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aqui - Pedro Almeida Vieira

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Ao Rui Luís Romão


Assim disse Iahvé: Em Ramã<br />

ouve-se uma voz, uma lamentação,<br />

um choro amargo, Raquel<br />

chora seus filhos, ela não quer<br />

ser consolada por seus filhos<br />

porque eles já não existem.<br />

Jeremias, 31, 15


Antes de o sol desaparecer vagarosa é a sombra, calcando a areia<br />

como um animal que arrastasse o cansaço. E eu deixo que o olhar<br />

pouse na copa das palmeiras, ponho-me à escuta do que me chega<br />

aos ouvidos. Há por <strong>aqui</strong> grande arruído de aves, agitando as asas<br />

e lançando-se em gorjeios, tão bonitas de plumas e de sons como<br />

dos nomes que possuem, olho-branco ou beija-flor ou papa-figos,<br />

criadas no quinto dia com as serpentes do mar, e com todos os seres<br />

vivos que rastejam e que fervilham nas águas. Observo-lhes o voo<br />

como quando as avistei pela vez primeira, menino desembarcado<br />

com os meninos da mesma expedição, ano de mil quatrocentos e<br />

noventa e três, a contar do nascimento do filho do carpinteiro, nesta<br />

Ilha de São Tomé. Eu espantava-me de tudo, coçava-me dos piolhos<br />

que eram mais do que as gotas do oceano, a sede encortiçava-<br />

-me a garganta, sufocava-me o soluço da saudade da minha mãe. E<br />

não mais me abandonaria esta surpresa das cousas, ainda quando<br />

se tornavam elas perigosas ou funestas, criaturas que nos espreitam<br />

a fraqueza, pecado que nunca experimentamos, mas que para nós<br />

significará a eterna perdição.<br />

Não convive em paz porém a curiosidade com as misérias do corpo.<br />

Fizeram-se-me frouxas e emperradas as juntas dos ossos, levo<br />

infinito tempo a colocar-me de pé, a cicatriz do joelho fecha, volta<br />

a abrir, chaga que simboliza as alternâncias da fortuna da condição<br />

humana. Que alegria merecerá o velho que sou, sozinho ou quase,


esquecido entre os muros chamuscados, esperando que raie um clarão?<br />

O que resta do engenho de açúcar não basta para me confortar<br />

a vista, não fora a floresta que me rodeia, e me devora, trazer-me esta<br />

surpresa diária, semelhante à que hei-de colher, assim me conceda o<br />

Senhor as luzes suficientes na derradeira hora da despedida. Arredo<br />

as moscas da ferida do joelho, assopro nela para alívio da dor que<br />

me não larga, molho a pena na tinta que a poeira engrossou.<br />

As linhas da minha escrita atravessaram agora as páginas da Tora,<br />

apertadinhas umas de encontro às outras, e não conservasse eu na<br />

memória o que lá se diz, não alcançaria ler os versículos sagrados.<br />

Já nem descortino que pensamentos por esse papel amarelado espalhei,<br />

enganchados entre si, apagados pelos anos, cobertos pelos<br />

borrões de tanta desatenção. Ao bom franciscano que me ensinou<br />

as letras, que repousa no morro que d<strong>aqui</strong> se vislumbra, devo eu<br />

