para quem a economia póskeynesiana<br />

é consistente com o realismo crítico, embora o autor não conclua que esta escola<br />

de pensamento seja distinta dentro da abordagem geral do realismo crítico, em parte, porque,<br />

segundo ele, não está evidente que nessa abordagem existe um “programa econômico<br />

substantivo concreto”, Dow (1999) ressalta o fato de que as emanações políticas, a ênfase<br />

sobre a explicação e a diversidade de métodos e teorias são consistentes com a metodologia<br />

implicada pelo realismo crítico; porém, a questão é saber se a diversidade particular existente<br />

no pós-keynesianismo constitui um corpo coerente de pensamento.<br />

Além disso, apesar do reconhecimento de que a ontologia subjacente ao realismo<br />

crítico serve como base para identificar as escolas de pensamento e de que a mudança de foco<br />

da epistemologia para a ontologia constitui uma das suas maiores contribuições, há de se<br />

considerar que dentro da ontologia dos sistemas abertos, comuns às teorias não-mainstream,<br />

existe um amplo escopo de entendimentos. Logo, para se delinear a economia póskeynesiana,<br />

é necessário especificar sua visão particular da realidade dentro desses sistemas.<br />

20


Agora, supor que todos os pós-keynesianos estivessem de acordo que a escola é críticorealista,<br />

então o que isso significaria em termos do seu desenvolvimento teórico?<br />

Como notado anteriormente, cabe aos metodologistas resolver as inconsistências entre a<br />

prática e a metodologia assumida em cada programa de pesquisa, bem como cabe a eles<br />

esclarecer as disputas que emergem do uso de diferentes metodologias. Então, a implicação da<br />

questão anterior é que os metodologistas pós-keynesianos devem confrontar a prática dentro<br />

dessa abordagem com as implicações da escolha de sua fundamentação no realismo crítico.<br />

Evidentemente, segundo Dow (1999), isso implicará mudança de prática.<br />

Para exemplificar, consideram-se as injunções crítico-realistas com respeito à<br />

econometria. Nesse caso, dado que alguns pós-keynesianos não estão desejosos de aceitar<br />

essas injunções, como se deve proceder: Rejeitam eles o pós-keynesianismo ou vice-versa?<br />

Ou ainda, isso implica que o realismo crítico não deve ser identificado como fundamento para<br />

os pós-keynesianos? Para responder as estas questões, a autora sugere reconsiderar o papel da<br />

fundamentação filosófica e metodológica e sua relação com a prática, sendo que o foco deve<br />

estar primeiramente sobre a filosofia e, dado isso, na metodologia correspondente.<br />

Sendo assim, dentro de uma perspectiva pós keynesiana, adota-se a ontologia com base<br />

na experiência pessoal do mundo real e das crenças convencionais das comunidades às quais<br />

pertence. Ou ainda, em termos filosóficos gerais, os economistas não ortodoxos entendem o<br />

mundo em termos de um conjunto complexo de processos causais subjacentes que não podem<br />

ser diretamente percebidos. Como resultado, segue-se uma metodologia dos sistemas abertos<br />

que encoraja um conjunto de métodos na construção do entendimento de diferentes processos<br />

causais que atuam em diferentes contextos e relações. A delineação da economia póskeynesiana<br />

é, então, uma questão de segunda ordem, comparada com a especificação da<br />

abordagem mais geral dos sistemas abertos, que o realismo crítico, ele próprio, não pode<br />

responder. A sugestão, assim, é que a fundamentação filosófica e metodológica não deve ser<br />

tratada a partir de axiomas fixos, mas ser colocada sobre precaução, junto com a prática,<br />

sempre que os conflitos entre ela e os aspectos metodológicos surgirem.<br />

Em síntese, Dow (1999) argumenta que as escolas de pensamento são definidas de<br />

acordo com sua metodologia e filosofia subjacente. Nesse caso, considera-se que o realismo<br />

crítico provê uma fundamentação sustentável compatível com o pós-keynesianismo.<br />

