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Capítulo I - Romances Nova Cultural

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<strong>Capítulo</strong> I<br />

A noite possui mil olhos,<br />

E o dia, apenas um;<br />

Mas a luz do mundo inteiro perece<br />

Quando o sol desaparece.<br />

A mente possui mil olhos,<br />

E o coração, apenas um;<br />

Mas a luz de uma vida inteira se apaga<br />

Quando o amor acaba.<br />

F.W. Bourdillon, Luz<br />

I luminadas apenas pela luz da lua, as carroças avançavam<br />

ruidosamente pela estrada estreita e tortuosa, em direção<br />

à floresta que ficava além da cidade de Toledo. À frente da<br />

caravana, o cigano chamado Rudolpho cavalgava um garanhão<br />

negro, um animal poderoso, controlado por um homem<br />

extraordinário. Os anos haviam marcado o rosto de Rudolpho,<br />

mas ele ainda era uma figura que se destacava com seus<br />

ombros largos, queixo forte, olhos escuros e desafiadores e<br />

um bigode preto de pontas caídas. Secando o suor do rosto


Kathryn Kramer<br />

com um lenço verde vivo, ele levantou o braço, sinalizando<br />

que o grupo acamparia naquele lugar, na borda da floresta e<br />

perto do rio.<br />

Os outros homens da caravana começaram a posicionar<br />

suas carroças e cavalos em forma de círculo, a desenrolar<br />

as tendas e a soltar os animais, para que pastassem na relva.<br />

As mulheres e as crianças juntavam madeira para as fogueiras<br />

que seriam feitas, como em todas as outras noites, para<br />

comemorar a liberdade dos ciganos.<br />

Uma brisa quente sussurrou através dos ramos das árvores,<br />

fazendo voar a cabeleira rebelde e de um rico castanho-<br />

escuro que caía, como uma cascata, até quase os joelhos da<br />

jovem que saltava da primeira carroça. Dava azar uma mulher<br />

cigana cortar o cabelo, segundo a tradição, e Alicia nunca<br />

havia aparado nem uma única de suas mechas.<br />

Ela riu, deixando o vento açoitar seus cabelos de um lado<br />

para o outro de seu rosto e inclinando a cabeça para trás,<br />

em um gesto de suprema liberdade.<br />

Uma linda mulher de dezessete primaveras, Alicia era alta<br />

e vivaz, os olhos verdes brilhando como estrelas à luz da lua.<br />

— Alicia!— A voz de Rudolpho era amorosa e mansa ao<br />

dizer o nome da filha, sem nenhum traço do trovejar feroz<br />

que tanto fazia alguns tremerem de medo. — Alicia!<br />

Ela avançou rapidamente com um sorriso envolvente, suas<br />

saias farfalhando ao andar. A blusa branca e decotada era<br />

bordada com fios tão coloridos quanto as asas de uma borboleta;<br />

os brincos de ouro e prata balançavam com os seus<br />

movimentos, no ritmo de seu andar gracioso.<br />

— O que foi, papai? — perguntou ela, com uma expressão<br />

carinhosa nos olhos.<br />

— Eu apenas queria ver o seu doce rosto — disse ele,<br />

desmontando do cavalo com a agilidade de um homem da<br />

metade de seu tamanho e idade.<br />

Alicia notou uma contração de dor ao redor da boca do<br />

pai enquanto ele esticava os braços e as pernas. Ele estava


A CIGANA E O CAVALEIRO<br />

ficando velho, o rosto estava pálido e marcado. Ela desejava<br />

muito que outro homem o substituísse na liderança do<br />

bando, tirando aquele fardo dos ombros dele, mas sabia que<br />

Rudolpho nunca consentiria nisso. Até a morte, ele seria o<br />

líder de seu pequeno grupo de nômades.<br />

Rudolpho afastou um cacho do cabelo de Alicia, em um<br />

gesto de afeição, e a expressão dele se iluminou, mudando de<br />

sofrimento para orgulho. Lembrou-se da linda criança que lhe<br />

havia sido entregue tanto tempo antes por uma mulher sem<br />

coração, de cujo rosto ele já se esquecera.<br />

Desde pequena, Alicia tinha traços delicados e olhos<br />

grandes e expressivos.<br />

— Ah! Que linda mulher você se tornou — sussurrou ele.<br />

— Só um príncipe seria bom para você.<br />

— Um príncipe! — Ela estendeu a mão e tocou o ombro<br />

dele. — Nada de príncipe, papai. Vou me casar com um cigano<br />

como eu, certo?<br />

Rudolpho não respondeu, limitando-se a olhar para ela<br />

com muita tristeza, como se houvesse algo que ele lhe queria<br />

dizer. A filha se perguntou o motivo daquela súbita mudança<br />

de humor, da expressão preocupada que ultimamente<br />

tomava o rosto do pai com frequência.<br />

— O que foi, papai? Alguma coisa está errada?<br />

Puxando Rudolpho pela manga de sua camisa verde-vivo,<br />

ela o levou até um aglomerado de árvores. Talvez, longe do<br />

barulho e da confusão, ele relaxasse e lhe confidenciasse<br />

suas ansiedades, raciocinou ela.<br />

Os troncos das árvores gigantescas da floresta se erguiam<br />

em direção ao céu, sua folhagem espessa encobrindo o luar.<br />

Debaixo de uma dessas árvores, eles se sentaram sobre a<br />

relva úmida, ouvindo ao longe as vozes do acampamento,<br />

que se misturavam com os sons da mata. O coro das aves<br />

noturnas, o piar de uma coruja e o trinar dos grilos eram sons<br />

reconfortantes.<br />

Nem Alicia nem o pai disseram uma palavra por alguns


10<br />

Kathryn Kramer<br />

minutos, e então ela quebrou o silêncio, perguntando novamente<br />

a Rudolpho o que o preocupava.<br />

Ele queria responder; precisava confiar nela, mas as palavras<br />

não vinham. Como poderia lhe dizer que ela não era um<br />

deles? Como despedaçar o coração daquela menina? Rudolpho<br />

não conseguia contar àquela linda criança que ele trazia no<br />

coração que ela não era sua filha verdadeira, nem da mulher<br />

que a trouxera para o acampamento quase catorze anos antes.<br />

A criança era uma gorgio, uma não-cigana, mas bastou um<br />

olhar para ela para Rudolpho sentir o coração cheio de afeição.<br />

Apesar de tudo o que havia aprendido, ele adotara a criança<br />

como sua. As leis do bando para conservar a pureza do sangue<br />

cigano, porém, eram rígidas. Alicia nunca se casaria com<br />

um deles. Como poderia ele lhe dizer isso naquele momento?<br />

Ela era tão feliz e tinha tanto orgulho de ser uma cigana...<br />

— Papai?<br />

— Não sou mais jovem — disse ele, tomando a mão dela<br />

nas suas. — Preocupo-me com o que vai acontecer com você<br />

quando eu for embora desta terra.<br />

— Embora? Não permitirei que o senhor me abandone,<br />

papai.<br />

Típico dos jovens, isso de querer combater a morte, refletiu<br />

ele.<br />

— Não imagino a vida sem o senhor. Sempre estivemos<br />

juntos.<br />

Ou, pelo menos, era isso que parecia. Mas havia ocasiões<br />

em que ela era perturbada por sonhos, memórias de um outro<br />

lugar e de um outro tempo, que a assombravam. Alicia tinha<br />

uma vaga ideia de ter pegado a mão de uma desconhecida,<br />

que a empurrava com rudeza.<br />

Ela havia imaginado que a mulher era sua mãe, mas<br />

Rudolpho sempre dissera que sua mãe havia morrido quando<br />

ela nascera. As perguntas sobre sua infância e sobre a mãe<br />

sempre fizeram a testa do pai se enrugar de preocupação,


A CIGANA E O CAVALEIRO 11<br />

de forma que ela se conformou com o silêncio dele.<br />

— Sempre? — Rudolpho sorriu. — Você está comigo há<br />

muito tempo, e todos os dias da minha vida eu agradeço o<br />

momento em que a encontrei. Você me trouxe muita felicidade.<br />

Alicia sentiu o pai lhe apertar a mão. Apesar da idade, ele<br />

superava a maioria dos homens, pensou ela. Um dia gostaria<br />

de se casar com um homem como ele.<br />

— Eu amo o senhor, papai.<br />

— E eu amo você — disse ele, sorrindo. — É fácil amar<br />

você, minha criança. Bela, selvagem e viva, como os potros<br />

selvagens que tentamos domar.<br />

— Sou uma cigana! — respondeu ela, empertigando-se e<br />

erguendo o queixo.<br />

Ela estava satisfeita com a vida que levava, vagando<br />

com as carroças, acampando sob as estrelas. Nunca desejaria<br />

ser uma gorgio. Pensar nos não-ciganos a deixava de mau<br />

humor. Aqueles idiotas com cara de leite que sempre faziam<br />

o sinal da cruz quando a caravana passava, olhando-a como<br />

se ela tivesse saído diretamente do inferno...<br />

Havia muitas histórias sobre as origens do seu povo.<br />

Alguns diziam que eles haviam vindo do exótico Egito antigo,<br />

que haviam fugido dos sarracenos, movendo-se para o Oeste<br />

e o Sul. Mas Alicia acreditava em uma versão diferente: eles<br />

eram romani, vindos do vale do rio Indo, de onde haviam<br />

saído muitos anos antes. Tinha muito orgulho de seu povo.<br />

— Alicia... — disse Rudolpho, novamente com aquela<br />

expressão no rosto, perturbado, como se tivesse algo a lhe<br />

dizer.<br />

— Sim? — respondeu ela, inclinando a cabeça e sorrindo.<br />

Se ao menos Rudolpho conseguisse encontrar um homem<br />

do mesmo grupo dela, alguém que a amasse e cuidasse dela<br />

quando ele não mais estivesse a seu lado... Se pudesse encontrar<br />

esse homem para casar com ela, talvez tudo desse certo,<br />

no final das contas, e Alicia nunca teria de saber a verdade.