esta mezinha. «Abel, pois que te foi dispensada a vontade de saber»,<br />

aconselhava-me ele, «cuida de a exercer que nela é que acharás os<br />

portões de saída do exílio». E com a própria mão direita apertava<br />

a minha, guiando-a na rota das frases, apurando-a no desenho dos<br />

caracteres. Pedi-lhe que me consentisse que lhe oferecesse o tratamento<br />

de «pai», mas eis que se escusou, não pouco sobressaltado,<br />

explicando-me que não há-de ter favoritos aquele que Deus escolheu<br />

para O servir, mas que a todos se compromete a reputar de Seus filhos<br />

em Jesus Cristo, Nosso Senhor.<br />

Levanta-se a aragem que anuncia a noute, agita levemente o badalo<br />

da sineta que outrora chamava os escravos às suas obrigações. E<br />

se permitir que me tome a sonolência que nunca me desacompanha,<br />

lograrei distinguir os magotes de negros, cada qual com a sua escudela,<br />

acorrendo às tarefas, o corte das canas, o transporte delas, o<br />

funcionamento do moinho, a recolha da calda. Andava eu pelo meio,<br />

gritava uma ordem, tropeçava num dos pequenos que gatinhavam,<br />

cuspia uma praga, encantava-me de uma moça em que não reparara<br />

ainda. E a casa parecia uma colmeia, desperta como lume que se não<br />

extingue, respeitada pelos que exploravam as riquezas daqueles territórios,<br />

apontada como exemplo de bom governo e de lucro seguro.


E bem vingado me sentia do soberano de empedernido coração que<br />

me arrebatara aos braços maternos, me metera com centenas de infantes<br />

da minha raça numa nau tenebrosa, me enviara para paragens<br />

onde se julgava mais do que certa a morte. Tocava a sineta no termo<br />

da jornada, arrebanhavam-se os escravos que regressavam às choças,<br />

eu pegava na Tora, adormecia diante dela, descerrada à luz das velas.<br />

E por essas alturas, mais admirado do que hoje das maravilhas do<br />

Universo, enfeitiçavam-me as cores dos periquitos, a palração em<br />

que se entretinham, os voos com que iam passando de ramaria em<br />

ramaria, tão mansos que os apanhávamos com os dedos, inocentes<br />

que se mostravam das manhas dos humanos. Tamanha é contudo a<br />

perversidade destes que me não contentava, transcorrido determinado<br />

tempo, em capturá-los por curtos instantes, e dei em afeiçoar<br />

umas jaulazinhas de ocá, madeira tão excelente que a empregam os<br />

cafres na talha das canoas que resistem ao enxurro das ribeiras. Pendurava<br />

as gaiolas pelas minhas quadras, e no alpendre também, e vinham<br />

contemplá-las as criancinhas, atraídas pela paixão do domínio<br />

que em nós sempre desencadeiam os encarcerados. Iam-se evadindo<br />

entretanto os periquitos do arvoredo do engenho, temerosos de que<br />

lhes coubesse destino igual ao dos seus companheiros. E quando necessitávamos<br />

de mais, a fim de substituir os que haviam perecido no<br />

cativeiro, impunha-se-nos um percurso muito longo pelos dentros<br />

do matagal, dissipados os que costumavam habitar nas nossas cercanias.<br />

E meditávamos com tristeza na natura deste Mundo, atentando<br />

em que, se perseguíamos nós os passarinhos indefesos, e os fechávamos<br />

numa cadeia de pau, nos aprisionara de idêntica maneira El-Rei<br />

Dom João II de Portugal, confinando-nos àquele jardim, povoado<br />

por vária qualidade de bichos ferozes, circundado pelo azul brilhantíssimo<br />

do Atlântico.


Quem poderá descrever aquela Praça da Ribeira no dia nefasto em<br />

que ali se reuniam as crianças? Originárias das mais distantes regiões<br />

do Reino de Portugal, juntavam-se elas em magotes que os grandes<br />

fiscalizavam, agregando-se às resultantes de Lisboa, as quais em<br />

geral se faziam acompanhar por basta parentela. Era uma manhã<br />

de Abril, tão suave que mais parecia um agouro de acontecimentos<br />

festivos do que o limiar de um holocausto que se preparasse. E os<br />

gritos das judias, descabeladas diante da tragédia do furto dos seus<br />

rebentos, apegavam-se aos guinchos das gaivotas na luz da beira-<br />

-Tejo. Eu chegara com os restantes, estremunhado e dorido, assarapantado<br />

pela riqueza dos palácios, pela cópia de gentes variegadas<br />

que enchiam as ruas. Durante a comprida viagem limitara-me a roer<br />

alguma côdea de pão, a beber água salobra, a repousar os músculos<br />

e os ossos num estrado emporcalhado pelo vómito.<br />

A entrada da Cidade detiveram-nos as tropas para nos examinar,<br />

afastando com chuços os s<strong>aqui</strong>téis amontoados onde havíamos<br />

