O poder do lóbi na UE - Escola Superior de Comunicação Social ...
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ª<br />
8COLINA<br />
PROPRIEDADE: ESCOLA SUPERIOR DE COMUNICAÇÃO SOCIAL • DIRECTOR: PAULO MOURA PERIODOCIDADE: TRIMESTRAL • JUNHO 2006 • Nº 3<br />
Skinheads<br />
<strong>de</strong> Lenine<br />
Partilham o interesse pela política e o orgulho <strong>de</strong> classe. Rapam o cabelo, usam botas à militar.<br />
Vestem t-shirts <strong>do</strong> Lenine. Vê-se que são skinheads, vê-se que são <strong>de</strong> esquerda. Conheça<br />
o outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s skins portugueses. Pág. 6<br />
O <strong>po<strong>de</strong>r</strong> <strong>do</strong><br />
<strong>lóbi</strong> <strong>na</strong> <strong>UE</strong><br />
CULTURA - Pág. 30<br />
Entrevista com o<br />
‘lisboeta’ Sérgio<br />
Tréfaut<br />
Em Bruxelas milhares <strong>de</strong> organizações<br />
procuram influenciar<br />
as <strong>de</strong>cisões comunitárias. São<br />
mais <strong>de</strong> 15 mil lobistas profissio<strong>na</strong>is,<br />
cujo objectivo é <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />
os interesses <strong>do</strong>s seus<br />
clientes. O fenómeno não é re-<br />
MEDIA - Pág. 22<br />
Beleza em<br />
televisão: mito<br />
ou realida<strong>de</strong>?<br />
cente. Apesar <strong>de</strong> ser um assunto<br />
tabu para muitos, há mesmo<br />
quem o consi<strong>de</strong>re essencial<br />
para o bom funcio<strong>na</strong>mento<br />
da <strong>de</strong>mocracia. Mas a falta <strong>de</strong><br />
legislação po<strong>de</strong> <strong>de</strong>itar tu<strong>do</strong> a<br />
per<strong>de</strong>r. Pág. 12<br />
LETRAS - Pág. 24<br />
O erotismo que<br />
se escreve em<br />
Portugal<br />
POLÍTICA<br />
I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
“jota”<br />
Quan<strong>do</strong> os jovens entram <strong>na</strong><br />
política. Convicção ou escola.<br />
Interesse ou oportunismo.<br />
Hoje a política também é das<br />
juventu<strong>de</strong>s. O rejuvenescimento<br />
<strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s pelos<br />
políticos <strong>de</strong> amanhã. Pág. 8<br />
DESPORTO<br />
Campeão <strong>de</strong><br />
kickboxing<br />
Aos 21 anos Ricar<strong>do</strong> Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s<br />
é o mais novo campeão<br />
europeu <strong>de</strong> kickboxing <strong>de</strong> sempre.<br />
Das rixas <strong>de</strong> bairro para<br />
os KO nos ringues. Pág. 20<br />
SOCIEDADE<br />
Um lar <strong>de</strong><br />
génios<br />
Destacaram-se no campo da<br />
cultura. Pintavam, ilustravam,<br />
escreviam poemas. Alguns<br />
ainda o fazem. É <strong>na</strong> Faria Mantero<br />
que sete mentes prodígio<br />
vivem hoje. Pág. 4<br />
ESCOLA SUPERIOR<br />
DE COMUNICAÇÃO SOCIAL<br />
DOSSIER: AGRICULTURA E PESCA | Apren<strong>de</strong>r a arte<br />
PUB
2 SOCIEDADE<br />
SÃO POUCOS OS HECTARES CULTIVADOS NA CIDADE<br />
Uma horta em Lisboa<br />
CRISTINA PEREIRA<br />
Ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma barraca <strong>de</strong> arrumação<br />
<strong>de</strong> materiais agrícolas<br />
encontram-se senta<strong>do</strong>s a conversar,<br />
num fi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> ainda<br />
com sol, Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Loureiro<br />
e Armin<strong>do</strong> Dias. Contam com o<br />
garrafão <strong>de</strong> vinho como terceiro<br />
acompanhante e é ele que serve<br />
<strong>de</strong> pretexto para o grupo não<br />
rumar já a casa. Per<strong>de</strong>ram a<br />
conta <strong>do</strong>s anos ali passa<strong>do</strong>s – no<br />
Bairro Padre Cruz – e das chatices<br />
acumuladas: a expansão <strong>do</strong><br />
Metropolitano, ao retirar-lhes<br />
alguns metros <strong>de</strong> terreno, foi<br />
um <strong>de</strong>sses dissabores.<br />
O encruzilha<strong>do</strong> <strong>de</strong> rugas e as<br />
mãos rijas e ásperas são uma<br />
constante <strong>na</strong>queles que não temem<br />
a enxada e o sujo <strong>de</strong> terra,<br />
mesmo num espaço em que o<br />
circundante não é o ver<strong>de</strong> <strong>de</strong> extensos<br />
campos, mas sim infindáveis<br />
e cinzentas urbanizações.<br />
Um cenário que não coinci<strong>de</strong><br />
com o que o plano urbano <strong>de</strong><br />
Lisboa para cerca <strong>de</strong> 3 milhões<br />
e meio <strong>de</strong> habitantes prevê: 25<br />
000 hectares <strong>de</strong> edifícios e 76<br />
000 <strong>de</strong> área <strong>de</strong> produção agrícola.<br />
Na realida<strong>de</strong>, não passam<br />
<strong>de</strong> algumas cente<strong>na</strong>s os hectares<br />
ocupa<strong>do</strong>s por hortas.<br />
Gonçalo Ribeiro Telles, arquitecto<br />
paisagista, sorri ironicamente<br />
e revela que “as propostas<br />
<strong>de</strong> espaços e <strong>de</strong> acções estão<br />
<strong>na</strong> gaveta. Só há espaço para<br />
palmeiras e <strong>de</strong>cisões que dêem<br />
lucros”. Loures, Lisboa, Almada<br />
e Setúbal são cida<strong>de</strong>s-exemplo<br />
<strong>de</strong> um <strong>po<strong>de</strong>r</strong> autárquico<br />
que ignora as leis estabelecidas<br />
pela Estrutura Ecológica Municipal<br />
(EEM); esta legislação<br />
prevê a inclusão obrigatória <strong>de</strong><br />
produção agrícola no planeamento<br />
<strong>do</strong> perímetro urbano.<br />
Projectos <strong>na</strong> gaveta<br />
As questões legais, no entanto,<br />
não preocupam Maria Pereira,<br />
O PLANO URBANO DE LISBOA PREVÊ A CRIAÇÃO DE ZONAS AGRÍCOLAS. MAS O Q<strong>UE</strong> EXIS-<br />
TE SÃO UMAS CENTENAS DE HECTARES DE HORTAS CLANDESTINAS. O IC19 É A ESTRADA<br />
COM MAIS HORTAS DA EUROPA.<br />
<br />
<strong>de</strong> Lamego. Enquanto lava as batatas<br />
apanhadas há pouco, explica<br />
o gosto que sente por aquele<br />
pedaço <strong>de</strong> terra mesmo junto ao<br />
Centro Comercial Colombo, em<br />
Benfica. “Alivia o stress. Gosto<br />
<strong>de</strong> ver crescer a Natureza”, diz.<br />
A sorte <strong>de</strong> ter uma horta mesmo<br />
ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s poços<br />
abertos pela população que ali<br />
cultiva é um <strong>do</strong>s motivos que a<br />
leva, há já vinte e cinco anos,<br />
a fazer o mesmo trajecto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
casa, para cultivar “<strong>na</strong>bos,<br />
favas, batatas, espi<strong>na</strong>fres”. A<br />
incerteza <strong>do</strong> futuro acrescenta-lhe<br />
algumas rugas ao rosto,<br />
quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>sabafa: “acho que<br />
<br />
seria importante os jovens saberem<br />
agricultura, saberem<br />
pegar <strong>na</strong> enxada, porque não se<br />
conhece o dia <strong>de</strong> amanhã”.<br />
O “dia <strong>de</strong> amanhã” po<strong>de</strong>, segun<strong>do</strong><br />
Ribeiro Telles, viver das<br />
consequências <strong>do</strong>s dias <strong>de</strong> hoje;<br />
“as catástrofes <strong>na</strong>turais provocadas<br />
pela <strong>de</strong>struição <strong>do</strong> sistema<br />
hidráulico das cida<strong>de</strong>s, a<br />
pobreza e os conflitos sociais”<br />
são aponta<strong>do</strong>s pelo arquitecto<br />
como alguns <strong>do</strong>s cenários prováveis<br />
<strong>na</strong>s gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s.<br />
Mas nos pequenos terrenos reparti<strong>do</strong>s<br />
pelos horticultores ao<br />
longo <strong>de</strong> décadas, os conflitos resumem-se<br />
a roubos e a picardias<br />
SUSANA TEODORO<br />
quanto à utilização da água.<br />
Também em Benfica, José Lourenço,<br />
<strong>de</strong> 65 anos, já viu assalta<strong>do</strong><br />
o seu “cantinho <strong>na</strong> cida<strong>de</strong>”,<br />
como gosta <strong>de</strong> lhe chamar, <strong>de</strong>ze<strong>na</strong>s<br />
<strong>de</strong> vezes ao longo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />
anos <strong>de</strong> exploração. Nasci<strong>do</strong><br />
em Ansião (Pombal), <strong>de</strong>screve<br />
passo a passo, entre autênticas<br />
dissertações sobre os sistemas<br />
<strong>de</strong> rega e <strong>de</strong> adubação, o processo<br />
<strong>de</strong> revitalização daqueles<br />
hectares proposto pela Junta<br />
<strong>de</strong> Freguesia <strong>de</strong> Benfica. “O espaço<br />
iria ser lotea<strong>do</strong>, ficaríamos<br />
to<strong>do</strong>s com um bocadinho e com<br />
água disponível; acho que também<br />
estavam previstos espaços<br />
Per<strong>de</strong>ram a conta <strong>do</strong>s<br />
anos ali passa<strong>do</strong>s e das<br />
chatices acumuladas; a<br />
expansão <strong>do</strong> Metro foi<br />
um <strong>de</strong>sses dissabores.<br />
<strong>de</strong> jardi<strong>na</strong>gem e <strong>de</strong> passeio”.<br />
Numa das várias salas <strong>do</strong> escritório<br />
<strong>de</strong> Ribeiro Telles, uma<br />
pare<strong>de</strong> repleta <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos e<br />
planeamentos em folhas A3 exibe<br />
o projecto feito para o espaço<br />
paralelo ao Centro Colombo. “Dinheiro?!<br />
Não. Falta <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> e<br />
outros interesses económicos”.<br />
Assim justifica o arquitecto a<br />
suspensão <strong>do</strong> plano.<br />
Espaços esqueci<strong>do</strong>s<br />
As peque<strong>na</strong>s parcelas <strong>de</strong> terra<br />
cultivada repetem-se noutras<br />
freguesias <strong>do</strong> perímetro urbano<br />
<strong>de</strong> Lisboa. Pela Ama<strong>do</strong>ra, Damaia<br />
e Benfica passa a estrada<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
SUSANA TEODORO<br />
com o maior número <strong>de</strong> hortas<br />
<strong>na</strong> Europa – o IC19. A sul das urbanizações<br />
<strong>de</strong> Chelas e <strong>do</strong>s Olivais,<br />
o metropolitano circula<br />
no exterior e permite ver terras<br />
cultivadas ao longo <strong>do</strong>s vales.<br />
Nestas e noutras zo<strong>na</strong>s, os lavra<strong>do</strong>res<br />
são, no essencial, reforma<strong>do</strong>s<br />
ou imigrantes. Pessoas<br />
que se recusam a ficar o<br />
dia to<strong>do</strong> em casa ou cuja exploração<br />
agrícola é fundamental<br />
para ter o que pôr <strong>na</strong> mesa.<br />
Mas em Lisboa são hoje raros<br />
os exemplos <strong>de</strong> quem se <strong>de</strong>dica<br />
a esta activida<strong>de</strong> por uma questão<br />
<strong>de</strong> sobrevivência. As motivações<br />
pren<strong>de</strong>m-se maioritariamente<br />
com a distracção. “É<br />
para espairecer! A cama só traz<br />
<strong>do</strong>enças e a televisão farta”. É<br />
<strong>de</strong>sta forma que Maria Armandi<strong>na</strong><br />
Forte sintetiza os <strong>de</strong>zoito<br />
anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação ao pequeno<br />
espaço que cultiva no Bairro<br />
Padre Cruz (Carni<strong>de</strong>).<br />
Aponta para as várias parcelas<br />
referin<strong>do</strong> o nome <strong>de</strong> cada um<br />
<strong>do</strong>s cerca <strong>de</strong> vinte “proprietários”<br />
e mencio<strong>na</strong> ainda as pessoas<br />
que ven<strong>de</strong>m no merca<strong>do</strong><br />
da Pontinha. Esta bracarense<br />
não escon<strong>de</strong> que, durante<br />
alguns dias <strong>do</strong> ano passa<strong>do</strong>,<br />
tentou também “ven<strong>de</strong>r umas<br />
poucas <strong>de</strong> couves <strong>na</strong>s paragens<br />
<strong>do</strong>s autocarros”; o ganho único<br />
<strong>de</strong> <strong>do</strong>is euros fê-la <strong>de</strong>sistir. O<br />
gosto por “esgravatar no chão”,<br />
como <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>, é hoje media<strong>do</strong><br />
por um contrato <strong>de</strong> utilização<br />
estabeleci<strong>do</strong> entre os vários<br />
horticultores e o real proprietário<br />
<strong>do</strong>s terrenos, sen<strong>do</strong> renovável<br />
<strong>de</strong> seis em seis meses.<br />
Subsistência em risco?<br />
A cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XXI precisa<br />
<strong>do</strong> abastecimento em quantida<strong>de</strong>s<br />
