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Prólogo

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<strong>Prólogo</strong><br />

T alvez o melhor que pudesse fazer por si mesmo e<br />

por aqueles a quem amava fosse cometer suicídio.<br />

Dan Price observou a pistola Glock sobre a mesa.<br />

Comprara a arma automática de 9mm para a esposa, mas<br />

ela recusara o presente, lembrando-o, educadamente, de<br />

sua aversão a armas de fogo. Só após muita insistência<br />

da parte dele, ela havia concordado em acompanhá-lo às<br />

aulas de tiro e aprendera como manejar a arma, apenas<br />

para agradá-lo. Apesar disso, a esposa nunca carregara<br />

uma arma consigo ou a guardara em seu quarto ou<br />

carro.<br />

Se sua doce Julie soubesse que ele estava considerando<br />

pôr fim à própria vida, faria de tudo para convencê-lo<br />

de que, independentemente do que o futuro lhe reservasse,<br />

sempre poderia contar com ela. Fora a integridade<br />

e a lealdade inatas que a princípio o atraíram na mulher<br />

que se tornara seu maior trunfo político.<br />

Dan ergueu o copo de uísque cheio até a metade e<br />

tomou o conteúdo de um só gole. A bebida desceu, queimando-lhe<br />

o esôfago e atingiu o estômago como uma<br />

bola de fogo. Tossiu várias vezes, secou os lábios, pegou<br />

a garrafa e se serviu de outra dose.<br />

Se pretendia pôr fim à própria existência, não poderia


Beverly Barton<br />

permanecer sóbrio. Não era corajoso àquele ponto. Antes<br />

de colocar o cano da arma na boca e apertar o gatilho,<br />

precisava ficar ligeiramente bêbado.<br />

Tomou mais um gole do uísque, enquanto se inclinava<br />

no encosto da cadeira giratória e deixava o olhar deslizar<br />

pelo aposento. O escritório particular que pertencera ao<br />

pai e, antes dele, ao avô. O cômodo imponente era parte<br />

integrante da mansão de duzentos anos. Propriedade que<br />

pertencera à família Price desde antes da Guerra Civil<br />

Americana.<br />

Se cometesse suicídio, até que ponto aquilo comprometeria<br />

o bom nome da família? Nenhum homem Price<br />

jamais optara pela saída mais fácil diante de uma situação<br />

adversa.<br />

Mas como poderia continuar, sabendo o que o futuro<br />

lhe reservava? Poderia condenar Julie àquele tipo de<br />

vida? E quanto a Devon? E seu irmão, Ryan? Aquelas<br />

pessoas nunca o abandonariam e aquilo exigiria grandes<br />

sacrifícios da parte delas.<br />

Não precisa fazer isso esta noite. Tem tempo.<br />

Quanto tempo, porém? Seis meses? Um ano?<br />

Dan terminou o segundo drinque e se serviu de um<br />

terceiro.<br />

Do corredor, o relógio que pertencera ao avô soou<br />

duas badaladas. Duas horas da manhã.<br />

Destrancou o fichário que se encontrava na última<br />

gaveta da mesa, vasculhou entre as pastas até encontrar<br />

a que desejava. A cópia de seu testamento. Seu advogado<br />

guardava outras duas cópias dentro do cofre da casa que<br />

possuía em Bethesda. O conteúdo do documento não<br />

era segredo para ninguém. Todo seu espólio seria<br />

igualmente dividido entre Julie, Devon e Ryan. A<br />

esposa protestara, dizendo-lhe que não esperava legado<br />

tão grande, mas ele havia aplacado suas queixas com


Coração de Gelo<br />

carinhos ternos.<br />

— Devo-lhe mais do que jamais serei capaz de retribuir<br />

— dissera ele.<br />

Terminou o terceiro drinque, enquanto os minutos<br />

passavam e ele contemplava a Glock sobre a mesa antiga<br />

que pertencera ao avô. Constava na história familiar<br />

que o móvel pertencera a Jefferson Davis, um contemporâneo<br />

de seu antepassado, o general John Ryan Price.<br />

Dan encheu o copo mais uma vez, pegou a garrafa<br />

e caminhou até o sofá. Sentou-se, pousou a garrafa no<br />

chão e considerou suas opções. A morte era preferível ao<br />

destino que o aguardava.<br />

As pálpebras de Dan descerraram e tornaram a se<br />

fechar. No crepúsculo entre o dormir e o despertar, não<br />

percebeu de imediato onde se encontrava ou o que o<br />

havia acordado de modo abrupto. Zonzo pelo sono e pela<br />

quantidade de álcool que ingerira, recordou que pensara<br />

no suicídio como um meio de pôr fim a seus problemas.<br />

Porém, mais tarde, bêbado e, por mais esquisito que parecesse,<br />

pensando mais claramente do que quando sóbrio,<br />

percebera que se matar seria uma solução covarde.<br />

Ele bateu com a mão contra algo frio encostado em<br />

sua face. As pontas dos dedos se chocaram contra o objeto<br />

de metal. Abriu os olhos para encontrar uma mulher<br />

inclinada sobre ele e sorriu. Contudo, ela não retribuiu<br />

o sorriso. O olhar de Dan desviou do rosto familiar para<br />

a própria mão que segurava a pistola. O cano pressionado<br />

com firmeza contra sua têmpora. Quando tentou<br />

afastar a arma da cabeça, percebeu que a mão da mulher<br />

cobria a dele. O dedo indicador, apertado sobre o dele,<br />

pressionava o gatilho.<br />

— Que diabos!...


Beverly Barton<br />

Antes que ele pudesse reagir, a mulher forçou o dedo<br />

dele no gatilho, disparando a arma diretamente contra<br />

seu cérebro.<br />

O último pensamento de Dan foi que alguém em<br />

que confiara plenamente acabara de assassiná-lo.


