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Prólogo - Romances Nova Cultural

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10 de outubro de 1101<br />

Constantinopla<br />

<strong>Prólogo</strong><br />

A atmosfera turva pelo incenso, e apavorante pelos<br />

gritos e gemidos de dor e de medo, recendia a morte.<br />

Cada retinir e trepidar dos metais ressoava em ondas<br />

perfurantes. Instrumentos batendo contra instrumentos<br />

e contra as armaduras e lanças, espadas e escudos partidos<br />

ou danificados. Ferramentas caindo com ruídos estridentes<br />

no fundo dos depósitos. Murmúrios e imprecações<br />

brotavam dos lábios esbranquiçados dos feridos espalhados<br />

pelo salão, os olhares voltados para um crucifixo pendurado<br />

no alto de uma parede. Corpos sangrentos jaziam<br />

sobre as macas. Alguns lutavam com todas as forças, as<br />

poucas que lhes restavam, para se libertarem das mãos dos<br />

cirurgiões que, cobertos de sangue e suor, se empenhavam<br />

em salvar-lhes as vidas.


Heather Grothaus<br />

Aquele lugar certamente não poderia ser um hospital<br />

que se prezasse.<br />

Para Roderick, aquela era a antecâmara do inferno!<br />

Soluços também ecoavam pelo ambiente tenebroso<br />

como em uma tentativa de amenizar o odor fétido que o<br />

saturava, exalado por cerca de cento e cinquenta homens,<br />

vítimas do horror dos campos de batalhas onde o que imperava<br />

eram doenças e mutilações. Homens que ousavam<br />

rezar pelos cantos, como ele, por uma milagrosa cura ou<br />

improvável recuperação, recusando-se a se compararem<br />

com animais nos abatedouros onde o sacrifício e o esquartejamento<br />

os esperavam.<br />

Pela mente perturbada e pelos olhos inchados de<br />

Roderick, as chamas o faziam pensar em fornos de defumação.<br />

Talvez não estivesse no inferno de fato, mas em<br />

um matadouro. Se os cirurgiões não o atendessem logo, as<br />

chamas o alcançariam. Estava sentindo-as cada vez mais<br />

perto de queimarem sua pele, que já ardia terrivelmente<br />

pelo efeito da febre. Podia imaginá-las lambendo seu corpo<br />

e consumindo os últimos vestígios de sua sanidade e de<br />

sua força vital.<br />

Roderick teria contribuído com o panorama miserável<br />

com seus próprios gritos e lamentos. Suas dores eram<br />

abomináveis o bastante para garantir sua participação.<br />

Mas após três semanas de agonia, seu fôlego mal lhe permitia<br />

respirar. Fora trazido para esse lugar, o maior hospital<br />

de Constantinopla, pelo companheiro Hugh, após a<br />

derrota na batalha de Heraclea.<br />

— Em Constantinopla, você será curado — Hugh prometera.<br />

— Eu só lhe peço para confiar em mim e perseverar.<br />

Não desista de viver! Não desista!<br />

Ele atendeu as súplicas do amigo. Como, não saberia


O TiranO de cherbOn<br />

dizer. A morte lhe parecia bem-vinda, trazendo consigo<br />

o alívio para seu sofrimento. Seu corpo estava dilacerado<br />

e seu espírito se recusava a voltar em desgraça para a<br />

Inglaterra. Esse era o pensamento que mais o atormentava.<br />

Magnus Cherbon pressupunha que o único filho retornaria<br />

em glória, carregando a insígnia sagrada como um<br />

tesouro sobre o peito, assim como ele fizera no passado,<br />

ao voltar de sua peregrinação às terras infiéis. Em seus<br />

delírios, Roderick podia ouvir as palavras de condenação<br />

do pai:<br />

— Fracassado imprestável! Fraco! Um fraco desde o<br />

ventre como a maldita que o gerou! Um fraco como você<br />

não pode ser meu filho! Eu não o reconheço!<br />

As acusações estavam gravadas como fogo em sua<br />

memória, tantas vezes elas foram repetidas.<br />

Uma lágrima escapou do olho são e deslizou celeremente<br />

por sua face até cair e desaparecer no cobertor rústico<br />

onde repousava sua cabeça, deixando uma marca úmida<br />

pelo caminho, tão fria quanto o ódio que a provocara.<br />

— Veja, Rick! Ele está vindo para cá! — Hugh segurou<br />

o ombro de Roderick e apertou-o, sua voz vibrando de<br />

expectativa tal qual estivesse se dirigindo a uma criança<br />

de tenra idade. O ombro e o braço esquerdo eram as únicas<br />

partes de seu corpo que se conservaram ilesas, graças ao<br />

escudo que ele mantivera firmemente preso ao antebraço.<br />

O entusiasmo do amigo o fez forçar o pescoço de modo<br />

que sua cabeça tombasse para a esquerda. Agradeceu<br />

mentalmente o fato de o cirurgião não ter se aproximado<br />

pelo outro lado. Teria sido impossível vislumbrá-lo através<br />

dos pontos rudimentares feitos por um jovem sarraceno,<br />

que deveriam ter a aparência de uma costura feita<br />

em uma sela de couro.