Adicionalmente, sustenta-se que o realismo crítico pode contribuir com a delineação dessa<br />

escola dentro da economia não-mainstream, na medida em que se prioriza sua ontologia. Por<br />

outro lado, consente-se que muitos pós-keynesianos não têm abertamente adotado o realismo<br />

crítico, o que se deve parcialmente à sua interpretação errônea como uma metodologia<br />

objetivista tradicional. Mas o realismo crítico pode tornar clara essa ruptura com a<br />

metodologia tradicional se aceitar o processo de abdução (ou método retrodutivo) com<br />

respeito a si próprio. Em outras palavras, a diferença de opinião entre os praticantes do póskeynesianismo<br />

e dos metodologistas realistas críticos deve iniciar um processo de discussão<br />

capaz de propiciar modificações em ambos os projetos.<br />

O trabalho de Rotheim (1999), por sua vez, mostra como as principais noções da<br />

economia pós-keynesiana se adaptam confortavelmente à fundamentação do realismo crítico.<br />

Para tanto, considera-se a ontologia cientifica pós-keynesiana na tentativa de identificar<br />

estruturas e mecanismos que permitem entender questões econômicas fundamentais, tais<br />

como emprego, produto, crescimento, inflação e distribuição. Nesse caso, a fundamentação<br />

teórica que permite a identificação dos mecanismos e/ou estruturas tem como base a teoria<br />

keynesiana; especificamente, a Teoria Monetária da Produção e a Teoria da Demanda Efetiva.<br />

Para mostrar, então, como as principais noções pós-keynesianas se adaptam à<br />

fundamentação do realismo crítico, é necessário destacar inicialmente a centralidade para essa<br />

abordagem da noção de que ao mundo social é fundamentalmente incerto, no sentido de que o<br />

futuro é amplo e complexo e que sua natureza relacional torna seu conhecimento impossível.<br />

21


Nesse caso, deve-se deixar claro que a noção de incerteza, que reflete a noção de processos<br />

não-ergódicos, é consistente com a abordagem realista de que regularidades determinísticas<br />

não são características “convincentes” do mundo social. Logo, assim como no realismo<br />

crítico, os pós-keynesianos consideram a economia refletindo um sistema aberto, em que<br />

nenhuma das condições que caracterizam as regularidades determinísticas é considerada<br />

(normalmente) evidente no mundo real. Adicionalmente, cada perspectiva reconhece que a<br />

natureza fundamentalmente aberta da economia exige que indivíduos e/ou grupos de<br />

indivíduos estabeleçam regras, padrões e outros arranjos sociais que lhes permitem tomar<br />

decisões em um ambiente de incerteza.<br />

Um exemplo central da presença de incerteza na abordagem pós-keynesiana encontra-se<br />

no contexto social da barganha salarial e no que se convencionou de a Teoria Monetária da<br />

Produção. Segundo Rotheim (1999), se esses dois conceitos forem claramente desenvolvidos,<br />

eles conjuntamente culminarão na Teoria da Demanda Efetiva, essencial para qualquer<br />

descrição pós-keynesiana das flutuações na renda, produto e emprego. Inicia-se analisando a<br />

barganha salarial. Convencionalmente, reconhece-se que os salários monetários são<br />

relativamente rígidos, especialmente para baixo. Grosso modo, pode-se afirmar que a<br />

interpretação mainstream entende que, em um contexto em que não há livre flutuação salarial<br />

(presença de imperfeições), emergem o desemprego involuntário e a instabilidade sistêmica.<br />

Isso é, atribui-se à inflexibilidade salarial a causa para as flutuações no emprego e,<br />

consequentemente, ao produto. Por outro lado, a interpretação pós-keynesiana entende que<br />

essa rigidez é resultado de um comportamento racional à luz da incerteza fundamental (uma<br />

racionalidade convencional), sobre as quais se originam as condições que garantem certa<br />

estabilidade para as expectativas que, por sua vez, possuem efeitos positivos sobre a geração<br />

de emprego. Ou seja, a rigidez salarial tem o efeito de induzir o emprego ao criar<br />

circunstâncias que promovem a estabilidade da atividade econômica. O desemprego<br />

involuntário, nessa perspectiva, nada tem a ver com a flexibilidade dos salários monetários.<br />

O que aqui deve ser observado é que a lógica mainstream empregada nesse contexto é<br />

claramente consistente com a caracterização dedutivista. Isso porque, o desemprego para a<br />

indústria como um todo é contextualizado da mesma forma que para qualquer indústria ou<br />

firma individual; ou seja, em qualquer caso considera-se o mercado de trabalho a partir de<br />

funções oferta e demanda independentes mediadas pela livre flutuação da taxa real de salário.<br />