Capítulo I<br />

J ulie Price não passava de uma mulher sem coração.<br />

Fria, controlada e calculista. Se fosse uma boa atriz, ao<br />

menos demonstraria algum vestígio de emoção. Poderia<br />

forçar lágrimas ou suspirar de melancolia. Qualquer<br />

coisa que indicasse que sentia ao menos um módico<br />

remorso em relação à morte do marido. Mas a dama não<br />

vertia uma lágrima sequer. Nem durante a missa assistida<br />

por centenas de pessoas, nem na cerimônia de enterro<br />

destinada aos amigos íntimos e familiares.<br />

Rick Carson conhecera tipos como ela antes. Fascinantes<br />

e perigosos. Não conhecera pessoalmente o último<br />

senador Price, mas sentia pena do pobre bastardo. Todo<br />

o homem, mesmo os malditos políticos, merecia uma<br />

esposa que sofresse sua morte.<br />

À medida que a garoa se transformava rapidamente<br />

em um temporal, guarda-chuvas pretos se abriram para<br />

proteger o grupo de enlutados que cercava a sepultura<br />

aberta. As beiradas do dossel vermelho-vinho que abrigava<br />

a família se agitavam ruidosamente à medida que<br />

o vento do mês de abril soprava, impiedoso, entre as<br />

árvores próximas.<br />

Os cemitérios das pequenas cidades sulistas eram<br />

quase imutáveis, algumas das lápides datavam dos anos


10<br />

Beverly Barton<br />

mil e oitocentos e algumas sepulturas eram marcadas<br />

apenas por pedregulhos. Rick imaginou que, em grande<br />

parte, seus pobres e sujos antepassados jaziam em<br />

sepulturas não identificadas por todo o sul, de Virginia<br />

a Kentucky e em seu estado natal do Mississippi. O pai<br />

fora o primeiro na família a obter um diploma de primeiro<br />

grau, e Rick havia sido o primeiro a se formar em<br />

uma faculdade. Tinha tantas coisas em comum com o<br />

senador quanto um peru com um pavão.<br />

A mulher ao lado de Rick ergueu o guarda-chuva<br />

o suficiente para lhe cobrir o topo da cabeça, o que<br />

devido a seu um metro e setenta e cinco centímetros de<br />

altura significava erguê-lo apenas alguns centímetros<br />

para cobrir os um metro e oitenta e oito centímetros<br />

de Rick. Nicole Powell era a esposa do chefe de Rick.<br />

Na verdade, casara-se com Griff havia sete meses e era<br />

co-proprietária da Agência de Segurança Particular e<br />

Investigações Powell. Se Griff não estivesse no exterior<br />

naquele momento, seria ele a comparecer ao enterro no<br />

lugar de Rick.<br />

Enquanto o sacerdote proferia a oração final da<br />

cerimônia de vinte minutos, que incluíra o som lutuoso<br />

da versão para gaita de foles de Amazing Grace, Rick<br />

desviou a atenção de Nicole de volta a sra. Price, que<br />

se encontrava sentada com a coluna ereta, o queixo projetado<br />

para a frente, os dentes cerrados e as pálpebras<br />

semiabertas. Reverente a ponto do fechar os olhos, mas<br />

não o suficiente para baixar a cabeça, a viúva deixou<br />

escapar um suspiro. Estaria entediada demais para fingir<br />

pesar e apenas desejava que aquele dia acabasse? Ou<br />

lutava para controlar qualquer emoção que pudesse estar<br />

sentindo?<br />

O homem sentado ao lado de Julie Price estendeu<br />

o braço em um gesto casual e segurou as mãos que a


Coração de Gelo 11<br />

viúva mantinha unidas sobre o colo. Em seguida, tomou<br />

uma delas nas suas e a apertou. Ela não esboçou reação<br />

quando o homem pousou as mãos unidas de ambos<br />

entre os dois. Rick percebeu que eles partilhavam certa<br />

intimidade. Nicole lhe contara que aquele homem<br />

pecaminosamente belo, que no funeral, ao contrário da<br />

viúva, dera vazão às emoções, tinha sido assistente de<br />

Dan Price por doze anos. Rumores davam conta de que<br />

Devon Markham fora como um filho para o senador.<br />

Sendo assim, o que aquilo o tornava para a atraente e<br />

jovem esposa? Um amigo ou um amante?<br />

O sacerdote finalizou a cerimônia convidando os<br />

presentes a se juntarem à família na residência dos Price<br />

para uma recepção após o funeral. Aquele tipo de procedimento<br />

era a versão protestante sulista de uma vigília.<br />

Enquanto os demais se erguiam e trocavam apertos<br />

de mão, Markham ajudou a sra. Price a se levantar com<br />

o braço em torno de sua cintura e se posicionou ao lado<br />