suficientes <strong>de</strong> alimentos<br />
frescos e saudáveis; tal abastecimento<br />
é, para Ribeiro Telles,<br />
“incomportável se não existirem<br />
<strong>na</strong>s cida<strong>de</strong>s os espaços <strong>de</strong><br />
produção agrícola necessários”.<br />
Mas, nem com os eleva<strong>do</strong>s<br />
custos <strong>de</strong> transporte <strong>de</strong> produtos<br />
perecíveis que entram<br />
<strong>na</strong>s gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s as hortas<br />
intra-urba<strong>na</strong>s merecem a atenção<br />
<strong>do</strong>s órgãos locais, autárquicos<br />
e políticos. Estas são regulamentadas<br />
segun<strong>do</strong> contratos<br />
<strong>de</strong> utilização ou mediante burocracias<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>spejo. Deste último<br />
cenário são exemplo os<br />
espaços agrícolas da Ama<strong>do</strong>ra,<br />
nomeadamente <strong>do</strong> IC19.<br />
Em <strong>de</strong>clarações ao jor<strong>na</strong>l Público,<br />
o antigo verea<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s espaços<br />
ver<strong>de</strong>s da Câmara <strong>de</strong> Lisboa, Gabriel<br />
Alves, consi<strong>de</strong>ra i<strong>na</strong>dmissível<br />
a manutenção <strong>de</strong> hortas “até<br />
por razões <strong>de</strong> segurança e <strong>de</strong> legalida<strong>de</strong>”,<br />
ape<strong>na</strong>s aceitável “porque<br />
estamos em Portugal”.<br />
Acumulam-se os problemas <strong>de</strong><br />
organização <strong>de</strong> espaço no interior<br />
centro e <strong>na</strong>s periferias das cida<strong>de</strong>s.<br />
Para o arquitecto Gonçalo<br />
Ribeiro Telles “a subsistência <strong>po<strong>de</strong>r</strong>á,<br />
no futuro, conduzir a medidas<br />
drásticas <strong>de</strong> sobrevivência”.<br />
E, <strong>de</strong> forma retórica, acrescenta:<br />
“mas não será já tar<strong>de</strong>?”.
SUSANA SANTOS<br />
8ª COLINA I JUNHO 2006 SOCIEDADE 3<br />
CAMINHADAS URBANAS<br />
Numa rua<br />
perto <strong>de</strong> si<br />
ANA RITA HENRIQ<strong>UE</strong>S<br />
JOÃO GODINHO<br />
Na Rua <strong>do</strong>s Escritores não há<br />
escritores. Ninguém passa com<br />
caneta e papel <strong>na</strong> mão, não há<br />
tempo para a inspiração. A única<br />
inspiração que existe vem <strong>do</strong><br />
<strong>na</strong>riz e é precisa para manter a<br />
passada. Na Avenida da República,<br />
não se proclama <strong>na</strong>da das<br />
varandas, ape<strong>na</strong>s se per<strong>de</strong>m<br />
alguns olhares pela noite, não<br />
muito atentos ao que se passa<br />
cá em baixo <strong>na</strong> rua. Por fim, <strong>na</strong><br />
Avenida <strong>do</strong>s Descobrimentos, já<br />
não há <strong>na</strong>da para <strong>de</strong>scobrir pelos<br />
caminhantes que por aqui passam<br />
todas as noites e conhecem<br />
<strong>de</strong> cor estes passeios da Portela.<br />
Lur<strong>de</strong>s Andra<strong>de</strong> não corre para o<br />
sofá <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> jantar, veste as calças<br />
<strong>de</strong> lycra cinzentas e a t-shirt<br />
da “Corrida da Liberda<strong>de</strong>”, calça<br />
os ténis brancos e sai <strong>de</strong> casa todas<br />
as noites às nove em ponto. O<br />
ritual repete-se há quatro anos,<br />
<strong>de</strong> Verão ou <strong>de</strong> Inverno, sozinha<br />
ou acompanhada. “Eu fui a primeira.<br />
Fui eu que comecei aqui<br />
<strong>na</strong> Portela”, exclama Lur<strong>de</strong>s à velocida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> quem busca alguma<br />
coisa mas que só encontra o que<br />
quer nos passos que a <strong>de</strong>volvem<br />
a casa. Do baixo <strong>do</strong> seu metro e<br />
meio, Lur<strong>de</strong>s percorre 4,5 km em<br />
pouco menos <strong>de</strong> uma hora – 4 voltas<br />
ao percurso estabeleci<strong>do</strong>. O<br />
corpo franzino, o cabelo loiro apanha<strong>do</strong><br />
sem preocupação e o vigor<br />
da sua passada <strong>de</strong>ixam entrever<br />
os anos em que praticou atletismo.<br />
Aos 58 anos, o andar todas as<br />
noites foi a forma que encontrou<br />
<strong>de</strong> “não estar parada”.<br />
A tendência é recente, mas parece<br />
ter surgi<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> mais<br />
ou menos ao mesmo tempo. Andar<br />
tornou-se moda. De manhã, antes<br />
<strong>de</strong> ir para o trabalho, ou à noite,<br />
<strong>de</strong>pois <strong>do</strong> jantar, os vizinhos juntam-se<br />
para fazer caminhadas no<br />
seu bairro, quer seja <strong>na</strong> Portela,<br />
em Alfornelos, ou em Cacilhas.<br />
Neste <strong>de</strong>sporto, tu<strong>do</strong> é leva<strong>do</strong> a<br />
sério. Vestem-se a rigor: a roupa<br />
<strong>do</strong> dia-a-dia é <strong>de</strong>ixada em casa e<br />
os fatos <strong>de</strong> treino, as t-shirts e os<br />
ténis saem <strong>do</strong> armário.<br />
Lur<strong>de</strong>s sai to<strong>do</strong>s os dias, porque<br />
foi o que sempre fez, mas nem<br />
to<strong>do</strong>s têm motivações tão fortes<br />
como ela. “Às vezes estou à janela<br />
e até rezo para que chova”, con-<br />
“Ontem até <strong>de</strong>via ter<br />
da<strong>do</strong> mais uma volta<br />
por ter comi<strong>do</strong> um<br />
mil-folhas.”<br />
fessa Miraldi<strong>na</strong>, 62 anos, amiga<br />
<strong>de</strong> caminhada <strong>de</strong> Lur<strong>de</strong>s. O grupo<br />
costuma variar entre quatro e cinco<br />
vizinhas, que já sentem a obrigação<br />
moral <strong>de</strong> ir andar, para não<br />
faltarem ao “compromisso” que<br />
têm com as outras. Por cada caminhante<br />
um caminho diferente: uns<br />
andam por causa <strong>do</strong> coração, outros<br />
para estarem ocupa<strong>do</strong>s, para<br />
manter a linha, ou simplesmente<br />
“porque faz bem”. A activida<strong>de</strong> é<br />
levada com muito profissio<strong>na</strong>lis-<br />
Quis o <strong>de</strong>stino que duas jovens austríacas se <strong>de</strong>ixassem encantar<br />
