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<strong>Prólogo</strong><br />
C ampbell olhou para a mulher. Parecia uma criatura<br />
maltratada e murcha, apesar de não ser muito mais<br />
velha do que ele, com seus quarenta e três anos. O luar<br />
destacava umas poucas mechas brancas que estriavam<br />
seus cabelos ruivos e, embora o corpo estivesse curvado,<br />
os músculos esticavam-se, finos e tensos, sobre os ossos.<br />
Ele se remexeu. Os membros de seu clã ficariam horrorizados<br />
com tal magia negra, mas o temor que ele sentira<br />
no início estava se dissipando, e a curiosidade aumentava<br />
a cada minuto que passava. Pena estar sentado no chão<br />
como um camponês; suas costas doíam, e pedrinhas se<br />
enterravam em suas palmas cada vez que ele ajeitava o<br />
peso no solo gelado.<br />
O modo reservado da mulher plantara a semente da<br />
dúvida em sua cabeça; seria ela realmente alguém a se<br />
temer, ou era apenas uma velha senhora esperta, perita<br />
em separar os homens de suas bolsas?<br />
Campbell só conseguia vê-la de relance. Os olhos<br />
dela focavam-se em um lugar à distância e não se dignavam<br />
a pousar sobre ele, piscando como se ela fosse<br />
cega, embora ele soubesse que não era. Movia-se como
Veronica Wolff<br />
um gato no escuro, e ele percebeu por que as bruxas escolhiam<br />
esse animal como bichos de estimação. Veria se<br />
aquela Finola tinha poderes. E a queimaria ele mesmo,<br />
se não fosse a feiticeira que proclamara ser.<br />
Finola. Sua pele arrepiou-se. Campbell sabia que o<br />
nome significava “sombra branca”, e isso provocava imagens<br />
íntimas e indesejadas em sua cabeça. Fragmentos de<br />
pele cor de marfim. A cascata de cabelos ruivos sobre um<br />
ombro pálido.<br />
Desvencilhou-se do devaneio. Talvez fosse a magia<br />
negra em ação. Talvez ela tivesse o poder de mudar de<br />
forma para o de alguma companheira diabólica do próprio<br />
Lúcifer. Sem pensar, cuspiu na fogueira ritual para<br />
exorcismar os pensamentos.<br />
O olhar de Finola ergueu-se de chofre para encontrar<br />
o dele. À luz das chamas, as pupilas verde-amareladas<br />
reluziram, e Campbell imaginou ver uma fagulha maligna<br />
ali, como uma sombra oleosa deslizando logo abaixo<br />
da superfície. Antes, queria vê-la de cabeça erguida e,<br />
agora, só queria que ela desviasse os olhos.<br />
Sua voz vibrou na escuridão. Qualquer coisa para quebrar<br />
o sortilégio que o enregelava até os ossos.<br />
— Quando vai começar, mulher?<br />
O olhar sinistro recuou como uma membrana retrátil,<br />
e o que restou foi somente Finola e encará-lo com indisfarcável<br />
desgosto.<br />
— Você anseia por seu inimigo como uma criança<br />
mimada. Sua impaciência transforma em trabalho muito<br />
penoso uma tarefa simples.<br />
Ele franziu os lábios. Impaciência... era isso mesmo.<br />
Havia uma tarefa a ser feita, e ele não precisava ouvir<br />
reprimendas de uma bruxa.<br />
Seu clã mantinha uma rixa de longa data contra o clã
sem medo do passado<br />
MacDonald. Porém, fora Alasdair MacColla quem erguera<br />
as lanças, usando as batalhas do reino como desculpa<br />
para encharcar o solo escocês com o sangue de incontáveis<br />
filhos dos Campbell.<br />
E era MacColla que ele haveria de destruir.<br />
— Paguei-lhe um bom dinheiro para me ajudar a<br />
arruiná-lo.<br />
A bravata de Campbell defrontou-se com um silêncio<br />
impenetrável. A bruxa simplesmente virou-se para o<br />
trabalho, usando os polegares para moldar os toques finais<br />
de uma figura de barro à sua frente.<br />
— Você quer MacColla — disse ela, por fim. — E aqui<br />
está ele. — Afastou-se para revelar uma efígie rústica<br />
feita de barro das Terras Altas, amassado numa representação<br />
de um homem sem face. — O corp creadha. O corpo<br />
em barro de seu inimigo MacColla. — A mulher pegou<br />
um punhado de sedosos fios negros de uma bolsa à cintura<br />
e enfiou chumaços na cabeça da imagem de argila. —<br />
O cabelo da irmã lembra o homem. — Então esticou o<br />
braço como uma cobra, para agarrar a mão de Campbell,<br />
cortando-lhe a palma com uma pequena lâmina de aço.<br />
— Como ousa...<br />
— Vai calar sua língua, ou garantirei seu silêncio. —<br />
Pela segunda vez, os olhos da bruxa encontraram os dele.<br />
A boca de Campbell ressecou-se. Os primeiros vestígios<br />
de verdadeiro pavor o invadiram, enregelando seu sangue.<br />
Ele precisava lembrar-se de seu objetivo ali. Lembrar-se<br />
do que estava prestes a fazer. Era um homem de posição<br />
que poderia liquidar com aquela Finola apenas com<br />
uma palavra. E usaria o que quer que precisasse, inclusive<br />
ela, para arruinar MacColla de uma vez por todas.<br />
A velha falou de novo, mas, dessa vez, sua voz soou<br />
oca, sobrenatural.