10<br />

Heather Grothaus<br />

Por mais que ele tentasse bloquear a imagem, deveria<br />

estar parecendo um monstro, com as carnes se projetando<br />

pela pele inchada entre os fios espessos que tentavam<br />

unir os talhos abertos desde o queixo, atravessando toda<br />

a face até o malar, pegando um lado do nariz e indo além<br />

da têmpora direita.<br />

Sua vista só alcançava uma faixa da longa ala a que<br />

fora levado naquele hospital. Uma faixa estreita e horizontal<br />

captada apenas pelo olho esquerdo, porque com o outro<br />

ele não conseguia enxergar nada.<br />

Provavelmente porque não o possuía mais. Temia perguntar<br />

a Hugh sobre seu estado, pois seria brutal demais<br />

descobrir que tivera o olho arrancado de sua órbita.<br />

Bastava a certeza de ter o nariz e malar, fraturados. Desde<br />

que o tinham puxado de cima do cavalo e quase o trucidado,<br />

o único som que seu ouvido direito conseguia produzir<br />

se assemelhava ao rugido incessante das ondas furiosas<br />

em uma noite de tempestade, castigando os rochedos onde<br />

terminava o precipício nas proximidades do castelo de<br />

Cherbon, onde nascera.<br />

Os ferimentos que sofrera na cabeça eram sérios.<br />

Contudo, o que mais o preocupava era a condição de seu<br />

braço direito. Como era destro, o braço e mão direitos eram<br />

sua proteção e sua defesa. O braço da espada. Também<br />

precisaria recuperar a mobilidade da perna esquerda.<br />

Um guerreiro não podia manter a destreza sem poder caminhar,<br />

saltar, correr...<br />

O cirurgião se deteve junto da maca e a primeira impressão<br />

de Roderick foi que o avental de couro, e a túnica<br />

por baixo, estavam cobertas por manchas de sangue que<br />

adquiriam um sinistro tom enegrecido conforme secavam.<br />

Ele também notou que atrás do médico surgiram dois


O TiranO de cherbOn 11<br />

auxiliares, segurando recipientes rasos e achatados cheios<br />

de instrumentos. Do nó feito por uma fita de couro, à altura<br />

da nuca, escapavam longos fios de cabelos grisalhos<br />

e espessos que chegavam aos ombros. As pontas estavam<br />

tão encharcadas de sangue que pareciam ter sido mergulhadas<br />

em uma poça. Os olhos se mostravam encovados e<br />

os lábios quase não podiam ser vistos, comprimidos numa<br />

dura linha. Ele andava depressa, as mãos balançando ao<br />

longo do corpo para a frente e para trás, alternadamente.<br />

Não pareciam pertencer a um cirurgião, mas a um sarraceno,<br />

escuras, quase marrons, com as cutículas delineadas<br />

em preto.<br />

Um arrepio de terror subiu pela espinha de Roderick e<br />

ele orou com o que ainda restava de sua alma para que<br />

a morte o levasse antes de ser tocado por aquele velho<br />

homem. Lutara nos campos de batalha por sua sobrevivência<br />

e a de seus homens, pela vitória do bem sobre o mal.<br />

Jamais havia conhecido um medo tão absoluto, tão corrosivo.<br />

Sob a carcaça fragmentada do que outrora fora seu<br />

corpo, ele se pôs a gritar, a se rebelar e a implorar por<br />

misericórdia.<br />

No entanto, sua voz não se fez ouvir e nenhuma parte<br />