guardado os nossos pertences, uma colher de pinho mal seco, umas<br />

bragas rotas ou uma pouca de unguento para as moléstias da pele.<br />

Perguntavam pelo lugar da nossa naturalidade, separavam-nos conforme<br />

ao que respondíamos, cuidando de nos dividir em quantidades<br />

certas para que não sobrasse <strong>aqui</strong> o que falecia além. E vieram os<br />

habitantes das ribas, e botaram-se a mirar-nos com arreliante vagar,<br />

comentando as nossas virtudes e os nossos defeitos, como se mostrava<br />

desempenado um e corcundinha outro, de que forma despontavam<br />

as maminhas desta e de que modo se afigurava zarolha aquela,<br />

que orelhas possuía fulano e que nariganga beltrano. Lembro-me<br />

como se fosse hoje de um velho sem perna, apoiado a uma muleta,<br />

a observar-nos com a maior das atenções. E não me esquecerei dos<br />

salamaleques com que abordou o soldado ao meu lado, inquirindo<br />

com voz fininha, «São para vender, meu comandante, estas crias?»,<br />

justificando-se logo, «E que, se forem mais baratas do que os cafres<br />

do rio Zaire, não se me dava de arrematar um parzinho».<br />

Ao princípio da tarde, exaustos de quanto havíamos suportado,<br />

com o bucho contraído pela muita larica, apercebemo-nos de que in-


gressara na praça o enterro de uma jovem, o que deduzimos da colcha<br />

que cobria o ataúde, e dos lamentos dos que o secundavam, «Ai<br />

que me leva Deus a minha querida filha, a minha querida sobrinha,<br />

ai que nunca mais volto a abraçar a minha Eufrásia adorada, ai que<br />

desgraça, meu Jesus, que desgraça, que desgraça!» E tornava-se tão<br />

estridente e tão teimoso este pranto, ao qual até os machos se associavam,<br />

que não se impediam os assistentes de fungar de galhofa. E<br />

prosseguia o cortejo, escoltado por quatro adolescentes que arvoravam<br />

archotes, o seu percurso através da praça, quando se ouviu um<br />

comando, vociferado por um dos capitães destacados para governar<br />

as manobras do nosso embarque.<br />

Estacaram os que enquadravam a defunta, o esquife oscilou sobre<br />

os ombros de quem o transportava, abateu-se um silêncio de respeito<br />

e de sobressalto. Apajado por uma parelha de lanceiros, aproximou-<br />

-se dos enlutados o militar, interrogando-os sobre donde procediam,<br />

que rumo levavam, que cadáver pretendiam inumar. E recebeu isto<br />

por réplica, «Somos de Rilhafoles, meu comandante, tementes ao<br />

Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, e vamos sepultar esta minha priminha,<br />