Veronica Wolff<br />
— Viemos pela noite até um local onde três riachos<br />
se encontram.<br />
Apertando-lhe a mão com força surpreendente, Finola<br />
puxou Campbell para perto do corp creadha, pingando<br />
o sangue que lhe escorria da palma sobre o orifício dos<br />
olhos na argila.<br />
— Que o inimigo veja o sangue de seu ódio.<br />
Ela tirou da manga da capa um osso descarnado da<br />
espádua de um cordeiro.<br />
— Vamos pôr o feitiço no coração de seu inimigo. — A<br />
luz do fogo lambeu em sombras vermelhas a superfície<br />
do osso, colocado no torso da figura de barro. — Que<br />
o inimigo sinta a lâmina de sua vingança.<br />
O poder subiu numa descarga pela espinha de<br />
Campbell, dissolvendo sua apreensão. Ele desfecharia o<br />
golpe mortal em MacColla e no clã MacDonald. A lâmina<br />
de sua vingança.<br />
A mulher pegou uma tenaz do chão e começou a tirar<br />
seixos rolados da fogueira, colocando-os um por um em<br />
torno da efígie.<br />
— Que o inimigo queime nas chamas de sua<br />
destruição.<br />
Sim, queime, MacColla. Campbell o aniquilaria. Seus<br />
clãs se hostilizavam havia gerações, por causa de terra e<br />
poder. Mas com a guerra que agora devastava a Irlanda<br />
e as Terras Altas, a rivalidade se tornara algo maléfico.<br />
Algo sanguinário. Queime.<br />
Campbell livrara o oeste da maioria dos vermes<br />
MacDonald. Aprisionara o pai e o irmão de MacColla e,<br />
embora os dois estivessem livres agora, ele os exilara do<br />
resto do clã para a Irlanda.<br />
Porém, subestimara o filho do meio. MacColla voltara<br />
para buscá-lo, farejando-o como um cão, procurando
sem medo do passado<br />
vingança. Chegara às suas terras em Inveraray, saqueando<br />
seus domínios e matando seus parentes. E Campbell<br />
jurara destruir MacColla de uma vez por todas.<br />
Mas, primeiro, ele o veria sofrer.<br />
Finola inteiriçou-se. Com um hausto profundo, revirou<br />
os olhos e cambaleou, arfante. Balançando-se para trás<br />
e para a frente, entoou:<br />
Amortalhada pelo escuro da noite,<br />
Invoco os elementos. Ouvi-me.<br />
Pelo sangue do meu inimigo...<br />
Cantando e tremendo, passou a mão pela coroa de<br />
argila na cabeça da imagem.<br />
Concedei-me o domínio sobre o fogo,<br />
Concedei-me o domínio sobre o vento,<br />
Concedei-me o domínio sobre a terra.<br />
Concedei-me o domínio sobre a água.<br />
Campbell estava inquieto outra vez. Que a mulher<br />
usasse o seu sangue naquele ritual o perturbava, e sua<br />
mão tateou em busca do punhal.<br />
A incerteza o incomodou. Seu clã não gostaria de saber<br />
a que ponto ele chegara. A magia negra era temida<br />
nas Terras Altas, e ele jamais conhecera alguém que a<br />
tivesse usado. Seus nobres pares das Terras Baixas simplesmente<br />
pediriam sua cabeça se descobrissem que ele<br />
se envolvera com tamanha abominação demoníaca.<br />
Eu me banharei no fogo lustral,<br />
Eu me banharei em lagos de vinho.