12<br />

Kathryn Kramer<br />

— Não é nada — disse ele, tocando a ponta do nariz de<br />

Alicia com o dedo. — Você é uma cigana com toda a paixão<br />

e o fogo dos romani. — Ele ainda não estava pronto para<br />

morrer. Ainda tinha tempo.<br />

— Rudolpho! — os outros homens o chamaram, depois<br />

de terem montado o acampamento.<br />

Ouviu-se o som de música e sentiu-se no ar o cheiro de<br />

madeira queimando na fogueira. Estavam todos prontos<br />

para começar a tocar e a dançar enquanto a refeição da noite<br />

cozinhava.<br />

Em geral, Alicia gostava de estar entre os outros, acompanhando<br />

a música com palmas ou dançando, mas não naquela<br />

noite. A floresta era tão tranquila que ela queria ficar<br />

só mais um pouquinho com o pai.<br />

— Vamos voltar — disse Rudolpho, levantando-se. —<br />

Estão sentindo a nossa falta.<br />

— Vá o senhor, papai. Eu vou daqui a pouco. Os pássaros<br />

estão cantando a minha música favorita. — O riso dela<br />

era tão melodioso quanto o borbulhar do riacho que corria<br />

ali perto.<br />

Rudolpho beijou o rosto da filha.<br />

— Entendo, meu bem. Mas tenha cuidado. Nunca se sabe<br />

que tipo de animal essas matas escondem.<br />

— Não se preocupe.<br />

Ela sabia que o pai se referia àqueles que odiavam os ciganos.<br />

Estavam em uma fase perigosa. Um tal de Torquemada<br />

havia dito que os ciganos não podiam ser cristãos por causa<br />

de seu jeito selvagem e livre. Ele os chamava de feiticeiros,<br />

blasfemos, astrólogos, observadores de ritos, contrários ao<br />

cristianismo, abstêmios dos sacramentos e fornecedores de<br />

poções do amor.<br />

Alicia não sabia o que muitas daquelas palavras significavam,<br />

mas tinha noção de que ele era o responsável pela<br />

morte de judeus e dos chamados marranos, judeus convertidos


A CIGANA E O CAVALEIRO 13<br />

à fé do Santo Deus que, segundo se dizia, praticavam em<br />

segredo a fé judaica.<br />

— Não deixarei que nada de mal me aconteça, papai<br />

— anunciou ela para depois colocar a mão na pequena faca,<br />

escondida no cinto.<br />

Olhando para o céu, para a luz da lua infiltrada através<br />

das nuvens, ela sentiu uma onda de magia primitiva. Alicia<br />

não sabia quando exatamente seus pés tinham criado asas,<br />

mas de repente viu-se correndo sobre a relva e o musgo<br />

macio da floresta.<br />

Movendo-se por entre as árvores, que a protegiam do perigo<br />

de olhos pouco amistosos, ela se entregou ao esplendor<br />

silencioso da noite. As estrelas brilhavam como pequenas<br />

fogueiras de acampamento acima da terra, e ela parou por<br />

tempo suficiente para olhar para a luz delas.<br />

De repente, um som agudo lhe chegou aos ouvidos. Não<br />

era um barulho feito por algum animal da noite. As corujas<br />

e os pássaros noturnos não gritavam assim, e os animais<br />

não praguejavam de raiva. O que ela ouvia era uma voz<br />

humana!<br />

Alicia conteve a respiração e apurou os ouvidos. Eram<br />

vozes de homens, falando não em romani, mas em espanhol.<br />

Ela sentiu vontade de fugir, sabia que se tivesse juízo<br />

iria embora, mas sua curiosidade levou a melhor. Quem teria<br />

perturbado aquela doce noite? Aqueles homens representariam<br />

algum perigo para seu povo? Avançou, tomando o cuidado<br />

de se esconder nas sombras, determinada a descobrir do<br />

que se tratava.<br />

— Cristo! Você o matou, Manuel! — exclamou um dos<br />

homens de pé perto da margem do rio.<br />

— Cale a boca, José! Nós tínhamos de bater nele com<br />

força. Ou você acha que deveríamos pedir com delicadeza<br />

que ele nos entregasse suas jóias e ornamentos?<br />

— Não, mas tínhamos de matá-lo? E se chegar alguém...