pelo colori<strong>do</strong> histórico <strong>de</strong> Alfama e aí abrissem um<br />
café, ao fim <strong>de</strong> vários anos a viajar pela Europa. O nome ficou<br />
“Pois”, palavra que elas não sabem o que significa, mas que os<br />
portugueses não se cansam <strong>de</strong> dizer. Situa<strong>do</strong> <strong>na</strong> rua São João<br />
da Praça, o Pois, Café <strong>na</strong>sceu <strong>de</strong> uma constatação mais ou<br />
-<br />
CIA ESTÁ NAS RUAS. UM MISTO DE DESPORTO E DE CONVÍVIO JUNTA VIZINHOS E<br />
DESCONHECIDOS EM CAMINHADAS PELO BAIRRO DEPOIS DE JANTAR. CADA UM<br />
TEM OS SEUS MOTIVOS E CADA UM TEM OS SEUS CAMINHOS.<br />
mo. Mesmo que não se comece ao<br />
mesmo tempo, as quatro voltas diárias<br />
são impreterivelmente cumpridas,<br />
quer se acabe sozinho ou<br />
acompanha<strong>do</strong>. E os <strong>de</strong>slizes são<br />
menos óbiva: faltava a Lisboa um espaço assim.<br />
“Quan<strong>do</strong> começámos a trabalhar aqui, andávamos<br />
sempre à procura <strong>de</strong> um sítio agradável on<strong>de</strong> nos<br />
pudéssemos sentar durante o dia, ler alguma coisa,<br />
beber ape<strong>na</strong>s um copo. Mas o típico café ou<br />
s<strong>na</strong>ck-bar lisboeta tem pouco espaço, é to<strong>do</strong> em<br />
alumínio e em azulejo, e só se vêem pessoas ao<br />
balcão a comer à pressa”. Inconformadas, Barbara<br />
e Catherine não pensaram duas vezes: compraram<br />
um antigo armazém <strong>de</strong> especiarias (que<br />
também já foi um atelier <strong>de</strong> <strong>de</strong>sign <strong>de</strong> interiores)<br />
e criaram, elas próprias, o café que procuravam.<br />
Como resulta<strong>do</strong>, ficou um espaço on<strong>de</strong> as pessoas<br />
po<strong>de</strong>m usar os sofás para ler, as mesas para estudar,<br />
para encontros e reuniões <strong>de</strong> trabalho ou simplesmente<br />
para beber um copo. A <strong>de</strong>coração é à antiga, com mesas e<br />
ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira todas diferentes, compradas em segunda<br />
mão. Nas pare<strong>de</strong>s imensas, interligadas por belos arcos<br />
<strong>de</strong> pedra, po<strong>de</strong> ver-se a pintura serigráfica <strong>de</strong> Pedro Revez,<br />
sinónimo <strong>de</strong> penitência: “Ontem<br />
até <strong>de</strong>via ter da<strong>do</strong> mais uma volta<br />
por ter comi<strong>do</strong> um mil-folhas”,<br />
confi<strong>de</strong>ncia Miraldi<strong>na</strong>. Há quem<br />
marque local <strong>de</strong> encontro todas<br />
as noites, outros encontram-se<br />
pelas ruas e tomam como suas as<br />
calçadas já gastas. Pelos mesmos<br />
caminhos da Portela cruzam-se<br />
“caminhantes das nove da noite”,<br />
atletas a sério, <strong>de</strong> calções curtos,<br />
t-shirts suadas e cronómetro <strong>na</strong><br />
mão, praticantes <strong>de</strong> Tai Chi e joga<strong>do</strong>res<br />
<strong>de</strong> futebol.<br />
Normalmente, os caminhantes andam<br />
ligeiros, carregan<strong>do</strong> ape<strong>na</strong>s o<br />
peso das chaves <strong>de</strong> casa. Mas outros<br />
há que, para além disto, carregam<br />
o peso da cruz. Um grupo<br />
<strong>de</strong> senhoras concentra-se em frente<br />
à igreja. São conhecidas por to<strong>do</strong>s<br />
por rezarem o terço enquanto<br />
caminham. “A missão é rezar o<br />
terço em Maio”, mês em que saem<br />
todas as noites, mas “a missão<br />
continua sempre”, explica Teresa<br />
Silva, lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong> grupo <strong>do</strong> terço.<br />
Conhecem os outros mas não se<br />
distraem no caminho e tampouco<br />
se per<strong>de</strong>m em conversas.<br />
Os grupos <strong>de</strong> vizinhos da Portela<br />
cruzam-se. Cruzam os olhares<br />
mas as palavras, essas são<br />
breves, como se fossem presas<br />
aos pés apressa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> quem as<br />
diz. Um caminho feito a correr<br />
e que só tem como <strong>de</strong>stino chegar<br />
a casa e, no próximo dia,<br />
estar lá outra vez.<br />
UM ESPAÇO EM LISBOA<br />
Pois, Café:<br />
um bocadinho <strong>de</strong> Áustria em Alfama<br />
FILIPE TEIXEIRA<br />
São conhecidas por<br />
to<strong>do</strong>s por rezarem<br />
o terço enquanto<br />
caminham.<br />
amigo das proprietárias. No próximo mês, a <strong>de</strong>coração será<br />
entregue a outro artista, que po<strong>de</strong> muito bem ser um cliente<br />
cuja arte se i<strong>de</strong>ntifique com as pessoas que ali vão.<br />
O Pois, Café é um bocadinho <strong>de</strong> Áustria em Alfama, com a<br />
sua música ligeira e o seu ambiente familiar. Tem uma banca<br />
<strong>de</strong> jor<strong>na</strong>is e revistas i<strong>de</strong>al para se saber o que se passa no<br />
mun<strong>do</strong> e um cantinho com papel e tintas para os mais novos.<br />
Por to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> há livros que se po<strong>de</strong>m levar para casa <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
que se traga outro para trocar. “Começámos sobretu<strong>do</strong> com<br />
livros em holandês, que nos foram ofereci<strong>do</strong>s por uma amiga,<br />
mas agora também já temos em português, inglês e francês”,<br />
constata Barbara. Para comer há refeições ligeiras, tostas,<br />
sanduíches e saladas, que quase passam para segun<strong>do</strong> plano<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se provarem os <strong>do</strong>ces tipicamente austríacos.<br />
Singular é a fusão <strong>de</strong> culturas, representada pela lasagne <strong>de</strong><br />
bacalhau, um verda<strong>de</strong>iro sucesso. •<br />
Susa<strong>na</strong> Santos
4 SOCIEDADE<br />
RESIDÊNCIA FARIA MANTERO<br />
<br />
Pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cultura<br />
É NUMA CASA APALAÇADA NO RESTELO Q<strong>UE</strong> SETE MENTES-PRODÍGIO PARTILHAM ESPA-<br />
ÇOS E RECORDAÇÕES. PARA TRÁS ESTÁ UMA VIDA Q<strong>UE</strong> CONSTRUÍRAM COM TALENTO. A<br />
SOCIEDADE PORTUG<strong>UE</strong>SA CONHECE-OS BEM.<br />
TÂNIA REIS ALVES<br />
O busto <strong>de</strong> Enrique Mantero<br />