10<br />
Veronica Wolff<br />
As mãos da feiticeira balançavam-se em cima das chamas,<br />
puxando a fumaça cinzenta para o peito. Então, ela<br />
encheu as palmas em concha de terra e água e jogou-as<br />
no fogo, que assobiou zangado, lançando plumas de<br />
fumaça branca pela noite. Campbell tirou um lenço do<br />
bolso do casaco, cobrindo a boca e o nariz para impedir<br />
o corpo de inalar tal malefício.<br />
Eu me banharei nas lágrimas das mães,<br />
Eu me banharei em rios de sangue.<br />
Fagulhas brancas saltaram das chamas e rodopiaram<br />
em torno deles antes de se extinguirem em negrura.<br />
Campbell recuou, encolhendo-se, olhando ao redor com<br />
horror e pânico, as mãos finalmente se fechando no cabo<br />
da arma.<br />
Finola levantou-se de repente, e as labaredas subiram<br />
com ela. Campbell soltou o punhal, murmurando uma<br />
prece conforme se afastava da fogueira.<br />
O branco dos olhos da bruxa encheu as órbitas e brilhou<br />
num tom cinzento sobrenatural. A voz passou a um<br />
timbre mais alto, suplicando num lamento inumano:<br />
Vossa arte, a amada meia-noite,<br />
Vossa arte, o cisne negro,<br />
Vossa arte, o príncipe da noite,<br />
Escutai-me e concedei-me domínio sobre as<br />
estrelas.<br />
A bruxa caiu de joelhos e fitou o fogo. O centro azul<br />
incandescente inchou-se e o ápice dividiu-se no que parecia<br />
um milhar de pontas amarelas, todas lambendo e dançando<br />
num frenesi. A mulher se reclinou como se fosse respirar
sem medo do passado 11<br />
as chamas para acolher o fogo pelo nariz e pela boca.<br />
Aquilo fora longe demais. Campbell tinha de detê-la<br />
antes que ela evocasse o próprio demônio. Estendeu a mão,<br />
sentiu o calor das chamas, e a umidade do suor da mulher<br />
irradiou-se para seus dedos. Um gesto, e a empurraria<br />
para a fogueira, batizando-a com fogo, como qualquer<br />
bruxa deveria ser batizada. Era hora de voltar atrás, de<br />
optar por um caminho diferente do Mal. O corpo da mulher<br />
queimaria, e ninguém saberia de seu flerte com as<br />
artes negras.<br />
Com os olhos lacrimejando, os lábios finos e secos<br />
partidos num sorriso, ela murmurou:<br />
— Eu vejo.<br />
Campbell puxou o braço para trás. Sentiu a serenidade<br />
repentina de Finola como uma brisa fresca. E encontrou<br />
sua própria determinação. Usaria os poderes da<br />
mulher apenas daquela vez. E esperaria. A hora da morte<br />
da mulher chegaria.<br />
Finola pegou uma tábua do chão sem olhar.<br />
— Assim seja — disse, com voz rouca, e começou a<br />
murmurar um sortilégio.<br />
O pequeno punhal faiscou conforme ela riscava e entalhava<br />
o quadrado de madeira. Indiferente ao calor, ela<br />
apanhou um punhado de gravetos chamuscados da beirada<br />
do fogo e usou-o para traçar linhas e círculos no painel.<br />
Trabalhava depressa, como se em transe, rabiscando<br />
formas que lentamente se revelaram figuras.<br />
— Chamo para o seu lado aquela que pode destruir<br />
MacColla. — Finola jogou o pedaço de madeira diante de<br />
Campbell e, dessa vez, ele não recuou. O painel mostrava<br />
a imagem de um homem robusto com uma mulher ao<br />
lado, desenhados em cinza e preto. — Chamo a mulher<br />
que será a esposa dele.