dela em atitude protetora.<br />

— Vamos sair daqui — sussurrou Nicole. — Esperarei<br />

para falar com Claire e Ryan na recepção.<br />

— Eles lhe disseram por que estavam interessados<br />

em contratar a Powell? — Rick a acompanhava a<br />

passos largos, enquanto se encaminhavam para ao<br />

Escalade de Nicole.<br />

— Não. A única coisa que Claire me disse, quando<br />

ligou para dar as informações sobre o funeral de Dan<br />

Price, foi que Ryan precisava falar comigo após a cerimônia<br />

sobre o contrato da Powell. Considerando o que<br />

ela e o marido estavam passando no momento, achei<br />

que os detalhes poderiam esperar.<br />

Olhando por sobre o ombro, Rick fitou pela última<br />

vez a viúva. Com os olhos secos e rígida, conversava<br />

com o sacerdote. Markham se encontrava colado a ela


12<br />

Beverly Barton<br />

e não o contrário, o que implicava que aquela mulher<br />

era a mais forte dos dois e ambos sabiam disso.<br />

O que ela teria que tanto o intrigava? Talvez não<br />

passasse do fato de ser bela. Bonita, frágil, vulnerável<br />

e... insensível. Os instintos de Rick nunca o enganavam<br />

e era altamente improvável que estivessem equivocados<br />

dessa vez, mas por alguma razão inexplicável<br />

desejava estar errado quanto ao palpite de a viúva ser<br />

insensível.<br />

Nicole parou e o chamou.<br />

— Qual é o problema?<br />

Só então Rick percebeu que ela havia passado à sua<br />

frente e ele se encontrava parado sob a chuva, fitando<br />

uma mulher desconhecida e de quem instintivamente<br />

não gostava. Movendo-se, apressado, alcançou-a, acionou<br />

o alarme para destravar as portas do carro e correu<br />

para abrir a porta do carona para Nicole.<br />

Uma vez acomodado atrás do volante, ele acionou o<br />

motor e engatou a marcha à ré.<br />

— O que sabe sobre Julie Price?<br />

Nicole deu de ombros.<br />

— Na verdade, não muito. Contando o dia de hoje,<br />

encontrei-a um total de quatro vezes. A primeira foi no<br />

casamento de Claire e Ryan. A segunda, no batizado de<br />

Michael e a última, quando ela se casou com Dan.<br />

Rick dirigia devagar, descendo a estrada de pista única<br />

que saía do cemitério Oak Hill.<br />

— É bem mais jovem que o senador. Acha que se<br />

casou com ele por dinheiro?<br />

Nicole soltou uma risada.<br />

— Não tenho a menor ideia. — Relanceou o olhar a<br />

Rick. — Por que está tão curioso sobre Julie Price?<br />

Rick apertou as mãos contra o volante. Excelente<br />

pergunta. Por que sentia tanta curiosidade sobre a


Coração de Gelo 13<br />

viúva? Sim, achava-a atraente. E sim, a atitude aparentemente<br />

insensível o intrigara. Talvez ela o fizesse<br />

se lembrar de sua indiferente e empedernida madrasta,<br />

que sugara todo o sangue do pai durante o casamento.<br />

— Não sei. Apenas achei estranho o fato de a viúva<br />

não ter derramado uma lágrima durante todo o dia.<br />

— Algumas pessoas preferem chorar quando estão<br />

sozinhas. O impacto da morte nem sempre as atinge de<br />

imediato. Muitas vezes, elas só sentem semanas mais<br />

tarde e então desabam.<br />

— Sim, é uma possibilidade.<br />

— Na qual não está acreditando, certo?<br />

— Viúva jovem e bela enterra cônjuge mais velho<br />

e abastado sem se emocionar, e o jovem e belo assistente<br />

do marido lhe segura a mão e permanece colado<br />

a ela durante o funeral.<br />

— Está pintando um quadro macabro. Dan Price se<br />

suicidou. Não foi assassinado. Além disso, Claire e Ryan<br />

gostam de Julie. Se não tivesse sido uma boa esposa<br />

para Dan, eles não a teriam em alta conta, não acha?<br />

— Ei! Isso não é da minha conta — redarguiu Rick.<br />

— Não se trata de minha família ou nada que me diga<br />

respeito. Nem os conheço.<br />

E não desejava conhecê-los, especialmente Julie.<br />

Porém, se Ryan Price contratasse a Powell e fosse<br />

designado para o caso... o que aconteceria?<br />

Olhando através da janela do andar de cima, ela<br />

observou hordas de pessoas invadir o Solar Price, a<br />

propriedade dos antepassados de Dan.<br />

O dia cinzento e chuvoso parecia apropriado à cerimônia<br />

fúnebre. Dan Price fora amado e respeitado. Era<br />

justo que o tempo refletisse o ânimo sombrio da ocasião.