Belard ergue-se subtil no amplo<br />
jardim das traseiras da<br />
casa. As feições são discretas,<br />
compenetradas, misteriosas.<br />
O homem observa a sua obra,<br />
recorda as vidas que a fizeram<br />
crescer, o sentimento que a<br />
alimentou: a história da casa é<br />
uma história <strong>de</strong> amor.<br />
Dentro daquela Residência,<br />
para on<strong>de</strong> foge o olhar <strong>do</strong> antigo<br />
<strong>do</strong>no, e que hoje pertence<br />
à Santa Casa da Misericórdia,<br />
respira-se cultura. No interior<br />
daquelas quatro pare<strong>de</strong>s e nos<br />
jardins que as circundam passeiam-se<br />
António Ramos Rosa,<br />
José Barata Moura, Maria Keil,<br />
Herberto Miranda, Falcão Sincer<br />
e Manuela Margari<strong>do</strong>.<br />
Foram chegan<strong>do</strong> aos poucos,<br />
empurra<strong>do</strong>s por uma vida que<br />
já não lhes pertencia completamente<br />
e é ali, <strong>na</strong>quela casa<br />
apalaçada, que vivem imersos<br />
no mar das suas recordações:<br />
a Residência Faria Mantero<br />
<strong>de</strong>sti<strong>na</strong>-se a acolher i<strong>do</strong>sos<br />
que se <strong>de</strong>stacaram no campo<br />
da cultura mas sem condições<br />
para se manter sozinhos.<br />
A pintora<br />
“O espaço é horrível. Isto é tu<strong>do</strong><br />
feio, é um absur<strong>do</strong> idiota, terrível,<br />
uma monstruosida<strong>de</strong>.”,<br />
<strong>de</strong>clara Maria Keil, pintora,<br />
ilustra<strong>do</strong>ra, ceramista e outrora<br />
esposa <strong>do</strong> arquitecto Keil <strong>do</strong><br />
Amaral, quan<strong>do</strong> lhe perguntam<br />
se gosta da casa. “A casa estáme<br />
larga”, conclui. De facto, a<br />
TÂNIA REIS ALVES<br />
Faria Mantero, assim chamada<br />
por ter pertenci<strong>do</strong> a Gertru<strong>de</strong>s<br />
Verda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Faria e a Enrique<br />
Mantero Belard, não foi concebida<br />
para ser habitada, mas<br />
antes como um local <strong>de</strong> recepção<br />
e convívio. O enorme salão<br />
é disso exemplo. O tecto altíssimo,<br />
a lareira <strong>do</strong> tamanho <strong>de</strong><br />
um homem, os sofás <strong>de</strong> velu<strong>do</strong>,<br />
os móveis <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira maciça e<br />
os retratos <strong>do</strong>s antigos <strong>do</strong>nos da<br />
casa pinta<strong>do</strong>s por Barata Moura<br />
lembram-nos a to<strong>do</strong> o momento<br />
que estamos numa casa rica. Ali<br />
não é difícil imagi<strong>na</strong>r damas<br />
envergan<strong>do</strong> vesti<strong>do</strong>s compri<strong>do</strong>s<br />
e cavalheiros <strong>de</strong> cartola, ro<strong>do</strong>pian<strong>do</strong><br />
ao som <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s arran-<br />
ca<strong>do</strong>s ao piano <strong>de</strong> cauda.<br />
Ao contrário da maioria <strong>do</strong>s resi<strong>de</strong>ntes,<br />
Maria Keil não passa<br />
muito tempo no antigo salão<br />
<strong>de</strong> baile, on<strong>de</strong> o pequeno ecrã<br />
é agora protagonista. Diz que a<br />
televisão é um veneno que acaba<br />
com as pessoas e toma conta<br />
<strong>de</strong>las. “Ela enche as horas e<br />
António Ramos Rosa<br />
é “O Poeta”. Não vive<br />
neste mun<strong>do</strong>, não<br />
consi<strong>de</strong>ra aquela casa<br />
a sua casa. Na verda<strong>de</strong>,<br />
não é lá que vive.<br />
<br />
TÂNIA REIS ALVES<br />
os minutos e limita o convívio<br />
<strong>de</strong>ntro da casa”, diz. Do alto <strong>do</strong>s<br />
seus 91 anos e com uma luci<strong>de</strong>z<br />
e senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> humor <strong>de</strong>sconcertantes,<br />
Maria Keil recusa-se a<br />
fazer da Residência o centro<br />
<strong>do</strong>s seus dias. O estira<strong>do</strong>r ainda<br />
faz parte da mobília <strong>do</strong> seu<br />
quarto e o passe social e o táxi<br />
levam-<strong>na</strong> às exposições que não<br />
se cansa <strong>de</strong> ver e ao ateliê que<br />
mantém no Bairro Alto.<br />
Nem sempre assim foi. Maria<br />
Keil está há <strong>do</strong>is anos <strong>na</strong> Faria<br />
Mantero. Chegou após a morte<br />
da escritora Olga Gonçalves,<br />
quan<strong>do</strong> caiu à cama por ter toma<strong>do</strong><br />
medicamentos sem prescrição<br />
médica. Não veio por iniciativa<br />
própria, mas trazida por<br />
amigos que ven<strong>do</strong> o seu esta<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> apresentaram a sua<br />
candidatura à direcção da Residência.<br />
Os primeiros tempos<br />
foram complica<strong>do</strong>s. A pintora,<br />
que numa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> relativização<br />
constante <strong>do</strong> seu trabalho<br />
recusa o título <strong>de</strong> “meni<strong>na</strong><br />
<strong>do</strong>s azulejos”, não se conseguia<br />
adaptar à nova casa, sentia-se<br />
sozinha, presa. “Aqui <strong>de</strong>ntro<br />
não há <strong>na</strong>da para fazer. Então<br />
quan<strong>do</strong> cheguei fui lá para fora<br />
apanhar ar e <strong>de</strong>senhar. Desenhei<br />
as árvores todas <strong>do</strong> jardim,<br />
mas com olhos. A necessida<strong>de</strong><br />
que tinha <strong>de</strong> ir lá para fora<br />
era <strong>de</strong> estar livre, fazer parte <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>”, lembra.<br />
O jor<strong>na</strong>lista<br />
A sala <strong>de</strong> jogos é o <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong><br />
Falcão Sincer, 80 anos. Ilumi<strong>na</strong>da<br />
por uma luz amarelada que foge<br />
<strong>de</strong> <strong>do</strong>is can<strong>de</strong>eiros <strong>de</strong> pé e faz sobressair<br />
o teci<strong>do</strong> rico das pare<strong>de</strong>s,<br />
está uma peque<strong>na</strong> mesa re<strong>do</strong>nda<br />
carregada com os livros e os jor<strong>na</strong>is<br />
que sempre fizeram parte<br />
da vida daquele homem. É sobre<br />
eles que os seus olhos repousam<br />
durante gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong> dia.<br />