Boston, dias atuais<br />
Capítulo I<br />
H aley esfregou o dedo sobre a lâmina e virou-a na<br />
mão. Aquela era a arma mais estranha em que já<br />
pusera os olhos.<br />
Quem fora o homem que a empunhara?, perguntou-se,<br />
projetando a mente para outra época. Cerca de 1675, o<br />
catálogo dizia. O sangue de quem fora derramado?<br />
Os padrões de filigranas em sua base permaneciam<br />
nítidos, mas a beirada da faca estava denteada pela corrosão.<br />
Sem poder resistir, Haley tocou hesitante a polpa<br />
do polegar na ponta da lâmina, e arquejou quando sentiu<br />
a picada. Levou o corte à boca, sentindo o cheiro amargo<br />
do aço que se agarrara à sua palma.<br />
Outra lâmina, mais afiada e mais fria, invadiu-lhe os<br />
pensamentos. Fazia anos agora, mas, num piscar de olhos,<br />
Haley estava de volta ao passado, revivendo o momento<br />
que a transformara para sempre.<br />
Correu o dedo pela cicatriz, esfregando-a de leve.<br />
O tecido era insensível, e ela quase podia imaginar que
sem medo do passado 13<br />
não fazia parte de seu corpo. Mesmo assim, nunca conseguia<br />
se esquecer dele. Como nunca se esqueceria daquele<br />
outro punhal comprimido com força em sua garganta.<br />
Inale profundamente, exale depressa. A respiração<br />
limpa a mente, ela podia ouvir seu pai dizer. Ele a ajudara<br />
muito após o ataque, usando a experiência e a força de<br />
vontade para trazer a filha de volta das trevas que a haviam<br />
envolvido.<br />
Um sorriso surgiu em seus lábios ao pensar no pai. O<br />
amor de sua família a trouxera de volta, mas fora o treinamento<br />
de seu pai na academia de polícia, influenciado por<br />
um pouco da velha e boa briga de rua do sul de Boston,<br />
que ajudara Haley a controlar a sensação de vulnerabilidade<br />
que a paralisara.<br />
Droga! Ela precisava pensar em sua dissertação, e não<br />
ser desviada do caminho por uma arma. Colocou a estranha<br />
adaga de volta sobre a mesa e pegou um elástico do<br />
pulso para prender os cabelos para trás. Fora ao museu<br />
naquele dia em busca de inspiração, e Sarah a deixara no<br />
depósito do segundo andar para examinar quais dos poucos<br />
artefatos poderiam ser relevantes num tópico sobre<br />
a Grã-Bretanha do século XVII.<br />
O orientador a ameaçara, dizendo que ela corria o risco<br />
de perder seu salário de professora. Ela estava no programa<br />
de graduação fazia quatro anos agora, e embora<br />
desse um jeito de esticar um capítulo aqui e ali, precisava<br />
estabelecer a diretriz do trabalho e concluí-lo.<br />
Haley puxou o elástico com força e prendeu a massa<br />
rebelde de cabelos no lugar. Precisava de algo novo. Algo<br />
que rendesse um ou dois artigos num periódico especializado<br />
e a tirasse do sufoco por algum tempo.<br />
O dr. Clark estava prestes a perder a paciência.
14<br />
Veronica Wolff<br />
O interesse de Haley por armamento pré-moderno não<br />
ajudava no conteúdo, desviando-se perigosamente para<br />
o que ele considerava teoria militar. E, com a bolsa de<br />
estudos dos departamentos de História e Línguas Celtas,<br />
ela não tinha escolha a não ser posicionar-se como uma<br />
pura historiadora da era da Reforma escocesa. Ponto-<br />
final. Por mais que, em vez disso, preferisse estudar antigas<br />
espadas de lâminas largas.<br />
Resmungando um imprompério, ela pegou a arma de<br />
cima da mesa, inclinou-se para trás na cadeira e esticou as<br />
pernas à frente. A peça era maravilhosa. E, inexplicavelmente,<br />
estava enterrada nos fundos dos arquivos do museu,<br />
como tantas outras joias na coleção de Harvard.<br />
Superficialmente, parecia um simples punhal, elegante,<br />
embora robusto. Mas Haley percebera de imediato para o<br />
que estava olhando. Era algo conhecido como “arma combinada”,<br />
uma criação dos armeiros pré-modernos. Eram<br />
armas capazes de múltiplas tarefas. Uma lança que disparava<br />
balas. Um estojo de caçada com uma pequena pistola<br />
nivelada à lâmina do facão. Ela vira certa vez uma elaborada<br />
peça de museu que era uma espada, uma bengala, um<br />
martelo e um apoio de mosquete, tudo num só artefato.<br />
Muitas das armas combinadas eram deselegantes, exibições<br />
