Capítulo I - Romances Nova Cultural
Capítulo I - Romances Nova Cultural
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<strong>Capítulo</strong> I<br />
—P egue essa bola, sua cabeça de vento! — Lia<br />
Carson gritou para Debra que, com as mãos na<br />
cintura, observava os prédios da cidade, do outro lado do<br />
vale, com ar sonhador.<br />
— Ora, não perturbe, garota! — Debra retrucou, sem<br />
se voltar. — Não vê que estou concentrada em outra coisa,<br />
muito mais importante?<br />
Maria Wollstone deu uma corrida ágil em direção à<br />
bola que rolava pelo gramado, além da quadra de basquete.<br />
Apanhando-a, lançou-a de volta a Lia, por sobre a cabeça<br />
de Debra. Então, perguntou:<br />
— O que há, Debra... Entrou em alfa?<br />
— Se você tivesse visto Lester saindo do banho, hoje de<br />
manhã, entenderia o sentido metafísico das minhas dúvidas<br />
— respondeu Debra, com ar misterioso.<br />
— Ah, então você tem dúvidas... E posso saber quais<br />
são?<br />
— Bem, a principal delas é: por que a natureza faz coisas<br />
assim?<br />
Impaciente para retomar o jogo, Maria perguntou:<br />
— Que coisas, Debra?<br />
— Dar ao Lester um corpo perfeito, sem um cérebro<br />
correspondente. Decididamente, não consigo entender...<br />
— Lester é um bom rapaz, tem potencial — Maria opinou.<br />
— Só que ele ainda não amadureceu. Ou seja: não
Anna Summer<br />
conseguiu equilibrar sua anatomia privilegiada com sua<br />
mente um tanto, digamos...<br />
— Lenta demais — completou Debra, com ironia. —<br />
O problema é: quando a cabeça de Lester “chegar no lugar”,<br />
quem vai querer seu corpo?<br />
Lia, que naquele momento entrava no garrafão e arremessava<br />
a bola à cesta, deixou escapar uma gargalhada.<br />
— Você é terrível, garota! — exclamou Maria.<br />
— Por quê? — Debra protestou. — Será que sou a única<br />
na Angels’ Home que vê os rapazes sob um ângulo...<br />
digamos... sensual?<br />
— Não. Mas acho que nenhuma de nós gostaria de separar<br />
o corpo e a mente de algum daqueles rapazes, ora —<br />
rebateu Maria.<br />
— Você diz isso porque não tem nada faltando nem<br />
sobrando no seu Janus.<br />
— Aí é que você se engana. Em primeiro lugar, Janus<br />
não é “meu”. E, em segundo, falta um bocado de coisas<br />
nele... Como, aliás, em quase todo mundo.<br />
— O quê, por exemplo? — Debra a desafiou.<br />
— A descontração de Irving...<br />
— Ou o dinheiro de Daniel — acrescentou Lia, mandando<br />
a bola com força para Maria.<br />
Espalmando a bola com habilidade, Maria controlou-a,<br />
batendo-a três vezes no chão. Depois, com um salto ágil,<br />
arremessou-a em direção à cesta... e acertou.<br />
— Uau! — exclamou Lia. — Essa foi demais!<br />
— Parece que a única maneira de se conseguir o homem<br />
ideal é esquartejar vários deles... — prosseguiu Debra,<br />
com ar sonhador. — E depois juntar os pedaços da maneira<br />
certa.<br />
— Eu não aguento mais essa conversa — Maria desabafou,<br />
caminhando até o banco de madeira onde havia<br />
deixado sua bolsa. — Sabem de uma coisa? Vou tomar uma<br />
ducha.