Falcão Sincer chegou à Faria<br />
Mantero, quan<strong>do</strong>, <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>,<br />
regressou <strong>do</strong>s Açores, on<strong>de</strong><br />
trabalhou como jor<strong>na</strong>lista <strong>na</strong><br />
imprensa regio<strong>na</strong>l. As dificulda<strong>de</strong>s<br />
económicas, que o levaram a<br />
ven<strong>de</strong>r o apartamento e gran<strong>de</strong><br />
parte da biblioteca, guiaram-no<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
até ali numa altura em que a<br />
casa funcio<strong>na</strong>va ape<strong>na</strong>s como<br />
Centro <strong>de</strong> Dia para a terceira ida<strong>de</strong>.<br />
Foi o primeiro a chegar, após<br />
a sobrinha <strong>de</strong> Enrique Mantero<br />
ter ameaça<strong>do</strong> processar a Santa<br />
Casa da Misericórdia por esta<br />
não respeitar a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> tio:<br />
a casa <strong>de</strong>via acolher i<strong>do</strong>sos com<br />
mérito cultural mas sem condições<br />
para se manter.<br />
O ex-jor<strong>na</strong>lista sabe <strong>de</strong> cor a história<br />
<strong>de</strong> amor daquela casa tal<br />
como, enquanto monárquico que<br />
é, consegue enumerar sem pausas<br />
reis e di<strong>na</strong>stias. A sua vasta<br />
cultura vastíssima é fruto <strong>de</strong> uma<br />
A tristeza por viver<br />
numa casa da<br />
Misericórdia não<br />
<strong>de</strong>sapareceu ao fim <strong>de</strong><br />
nove anos <strong>de</strong> estada.<br />
constante curiosida<strong>de</strong> que nos<br />
primeiros tempos <strong>de</strong> resi<strong>de</strong>nte<br />
alimentou com as tar<strong>de</strong>s passadas<br />
em exposições e bibliotecas.<br />
“Antigamente saía <strong>de</strong> manhã e<br />
ia para a Torre <strong>de</strong> Belém e à tar<strong>de</strong><br />
ou ia a um concerto ou a uma<br />
exposição ou a uma biblioteca.<br />
Só regressava quase à hora <strong>do</strong><br />
jantar”, diz ao mesmo tempo que<br />
passa a mão pela barba branca.<br />
Hoje, <strong>de</strong>bilita<strong>do</strong> por uma queda,<br />
resume as suas saída aos jardins<br />
da casa, on<strong>de</strong>, tal como to<strong>do</strong>s os<br />
resi<strong>de</strong>ntes, gosta <strong>de</strong> se sentar a<br />
apanhar sol. O essencial <strong>do</strong>s seus<br />
dias é, no entanto, passsa<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />
sala <strong>de</strong> jogos, on<strong>de</strong> ao som altíssimo<br />
<strong>do</strong> noticiário algumas utentes<br />
<strong>do</strong> Centro <strong>de</strong> Dia passam as tar<strong>de</strong>s<br />
contan<strong>do</strong> os pontos da ca<strong>na</strong>sta.<br />
“Sou trata<strong>do</strong> com carinho, tenho<br />
uma boa casa, um bom jardim,<br />
mas gostava muito da minha autonomia<br />
e perdi-a. Tenho muitas<br />
sauda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lismo”, diz. A<br />
tristeza por viver numa casa da<br />
Misericórdia não <strong>de</strong>sapareceu ao<br />
fim <strong>de</strong> nove anos <strong>de</strong> estada.<br />
O engenheiro<br />
Herberto Miranda é o prático<br />
da casa. Tem 93 anos, quase 94,<br />
como faz questão <strong>de</strong> dizer, e <strong>de</strong>dicou<br />
toda a vida à engenharia.<br />
Hoje, é o reitor da Universida<strong>de</strong><br />
Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l para a Terceira<br />
Ida<strong>de</strong> (UITI) e é para lá que parte<br />
todas as manhãs, só regressan<strong>do</strong><br />
para almoçar e, <strong>de</strong>pois,<br />
ao fim da tar<strong>de</strong>. É a prova viva<br />
daquilo que afirma constantemente:<br />
“Eu acho que a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
reforma não <strong>de</strong>via ser estabelecida<br />
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a ida<strong>de</strong> real<br />
da pessoa mas com a ida<strong>de</strong> mental,<br />
com as suas capacida<strong>de</strong>s.”<br />
Herberto Miranda mantém<br />
uma constante boa disposição.<br />
Diz que não vai <strong>de</strong> férias porque<br />
<strong>na</strong>quela casa é mais bem<br />
trata<strong>do</strong> que em qualquer hotel<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A verda<strong>de</strong> é que o<br />
trabalho não lhe <strong>de</strong>ixa muito<br />
tempo livre: no quarto tem uma<br />
máqui<strong>na</strong> <strong>de</strong> escrever que lhe<br />
permite continuar os afazeres<br />
que não conclui <strong>na</strong> UITI e que
8ª COLINA I JUNHO 2006 SOCIEDADE 5<br />
o ajuda a preencher os momentos<br />
mortos <strong>de</strong> uma casa habitada<br />
por resi<strong>de</strong>ntes especiais.<br />
“Há aqui uma <strong>de</strong>formação <strong>de</strong><br />
separação. Estamos a falar <strong>de</strong><br />
pessoas que se encontraram no<br />
fi<strong>na</strong>l da sua vida e que tiveram<br />
profissões muito diferentes. To<strong>do</strong>s<br />
temos alta especialização,<br />
mas se nos pomos a falar disso<br />
os outros não po<strong>de</strong>m acompanhar.<br />
Quan<strong>do</strong> saímos <strong>do</strong> que a<br />
comunicação social está a dar<br />
não temos uma conversa contínua.”<br />
Mesmo assim, Herberto<br />
Miranda mostra-se feliz com a<br />
casa que escolheu para viver<br />
e que foi <strong>do</strong>ada por Henrique<br />
Mantero à Gulbenkian, que não<br />
a po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> manter a <strong>de</strong>u à Misericórdia.<br />
Candidatou-se numa<br />
altura em que a mulher a<strong>do</strong>eceu,<br />
buscan<strong>do</strong> ajuda para cuidar<br />
<strong>de</strong>la. Quan<strong>do</strong> entrou para<br />
a casa, três meses <strong>de</strong>pois, já a<br />
mulher tinha faleci<strong>do</strong>.<br />
O Poeta<br />
“O poeta está no quarto”, “Aqui<br />
está o almoço <strong>do</strong> poeta”, dizem as<br />
funcionárias da Faria Mantero<br />
quan<strong>do</strong> se referem ao inquilino<br />
<strong>do</strong> maior quarto da casa. António<br />
Ramos Rosa é “o Poeta”. Não vive<br />