pobre dela, falecida ontem, o Senhor a acolha no Paraíso,<br />

de um nó na tripa a que não resistiu». Dormia a moça com as mãos<br />

muito lindas, cruzadas no peito, diademada por uma grinalda de<br />

malmequeres, tão mimosos que se diria terem sido colhidos naquele<br />

preciso momento. E abeirou-se o homem da jazente, debruçou-se<br />

para ela, e assoprou-lhe nas narinas. De imediato, não logrando reter-se,<br />

largou Eufrásia, a qual mais tarde descobriríamos chamar-se<br />

Raquel, um espirro que lançou em pânico os circunstantes, e sentou-<br />

-se de supetão como que abismada de tamanho desaforo. Escaparam<br />

os figurantes do funeral em quanta direcção se lhes patenteava.<br />

Integraram então a fingida, desfeita em choradeira, num punhado<br />

de catraios, no qual se destacaria por ser a mais espigada, direita<br />

como uma cana-da-Índia nos seus doze anos virginais. Mas não a<br />

abandonava por um instante a que a gerara, procurando achegar-se-<br />

-lhe para lhe beijar as faces, rogando a todo o sujeito armado com<br />

que entestava que não lha arrebatasse, que antes a despachasse, a


ela, para os horrores das florestas da África. Mantinha Raquel entre<br />

tanto uma compostura maravilhosa, hirta pela vergonha a que se<br />

sujeitara mercê da pantominice que acedera a executar. Nem uma<br />

lágrima se lhe avistava, e era com evidente repugnância que presenciava<br />

a conduta descomandada da que a trouxera à luz. Implantada<br />

no centro dos deportados, configurava Raquel apesar das vestes<br />

amarrotadas e sujas o anjo com quem Jacob combatera, e cujo nome<br />

para sempre permaneceria ignorado. E haveria de se converter na<br />

protectora dos exilados, os quais nela vislumbrariam a primeira estrela<br />

surgida, capaz de lhes designar a rota no negrume dos mares.<br />

A noute tombou, e mantiveram-nos naquela grande Praça da Ribeira,<br />

encolhidos no exíguo espaço que nos atribuíam, enroscados<br />

debaixo de uma lua indiferente. Através dos montões de rapazinhos<br />

e de rapariguinhas, de infantes de mama que haviam sobrevivido<br />

milagrosamente, passavam as patrulhas, contando à gargalhada tainas<br />

de putas e de vinho pé-de-areia. De tempos a tempos gemia um<br />

de nós, rodava um carro desconjuntado, relinchava um cavalo que<br />

ficara sem forragem. E o caixão onde Eufrásia se esticara continuava<br />

ali, despedaçado pelas patas da multidão, sinal da inutilidade de<br />

qualquer artimanha com que se intentasse enganar Dom João II de<br />

Portugal. Quanto à grinalda de malmequeres, a que tão mimosa se<br />

apresentava que se diria ter sido colhida na própria da hora, quanto<br />

a essa é que nunca mais, nunca mais lhe pus a vista em cima.<br />

O monarca apareceu ao meio-dia, anunciado por trompas e atabales,<br />

com uma comitiva de cavaleiros que erguiam estandartes, e de<br />

cónegos que alçavam a cruz. Obrigaram-nos a desfilar defronte desta<br />

pandilha, e a turbamulta infantil, tropeçando em si mesma, suscitava<br />

da parte dos nobres e dos clérigos uma divertida curiosidade.<br />

Constou então que se rojara uma das mães a quem tinham furtado<br />

as sete crias diante da montada real, implorando que lhe poupassem<br />

o mais pequenino, e que de repelão ordenara o soberano aos da sua<br />

casa, «Deixem-na berregar à vontade, é como uma cadela que defende<br />

os filhotes», e jamais se determinaria se proferira ele tal frase para


seu entretenimento, se como prova de caridade face à demonstração<br />

dos instintos naturais. Processava-se devagar o embarque, a cada<br />

passo impedido por cenas deste jaez, as quais pelo uso da violência<br />

os guardas procuravam diminuir.<br />

Tendo o capitão-mor Álvaro de Caminha saudado o soberano<br />

com uma vénia demorada, e endereçado cumprimentos aos da privança<br />

régia, eis que de novo soaram os instrumentos da charamela,<br />

e avançaram seis abades, acolitados por meninos portadores de caldeirinhas<br />

e de hissopes, a benzer aquela chusma de crianças, cuja<br />

alma no conceito da populaça Satanás reivindicara. Esvoaçava a<br />