14<br />

Beverly Barton<br />

Conseguimos atravessar os funerais sem desabar.<br />

Ótimo! A recepção também não será tão difícil. Seremos<br />

capazes de recordar Dan sem nos tornarmos mórbidos.<br />

Podemos rir em vez de chorar com as lembranças dele.<br />

Em muitos aspectos, Dan foi um bom homem. Um bom<br />

marido. Mas se lhe tivesse sido permitido viver, ele se<br />

transformaria em um péssimo marido. Um nó em torno<br />

de nossos pescoços. Um estorvo que não suportaríamos.<br />

Levaria algum tempo até que se recuperassem da<br />

tragédia, mas por fim teriam de seguir em frente,<br />

assim como haviam feito no passado.<br />

Não queria ter matado Dan, mas não lhe restara outra<br />

opção. Se ao menos ele tivesse dado prosseguimento<br />

ao plano de se matar, ela poderia ter lhe poupado o<br />

trabalho. Mas ao que parecia, ele perdera a coragem no<br />

último minuto. Por mais que tivesse gostado de Dan,<br />

percebeu que não poderia permitir que ele destruísse a<br />

vida de todos. Se não o tivesse matado, teriam de sofrer<br />

com ele a cada dia, o que seria muito injusto. Já não<br />

teriam sofrido o suficiente? Ao pôr fim à vida de Dan,<br />

protegera-os dos anos de angústia. No final das contas,<br />

a morte prematura fora misericordiosa para ele também.<br />

Com Dan e seus problemas fora do caminho, podiam<br />

seguir em frente, criando seu filho sem o empecilho de<br />

um marido doente.<br />

Um filho. Tinham desejado um filho por tanto<br />

tempo...<br />

Quando era criança, Julie sonhara em viver em uma<br />

mansão secular, algo tão esplendoroso quanto a amada<br />

Tara de Scarlett O’Hara. A primeira vez em que Dan a<br />

trouxera à sua residência em Priceville, Geórgia, sentirase<br />

estranhamente em casa. Como se pertencesse àquele


Coração de Gelo 15<br />

local. Durante os últimos três anos, deleitara-se com as<br />

temporadas que passavam ali, muito mais do que com<br />

a estadia em Washington D.C. Porém, quando se casou<br />

com Dan, aceitara o fato de que seria a esposa de um<br />

político e teria de lidar com as regras do jogo. Embora<br />

sempre se sentisse desconfortável com a fachada que<br />

ela e o marido apresentavam ao mundo, nunca se arrependera<br />

da decisão de se comprometer com ele. Dan<br />

oferecera segurança não só para ela, mas para toda sua<br />

família, cujos membros eram seus dependentes.<br />

Julie espalmou a mão sobre o abdômen ainda reto.<br />

Dan se fora, mas não estava perdido para sempre. Não<br />

enquanto a criança que carregava em seu ventre vivesse.<br />

Menino ou menina, seria um elo com o marido. Seu<br />

filho carregaria o nome Price e honraria a herança das<br />

gerações anteriores. Quando discutiram a possibilidade<br />

de terem um filho, Dan havia profetizado que o herdeiro<br />

de ambos seria presidente.<br />

Oh, Dan, por quê? Por que fez essa coisa terrível?<br />

Descobrira que estava grávida no dia anterior ao<br />

suicídio do marido e pretendia lhe contar a novidade<br />