Acontece que esta conclusão só pode ser alcançada se o sistema em análise estiver desde o<br />

início fechado. Em outras palavras, para se falar em termos de uma curva de mercado de<br />

trabalho, devem-se assumir as condições de regularidades determinísticas (o fechamento<br />

interno e externo). Assim, o dedutivismo emerge como uma coisa natural, em que o<br />

economista mainstream é levado a pensar sobre flutuações no emprego e sobre a estabilidade<br />

econômica em termos da extensão se os salários vão ou não cair.<br />

A crítica sobre esta lógica foca as condições de regularidade determinísticas, mais<br />

especificamente, sua ausência e a incerteza para mostrar a indeterminação da visão<br />

mainstream baseada na existência de um mercado de trabalho agregado com funções oferta e<br />

demanda independentes. Como demonstrado por Keynes, o trabalhador não está em posição<br />

de determinar o salário real por meio da barganha salarial. Isso porque o salário real é<br />

determinado pelo princípio da demanda efetiva, em que suas mudanças são o resultado de um<br />

conjunto de forças ou tendências que possuem resultado cumulativo incerto. Ademais, o<br />

trabalhador busca preservar o seu salário relativo, ou seja, os indivíduos percebem que é o seu<br />

salário monetário relativo, e não o salário real, que está sob seu controle.<br />

No mundo mainstream, barganha em termos de salários relativos reflete um tipo de<br />

ilusão monetária que torna seu comportamento totalmente irracional. Mas em sistemas<br />

abertos, em que o salário real é ontologicamente incerto para o trabalhador – dado que o preço<br />

dos bens salariais não é independente da barganha salarial – é a negociação em termos de<br />

22


salários reais que reflete um comportamento fortuito e irracional. A racionalidade requer que<br />

essa negociação esteja baseada em convenções estabelecidas acerca da estrutura dos salários<br />

relativos. Novamente, em uma estrutura realista, indivíduos são capazes de tomar decisões em<br />

um mundo social estruturado e, especificamente neste caso, com razoável conhecimento da<br />

estrutura diferencial dos salários nominais, classes, poderes (ROTHEIM, 1999).<br />

Para os pós-keynesianos, então, está claro que a existência de incerteza e a resultante<br />

resposta racional do trabalho via elaborações de contratos salariais em termos monetários têm<br />

levado à emergência de estruturas institucionais e de convenções. Esta perspectiva reflete o<br />

que Keynes chamou de Teoria Monetária da Produção, onde existe explicitamente a relação<br />

contratual e onde a “moeda” passa a ser o ativo que tem características peculiares e que<br />

exerce papel fundamental, sobretudo, na medida em que permite maior flexibilidade e<br />

liberdade para os agentes responderem a eventos futuros incertos. O nexo que ajuda a<br />

descrever a estrutura que caracteriza a Teoria Monetária da Produção se inicia, portanto, com<br />

o reconhecimento de que a economia e, mais especificamente, as relações de trabalho,<br />

respondem a convenções no momento da elaboração dos contratos; contratos estes firmados<br />

em termos monetários.<br />

A elaboração de contratos dessa natureza exerce papel primordial em uma economia<br />

monetária da produção, pois permite a constituição de relações estáveis entre o custo do<br />

trabalho corrente e futuro. Ademais, há de se considerar que nem todos os contratos vencem<br />

no mesmo período, o que adicionalmente contribui para esta estabilidade. Essa, por sua vez,<br />

influencia a formação de expectativas relativas aos preços monetários futuros, estabelecendo<br />

certo grau de confiança para e por parte dos produtores, que faz com que eles fiquem mais<br />

propensos a se engajar em contratos futuros. Observa-se que nenhuma dessas tendências<br />

requer as condições de regularidade determinísticas. Ao contrário, elas refletem uma sinergia<br />

social em que agente (trabalhadores e firmas) e estrutura (contratos denominados em moeda)<br />

se pressupõem mutuamente sem, no entanto, reduzir-se um ao outro. Existe, portanto, uma<br />

matriz social em que os indivíduos podem fazer decisões racionais sem estar sujeitos a algum<br />

tipo de decisão mecânica. Nesse caso, é fácil ver que a barganha em termos de salários<br />

relativos contribui para a reprodução dessa matriz e ajuda a criar as circunstâncias pelas quais<br />

a tomada de decisões adicionais pode contribuir para a sua transformação (ROTHEIM, 1999).<br />