14<br />

Kathryn Kramer<br />

— Ele foi interrompido por um gemido baixo que escapou<br />

dos lábios do homem que estava no chão. — Ele não<br />

está morto!<br />

— Jogue-o no rio. Rápido, antes que ele volte a si. — A<br />

ordem foi dada em uma voz tão fria quanto as neves das<br />

Terras Altas.<br />

— Jogá-lo?<br />

— Sim, e agora ou, por tudo o que é sagrado, você vai<br />

com ele!<br />

Alicia viu os dois homens levantar a vítima do chão, arremessá-lo<br />

nas águas turbulentas e, depois, saírem correndo.<br />

Eram ladrões e haviam matado um homem, deixando-o para<br />

se afogar! Ladrões gorgios.<br />

E eles tinham o descaramento de criticar os ciganos e<br />

insultá-los. Um cigano nunca se rebaixaria ao ponto de fazer<br />

um ato tão traiçoeiro quanto aquele, pensou Alicia com<br />

raiva. Ela se perguntou se o homem que fora lançado ao rio<br />

era um gorgio ou um cigano de um outro bando. Mas isso<br />

importava? Um homem iria morrer afogado se ela não agisse<br />

depressa. O que mais poderia ela fazer, a não ser tentar<br />

salvá-lo?<br />

Sem pensar duas vezes, Alicia pulou no rio gelado, arfando<br />

ao ser envolvida pelas águas frias e profundas. Estava<br />

acostumada a nadar, mas a correnteza a puxava para baixo.<br />

Sentiu os pulmões arder, na busca de ar, enquanto continha a<br />

respiração. Os ouvidos de Alicia zumbiam forte, e suas saias<br />

pesadas ameaçavam puxá-la para o fundo.<br />

— O Del. O Del — clamou ela, pedindo ajuda a Deus. Imaginou<br />

se morreria com aquele estranho. Não. Ela era forte, era<br />

uma cigana, afinal!<br />

Lutando contra o medo, Alicia movimentou as pernas<br />

furiosamente para impelir o corpo para cima e, ao chegar à<br />

superfície, tragou com avidez o doce néctar do ar e da vida.<br />

Então viu o corpo do estranho a alguns metros de distância


A CIGANA E O CAVALEIRO 15<br />

e, com braçadas fortes, aproximou-se daquela forma que<br />

começava a afundar. Era como se Deus estivesse respondendo<br />

às suas súplicas.<br />

Ela sabia nadar desde menina, mas sempre havia nadado<br />

no verão, quando as águas são quentes, e não nos rios gelados<br />

do outono. Mesmo assim, lutando contra a correnteza,<br />

ela sabia que venceria o rio.<br />

No primeiro momento, aquela prisão de água lhe pareceu<br />

infinita, mas ela nadou vigorosamente até o homem. Agarrouo<br />

por um braço e pelos cabelos, e o puxou até a superfície.<br />

Ele tinha engolido água e estava sufocado. Mais uma vez,<br />

Alicia clamou por o Del, não mais pela sua própria vida,<br />

mas pela daquele estranho. Precisava levá-lo até a margem<br />

do rio e, como que em resposta às suas orações, as correntes<br />

subiram, arrastando os dois para a margem.<br />

Com toda a sua força, Alicia puxou o estranho para fora<br />

da água, feliz ao sentir a rocha sob seus pés. Inclinando-se<br />

sobre o homem, sentiu-lhe o pulso. Estava fraco, mas havia<br />

sinal de vida.<br />

Ela então se lembrou de uma vez em que uma criança caíra<br />

no rio e fora retirada por Rudolpho. Seu pai havia sugado<br />

a água para fora do corpo da criança e pressionado-lhe<br />

as costas. Ela faria o mesmo.<br />

— Viva! — gritou Alicia, enquanto massageava o corpo<br />

dele, como Rudolpho havia feito com a criança. Ao ouvir o<br />

gemido do homem, ela repetiu: — Viva! — Ele não poderia<br />

morrer. Não depois de tudo aquilo. Fosse ele gorgio ou cigano,<br />

isso não importava. Aquele homem tinha de viver.<br />

Virando-o de costas, ela pressionou a boca contra a dele,<br />

soprando o ar da vida nos pulmões do estranho e sentindo<br />

uma fagulha de sua existência descer para ele. Ele era um<br />

homem grande e musculoso, e tinha cabelos escuros e<br />

espessos que lhe caíam na testa.<br />

Alicia ficou chocada com o forte sentimento que a


16<br />

Kathryn Kramer<br />

dominou ao tocar a boca dele. Afastando-se do estranho,<br />

ela sentiu medo, ainda que não soubesse de quê. Teve<br />

vontade de ir embora, mas ele a chamou de volta.<br />

— Não... não me deixe... quem...? — sussurrou ele, com<br />

a voz rouca.<br />

Olhava-a fixamente, com uma expressão de surpresa e<br />

confusão no rosto. Tentou se sentar, como se pretendesse<br />

segui-la caso seu pedido não fosse atendido. Alicia ficou<br />

assustada com a intensidade daquele olhar penetrante. Era<br />

como se ele a tivesse enfeitiçado.<br />

— Deite-se, poupe as suas forças — murmurou ela em<br />

espanhol.<br />

Como ele tremia de frio, Alicia o cobriu com seu peso<br />

até que ele parasse de tremer. Examinando melhor o rosto<br />

daquele estranho, ela ficou hipnotizada com a força e a beleza<br />

que via ali.<br />

Os olhos dele eram cercados por cílios escuros, e ela se<br />

perguntou de que cor seriam à luz do dia. Ele não tinha a<br />

coloração dos romani; a pele, os cabelos e os olhos eram<br />

mais claros. Aquele homem não era cigano. Mesmo assim,<br />

ela o admirou. Foi preciso dois para dominá-lo, pensou. Dois<br />

covardes.<br />

Quando os olhares de ambos voltaram a se encontrar, ainda<br />

que por apenas um momento, Alicia pensou no que sua<br />

avó e conselheira, a phuri dai do grupo, dizia: que se uma<br />

pessoa salvava a vida de outra, as suas almas se uniam por<br />

toda a eternidade. Isso seria verdade? A resposta veio em uma<br />

onda de sensações e, naquele momento, ela soube que aquele<br />

homem era, de alguma forma, parte do seu destino.<br />

A chama trêmula da vela iluminava o rosto do homem<br />

deitado sobre a cama rudimentar, de pano e palha, dentro<br />

da carroça cigana. Os olhos de Alicia passeavam por aquele


A CIGANA E O CAVALEIRO 17<br />

corpo forte, enquanto ela limpava gentilmente o sangue da<br />

cabeça dele com um pano umedecido em um chá de ervas<br />

curativas.<br />

— Quem é você? — perguntou, embora soubesse que<br />

não receberia resposta do estranho adormecido.<br />

Ela nunca tinha estado tão próxima de um gorgio antes,<br />

e a aparência dele a fascinava. Ele não tinha a compleição<br />

morena nem os pelos faciais dos homens ciganos. O rosto<br />

tinha linhas suaves e o cabelo caía-lhe nos ombros, à moda<br />

espanhola. As sobrancelhas eram espessas; as maçãs do<br />

rosto, altas e salientes; o nariz, elegantemente esculpido.<br />

Um homem extraordinariamente bonito.<br />

Alicia mantinha uma vigília constante sobre ele, enxugando<br />

o sangue de seu rosto e lavando o ferimento em sua cabeça<br />

com uma mistura de hidraste, água e mirra. Quando ele<br />

gemia, adormecido, ela o acariciava e sussurrava palavras<br />

doces, para aliviar o sofrimento.<br />

Foi uma luta levar o homem semiconsciente até o acampamento,<br />

mas ela, de alguma forma, conseguiu. Teve, porém,<br />

de enfrentar um outro obstáculo: os homens ciganos, sempre<br />

desconfiados de qualquer estranho, disseram que ela não<br />

deveria ter levado um gorgio para o acampamento, que a presença<br />

dele era um mau presságio, que ele traria má sorte para<br />

eles. Mas Alicia se manteve firme na determinação de cuidar<br />

dele. Todos sabiam que ela era uma gata selvagem quando<br />

contrariada e, no final, os outros ciganos haviam recuado,<br />

ainda que seus olhares sombrios a tivessem acompanhado<br />

quando Alicia e Rudolpho o levaram para a carroça.<br />

Circularam murmúrios enraivecidos, que Alicia não compreendia,<br />

de que os anciões do bando tinham sido tolerantes<br />

demais com ela. Era como se os mais velhos soubessem<br />

de algum segredo. Normalmente, Alicia teria ficado curiosa,<br />

mas sua preocupação com o gorgio ferido não demorou a<br />

afastar essa curiosidade de sua mente.