naquela tarde. Porém, após o jantar, o marido havia se<br />

trancado no escritório e, depois disso, ela nunca mais<br />

o vira com vida.<br />

Uma parte de Julie se recusava a crer que Dan pusera<br />

fim à própria vida, mas a alternativa era igualmente<br />

inacreditável. Sim, Dan possuía inimigos, tanto no âmbito<br />

pessoal quanto no político, mas nenhum realmente o<br />

odiava. Não o suficiente a ponto de matá-lo.<br />

Tem muito mais com que se ocupar no momento do<br />

que tentar descobrir o que e por que aconteceu. Terá<br />

tempo suficiente para isso. Agora tem de descer e<br />

cumprimentar os convidados. Os amigos e inimigos de<br />

Dan, seus partidários, família e constituintes, disse Julie


1<br />

Beverly Barton<br />

a si mesma.<br />

Primeiro e acima de tudo Dan Price fora um servidor<br />

público durante toda sua vida, assim como o pai e o avô<br />

haviam sido. O mínimo que devia ao marido era preservar<br />

as tradições familiares e manter a imagem imaculada<br />

de Dan tão intocada quanto estivera nos últimos cinquenta<br />

e cinco anos.<br />

Julie sentiu a presença de Devon momentos antes<br />

de ele estender a mão e lhe tocar o ombro em um gesto<br />

confortador. Deixando escapar um profundo suspiro,<br />

forçou um sorriso trêmulo e virou para fitar o querido<br />

amigo de longa data.<br />

— As pessoas estão perguntando por você — comentou<br />

ele. — Está preparada para enfrentar a multidão?<br />

— Quase. Dê-me apenas alguns minutos.<br />

— Não parece real, não acha? Dan ter partido. Nós<br />

dois abandonados... — Devon lutou contra as lágrimas.<br />

— Por que ele optou por uma solução tão drástica?<br />

Deveria saber, desde o primeiro momento em que nos<br />

contou sobre o diagnóstico precoce de Alzheimer, que<br />

ficaríamos a seu lado o tempo todo. Poderia ter tido uns<br />

bons anos pela frente.<br />

Julie acariciou a face do amigo, enxugando as lágrimas<br />

de modo terno.<br />

— Não sei. Talvez fosse o modo que ele encontrou de<br />

nos proteger.<br />

Uma batida leve à porta que se encontrava entreaberta,<br />

alertou-os para o fato de que não se encontravam<br />

mais sozinhos. Devon se empertigou, e Julie fitou por<br />

sobre o ombro do amigo para encontrar o olhar sombrio<br />

e penetrante de Tobias Harper.<br />

— Perdoe-me, sra. Price, mas o sr. Ryan solicita sua<br />

presença lá em baixo tão logo seja possível. — O mais


Coração de Gelo 1<br />

velho criado, que trabalhava para Price desde que ele<br />

era um menino, amara o senador tanto quanto ela e<br />

Devon.<br />

— Diga-lhe que já estou descendo.<br />

Tobias anuiu, virou e desapareceu no corredor.<br />

Devon lhe ofereceu o braço. Ela, porém, recusou com<br />

um gesto de cabeça.<br />

— Não, é melhor você descer primeiro e eu o seguirei<br />

dentro de alguns minutos. A última coisa de que<br />

precisamos é de especulações a nosso respeito.<br />

Os lábios de Devon se curvaram em um sorriso triste.<br />