Adicionalmente, vale observar que a estabilidade dos salários e a da taxa de juros<br />

monetária (resultante da teoria da preferência pela liquidez) são elementos necessários que<br />

atuam no sentido de induzir os produtores a comprometer seus recursos por um longo período<br />

de tempo, isto é, na forma de aquisições de plantas e equipamentos. Não obstante, o que deve<br />

ser destacado é que, em virtude da incerteza fundamental, o retorno esperado sobre os ativos<br />

de capitais não pode ser conhecido no futuro, o que obriga aos empresários a tomar decisões<br />

baseadas nos dados e expectativas internos e externos a essa situação. Isso significa que a<br />

decisão do investimento é uma decisão social – cujo retorno não pode ser conhecido<br />

independentemente do investimento e dos gastos em consumo da coletividade. Sendo assim,<br />

os indivíduos devem confiar em convenções sociais para avaliar a confiança que eles possuem<br />

em suas previsões sobre os retornos esperados dos ativos de capital.<br />

Em resumo, o argumento é que na medida em que a taxa de salário (monetário)<br />

permanece relativamente rígida, são estabelecidas algumas garantias psicológicas aos<br />

empresários de que o preço de oferta futuro de bens e serviços vai estar relativamente estável<br />

ao preço à vista. Essa expectativa adiciona algum grau de credibilidade à crença de que a taxa<br />

de juros monetária futura também estará estável em relação à presente. Dessa maneira, cada<br />

um desses fatores, na medida em que atuam sobre a crença de estabilidade do futuro imediato,<br />

têm o efeito de apaziguar as incertezas inerentes a qualquer economia aberta, crescendo a<br />

probabilidade de que os agentes vão desejar comprometer seus recursos por um longo período<br />

de tempo, aumentando, assim, o produto e o emprego.<br />

23


Rotheim (1999) argumenta ainda no sentido de mostrar que a matriz completa de<br />

tendências e forças que os pós-keynesianos descrevem como atuando na economia não pode<br />

ser plenamente apreciada sem se reconhecer o mecanismo gerador crucial pelo qual se podem<br />

pensar a reprodução e a transformação do sistema, qual seja, a teoria da demanda efetiva. Esta<br />

teoria, em conjunto com a teoria monetária da produção, provê uma estrutura completa (não<br />

através de um modelo dedutivista) pelo qual o economista pode entender por que a economia<br />

procede ciclicamente, mas com intervalos de estabilidade. Assim, conclui o autor, a extensão<br />

em que o pós-keynesianismo emprega esta estrutura para derivar o entendimento de<br />

transformação e reprodução da economia é a mais completa confluência entre esta posição e a<br />

posição assumida pelo realismo crítico.<br />

6 Considerações Finais<br />

Este trabalho buscou resgatar algumas dos principais argumentos referentes às<br />

discussões metodológicas e filosóficas acerca do que se define como ciência e/ou<br />

conhecimento científico, com ênfase sobre a teoria econômica. Para tanto, inicialmente foram<br />

resgatadas as principais posições dos autores envolvidos nesse debate, quais sejam, Popper,<br />

Kuhn e Lakatos. Posteriormente, resgatou-se a discussão sobre objeto e método em economia,<br />

a partir dos trabalhos de Mill e Robins. Em seguida, recupera-se a posição instrumentalista<br />

fridmaniana, dominante em grande parte do século XX.<br />

Não obstante, o foco do trabalho foi o resgate do pensamento realista crítico e de sua<br />

interação com a economia pós-keynesiana. Como observado, o realismo crítico é uma<br />

abordagem filosófica que se contrapõe à posição mainstream, ao admitir que no mundo<br />

existem estruturas não empíricas subjacentes aos fenômenos e que elas delimitam e<br />

possibilitam os estados das coisas e eventos verificados em nível empírico. Em outras<br />

palavras, existem estruturas, poderes, mecanismos e tendências que governam e estão por trás<br />

do fluxo de eventos em um mundo essencialmente aberto. Essa concepção anda em simetria<br />

com a abordagem pós-keynesiana e, ainda que essa não possa ser identificada como a única<br />

orientação filosófica sobre a qual se baseia o pensamento pós-keynesiano, há de se considerar<br />

que existe alto grau de confluência entre essas duas abordagens.<br />

7 Referências Bibliográficas<br />

ARIENTI, W. L. Realismo crítico e a reafirmação da heterodoxia na teoria econômica. In:<br />