1<br />

Kathryn Kramer<br />

Ao tirar o gibão molhado do gorgio, cheio de cordões e<br />

laços, a camisa de seda franzida no pescoço e nos punhos,<br />

debruada com um belo bordado espanhol de fios de seda<br />

vermelhos, dourados e negros, Alicia ficou encantada com a<br />

beleza do vestuário do homem. A roupa elegante não era nem<br />

um pouco prática, mas a fascinava. Rudolpho e ela haviam<br />

rido das calças engraçadas do gorgio, agarradas às pernas<br />

dele como uma segunda pele.<br />

Enquanto enxugava o suor do homem com uma toalha<br />

e trocava suas roupas, Alicia deixou seus olhos vagar pelo<br />

corpo nu. A pele macia e lisa do estranho era dourada onde<br />

havia sido exposta ao sol, mas onde a luz solar não a havia<br />

tocado, era alguns tons mais clara. Um punhado de pelos<br />

cobria o peito largo e formava uma trilha fina e reta até o<br />

umbigo; os braços eram musculosos; a cintura, estreita; as<br />

pernas, retas e fortes, e a masculinidade dele era bem definida.<br />

Só de olhar para ele ficava estranhamente excitada,<br />

seu sangue se agitava em um calor lânguido e um desejo que<br />

a deixava envergonhada. Uma moça direita não deveria ter<br />

pensamentos como aqueles.<br />

Como que sentindo os olhos penetrantes dela, o homem<br />

estremeceu no sono, soltando um gemido, e Alicia correu<br />

para acalmá-lo.<br />

— Você está em segurança aqui. Ninguém lhe fará mal.<br />

— E ela tinha toda a intenção de cumprir essa promessa.<br />

Indefeso em seu repouso, ele tinha despertado todos os<br />

instintos protetores de Alicia, que jurara fazer tudo o que<br />

pudesse para garantir a segurança dele. Ela pegou uma manta,<br />

estendeu-a sobre o corpo nu para protegê-lo do frio da<br />

noite, e sentou-se no chão a seu lado.<br />

Por um bom tempo a vigília de Alicia transcorreu tranquilamente,<br />

tanto que uma ou duas vezes ela quase cochilou.<br />

Mas, de repente, aquela calmaria foi interrompida por um<br />

grito do estranho:


