12.04.2013 Views

FONSECA, Sherloma Starlet. Memórias de um constitucionalista

FONSECA, Sherloma Starlet. Memórias de um constitucionalista

FONSECA, Sherloma Starlet. Memórias de um constitucionalista

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Entretanto, coisa estranha, àquele instante senti <strong>um</strong> carinho profundo por<br />

essas feições que mais <strong>de</strong>composta pareciam na meia luz do dilúculo fosco.<br />

No entanto, ainda pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> <strong>um</strong> certo asco, apesar da necessida<strong>de</strong> que<br />

tinha <strong>de</strong> <strong>um</strong> pouco d’água.<br />

Sempre sorrindo, êle (sic) mantinha o braço estendido com <strong>um</strong> cantil velho<br />

entre a mão suja <strong>de</strong> barro e queimada <strong>de</strong> pólvora.<br />

Um momento, pareceu-me que parou o sorriso vendo, talvez, a minha rápida<br />

in<strong>de</strong>cisão em pegar o cantil viscoso dos beijos daquela boca feia.<br />

Agarrei-o rápido e emborquei, bebendo <strong>de</strong> <strong>um</strong> só trago o resto <strong>de</strong> água que<br />

continha, <strong>um</strong> líquido salobro com gosto <strong>de</strong> terra. Ao <strong>de</strong>volver o cantil ao<br />

dono, esse também tomava água. Ele também tinha se<strong>de</strong>. Estava bebendo<br />

n<strong>um</strong>a poça suja à borda da trincheira.<br />

Toda a ternura que po<strong>de</strong> ter <strong>um</strong> homem que passou a noite combatendo, pus<br />

o meu agra<strong>de</strong>cimento.<br />

A trincheira nivela e acaba com os escrúpulos. Senti-me menor do que<br />

aquele pobre anônimo <strong>de</strong> beiços inflamados e <strong>de</strong>ntes ruins que, se<strong>de</strong>nto, não<br />

fez dúvida em dar-me o restinho da sua água, enquanto eu hesitava em bebêla,<br />

não por <strong>um</strong> gesto nobre, mas n<strong>um</strong>a manifestação h<strong>um</strong>ilhante. (DUARTE,<br />

1947, p. 37-38)<br />

A narrativa indica a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> subordinação do negro à elite branca quando o<br />

soldado entrega a Paulo Duarte o cantil <strong>de</strong> água “limpa” e ele se serve da água suja da chuva<br />

nas bordas da trincheira. O jornalista tem <strong>um</strong> comportamento dúbio: o preconceito aparece na<br />

<strong>de</strong>scrição dos traços físicos do soldado. A feiúra é contraposta à coragem. Os segundos <strong>de</strong><br />

in<strong>de</strong>cisão indicam que a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a trincheira nivela os homens se constitui em <strong>um</strong>a lição<br />

que ainda carecia <strong>de</strong> ser internalizada pelo combatente revolucionário.<br />

Segundo Petrônio José Domingues (2003), a população negra incorporou o espírito<br />

da paulistanida<strong>de</strong> e foi convencida <strong>de</strong> que <strong>de</strong>veria pegar em armas e arriscar morrer por <strong>um</strong>a<br />

aparente coletivida<strong>de</strong>, mas que na essência atendia às particularida<strong>de</strong>s da elite branca. No que<br />

se refere aos valores i<strong>de</strong>ológicos envoltos nessa paulistanida<strong>de</strong>, o soldado-ban<strong>de</strong>irante<br />

dificilmente foi associado ao homem negro. O vocativo das propagandas <strong>constitucionalista</strong>s<br />

dirigia-se ao negro em particular, aos “homens <strong>de</strong> cor”, o que os diferencia <strong>de</strong> autênticos<br />

paulistas, tratando-os como “homens em auxílio à causa paulista” 24 .<br />

É com<strong>um</strong> na narrativa <strong>de</strong> Paulo Duarte e <strong>de</strong> memorialistas a menção aos<br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> famílias ricas que, ao chegarem à linha <strong>de</strong> fogo, se esquivavam e, utilizando-<br />

se do tráfico <strong>de</strong> influências, permaneciam na retaguarda. Conforme Domingues, a Legião<br />

24 Domingues (2003, p. 209-210) afirma que há fortes evidências <strong>de</strong> que os paulistas não “esqueceram”, mesmo<br />

provisoriamente, as doutrinas racistas. Além <strong>de</strong> que a elite “ban<strong>de</strong>irante” não consi<strong>de</strong>rava os negros como<br />

autênticos paulistas, o autor aponta que, durante a guerra, artistas mo<strong>de</strong>rnistas como Anita Malfatti, Tarsila do<br />

Amaral, Guilherme <strong>de</strong> Almeida, Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Menotti Del Picchia, tal como a elite econômica do país,<br />

buscaram capitalizar recursos para, <strong>de</strong>ssa forma, colaborarem com a luta cívica. Contudo, no momento da<br />

distribuição do material, havia discriminação: as tropas <strong>de</strong> elite recebiam os primeiros e melhores materiais; aos<br />

negros, ficava o resto.<br />

48

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!