de seu corpo se moveu.<br />

— O que aconteceu com ele? — o cirurgião perguntou<br />

a Hugh, enquanto segurava Roderick, uma mão de cada<br />

lado da cabeça, e a virava de um lado para o outro sobre<br />

a maca. Dedos que poderiam pertencer ao gigante Golias<br />

pressionaram o braço fraturado, em um novo assalto de<br />

agonia. — Ferido na cabeça e no braço. Percebo que<br />

alguém andou suturando os cortes. Obviamente fez o<br />

melhor que podia. Febre?<br />

— Sim, doutor — Hugh respondeu, após um momento


12<br />

Heather Grothaus<br />

de hesitação, surpreso com as maneiras bruscas e pouco<br />

caridosas com que o médico examinava um ferido. — Os<br />

pontos parecem em ordem, mas a febre aumentou muito<br />

desde Heraclea. Atrevo-me a dizer que talvez seja o ferimento<br />

na perna que...<br />

Antes que Hugh concluísse o pensamento, o médico<br />

puxou a coberta, expondo as pernas de Roderick. O deslocamento<br />

de ar provocado pelo movimento do lençol<br />

penetrou pelas narinas inchadas, mas ainda capazes de<br />

distinguirem o cheiro pútrido.<br />

Hugh se deslocou para a parte inferior da maca.<br />

— Acredito que a lança que o perfurou tivesse a ponta<br />

contaminada por...<br />

— Veneno — o cirurgião tornou a interromper Hugh<br />

enquanto deixava o lençol cair novamente sobre as<br />

pernas de Roderick e estalava os dedos em direção aos<br />

assistentes, sinalizando para que seguissem adiante. —<br />

Eu já cuidei de muitos feridos nesse estado. Não há o que<br />

fazer.<br />

Sem a menor compaixão, o médico se inclinou sobre<br />

Roderick e disse em tom mais alto, como se adivinhasse<br />

que a capacidade de audição do moribundo estivesse<br />

diminuída.<br />

— Está acordado? Consegue me ouvir? Prepare-se,<br />

homem, porque você irá morrer.<br />

Roderick estava completamente lúcido e tentou responder<br />

com um meneio de cabeça. O médico não poderia<br />

imaginar o alívio que o comunicado lhe produzira.<br />

Mas ao ver o amigo fechar os olhos, sem imaginar que<br />

fosse de alívio, Hugh se pôs a gritar:<br />

— Não! Não! — Entregue ao torpor, Roderick se recusava<br />

a abrir os olhos. Mas tanta foi a veemência de Hugh,


O TiranO de cherbOn 13<br />

que ele forçou a pálpebra a se erguer. Tornou a fechá-la,<br />

contrariado, ao ver o amigo segurar o braço do cirurgião,<br />

impedindo-o de se afastar. — Ele não pode morrer. Deve<br />

haver alguma coisa que possa ser feita.<br />

O velho homem se desvencilhou com um olhar de fria<br />

advertência.<br />

— O veneno circulou pelo sistema circulatório por<br />

demasiado tempo. Se ele tivesse sido acudido no momento<br />

que o feriram, talvez pudesse ter sido salvo. Agora<br />

seria um desperdício lhe ministrar qualquer medicamento.<br />

Seria o mesmo que despejar água preciosa em terra<br />

infértil. Seu amigo não passará desta noite. Eu sinto muito.<br />

Tenha um bom dia.<br />

— Não! — Hugh tornou a gritar, segurando o braço<br />

do médico, desta vez, com tanto ímpeto que o levantou<br />

do chão. — Ele salvou minha vida. Procure entender. Ao<br />