capa do Caminha, tocada por uma brisa que se levantara do Sul,<br />

andavam num redemoinho as areias da praia, a cegar os embarcados<br />

que se desfaziam em choro desconsolado. E um grupo de homens a<br />

cavalo irrompeu num tropel, e o mais grado dentre eles entregou um<br />

documento enrolado a El-Rei, o qual, passada rapidamente a vista<br />

pelo que estava escrito, o devolveu ao seu secretário. Tratava-se da<br />

mensagem do bispo de Lisboa, ausente nas Caldas, mas que pretendia<br />

unir-se à piedosa despedida, manifestando o seu amor pelos<br />

hebreusinhos e lamentando a contumácia dos progenitores que os<br />

subtraíam ao baptismo. A certa altura clamava ele no texto, «Pois<br />

que vos refugiais no pecado que não merece perdão, negando a doutrina<br />

do nosso Salvador, justo se torna que padeçais em desconto<br />

das faltas dos que, acreditando em Jesus Cristo, todavia se não revestem<br />

por fraqueza da sua índole da couraça que lhes permite resistir<br />

às tentações». E concluía, «Ide pois, ide e que a culpa de toda uma<br />

raça sirva de exemplo a vossos irmãos, ide e desempestai os ares do<br />

Reino dos vapores da antiga falta, ide e perecei, se Deus quiser, ou<br />

continuai a viver, se for essa a Sua imperscrutável vontade».<br />

Agasalhava-se Raquel num xaile que alguém lhe pusera aos ombros,<br />

pálida e com os olhos roxos do infindável pranto que vertera<br />

em silêncio, e auxiliava uns quantos garotos que a ela se prendiam<br />

como a irmã que zelasse pelos manos. E não desistia de a observar<br />

de longe o capitão-mor, o qual lhe estudava os movimentos com<br />

atenção que a ninguém mais dedicava. Era como se a imagem da


apariga lhe evocasse episódios pretéritos que desejava precisar, ou<br />

como se no rosto dela encontrasse justificação para os seus próprios<br />

actos. Vimo-lo apontá-la a dedo, e segredar alguma cousa a um dos<br />

pilotos, oferecendo-lhe depois o ouvido para arreceber a resposta.<br />

Já Raquel desaparecera todavia no porão, alheia ao que ficara para<br />

trás, inocente resignada com a morte a que a haviam condenado.<br />

Na primeira semana deparámos com mar de feição e tempo ameno,<br />

e por isso estendíamo-nos no convés, examinando as nuvens<br />

brancas que corriam por cima da armada, ou empenhando-nos em<br />

jogos que íamos inventando. E apenas os mais tenrinhos revelavam<br />

dificuldade em enfrentar as condições, alimentando-se d<strong>aqui</strong>lo que<br />

se conseguia arranjar, e que amiúde mais não era do que umas quantas<br />

gotas de leite de cabra, dissolvidas em água, a que se juntava uma<br />

pitada de farinha sem sal. Encarregara-se Raquel destes cuidados,<br />

vigiada sempre por Alvaro de Caminha, o qual instante a instante<br />

se diria à beira de a interpelar, retirando-se contudo no último<br />

momento. Através de Gonçalo Anes, juiz dos feitos cíveis e crime,<br />

que connosco embarcara, e que agia como mastim de quem atestava<br />

deter maior poderio do que o que lhe cabia, experimentava ele obter<br />

as sabenças que lhe importavam, que nome tinham os paizinhos da<br />

infeliz, que terra lhes fora berço, onde se encontravam agora. A tudo<br />

no entanto retrucava a moça com a mudez absoluta, por efeito de<br />

quejanda atitude exasperando mais o louvaminheiro Anes do que o<br />

amo a quem este lambia as mãos.<br />

Por uma tarde de chuva desembarcámos em São Tomé, e contar-<br />

-me-ia Raquel bastante depois ter-se-lhe afigurado a Ilha uma mão-<br />

-cheia de musgos onde seria grato pousar a fatigada cabeça. E à<br />

nossa chegada apinhava-se o cais de abundante negritude, curiosa<br />

de determinar que raça de infantes lhe traziam, trocando entre si<br />

impressões com gesticulação desvairada. Nós debruçávamo-nos na<br />

amurada das três naus aportadas, e esperávamos a quinta e a sexta<br />

que os ventos haviam arredado da rota. E recordo-me de reparar em<br />

Raquel, soluçando abertamente como nunca até aí, a acenar com o<br />

xaile na direcção do seu distante Portugal.