Anais do XIV encontro Nacional de Economia Política, 2009, São Paulo.<br />

BACKHOUSE, R. The Lakatosian Legacy in Economic Methodology. In: BACKHOUSE,<br />

Roger. New directions in Economic Methodology. London: Routledge, 1994.<br />

BLAUG, M. Metodologia da Economia ou como os economistas explicam. 2ed. São Paulo:<br />

EDUSP, 1993.<br />

CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1994.<br />

CORAZZA, G. Ciência e Método na História do Pensamento Econômico. Revista de<br />

Economia (Curitiba), v. 35, p. 01-24, 2009.<br />

CAVALCANTE, C. M. Filosofia da Ciência e Metodologia Econômica: do positivismo<br />

lógico ao realismo crítico. Texto para Discussão - UFF, nº 210, Março, 2007.<br />

DOW, S. Post Keynesianism and Critical Realism: What is the Connection?, Journal of Post.<br />

Keynesian Economics, V. 22(1), fall 1999.<br />

FUCIDJI, J. R. O Realismo Crítico e seus oponentes. In: XI Encontro Nacional de Economia<br />

Política, 2006, Vitória (ES). Anais do XI Encontro Nacional de Economia Política, 2006.<br />

FRIEDMAN, M. The methodology of positive economics. Chicago, UC Press, 1953.<br />

HANDS, D. W. Popper and Lakatos in Economic Methodology. In: MÄKI, Uskali et alli<br />

(ed.). Rationality, Institutions and Economic Methodology. London: Routledge, 1993.<br />

HERSCOVICI, A. Dinâmica macroeconômica: uma interpretação a partir de Marx e de<br />

Keynes. EDUC/EDUFES, São Paulo, 2002.<br />

24


HODGE, D. Economics, realism and reality: a comparison of Mäki and Lawson, Cambridge<br />

Journal of Economics, March, 32[2]: 163-202, 2008.<br />

KHUN, T. S. (1962). A Estrutura das Revoluções Cientificas. São Paulo: Perspectiva, 1979.<br />

LAKATOS, I. O Falseamento e a Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica. In:<br />

LAKATOS, Imre, MUSGRAVE, Alan (ed.). A crítica e o desenvolvimento do<br />

conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1979.<br />

LAWSON, T. A Realist Theory for Economics. In: BACKHOUSE, Roger E. (org.). New<br />

Directions in Economic Methodology. London: Routledge, 258-85, 1994.<br />

____. Economics and Reality. London: Routledge, 1997. 364p.<br />

____. Connections and distinctions: Post Keynesianism and Critical Realism, Journal of.<br />

Post Keynesian Economics, V. 22(1), fall 1999.<br />

MARIN, S. R. E FERNÁNDEZ, R. G. Karl Raimund Popper: um filósofo e três abordagens<br />

da metodologia da economia. Anais do V Congresso Brasileiro de História Econômica,<br />

Caxambu – MG, 2003.<br />

MILL, J. S. Da Definição de Economia Política e do Método de Investigação Próprio a<br />

Ela. In Bentham, Stuart Mill. São Paulo: Abril Cultural, p. 291-315, (1974) [1836] (Col. Os<br />

pensadores).<br />

MONTEIRO, S. M. M. Metodologia da economia e filosofia da ciência. In: CORAZZA, G.<br />

(org.). Métodos da ciência econômica. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003.<br />

ROBBINS, L. Essay on the Nature and Significance of Economic Science. 2nd ed,<br />

London: Macmillan, 1932.<br />

ROTHEIM, R. Post Keynesianism and Realist Philosophy. Journal of Post Keynesian<br />

Economics, V. 22(1), fall 1999.<br />

VASCONCELOS, M.; STRACHMAN, E. E FUCIDJI, J. R. O Realismo Crítico e as<br />

Controvérsias Metodológicas Contemporâneas em Economia. Estudos Econômicos, 29(3):<br />

415-445, 1999.<br />

VIEIRA, C. M. A Metodologia da Economia Positiva de Milton Friedman: Duas<br />

Interpretações Filosóficas Alternativas. Anais do XIV Encontro Nacional de Economia<br />

Política, São Paulo – SP, 2009.<br />

VIEIRA, J. G. S. E FERNÁNDEZ, R. G. A estrutura das revoluções Científicas na Economia<br />

e a Revolução Keynesiana. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 36, n. 2, p. 355-381, 2006.<br />

25

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!