menos faça uma tentativa...<br />

— Olhe para esses pobres sujeitos espalhados pelo salão,<br />

meu bom soldado. Não tenho tempo a perder. Enquanto<br />

conversamos, alguns deles que poderiam ser salvos irão<br />

morrer. Acha que as vidas deles valem menos do que a<br />

deste homem?<br />

— Sim, eu acho — Hugh respondeu sem titubear.<br />

— Mas eu não acho — o cirurgião retrucou com<br />

maus modos e Roderick concordou mentalmente, sem perceber<br />

que Hugh se atirava de joelhos aos pés dele.<br />

— Doutor, eu lhe suplico!<br />

O tom lacrimoso obrigou Roderick a um esforço de tornar<br />

a abrir os olhos. Antes não o tivesse feito. Seu amigo,<br />

Hugh Gilbert estava pressionando os lábios contra a<br />

mão do cirurgião.<br />

— O senhor acha que eu não tentaria salvá-lo, se lhe


14<br />

Heather Grothaus<br />

restasse alguma chance?<br />

A voz do médico adquirira um tom mais gentil. A de<br />

Hugh, porém, tornou-se ainda mais súplice.<br />

— Por favor!<br />

Um ruído de passos. Roderick detectou um barulho<br />

metálico e novamente passos.<br />

— Dê-lhe uma gota deste sedativo em intervalos. Ao<br />

menos ele terá algum alívio para as dores. Infelizmente<br />

não há mais nada que eu possa fazer. Cuidado para não<br />

exagerar na dose. Você o mataria de uma vez. De qualquer<br />

forma, ele não deverá ver o sol nascer amanhã. Assim que<br />

acontecer, leve-o daqui. Preciso da maca para acomodar<br />

outros feridos.<br />

Hugh uniu as mãos em agradecimento.<br />

— Obrigado, doutor. Deus o abençoe.<br />

Uma brisa fresca soprou sobre o rosto quente e latejante<br />

de Roderick conforme Hugh movia os braços e<br />

destampava o vidro de remédio.<br />

— Abra a boca, Rick — ele pediu. — Graças a Deus, eu<br />

consegui.<br />

Roderick sentiu o indicador do amigo sendo introduzido<br />

por entre seus lábios e massagear sua gengiva. Uma<br />

sensação de ardência se seguiu. Hugh repetiu o procedimento.<br />

E tornou a repeti-lo.<br />

Seu melhor amigo estaria tentando matá-lo?<br />

Roderick abriu o olho, o máximo que pôde. Sua cabeça,<br />

nesse momento, começou a rodopiar, e ele teve a<br />

impressão de que o teto desabaria sobre eles.<br />

O rosto suarento de Hugh perdeu o foco como se<br />

ele tivesse submergido e Roderick o estivesse olhando<br />

através das águas. Ouviu-o dizer uma imprecação pela<br />

dificuldade de tornar a fechar o frasco, até que finalmente


O TiranO de cherbOn 15<br />

a rolha se encaixou ao gargalo.<br />

— Hugh? — ele tentou dizer o nome do amigo, mas só<br />

conseguiu produzir um som gutural. O chamado foi ouvido,<br />

contudo, pois Hugh rapidamente se inclinou sobre ele.<br />

— Você deve estar se perguntando sobre o motivo de<br />

eu ter triplicado a dose. Não tenha medo. Foi para o seu<br />

bem. — Enquanto falava, Hugh ia recolhendo os poucos<br />

pertences de ambos e colocando-os em um saco. — Eu vou<br />

tirá-lo daqui.<br />

Roderick tentou responder, mas só conseguiu emitir<br />

um novo gemido. Sentiu, mais do que viu, o cobertor ser<br />

puxado e sua cabeça e seus ombros ser levantados.<br />