A CIGANA E O CAVALEIRO 1<br />

— Não! Não! Não me matem. — Ele se debatia, como se<br />

estivesse lutando com os assaltantes novamente. — Não me<br />

matem, pelo amor de Deus! Vocês são covardes. Dois contra<br />

um. Malditos bastardos!<br />

Levantando-se de um pulo e curvando-se sobre ele, Alicia<br />

tentou acalmá-lo. Seus olhos se encontraram com as profundezas<br />

escuras dos dele, que haviam se arregalado de forma<br />

tempestuosa. Olhos de um castanho-escuro profundo encontraram<br />

os dela. Eram tão escuros e tão selvagens quanto os<br />

olhos de qualquer cigano.<br />

— Quem... — sussurrou ele, estendendo a mão, entrelaçando<br />

os dedos nos fios macios e sedosos dos cabelos dela<br />

e puxando-a para mais perto de si.<br />

— Alicia — respondeu ela rapidamente, tentando se afastar<br />

daquele olhar fixo. Mas ele a segurava pelo cabelo. — Por<br />

favor, me solte. Não fui eu quem tentou fazer mal a você.<br />

— E aqueles homens?<br />

— Foram embora. Eles jogaram você no rio e depois saíram<br />

correndo como os covardes que são. Eu tirei você do rio.<br />

— Você? — Os olhos escuros penetrantes pareciam<br />

enxergar através dela, até o fundo da alma. Em seguida, ele<br />

sorriu. — Linda bruxa... — Soltando-a, ele voltou a fechar<br />

os olhos.<br />

Bruxa? A palavra a magoou. Ela lhe salvara a vida dele<br />

e ele a chamava de bruxa, aquele homem bonito de lindos<br />

olhos castanhos!<br />

— Gorgio mal-agradecido! — praguejou, dando-lhe as<br />

costas com raiva.<br />

Por causa do ferimento na cabeça, Alicia decidiu continuar<br />

a tratá-lo. Ajoelhou-se ao lado dele mais uma vez. Que ele<br />

a chamasse do que quisesse. Depois ela lhe diria a verdade:<br />

não era um bruxa, mas sim uma pessoa que curava.<br />

As horas passaram lentamente, as velas queimaram até<br />

o fim, e Alicia continuava à cabeceira dele. Mais uma vez


20<br />

Kathryn Kramer<br />

perdido no nevoeiro dos sonhos, o gorgio se agitava e virava<br />

durante o sono, murmurando:<br />

— Marrana. Eles a chamaram de Marrana. Judia. Eles a<br />

condenaram à fogueira e eu não pude salvá-la. Eu não sabia.<br />

Ele estendeu a mão, como se estivesse se afogando novamente,<br />

e mais uma vez Alicia lhe ofereceu conforto, perguntando-se<br />

por quem ele estaria enlutado. Pela amante?<br />

Pela esposa?<br />

Censurando a si mesma, lutou contra o ciúme que sentia.<br />

Não tinha direito nenhum sobre aquele homem, por mais<br />

que ele mexesse com seus sentidos. Ele era um gorgio, e ela,<br />

uma cigana.<br />

Alicia sabia que ele estava naquele estado de semiconsciência<br />

entre a realidade e o sonho. Ele voltou a sussurrar<br />

alguma coisa e ela se inclinou mais para ouvir, mas recuou<br />

ao ouvir as mesmas palavras:<br />

— Bruxa... Adorável bruxa...<br />

Ela ia protestar, dizer que não era uma daquelas velhas<br />

encarquilhadas e malignas, mas antes de as palavras saírem<br />

de sua boca, Alicia sentiu o toque quente e suave dos dedos<br />

dele em seu peito, o que provocou um estremecimento de<br />

desejo que percorreu todo o seu corpo. A mão dele se encaixou<br />

no seio farto de Alicia, acariciando o mamilo através do<br />

tecido fino da blusa com uma ternura infinita. Ela pegou a<br />

mão do gorgio com a intenção de afastá-la, mas a sensação<br />

era tão excitante que não teve coragem de detê-lo.<br />

Ele nem sabe o que está fazendo, pensou, olhando para o<br />

rosto do estranho, que dormia. Sentiu uma aguilhoada de dor<br />

no coração, ao pensar que talvez ele estivesse sonhando com<br />

outra. Sua vontade era de ser dona do desejo dele, por mais<br />

tolo que fosse esse anseio. Foi tomada por uma vontade violenta<br />

de que ele acordasse e estendesse a mão com a intenção<br />

de tocá-la e chamá-la de linda.<br />

Como que respondendo ao seu desejo, a mão do estranho


A CIGANA E O CAVALEIRO 21<br />

se moveu para baixo, deslizando sobre a pequena cintura de<br />

Alicia e descansando na curva cheia do seu quadril. Ela nunca<br />

imaginara que a carícia de um homem pudesse provocar<br />

uma reação tão forte como aquela, fazendo seu coração<br />

disparar num ritmo tão furioso.<br />

Ela lembrou e relembrou muitas vezes o que a velha avó<br />

tinha lhe ensinado sobre o ato do acasalamento, e não conseguiu<br />

deixar de imaginar como seria ficar com aquele homem.<br />

Seria esse um pensamento pervertido? Alicia não sabia por<br />

quê, mas não lhe parecia algo errado. Ao contrário, era tão<br />

natural quanto respirar.<br />

Buscando o calor do corpo dele, Alicia se deitou ao lado<br />

do estranho e se aninhou na segurança daqueles braços<br />

fortes, fechando os olhos para esperar o amanhecer.<br />