Ferrador de quantos asnos e cavalos existiam pelas bandas de<br />

Vouzela, possuía o pai de Raquel fama de sujeito de escassas falas,<br />

arredio ao convívio, mau prestador de contas a quem nele confiasse.<br />

O couce de uma mula, receosa de que lhe perturbassem a prenhez,<br />

fracturara-lhe o osso da canela, largando-o manco e avinagrado para<br />

sempre, disposto a brindar os que o afrontassem com o chorrilho de<br />

impropérios que só os da sua raça entendiam. Chamava-se ele Jacob<br />

Mansu, mas obrigavam-no os perigos do tempo a resguardar-se com<br />

o imprevisível onomástico de Bonifácio Leocádio, o qual como Cádio<br />

Cordeiro se vulgarizara, alcunha com que o distinguiam os que<br />

relutavam em encará-lo. E a escassez por aquelas áreas de oficiais do<br />

mesmo ofício tornava procuradíssimos os seus serviços, facto que<br />

lhe originava nas atitudes um desdém e uma impunidade que em<br />

circunstâncias usuais dificilmente se tolerariam.<br />

Com o início da puberdade da que era a sua filha única, manifestada<br />

por invulgar esbelteza de membros, e por um requebro de<br />

gestos que a faziam irresistível, convertera-se a furna do hebreu num<br />

lugar concorrido por quantos jovens havia, proprietários de cavalgadura,<br />

fenómeno que a empáfia do homem imputava à crescente<br />

qualidade da sua ciência de sapateiro de bestas. Atrasava-se Raquel<br />

pelo espaço das forjas, fitando com fixidez tão obsessiva as brasas<br />

onde as tenazes remexiam que se diria intentar presumir os horrores<br />

incandescentes dos abismos infernais. E o palpitante vermelho das<br />

labaredas, alimentadas por punhados de caruma que disfarçavam o<br />

fedor, acendia-lhe reflexos nos cabelos lisos, tão dourados que não<br />

faltava quem a reportasse a distinta e cristã paternidade.<br />

Ponderosas razões convergiam de resto em tal sentido, conhecida<br />

a crónica aventurosa da mãezinha de Raquel. Tratava-se de mulher<br />

que fora folgazã na mocidade, amiga de tanger sanfona, prenda em<br />

que excedia a competência de qualquer rapaz daquelas redondezas.<br />

Detentora de forte talento de mando sobre a matulagem da sua geração,<br />

arregimentava-a ela para um assalto aos quinteiros onde debicava<br />

o galinhame, ou para uma destruição do cebolal de quem quer<br />

que de súbito deixasse de lhe dar no goto. A partir dos onze anos,


decorrida uma fase de recolhimento injustificável que a desviara de<br />

tais tropelias, começara a circular o zunzum de que era feiticeira, ou<br />

de que disso não andaria excessivamente afastada. Murmurava-se<br />

que aprendera com uma cigana de passagem as manhas das que se<br />

designam por «estreitas», adestrando-se a entrar e a sair pelas frinchas<br />

sob a espécie de um morcego furtivo, bebedor do sangue dos<br />

recém-nascidos. E ninguém poderia negar que surgia ela às vezes<br />

com fundas olheiras, mostrando nos lábios entreabertos a presença<br />

de um muco susceptível de aterrar os mais audazes.<br />

Se herdara ou não Raquel estes dotes da progenitora, eis o que<br />

ninguém lograria demonstrar. A reunião porém na sua pessoa de um<br />

conjunto de estranhas capacidades, às quais se somavam a brandura<br />

da voz e a tendência para o devaneio, oferecia pretexto a que a taxassem<br />

de extraordinária, se não de pactuante com suspeitas entidades.<br />

Atreita ao prodígio do cálculo, efectuava de cabeça, e sem a menor<br />

hesitação, operações aritméticas inacessíveis à gente comum. E punham-lhe<br />

questões enredadas como esta, «Havendo dezoito estrelas<br />

num rectângulo do céu, e mais trinta e nove no rectângulo seguinte,<br />