a felicidade existe!<br />
— Eu também. Espere por mim. — Lia alcançou<br />
Maria, que já caminhava em direção ao vestiário.<br />
Ambas seguiram pela trilha ladeada por azaleias floridas,<br />
até o amplo terraço que dava acesso aos vestiários. Um arco<br />
de ferro separava aquela área dos outros espaços de lazer.<br />
A inscrição “Chácara Florida” aparecia em arabescos caprichosos,<br />
no alto do arco parcialmente coberto por flores.<br />
Em outros tempos, a Chácara Florida fora um clube onde<br />
as famílias abastadas de Clespreen vinham passar os fins<br />
de semana.<br />
A propriedade ainda mantinha algumas características<br />
daquela época: belas casas de campo, quadras de vôlei,<br />
basquete e tênis, uma imponente piscina olímpica, um salão<br />
de festas e outras dependências menores, para eventos.<br />
Apenas os estábulos haviam sido parcialmente desativados.<br />
Enquanto os donos do empreendimento não decidiam<br />
o que fazer com a maior parte da propriedade, as confortáveis<br />
casas de campo dos aristocratas de outrora haviam<br />
sido transformadas em repúblicas para estudantes. A proximidade<br />
da chácara com o campus universitário determinara<br />
essa mudança.<br />
— É impressão minha, ou você está preocupada? — Lia<br />
perguntou a Maria.<br />
— É por causa de Hector — Maria confessou, com um<br />
suspiro.<br />
— O professor de violão?<br />
— Sim.<br />
— Mas o que há com ele?<br />
— Já faz algum tempo que anda me assediando, com<br />
uma insistência exasperante. Estou pensando, seriamente,<br />
em abandonar o curso.<br />
— Ora, você não pode culpá-lo por tentar... Afinal, você<br />
é uma garota muito atraente. Já deveria estar acostumada<br />
a esse tipo de situação.<br />
— De fato, estou. O que não suporto são os subterfúgios
Anna Summer<br />
que alguns homens usam para se aproximar. Dá vontade de<br />
dizer: “Tenha coragem de se expor, meu amigo. O máximo<br />
que pode acontecer é você ouvir um não como resposta”.<br />
— Talvez esse seja, exatamente, o medo de Hector — Lia<br />
opinou, pensativa. — Mas, diga, como ele está assediando<br />
você? Com palavras, com gestos?<br />
— Do pior modo possível. A todo momento ele tenta se<br />
encostar em mim, sob o menor pretexto, como se fosse por<br />
acaso. E, depois, mal consegue se concentrar na aula, de<br />
tão excitado que fica. — Com um misto de cansaço e irritação,<br />
Maria repetiu: — É insuportável.<br />
— E o que você pretende fazer?<br />
— Não sei. Estou perdida...<br />
— Você poderia convidá-lo para tomar um drinque e<br />
abrir o jogo, de uma vez — sugeriu Lia. — Que tal?<br />
— Já pensei nisso. Mas ele pode se fazer de desentendido,<br />
dizer que estou enganada, fantasiando...<br />
— Ele não seria tão hipócrita.<br />
— Quem garante que não? O que se pode esperar de uma<br />
pessoa que manifesta seus desejos por meio desse tipo de<br />
subterfúgio?<br />
— Compreendo seu ponto de vista, Maria. É uma situação<br />
bem desagradável.<br />
Conversando, as duas entraram no vestiário. Deixando<br />
as bolsas sobre os bancos, livraram-se das roupas e dirigiram-se<br />
às duchas. Cada uma ocupou um boxe. O som do<br />
forte jato de água, atingindo os corpos jovens e o piso ladrilhado,<br />
espalhou-se pelo ambiente.<br />
Elevando a voz acima do ruído da ducha, Lia perguntou:<br />
— Você vai à festa na Neandertal, hoje à noite?<br />
— Provavelmente, não — respondeu Maria. — Tenho de<br />
terminar um trabalho para entregar segunda-feira na aula<br />
de literatura. Se eu conseguir adiantar bastante, irei, mas<br />
acho difícil. — Após uma pausa, perguntou: — E você?<br />
— Ah, eu não perderia uma festa dessas por nada neste
a felicidade existe!<br />
mundo!<br />
— Você é impossível, Lia...<br />
— Oitocentos metros! — gritou Irving Loos, em pé, na<br />
beira da piscina, para Janus, que se aproximava nadando<br />
velozmente.<br />
Numa virada olímpica perfeita, Janus mudou do estilo<br />
clássico para o livre e acelerou o ritmo, cortando a água<br />
azul em braçadas vigorosas.<br />
E foi nesse estilo que Janus venceu os duzentos metros<br />
restantes.<br />
Com um metro e noventa de altura, Janus parecia talhado<br />
para a prática daquele esporte nobre. Os membros<br />