neste mun<strong>do</strong>, não consi<strong>de</strong>ra aquela<br />
casa a sua casa. Na verda<strong>de</strong>,<br />
não é lá que vive. Não habita em<br />
parte nenhuma. O seu universo é<br />
o das i<strong>de</strong>ias que imortaliza em forma<br />
<strong>de</strong> poema. Às vezes <strong>de</strong>ixa-se<br />
fasci<strong>na</strong>r pelas coisas comezinhas,<br />
filosofa sobre elas, cita versos<br />
<strong>de</strong> Pessoa que lhe parecem vir a<br />
propósito. Outras, ignora-as, passa-lhes<br />
por cima, como se a vida<br />
lhe escapasse por entre os <strong>de</strong><strong>do</strong>s<br />
e ele tivesse <strong>de</strong> correr para tocar<br />
a sua essência. A sua vida é a <strong>do</strong><br />
poeta. Foi poeta que escolheu ser<br />
quan<strong>do</strong> aban<strong>do</strong>nou as traduções,<br />
os ensaios e as explicações <strong>de</strong> línguas<br />
para viver unicamente para<br />
a poesia e da poesia, enfrentan<strong>do</strong><br />
até hoje as consequências <strong>de</strong>ssa<br />
escolha. É poeta que é quan<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> várias línguas se amontoam,<br />
juntamente com os <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong><br />
traços simples com que presenteia<br />
amigos e visitantes. Falcão<br />
Sincer diz que aquele quarto é a<br />
torre <strong>de</strong> marfim <strong>de</strong> Ramos Rosa.<br />
Mas os 82 anos e as consequentes<br />
dificulda<strong>de</strong>s em locomover-se não<br />
obrigam Ramos Rosa a uma existência<br />
<strong>de</strong> clausura: quase to<strong>do</strong>s os<br />
dias a seguir ao almoço aban<strong>do</strong><strong>na</strong><br />
a casa com <strong>de</strong>stino a um café<br />
das re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>zas. Ao fim da tar<strong>de</strong>,<br />
quan<strong>do</strong> regressa <strong>de</strong> saco carrega<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> livros, senta-se a ler no<br />
jardim. Continua a escrever, escreve<br />
sempre, muitas vezes pela<br />
noite <strong>de</strong>ntro. “Não escrevo como<br />
Assim que a vê, o exjor<strong>na</strong>lista<br />
esquece a<br />
bengala que nunca<br />
<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> o acompanhar<br />
e corre até à amiga.<br />
Maria Keil segue-lhe<br />
os passos e os três<br />
abraçam-se, sorriem,<br />
dão pulos <strong>de</strong> alegria<br />
escrevia antigamente, a inspiração<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da nossa energia e a<br />
minha energia já não é a mesma”,<br />
diz. Quan<strong>do</strong> lhe pe<strong>de</strong>m para ler<br />
um poema sobre a casa que escreveu<br />
anteriormente diz não enten<strong>de</strong>r<br />
a própria letra, mas oferece-se<br />
prontamente para escrever outro.<br />
Pega <strong>na</strong> caneta, folha em branco e<br />
o mun<strong>do</strong> apaga-se. Só existem as<br />
palavras. Nesta casa, que é um<br />
acor<strong>de</strong> musical <strong>de</strong> espaços / propícios<br />
para o repouso e o silêncio<br />
/ (…) / em que o sol ver<strong>de</strong> transparece<br />
como uma folha ou como<br />
um poeta / <strong>na</strong>da é fantasia, tu<strong>do</strong><br />
tem a pureza <strong>do</strong> real / e <strong>do</strong> ser que<br />
o tor<strong>na</strong> visível.<br />
Segre<strong>do</strong>s <strong>de</strong> cultura<br />
“O mais difícil é o relacio<strong>na</strong>mento<br />
inter-pessoal. Os resi<strong>de</strong>ntes<br />
PRÉMIOS NUNES CORRÊA VERDADES DE FARIA<br />
A <strong>do</strong>ação da sua casa no Restelo<br />
não foi o único acto <strong>de</strong> benemérito<br />
<strong>de</strong> Enrique Mantero<br />
Belard. No seu testamento<br />
foram também contempladas<br />
a Cruz Vermelha Portuguesa,<br />
a Santa Casa da Misericórdia, a<br />
Câmara Municipal <strong>de</strong> Cascais,<br />
o Esta<strong>do</strong>, amigos, familiares<br />
e emprega<strong>do</strong>s. No entanto, a<br />
maior origi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste generoso<br />
testamento são os prémios<br />
Nunes Corrêa Verda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> Faria. Estes galardões, atribuí<strong>do</strong>s<br />
anualmente pela Santa<br />
Casa da Misericórdia, são mais<br />
estabelece com os seus interlocutores<br />
o <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong><strong>do</strong>r comum da<br />
poesia. É poeta que é <strong>na</strong> forma <strong>de</strong><br />
habitar aquela residência.<br />
As horas <strong>na</strong> casa passa-as no seu<br />
quarto, senta<strong>do</strong> frente a uma mesa<br />
re<strong>do</strong>nda on<strong>de</strong> livros e dicionários<br />
uma das provas da preocupação<br />
<strong>de</strong> Enrique Belard com a<br />
terceira ida<strong>de</strong>.<br />
Sen<strong>do</strong> atribuí<strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1987,<br />
eles distinguem as pessoas<br />
que em Portugal se <strong>de</strong>staquem<br />
no “cuida<strong>do</strong> e carinho<br />
presta<strong>do</strong> aos velhos <strong>de</strong>sprotegi<strong>do</strong>s”,<br />
no “progresso da<br />
medici<strong>na</strong> <strong>na</strong> sua aplicação às<br />
pessoas i<strong>do</strong>sas” e que tenham<br />
contribuí<strong>do</strong> para o “progresso<br />
no tratamento <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças <strong>do</strong><br />
coração” (tanto Enrique Belard<br />
como a esposa morreram<br />
<strong>de</strong> <strong>do</strong>ença cardíaca).<br />
têm um grau <strong>de</strong> cultura eleva<strong>do</strong>,<br />
vivências muito diferentes, uns<br />
ainda estão mais ou menos no<br />
activo, outros já são pura e simplesmente<br />
resi<strong>de</strong>ntes e isso gera<br />
algumas intrigas entre eles.”,<br />
conta a D. Leonor, uma das au-<br />
xiliares da Faria Mantero.<br />
Barata Moura, que se recusa a<br />
dar entrevistas por a última <strong>de</strong>las<br />
ter leva<strong>do</strong> até si uma falsa filha,<br />
diz que as discussões sobre<br />
pintura com Maria Keil fazem<br />