Em seguida, tomou-lhe a mão e a levou aos lábios.<br />

Julie se ergueu e o observou partir. Na intimidade,<br />

ela e Devon podiam se consolar mutuamente, dividir<br />

a tristeza. Porém, em público, tinham de ser discretos<br />

em honra à memória de Dan e para se protegerem das<br />

fofocas e maledicências.<br />

Empertigando os ombros e suspirando profundamente<br />

para acalmar os nervos, ela saiu da suíte que ocupava<br />

na mansão e se apressou pelo corredor. Parou quando<br />

alcançou o topo da escada. O som do quarteto musical<br />

que se encontrava em uma das laterais do amplo saguão<br />

era abafado pelo burburinho que enchia o ambiente de<br />

ambas as salas de estar dianteiras. Não havia dúvida<br />

de que, àquela altura, muitos estariam na sala de jantar<br />

para tomar parte do exuberante bufê.<br />

Quando desceu a escada, a cunhada, Claire, se afastou<br />

de Ryan no comitê de recepção e caminhou em direção<br />

a ela. A doce e adorável Claire, com seus olhos brilhantes<br />

cor de avelã e sorriso afetuoso era também sua<br />

amiga. Tentava ao máximo não invejá-la por estar perdidamente<br />

apaixonada pelo marido, ter um casamento<br />

inabalável e um adorável filho de três anos.


1<br />

Beverly Barton<br />

Claire deslizou o braço em torno da cintura de Julie<br />

e lhe deu um breve abraço.<br />

— Todos estão perguntando por você.<br />

— Estava precisando de um tempo sozinha após a<br />

cerimônia de enterro.<br />

— Eu sei, mas o pobre Ryan está quase tendo um<br />

colapso. Essa provação foi demais para ele.<br />

Julie teve vontade de dizer que fora demais para<br />

todos, não apenas para Ryan, mas descartou a ideia.<br />

— Por que não o leva para a cozinha e faz com que<br />

ele coma alguma coisa? Assumirei por aqui.<br />

— Obrigada, querida. Sabia que poderia contar com<br />

você. Tem sido nossa força. Não sei o que faríamos<br />

sem você.<br />

— Vá... vá... — Julie a afugentou. — Tome conta de<br />

seu marido. Deixe que eu cuide de tudo.<br />

Tem sido nossa força.<br />

Quantas vezes Julie escutara ser a mais forte, capaz<br />

e diligente tanto nos tempos ruins quanto nos bons?<br />

Lembrou-se de que quando tinha apenas dez anos de<br />

idade, cuidara da mãe à beira da morte e, depois, se<br />

esforçara para consolar o pai. Não conseguia se lembrar<br />

de uma época em sua vida em que não estivesse se ocupando<br />

dos outros. Talvez aquela fosse sua sina na vida.<br />

Após substituir o cunhado na fila de cumprimentos,<br />

ela perdeu a noção do tempo. Por fim, a mão, que fora<br />

apertada incontáveis vezes, tornou-se dormente assim<br />

como suas emoções. A única forma de transpor aquela<br />

noite sem enlouquecer era agir como que guiada por<br />

controle remoto. Apertar mãos. Aceitar condolências.<br />

Não se encolher quando alguém que mal conhecia a<br />

abraçava. Concordar que Dan fora um grande camarada<br />

e que faria muita falta. Passar adiante para a próxima<br />

pessoa da fila e repetir todo o processo.