— Tente dormir — Hugh murmurou, esbaforido pelo<br />

esforço. — Eu vou levá-lo...<br />

O restante da frase se perdeu entre uma explosão<br />

branca de dor ao solavanco combinado com o sonífero.<br />

Roderick não saberia dizer por quanto tempo esteve<br />

inconsciente ou qual a distância que Hugh percorrera,<br />

transportando-o naquela maca improvisada. O gosto acre<br />

do incenso que queimavam no hospital ainda impregnava<br />

sua boca. Ele ouviu, antes de ver as pessoas com seu<br />

olho bom, que, talvez não estivesse tão bom, a julgar pela<br />

nuvem que parecia envolver-lhe as formas.<br />

A droga que Hugh lhe dera era potente. Apesar da<br />

inconveniência do zumbido nos ouvidos, que já estavam<br />

bastante afetados antes de seu uso, e da distorção nas<br />

imagens, ele não sentia mais as dores. Todo o seu corpo<br />

tremia, porém. Um tremor incontrolável. Devia ser pela<br />

febre. Ou o frio.<br />

Uma voz surgiu entre a cortina espessa que separava


16<br />

Heather Grothaus<br />

Roderick do restante do mundo. Era mais baixa e mais<br />

suave do que a de Hugh. Uma voz feminina.<br />

— Eu pensei em trazê-lo até você, em primeiro lugar.<br />

Não sei se agi bem.<br />

— Claro que sim. Você fez bem em trazê-lo, embora eu<br />

duvide de que possa ajudá-lo.<br />

O timbre doce e preocupado se infiltrou pela mente<br />

nebulosa de Roderick e foi reconhecido de uma maneira<br />

familiar. Ele conhecia a dona daquela voz. Seria Aster?<br />

Ophelia? Quem?...<br />

— A dose foi excessiva — disse a mulher, mais perto<br />

dessa vez, tanto que dava para sentir o calor de seu<br />

hálito. — Temo que ele não volte mais a si.<br />

Uma figura graciosa, usando um vestido de seda lilás,<br />

faiscou pela memória de Roderick, mas desapareceu<br />

antes que ele pudesse reconhecê-la.<br />

Ardis? Não. Tampouco era ela.<br />

— Oh, meu Deus! Roderick não pode morrer por minha<br />

culpa! — Hugh exclamou, e ele estremeceu ao ouvir o<br />

desespero na voz do amigo. — Eu não sabia o que fazer!<br />

O médico se recusou a operá-lo. Eu não podia deixá-lo<br />

morrer sem ao menos tentar. Tive medo de que Roderick<br />

não fosse suportar as dores. De que seu estado pudesse<br />

agravar ainda mais durante o transporte. — A voz se<br />

tornou melancólica. — Para ser honesto, eu penso que ele<br />

está desejando a morte.<br />

— Então ele conseguirá o que deseja. Minhas chances<br />

de salvá-lo já seriam mínimas, se ele tivesse a metade<br />

de ferimentos e uma grande vontade de viver.<br />

Aqueles olhos... Roderick os conhecia. Aquela música...<br />

A dança...<br />

— Você é a última esperança de Roderick, Aurélia


O TiranO de cherbOn 17<br />

— disse Hugh. — Nossa última esperança.<br />

Aurélia.<br />

A identidade da mulher aflorou à lembrança de Roderick<br />

nesse momento. Hugh o levara à presença da proprietária<br />

do bordel mais famoso e exclusivo de Constantinopla.<br />

A linda e adorável mulher que ele não via havia meses,<br />

desde que partira com os companheiros para lutar nas<br />

Cruzadas.<br />

— Eu farei tudo o que puder, mas antes precisamos<br />