O som de cavalos relinchando, pássaros gorjeando, cachorros<br />

latindo e crianças rindo acordou Rafael de Villasandro<br />

de seu sono profundo. Abrindo os olhos lentamente, na<br />

expectativa de se encontrar em seus aposentos, assustou-se<br />

enquanto seus olhos vagavam pelo espaço fechado de algum<br />

tipo de carroça coberta. Viu as pequenas janelas, as paredes<br />

de madeira, a lona pendurada no outro extremo, servindo<br />

de porta.<br />

Mãe de Deus, onde estava?<br />

Rafael começou a se levantar, nervoso e confuso, e<br />

foi então que viu a jovem deitada a seu lado. Ficou hipnotizado<br />

pelo rosto mais bonito que já havia contemplado na<br />

vida. Então não tinha sido um sonho, ela existia!<br />

Ao se mover, acabou por roçar o peito nos seios de Alicia<br />

e suas coxas tocaram as dela com uma intimidade que o<br />

excitou.<br />

Rafael avaliou a moça deitada a seu lado. Os cabelos escuros<br />

espalhados podiam ser comparados a uma capa do mais


22<br />

Kathryn Kramer<br />

escuro dos veludos; a compleição impecável era de um tom<br />

creme escuro, e os cílios eram longos e espessos. Os lábios<br />

eram cheios e feitos para ser beijados. Mas foi o corpo de<br />

Alicia que o fez vibrar: pernas longas, busto cheio e firme<br />

que ele ansiava tocar, uma cintura que ele poderia enlaçar<br />

com as mãos e quadris arredondados e perfeitos. Mesmo<br />

totalmente vestida, ela possuía curvas que faziam os<br />

menestréis padecer e transformavam os homens em idiotas<br />

apaixonados.<br />

Adormecida, parecia um anjo, mas ele sentia que, acordada,<br />

ela seria uma mulher de personalidade forte. Tratava-<br />

se de uma mulher cigana, a julgar pela carroça.<br />

Ciganos...<br />

As mulheres eram conhecidas pela beleza, mas em toda<br />

a sua vida nunca tinha visto uma como aquela. A palavra<br />

“cigano” evocava desprezo e medo, e ele se lembrou das<br />

histórias ouvidas desde a infância. No entanto, Rafael não<br />

podia evitar sentir algo diferente em relação àquela moça.<br />

Recordava-se vagamente de ela lhe ter salvado a vida.<br />

Todas as lembranças da noite anterior e dos homens que o<br />

haviam assaltado passaram, como um turbilhão, pela mente.<br />

Ao levar a mão à cabeça, tocou o calombo sobre a têmpora.<br />

Sua cabeça latejava.<br />

— Bastardos! — xingou ele em voz alta, despertando e<br />

assustando a moça cigana que dormia a seu lado.<br />

Alicia acordou, encontrando olhos escuros penetrantes<br />

que a avaliavam, e ficou ruborizada ao se lembrar da forma<br />

como ele a havia tocado durante a noite. Ficou em dúvida<br />

se ele também se lembrava. Abriu a boca para falar, mas<br />

estava perturbada demais para dizer qualquer coisa.<br />

O gorgio, no entanto, não se intimidou:<br />

— Olhos verdes. Belos olhos verdes, como o mar... É<br />

real a lembrança que eu tenho de você inclinada sobre mim<br />

como uma ninfa do mar?


A CIGANA E O CAVALEIRO 23<br />

— Você me chamou de “bruxa” — sussurrou ela, ainda<br />

magoada.<br />

Rafael segurou-lhe o rosto com as duas mãos e forçou-a<br />

a fitá-lo.<br />

— Eu só quis dizer que você me encantou com a sua<br />

beleza. Não tive intenção de ofendê-la.<br />

Por um longo momento, eles se entreolharam em uma<br />

intensa comunicação silenciosa. Depois, ele tentou se sentar.<br />

— Ainda estou fraco como um potro recém-nascido —<br />

disse ele, sentindo-se engolfar por uma onda de tontura.<br />

— Você vai recuperar a sua força. Conheço ervas curativas<br />

que funcionarão como uma mágica. — Alicia sorriu,<br />

mostrando os dentes perfeitos e brancos como pérolas.<br />

— Mágica cigana...<br />

Ele suspirou, desconfiado por apenas um momento,<br />

lembrando-se das histórias que ouvira sobre bandos maltrapilhos<br />

que envenenavam pessoas, roubavam crianças,<br />

lançavam bruxarias e furtavam.<br />

A expressão do rosto dele, com as sobrancelhas levantadas,<br />

enfureceu Alicia. Todos os velhos ressentimentos,<br />

a lembrança das multidões de gorgios os insultando a inundaram.<br />

Sentando-se também e endireitando os ombros para<br />

trás, ela levantou a cabeça com orgulho, os olhos disparando<br />

fagulhas.<br />

— Mágica que cura, gorgio! Aceite-a ou dane-se!<br />

Rafael inclinou a cabeça para trás e riu, um som<br />

profundo e alto.<br />

— Você é mesmo cheia de fogo! Eu não me enganei<br />

sobre você.<br />

O riso dele a deixou furiosa e, em um ataque de mau<br />

humor, socou o peito dele com as mãos fechadas em punhos,<br />

esquecendo-se por um momento que ele estava ferido.<br />

— Como ousa rir de mim?! Eu deveria ter deixado você<br />

no rio! Diabo gorgio! O Beng!