Coração de Gelo 19<br />

***<br />

Rick odiou o Solar Price à primeira vista. A mansão<br />

secular que datava de antes da Guerra Civil era uma<br />

relíquia do passado notório do sul. Uma fazenda que<br />

passara através das gerações. Sem dúvida, a família<br />

Price poderia rastrear sua árvore genealógica européia,<br />

provavelmente na época da nobreza. Até mesmo os<br />

bastardos nascidos de reis, príncipes, duques e condes<br />

que os precederam. Ele, por sua vez, podia rastrear seus<br />

antepassados só até a geração de seu beberrão e genioso<br />

avô Carson, famoso por derrubar qualquer homem em<br />

uma luta justa. A casa de sua família havia sido um<br />

casebre no Mississippi, cujo teto possuía goteiras e as<br />

tábuas do assoalho eram tão separadas que dava para<br />

ver as galinhas ciscar minhocas no rico solo sob a casa.<br />

— Parece com algo retirado do filme “E o Vento<br />

Levou”, não acha? — indagou Nicole ao estacionaram<br />

em frente à varanda externa.<br />

— Sim — replicou Rick ao sair do veículo, e entregar<br />

a chave ao criado que estacionava os carros. — Sua<br />

prima e o marido vivem aqui?<br />

— Não. Eles moram em uma casa vitoriana antiga<br />

no centro de Priceville que pertenceu à avó materna de<br />

Ryan e Dan.<br />

— Ambos os lados da família são abastados, certo?<br />

— Parece que sim. — Nicole o fitou de canto de olho,<br />

quando alcançaram as portas da frente. — Guarde sua<br />

opinião sobre Julie Price para si mesmo, quando estiver<br />

falando com Ryan e Claire. Entendeu?<br />

— Sim, senhora. Não é da minha conta. Manterei a<br />

boca fechada.<br />

Embora não estivesse chovendo, a umidade gravitava<br />

no ar. Rick gostaria de poder retirar o terno preto


20<br />

Beverly Barton<br />

e se livrar da gravata para se refrescar e ficar um pouco<br />

mais à vontade. Definitivamente não era do tipo almofadinha.<br />

Preferia os jeans desbotados e as camisas de<br />

algodão.<br />

Deus do céu! A casa estava apinhada de gente, como<br />

larvas brotando de um corpo em decomposição. A temperatura<br />

interna deveria estar uns dez graus acima da<br />

umidade exterior. Calor humano.<br />

Rick e Nicole tomaram lugar na fila de cumprimentos,<br />

que parecia estar chegando ao fim, já que apenas dois<br />

casais os precediam, um deles oferecendo suas condolências<br />

à viúva... e a Devon Markham. Duas mulheres<br />

flanqueavam Julie. A da direita, alta, magra, com<br />

nariz afiado e sagazes olhos castanhos, separava-a de<br />

Markham. A da esquerda era mais velha, porém bem mais<br />

atraente. Uma loira que esbanjava sensualidade. Rick<br />

teve a nítida impressão que ambas as mulheres haviam<br />

se postado lá para guardar Julie. O que seriam da viúva?<br />

Mãe... tia... ex-babá?<br />

Quando os outros casais se afastaram, Nicole cumprimentou<br />

um por um do comitê de recepção, oferecendo-lhes<br />

suas condolências. Julie esticou a mão e tomou<br />

a de Nicole.<br />

— Agradeço ter vindo de Knoxville — disse a viúva.<br />

— Estou certa de que sua presença aqui é um grande<br />

conforto para Claire.<br />

Rick permaneceu em silêncio, limitando-se a colar<br />

em Nicole e anuir com um gesto de cabeça para cada<br />

uma das mulheres mais velhas. Pretendera passar o mais<br />

despercebido possível, porém, de repente ouviu Julie<br />

questionar Nicole.<br />

— Esse é o seu marido?

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