longos facilitavam seu deslocamento na água.<br />
— Novecentos — avisou Ira, pouco depois.<br />
Janus fez a virada e, mais uma vez, mudou o estilo, do<br />
nado livre para o de peito.<br />
Cruzando as mãos atrás da cabeça, Irving girou o corpo,<br />
repetidas vezes, para a direita e depois para a esquerda,<br />
fazendo um exercício de aquecimento. Não era muito<br />
alto: tinha cerca de um metro e setenta e cinco. Seus músculos,<br />
bem delineados, eram resultado de longas e pacientes<br />
horas nos aparelhos de ginástica. Moreno, com um rosto<br />
expressivo e um sorriso constante, Irving fazia sucesso com<br />
as mulheres.<br />
— Mil — disse o próprio Janus, apoiando as mãos na<br />
borda da piscina, a respiração um tanto ofegante. — Mil<br />
metros!<br />
A água escorria-lhe pelos cabelos negros e por todo<br />
o corpo, esbelto porém vigoroso.<br />
Alçando-se com facilidade para o piso de arenito que<br />
contornava a piscina, Janus tentava regularizar a respiração.<br />
O esforço do exercício longo e contínuo dava a seus<br />
músculos uma definição escultural. E a pele, molhada e
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Anna Summer<br />
reluzente, contribuía para uma impressão que Janus sempre<br />
causava: a de ter sido talhado em mármore.<br />
— Você ainda quer aquela carona para o centro da cidade?<br />
— ele perguntou, alcançando a toalha que havia<br />
deixado sobre uma cadeira esmaltada.<br />
— Quero, sim — respondeu Irving. — Meu carro só ficará<br />
pronto depois de amanhã.<br />
— Você ainda não me contou como foi o acidente —<br />
Janus comentou, caminhando para o vestiário.<br />
— Pura bobagem — disse Irving, acompanhando-o. —<br />
Um gato indeciso arrependeu-se no último momento...<br />
Ele ia atravessar bem na frente do meu carro, mas desistiu<br />
e voltou atrás.<br />
— Não deu tempo de evitar o atropelamento, eu<br />
suponho.<br />
— Claro que deu. E foi aí que a coisa se complicou. Pisei<br />
no freio e guinei para a esquerda, sabendo que ia bater nos<br />
latões de lixo sobre a calçada. — Irving riu, baixinho, antes<br />
de confessar: — Calculei mal a velocidade em que vinha.<br />
Os latões saíram voando, e eu fui bater em cheio contra<br />
a árvore que estava bem atrás deles. Uma pancada dura,<br />
amigo...<br />
— Ainda bem que você não se machucou... Estava<br />
sozinho?<br />
— Tinha acabado de deixar Pamela em casa, o que foi<br />
uma sorte. Ela nunca usa o cinto de segurança.<br />
Janus não comentou o fato. Aliás, era de poucas palavras.<br />
Não fosse por seu comportamento gentil, sempre atento<br />
e solidário com as pessoas, poderia ser tomado por um<br />
antissocial nato.<br />
Natural de uma pequena cidade costeira ao norte de<br />
Miami, Janus era neto de imigrantes italianos, por parte<br />
de mãe. Quanto ao pai, era espanhol naturalizado americano.<br />
Não se sabia muito mais sobre Janus, nem mesmo na<br />
Angels’ Home, a república que ele dividia com outros sete
a felicidade existe! 11<br />
estudantes: quatro rapazes e três moças.<br />
— Você vai à festa na Neandertal, hoje à noite?<br />
A pergunta de Irving ressoou no amplo vestiário masculino,<br />
totalmente vazio àquela hora do dia.<br />
— Vou dar uma passada rápida por lá. Tenho de estudar<br />
para a prova de direito constitucional, na segunda-feira.<br />
— A república vai estar em silêncio, como você gosta.<br />
Todos irão à festa.<br />
— Assim espero — disse Janus, entrando embaixo do<br />
chuveiro.<br />
A Neandertal era uma república bem maior do que a<br />
Angels’s Home. Ocupava uma das maiores casas da Chácara<br />
Florida e possuía, além de inúmeros quartos, uma cozinha<br />
imensa e um salão de festas magnífico. Uma lareira de pedra,<br />
no centro do salão, dava um charme especial ao ambiente.<br />
A tradição exigia que todos os moradores da Neandertal<br />
fossem estudantes de arte. E essa regra vinha sendo respeitada,<br />
ao longo dos anos.<br />
Pelas características arquitetônicas, e pelo gosto de seus<br />
moradores, a república havia se tornado famosa por suas<br />
festas. Era uma questão de status, entre os estudantes da<br />
universidade, ser convidado para elas.<br />
Naquela noite amena de primavera, a república havia<br />