ostensivas de riqueza, pouco ou nada confiáveis.<br />
Aquela, porém, era impressionante. Só quando a segurara<br />
na mão é que ela pudera sentir o vazio da lâmina que servia<br />
como cano da pistola. E se o dono não fosse inclinado<br />
a usar balas, a ponta da faca poderia ser destacada e<br />
tirada da base como uma seta de aço letal. O fecho de<br />
pederneira, correspondente ao gatilho detonador, era quase<br />
completamente camuflado pela gravação sobre a lâmina<br />
e pelas belas cabeças de cães na cruzeta em forma de
sem medo do passado 15<br />
“T” acima do cabo.<br />
Haley deslizou a palma da mão ao longo da face<br />
chata da lâmina, maravilhada com o padrão intrincado.<br />
E estremeceu.<br />
O ar-condicionado deveria ter sido ligado. Haley pôs<br />
o punhal no colo e vestiu a malha sobre o vestido.<br />
Abotoava distraidamente o agasalho quando percebeu...<br />
Pegou a arma de novo e examinou o cabo com atenção.<br />
Ergueu-o para a luz. Algo estava entalhado na base, e<br />
era diferente da filigrana da lâmina.<br />
Relanceou os olhos ao redor, e, vendo que estava sozinha,<br />
lambeu o polegar e esfregou-o pelo fundo do cabo.<br />
Havia algo gravado ali, oculto pelas manchas pretas.<br />
Bafejou o metal e usou a barra do vestido para poli-lo.<br />
A letra “J” apareceu. E, depois, “L.V.E”. Era uma inscrição:<br />
“Para J”. “W” alguma coisa. Poderia ser “with<br />
love”, “com amor”?<br />
Céus, quem daria ao ser amado um punhal? Haley lustrou<br />
a ponta do cabo, parando só quando o braço começou<br />
a doer.<br />
“Para JG com amor de Ma...”<br />
— Nossa! — ela exclamou, quando seu celular vibrou<br />
sobre a mesa.<br />
Com a mão no peito, ela olhou para a mensagem de<br />
texto.<br />
Está atrasada. Tire seu traseiro daí.<br />
Revirando os olhos, ela resmungou:<br />
— O quê, a cerveja está esquentando?<br />
Enfiou o celular na bolsa, recolheu as anotações e, com<br />
um último olhar para o punhal sobre a mesa, saiu da sala.<br />
— Dra. Brawn — Haley disse, com um sorriso largo<br />
para uma das restauradoras do Fogg Art Museum,
1<br />
Veronica Wolff<br />
de Harvard.<br />
— Dra. Fitzpatrick. — Sarah Brawn retribuiu o sorriso.<br />
Ambas sabiam que ainda estavam a anos do cobiçado<br />
PhD, mas haviam se encontrado no seminário do primeiro<br />
ano de faculdade e, compartilhando o amor pela pizza<br />
e artefatos peculiares, tinham ficado amigas.<br />
— Acho que consegui uma ideia para minha dissertação<br />
— Haley falou. — Obrigada de novo, a propósito,<br />
por sacar aquele punhal para mim. Ajudou a fazer as<br />
ideias fluir. Aquelas armas combinadas me deixaram<br />
estarrecida.<br />
— Ora, me abalaram também. Achou um título para o<br />
trabalho?<br />
— Da Força ao Poder: Armas de Fogo Britânicas e<br />
a Forjadura de um Império. — A entonação de Haley<br />
era apropriadamente grandiloquente. — Sabe, como o<br />
surgimento da pólvora possibilitou a eles construir um<br />
império. Desse jeito, posso enfocar o século XVII, mas<br />
também posso estudar todas aquelas velhas armas de<br />
pederneira tão interessantes.<br />
— Essa coisa de pólvora já não foi explorada à<br />
exaustão?<br />
— Ei! — Haley exclamou, fingindo tristeza. — Ainda<br />
estou trabalhando nisso.<br />
— Quero dizer... ótimo! — Sarah ficou pensativa por<br />
um momento. — Mas forjar realmente soa mais como<br />
uma coisa de espada...<br />
Haley ergueu a mão para mudar de assunto.<br />
— Vai se encontrar conosco mais tarde?<br />
— Reunião do clã?<br />
Ela fez que sim, tirando uma echarpe surrada da bolsa<br />
para enrolar no pescoço.
sem medo do passado 1<br />
— Futebol e cerveja no Paddy’s. — Haley sorriu.<br />
— Vocês, Fitzpatrick, são como relógios.<br />
— No que diz respeito a futebol e a meus irmãos? Sim.<br />
— Haley ajeitou a pesada bolsa de lona, passando-a sobre<br />
a cabeça e pelo ombro. — Vamos, venha comigo. Eu lhe<br />
pago uma rodada.<br />
— Outra hora. Não estou interessada em ficar com<br />
um dos rapazes Fitzpatrick.<br />
— Ei, somos boa gente! — Haley riu. — E os Pats estão<br />
jogando.<br />
A amiga sorriu e fez um gesto de adeus, com o nariz<br />
já enfiado de volta no livro.