conseguir fazer com que ele recupere os sentidos. Guardo<br />

comigo uma mensagem de seus familiares. Recebi-a na<br />

semana passada. Talvez ele se anime com as notícias.<br />

Não era de satisfação, nem de alegria, a emoção que<br />

atravessou a barreira do torpor para ameaçar eclodir à<br />

superfície. Uma raiva surda se apoderou da mente febril<br />

de Roderick. A família que deixara na Inglaterra se resumia<br />

ao pai e a um primo. Nenhuma notícia que se referisse<br />

ao odioso progenitor lhe interessava, e ele não tinha intenções<br />

de retornar a Cherbon. Nunca!<br />

O contato macio da mão feminina em seu braço proporcionou<br />

agradável bem-estar em comparação ao arroubo<br />

de cólera que lhe roubara os últimos resquícios de força.<br />

— Roderick — ela murmurou, e o som de sua voz o<br />

tragou como um lago de águas límpidas e mornas. —<br />

Roderick, você está me ouvindo?<br />

Sim, ele podia ouvi-la, mas não conseguia comandar<br />

nenhuma parte de seu corpo que indicasse que sim.<br />

Também estava ouvindo um choro infantil, como se<br />

houvesse um bebê naquele recinto.<br />

A pressão aumentou no braço dele.<br />

— Abra os olhos e olhe para mim, milorde.<br />

Em sua mente, Roderick desejou que a mulher e que


1<br />

Heather Grothaus<br />

o amigo o esquecessem e o deixassem repousar enquanto<br />

o remédio estivesse fazendo efeito. O choro pareceu ficar<br />

mais forte.<br />

— Leo precisa mamar. — Ele ouviu Aurélia dizer. Sua<br />

voz soara bem mais alta. Talvez ela tivesse se aproximado<br />

mais.<br />

A impressão se revelou certeira diante das palavras<br />

seguintes, sopradas junto ao seu pescoço.<br />

— Escute, Roderick. Um mensageiro chegou com<br />

notícias da Inglaterra. Seu pai morreu.<br />

As últimas três palavras ricochetearam pela vasta<br />

caverna em que sua mente parecia ter se transformado.<br />

Magnus Cherbon estava morto?<br />

As dores retornaram como o impacto de látegos e com<br />

a contundência da mais afiada das lâminas. Roderick<br />

sentia os músculos latejar como se estivessem se desprendendo<br />

dos ossos. Lutou por um instante de lucidez.<br />

Precisava mostrar a Aurélia que tinha condições de ouvi-<br />

la. Precisava abrir o olho embora a pálpebra estivesse<br />

pesando uma tonelada.<br />

Os cabelos escuros de Aurélia o envolviam como uma<br />

cascata e seus olhos castanhos e meigos, como os de<br />

uma gazela, estavam fixos nos dele.<br />

Aurélia estava mais velha do que da última vez que<br />

a vira. Talvez contasse o fato de ela não estar usando<br />

nenhum truque de maquiagem, nem exibisse fivelas douradas<br />

presas às madeixas.<br />

— Roderick? — ela tornou a chamar, e sua voz se<br />

encheu de júbilo e de emoção ao notar o tremor na pálpebra<br />

que Roderick se esforçava por abrir. — Oh, Roderick!<br />

Graças a Deus!


O TiranO de cherbOn 1<br />

Ele queria falar. Ele queria responder, mas a voz se<br />

recusava a sair.<br />

Acima de tudo, Roderick descobriu, subitamente, que<br />

queria viver

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