24<br />

Kathryn Kramer<br />

Ele parou de rir e seus olhos assumiram uma expressão<br />

gentil, como poças escuras que pareciam envolvê-la com seu<br />

calor.<br />

— Eu não estava rindo de você, adorável cigana, mas<br />

desta situação. — Ao tentar colocar a mão nos cabelos dela,<br />

Rafael gemeu de dor, devido ao movimento. — Diabo, sinto<br />

a cabeça como se todos os soldados de Castela marchassem<br />

pelo meu cérebro!<br />

O gemido de dor fez com que a raiva de Alicia passasse,<br />

e no mesmo instante estendeu a mão na direção dele, com a<br />

intenção de examinar o ferimento. Antes de ela completar o<br />

movimento, porém, ele agarrou a mão estendida, tomou-a na<br />

sua e beijou a palma com lábios gentis para alguém tão másculo<br />

e forte. A sensação da boca daquele homem sobre sua<br />

pele fez com que Alicia sentisse que uma faísca havia sido<br />

acesa, percorrendo-lhe o corpo inteiro.<br />

— Você está arrependida de ter me salvado?<br />

Confusa e amedrontada, ela se afastou, fitando-o com os<br />

olhos verdes arregalados.<br />

— Talvez eu esteja contente, apesar de tudo, de não ter<br />

deixado você morrer afogado.<br />

Ele sorriu e o coração de Alicia deu um salto. Ele sim,<br />

que é um bruxo, que lançou um feitiço em mim, pensou ela.<br />

Ser observada daquele jeito a fazia tremer, e o simples toque<br />

das mãos fortes a deixava lânguida. Ficar perto dele causava-lhe<br />

uma dor prazerosa no baixo-ventre. Nenhum outro<br />

homem jamais a fizera se sentir assim tão estranha.<br />

Alicia provocava os rapazes ciganos com seus olhos sorridentes<br />

e o balançar dos quadris, mas sempre se mantivera<br />

distante e fora do alcance das mãos e dos olhos famintos<br />

que a perseguiam. Mas agora sentia uma estranha vontade de<br />

ser prensada contra o peito musculoso daquele homem e ser<br />

confinada pela força dos braços dele.<br />

— Meu Deus, como você é bonita! — Ele estendeu a


A CIGANA E O CAVALEIRO 25<br />

mão na direção dela, puxando-a para o abraço que ambos<br />

almejavam.<br />

O pulso de Alicia se acelerou com a paixão que via nos<br />

olhos dele. Saber que era desejada era algo tão potente<br />

quanto qualquer poção de amor cigana. Assim, entrelaçou<br />

os braços ao redor do pescoço dele e lhe ofereceu os lábios.<br />

Alicia conteve a respiração enquanto a boca do estranho<br />

descia sobre a sua. Rafael a beijou como um homem que possuía<br />

uma grande sede a saciar, envolvendo-a e acariciando-a.<br />

Ela se entregou às violentas emoções que dominavam seu<br />

corpo, respondendo ao beijo com uma fome própria, extasiada<br />

pela experiência de sentir pela primeira vez os lábios de<br />

um homem.<br />

— Oh, gorgio! — murmurou quando, por fim, se afastaram.<br />

Arrebatada por emoções e sensações inusitadas, Alicia se<br />

esqueceu de tudo o mais. Isso até baixar os olhos e notar,<br />

debaixo do tecido fino que o cobria, a dureza pulsante da masculinidade<br />

dele. Enrubesceu, constrangida, livrando-se dos<br />

braços que a envolviam. Seus olhos se encheram de medo,<br />

não do rapaz, mas de si mesma.<br />

— Não, não me toque! — Levantou-se depressa e ficou<br />

de pé, encarando-o.<br />

Rafael tentou se levantar, querendo capturá-la nos braços<br />

novamente, mas a tontura o deixou incapaz de fazer qualquer<br />

coisa, a não ser contemplá-la. Os olhos de Alicia estavam<br />

tão apreensivos como se ela estivesse diante de um touro<br />

indomado. Nada poderia extinguir o ardor dentro dele mais<br />

depressa do que ver a expressão daqueles olhos assustados.<br />

— Perdão. Eu não deveria ter agido assim, doce cigana<br />

— desculpou-se ele.<br />

O que o deixava assim tão atordoado, o seu ferimento ou<br />

a proximidade daquela ciganinha?<br />

Alicia não respondeu e apenas evitou encará-lo. O forte<br />

rubor de seu rosto fez com que ele percebesse o motivo do


26<br />

Kathryn Kramer<br />

medo. Para evitar maiores constrangimentos, puxou um<br />

cobertor que estava debaixo de seus pés e cobriu-se.<br />

Então ela era inocente, pensou, desapontado. Já havia<br />

ouvido falar de como os ciganos guardavam as suas virgens.<br />

Ele teria de tirar da cabeça todos os pensamentos lascivos.<br />

Mas isso era mais fácil de dizer que de fazer. Ali estava ele, nu<br />

como Adão, com uma mulher tão bela quanto a própria Eva.<br />

Como poderia não pensar em fazer amor com ela? O ar ficou<br />

tenso, o silêncio quebrado apenas pela respiração levemente<br />

arfante de ambos.<br />

— Suas roupas devem estar secas agora. Eu as coloquei<br />

perto do fogo.<br />

— O seu nome... Eu não me lembro...<br />

— Alicia — respondeu ela, jogando a cabeleira escura<br />

para trás. — E o seu, gorgio?<br />

— Rafael Córdoba de Villasandro. — Ele sorriu, os olhos<br />

ardentes e maliciosos. — Eu gostaria de me levantar e me<br />