sido dividida em três ambientes, cada um com um gênero<br />
musical diferente. No salão de festas, música eletrônica;<br />
rock na varanda lateral, e blues e reggae nos fundos. Foram<br />
muitos os convites distribuídos.<br />
A brisa noturna trazia os sons da festa até o quarto de<br />
Janus, na república Angels’ Home. Sentado diante do computador,<br />
ele repassava os itens complicados da pesquisa na<br />
qual vinha trabalhando.<br />
Livros abertos sobre uma grande mesa atestavam o esforço<br />
contínuo de Janus, que, envolvido em seus afazeres,
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Anna Summer<br />
esquecera-se do passar do tempo.<br />
Levantando-se, ele caminhou até a pequena sacada,<br />
onde se debruçou, recebendo no rosto a refrescante brisa<br />
noturna.<br />
Estrelas brilhavam no céu sem nuvens. Janus contemplou-as,<br />
enquanto uma inesperada onda de nostalgia o assaltava.<br />
Com um profundo suspiro, ele decidiu que já era<br />
momento de fazer uma pausa. Estava intelectualmente<br />
exausto e, nesse estado, pouco renderia em seus estudos.<br />
Com um meio-sorriso nos lábios, desligou o computador.<br />
Abriu o guarda-roupa, escolheu um suéter leve, jogou-o<br />
sobre os ombros e saiu do quarto. O silêncio que reinava<br />
na república era impressionante.<br />
Descendo as escadas, Janus atravessou a sala, abriu a<br />
porta e mergulhou na noite primaveril, rumo à festa.<br />
Maria Wollstone ouviu os passos de Janus descendo as<br />
escadas, e depois, o som da porta se abrindo e fechando.<br />
Uma vaga frustração tomou conta de seus sentidos, pois<br />
ela planejara convidá-lo para um lanche, assim que terminasse<br />
a sinopse de um texto que estava lendo.<br />
Era óbvio que Janus não percebera sua presença na<br />
casa, Maria pensou.<br />
Por um bom tempo, naquela tarde, ela havia desfrutado<br />
silenciosamente a presença dele no andar de cima.<br />
Na quietude daquele sábado à noite, em que todos haviam<br />
saído para a festa, parecia significativo para Maria<br />
o fato de somente ela e Janus terem ficado estudando, na<br />
república quase vazia.<br />
Agora, ele também se fora, deixando-a realmente só...<br />
E, o que era pior: desconcentrada, cansada e inquieta.<br />
Agindo por impulso, Maria abriu o armário e verificou<br />
suas roupas. Escolheu um vestido longo e solto, preto, de<br />
alças. Vestiu-se, escovou os cabelos e cobriu os ombros
a felicidade existe! 13<br />
com um xale colorido e partiu para a festa.<br />
Como havia adiantado bastante o trabalho de literatura<br />
naquela tarde, teria tempo de concluí-lo no dia seguinte.<br />
Depois de perambular pelos ambientes da Neandertal,<br />
Janus dirigiu-se ao jardim dos fundos, atraído por um solo<br />
de guitarra especialmente ágil e provocante.<br />
Caminhou na direção do som e parou diante de um palco<br />
improvisado, onde um contrabaixo, uma guitarra e uma<br />
bateria davam seu recado nas mãos competentes de três<br />
músicos.<br />
Encostado a uma árvore, fora do círculo iluminado pelos<br />
refletores, Janus sentiu-se relaxar, os olhos semicerrados,<br />
a atenção totalmente voltada para a música, uma versão de<br />
A Little Help from my Friends, dos Beatles.<br />
Era tal a energia que irradiava do trio, que um silêncio<br />
respeitoso, quase solene, foi aos poucos se instalando<br />
no grupo de jovens excitados e alegres que perambulavam<br />
pelo jardim.<br />
Assobios, gritos e aplausos vibraram no ar, no final da<br />
performance. Então, quatro músicos entraram em palco,<br />
somando-se ao trio. Com essa nova formação, a banda<br />
iniciou uma sequência fulminante de reggaes bastante conhecidos.<br />
A música atraiu mais estudantes, e, dali a pouco,<br />
todos começaram a dançar.<br />
Foi nesse momento que Janus viu Maria, com um copo<br />
na mão, movendo-se com graça e elegância ao ritmo irresistível<br />
da música jamaicana. Ela dançava sozinha, como se<br />
voltada apenas para si mesma, deixando a cadência tropical<br />
e mágica possuí-la por inteiro.<br />
O vestido preto, leve, esvoaçava em torno de seu corpo,<br />
marcando as formas generosas e as curvas sensuais.<br />
Com o movimento da dança, seus cabelos negros pareciam<br />
chicotear os ombros, cobertos por um xale colorido.