quantas estrelas existem em cento e vinte e oito rectângulos?» E respondia<br />

ela, «As que determinar o Senhor, consoante a capacidade de<br />

cada rectângulo, isto é...», e lançava-se em números e números que<br />

não findavam. Pasmavam disto as comadres, plantando-se de braços<br />

cruzados e boca descerrada diante de tamanho prodígio, e estudava<br />

a mãe de Raquel processo de pôr a render o inusitado engenho.<br />

Um mancebo entretanto que se sabia benquisto dos frades de<br />

São Cristóvão, destacando-se por uma inteligência que lhe atiçava<br />

luzeiros nas fontes, enamorou-se perdidamente de Raquel. Mas a<br />

miúda que aos dez já ascendera a senhora, o que se citava como sinal<br />

de inexplicável natureza, não o prendia nem o refutava. Preferia<br />

aguardar que se lhe esclarecesse o conteúdo do afecto, investigando<br />

o braseiro onde as ferraduras se temperavam, antecipando que aflorasse<br />

uma sentença revestida de perfeição. Alcançava ele atraí-la de<br />

quando em quando à corte do gado, metendo-lhe sem prévio aviso a<br />

mão trémula debaixo do colete, mas eis que se insinuava a bruxa pe-


las fendas da porta, de voo aveludado e emitindo breves guinchos, a<br />

impedir que se rompesse o virgo da menininha. Um quebranto apoderava-se<br />

então do pobre, amolecia-se-lhe tudo, braços e pernas e o<br />

que não se precisa <strong>aqui</strong>, e empurrava-o Raquel ao de leve com um<br />

suspiro soluçado. Optava o repelido por lhe aceder ao insólito desejo,<br />

de que lhe trouxesse ele um dos livros mais maneiros da livraria<br />

dos monges, escondido na croça de palha encardida, facultando-lhe<br />

as leituras que a fascinavam. Com dous caracteres que o apaixonado<br />

a ensinara a identificar deduzira ela o inteiro alfabeto. E sentada por<br />

fim no interior de um tonel vazio, percorria com o indicador direito<br />

o trecho, a balbuciar um latinório de genitivos. Mergulhava o pai<br />

ferrador na água os seus artefactos, e era como se desabrochasse no<br />

ventre da pequena o corpinho cor-de-rosa de Deus encarnado.


Percorro as folhas dos meus livros, e leio o que neles escrevi, há-de<br />

haver uns doze anos. «A borrasca empurrou a nau para a baía, vimo-la<br />

acolá, batida pelos ventos e pelas ondas, de mastros partidos,<br />

e aquela multidão que se apinhava no convés, e que ia caindo pela<br />

borda fora a cada balanço maior». Envolvidos no rumor da tempestade,<br />

ouviam-se os gritos dos escravos e as ordens de quem seguia<br />

no comando. Lembro-me de que por cinco dias acarretámos e sepultámos<br />

os corpos dos afogados, apanhámos a madeira que a maré<br />

trouxera à praia, juntámos quanto sobrara da carga e dos aprestos<br />

da embarcação, o que bem pouco haveria de ser afinal. A barca vinha<br />

do Congo, transportava grande cópia de escravos, alguns para<br />

ficar por <strong>aqui</strong>, outros para continuar até ao Reino. Os que se salvaram,<br />

e nem demasiados seriam, empregavam-se nos engenhos, e só à<br />

minha conta arrematei dezasseis, foi isto no tempo das vacas gordas<br />

do Egipto.<br />

Ponho-me a observar os pequenos que brincam por entre as traves<br />

chamuscadas, pretos e mulatos e pardos, lambuzados dos frutos a<br />

que conseguem deitar mão, tão diferentes do cachopo que eu fui! A<br />

vila de Simancas onde nasci amanheceu debaixo de um céu escuro,<br />

acenderam-se as sete velas, o meu pai principiou a entoar baixinho<br />

estes versículos do Canto da Peregrinação, «Ao passar pelo Vale das<br />

Balsaminas, eles o transformam em fonte, e a primeira chuva o cobre

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