curvar, como manda a etiqueta, mas temo que ficaria embaraçado<br />

diante da senhorita, sem as minhas roupas. — Os olhos<br />

dele dançavam alegremente. — Ou a senhorita preferiria que<br />

eu a saudasse da maneira apropriada, como deve fazer um<br />

cavalheiro espanhol?<br />

— Não, não. — Ela enrubesceu novamente.<br />

Uma coisa era vê-lo nu dormindo, outra bem diferente<br />

era deparar com aquela força máscula. Um homem forte e<br />

bonito, que ela não deveria permitir que a tocasse.<br />

— Vou buscar suas roupas e volto, gorgio... Rafael.<br />

Alicia saiu correndo da carroça e viu um grupo de homens<br />

reunido perto de uma das árvores para o ritual do lançamento<br />

de facas e outros que se ocupavam dos cavalos. Todas as<br />

cabeças se voltaram quando ela passou. Alicia notou o ressentimento<br />

nos olhos deles.<br />

Recolheu as roupas e voltou para a carroça antes que<br />

alguém lhe dissesse alguma palavra ferina. Não estava<br />

envergonhada de ter abrigado um outro ser humano, nem de


A CIGANA E O CAVALEIRO 27<br />

ter salvado uma vida. Que eles se danassem. Rudolpho lhe<br />

dera o seu consentimento para o que fizera. E ele era o líder.<br />

Quando ela voltou à carroça, o gorgio havia conseguido<br />

sair da cama e estava de pé, a cabeça e os ombros inclinados<br />

levemente, tentando manter o equilíbrio.<br />

— Suas roupas, gorgio! — disse ela, deixando-as no chão<br />

e enfatizando a palavra “gorgio”.<br />

Eles eram diferentes, pertenciam a dois mundos distantes.<br />

Por mais doces que fossem os beijos trocados, não havia<br />

futuro para os dois juntos.<br />

Ele ficou magoado pelo tom gelado daquelas palavras.<br />

— Gorgio? Por que me chama de gorgio? Eu lhe disse que<br />

meu nome é Rafael e é assim que eu quero que você, Alicia,<br />

me chame. Eu não tenho medo de dizer o seu nome.<br />

Ela levantou a cabeça e enrijeceu os ombros.<br />

— Não tenho medo de chamá-lo pelo seu nome. Sou uma<br />

cigana corajosa. Apenas me esqueci como se chama, só isso.<br />

Alicia lhe deu as costas enquanto Rafael se vestia, sabendo<br />

que em seguida ele iria embora e viajaria para longe.<br />

Por que era tão doloroso pensar nisso? Mas não havia alternativa,<br />

era assim que deveria ser. Era o destino.<br />

— Quando eu puser as mãos nos dois que abriram a minha<br />

cabeça, eles vão desejar nunca ter nascido — ela o ouviu<br />

murmurar. — Diabo! Ainda estou atordoado.<br />

Alicia virou-se, estendendo a mão para ampará-lo. Suas<br />

mãos sentiram a força dos braços dele e, naquele momento,<br />

toda a sua determinação desapareceu.<br />

Só mais uma vez... Ela queria experimentar o calor dos<br />

lábios dele apenas mais uma vez. Um desejo apaixonado e<br />

voluptuoso gritava em suas veias.<br />

— Alicia... Eu detesto ter de deixá-la, mas sou obrigado<br />

a fazê-lo. Que isso seja o meu agradecimento e a minha<br />

despedida.<br />

De repente, Rafael se apoderou dos lábios de Alicia,<br />

exatamente como ela tinha desejado. Um beijo apenas, que


2<br />

Kathryn Kramer<br />

lhe devastou os sentidos. Envolvida em um redemoinho de<br />

sensações violentas, ela estendeu os braços delgados e puxouo<br />

para mais perto de si. Abandonou-se ao fluxo de sensações<br />

que a dominava, consciente apenas do seu próprio corpo,<br />

que ansiava pelo toque daquelas mãos fortes.<br />

A intenção de Rafael era que aquele fosse um beijo de despedida,<br />

mas ele foi dominado pelo desejo. Não se lembrava<br />

de ter desejado uma mulher com tanto desespero. Se aquela<br />

mágica pudesse durar para sempre... Mas ele sabia que isso<br />

não seria possível. Precisou de todo o seu autocontrole para<br />

afastar-se dela, abalado pela paixão que passara entre os dois.<br />

Percebeu que Alicia também estava deslumbrada e confusa,<br />

e isso o agradou.<br />

Talvez algum dia...<br />

— Eu tenho de ir, mas quase venderia a minha alma para<br />

ficar — disse Rafael com a voz doce.<br />

Ela virou o rosto para esconder as lágrimas que ameaçavam<br />

sair de seus olhos, determinada a não chamá-lo de volta.<br />

O som do couro macio das botas dele ecoava nas batidas<br />

do coração de Alicia ao sair da carroça.<br />

— Não vou chorar. Sou uma cigana — sussurrou,<br />

passando a mão no rosto e sentindo que estava molhado.<br />

A névoa de sofrimento que a envolvia foi rompida por<br />

gritos vindos de fora da carroça.<br />

— Você, gorgio! Você não vai a lugar nenhum. Ainda não<br />

— gritava Stivo.<br />

Ao reconhecer a voz do índio perigoso, Alicia correu até a<br />

entrada da carroça e olhou, horrorizada, a cena que se desenrolava<br />

do lado de fora. O gorgio estava deitado de costas<br />

sobre a relva com uma faca encostada ao pescoço. Com os<br />

olhos brilhando tanto quanto uma fogueira, quatro homens<br />

do bando se debruçavam sobre Rafael de Villasandro.

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