parte <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. “Conversase<br />
pouco, as conversas não dão<br />
muitos frutos, porque são visões<br />
muito diferentes da pintura”, explica<br />
a ilustra<strong>do</strong>ra, que com Falcão<br />
Sincer protagoniza outra das<br />
discussões da casa: o ex jor<strong>na</strong>lista<br />
admira-lhe a arquitectura e<br />
fala sobre todas as suas influências,<br />
Maria Keil <strong>de</strong>spreza-a.<br />
Adília Sentieiro, directora da<br />
Faria Mantero, é a maior <strong>de</strong>positária<br />
<strong>do</strong>s segre<strong>do</strong>s encerra<strong>do</strong>s<br />
<strong>na</strong>quelas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cultura.<br />
Tem uma paciência infinita e é<br />
com um sorriso nos lábios que<br />
conta o episódio <strong>do</strong> resi<strong>de</strong>nte<br />
que se dirige a ela para se queixar<br />
da utente <strong>do</strong> centro <strong>de</strong> dia<br />
que se sentou no seu sofá ou o<br />
da senhora que durante a refeição<br />
insere o <strong>de</strong><strong>do</strong> no pudim <strong>de</strong><br />
outro resi<strong>de</strong>nte ou que se distrai<br />
a enrolar bolinhas <strong>de</strong> pão que<br />
faz voar até ao prato da sopa <strong>de</strong><br />
alguém próximo. A directora<br />
acredita que as rivalida<strong>de</strong>s que<br />
existem entre alguns <strong>de</strong>stes resi<strong>de</strong>ntes-prodígio<br />
<strong>po<strong>de</strong>r</strong>iam ser<br />
diminuídas se a casa pu<strong>de</strong>sse<br />
acolher mais gente. Não po<strong>de</strong> e<br />
por isso são já <strong>do</strong>ze os currículos<br />
e as candidaturas para entrada<br />
<strong>na</strong> casa que tem para avaliar.<br />
Rivalida<strong>de</strong>s à parte, esta casa<br />
não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser a personificação<br />
<strong>de</strong> uma história <strong>de</strong> amor<br />
que continuou para além da<br />
morte. Foi habitada por Enrique<br />
Mantero Belard, homem<br />
<strong>de</strong> negócios, rígi<strong>do</strong>, sem gran<strong>de</strong><br />
talento para as relações huma<strong>na</strong>s,<br />
mas que se cruzou com<br />
Gertru<strong>de</strong>s Verda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Faria,<br />
mulher sensível, ligada às artes<br />
e aos artistas. Casaram e por<br />
influência da esposa Enrique<br />
Belard <strong>de</strong>pressa compreen<strong>de</strong>u<br />
o valor da arte. Quan<strong>do</strong> Gertru<strong>de</strong>s<br />
morre, o mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> Enrique<br />
<strong>de</strong>sfaz-se, mas <strong>do</strong>is anos <strong>de</strong>pois<br />
começa a recompor-se e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />
realizar-lhe todas as vonta<strong>de</strong>s.<br />
No seu testamento está expresso<br />
um <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sejos da<br />
mulher: a residência <strong>do</strong> casal<br />
no Restelo serviria <strong>de</strong> casa a artistas<br />
i<strong>do</strong>sos e <strong>de</strong>sprotegi<strong>do</strong>s.<br />
Manuela Margari<strong>do</strong>, ex-embaixa<strong>do</strong>ra<br />
<strong>de</strong> Moçambique, é uma<br />
<strong>de</strong>ssas i<strong>do</strong>sas. Regressa a casa<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> duas sema<strong>na</strong>s<br />
<strong>de</strong> ausência. Volta <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois<br />
da hora <strong>do</strong> lanche, com a<br />
casa tão sossegada como <strong>de</strong> costume.<br />
Avança calmamente pela<br />
gran<strong>de</strong> galeria com vista para<br />
um <strong>do</strong>s jardins. Abre a porta da<br />
sala <strong>de</strong> jogos, on<strong>de</strong> se encontram<br />
Falcão Sincer e Maria Keil. Assim<br />
que a vê, o ex-jor<strong>na</strong>lista esquece<br />
a bengala que nunca <strong>de</strong>ixa<br />
<strong>de</strong> o acompanhar e corre até<br />
à amiga. Maria Keil segue-lhe<br />
os passos e os três abraçam-se,<br />
sorriem, dão pulos <strong>de</strong> alegria. D.<br />
Leonor assiste, <strong>de</strong> lágrimas nos<br />
olhos. A história da casa é uma<br />
história <strong>de</strong> amor.<br />
<br />
TOPONÍMIA<br />
Rua da Betesga<br />
Limitada por duas praças – Praça da Figueira e Praça D. Pedro IV -,<br />
a rua da Betesga faz parte das freguesia <strong>de</strong> São Nicolau e <strong>de</strong> Santa<br />
Justa. É também esta a rua que <strong>de</strong>limita a Baixa Pombali<strong>na</strong>, a norte.<br />
A rua da Betesga é um <strong>do</strong>s sítios <strong>de</strong> Lisboa com a mais antiga <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>ção<br />
<strong>de</strong> que há notícia. O local é referi<strong>do</strong> em <strong>do</strong>cumentos anteriores<br />
ao ano <strong>de</strong> 1551.<br />
A rua é assim <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>da por ser muito estreita, mas o facto <strong>de</strong> Betesga<br />
significar “rua estreita” constitui uma redundância: traduzi<strong>do</strong> à<br />
letra, o nome <strong>de</strong>ste lugar é “rua da rua estreita”. Como tal, há quem<br />
admita que, antes <strong>do</strong> terramoto <strong>de</strong> 1755, houvesse, no local, uma outra<br />
rua <strong>de</strong>ntro da rua principal chamada simplesmente <strong>de</strong> Betesga.<br />
Em 1902 o jor<strong>na</strong>l “O Popular” fez referência ao facto <strong>de</strong> ter si<strong>do</strong><br />
restituída à rua a sua <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>ção origi<strong>na</strong>l. Até esse momento,<br />
foi chamada <strong>de</strong> Bitesga. •<br />
•<br />
•<br />
SABIA Q<strong>UE</strong>...<br />
TÂNIA REIS ALVES<br />
A expressão “meter o Rossio <strong>na</strong> Betesga” advém da diferença entre<br />
a extensão da Praça <strong>do</strong> Rossio e a estreiteza da Rua da Betesga?<br />
O primeiro teatro <strong>de</strong> Lisboa era um pátio que existia entre a<br />
Rua da Betesga e a Rua <strong>do</strong>s Fanqueiros, on<strong>de</strong> as pessoas assistiam<br />
às peças das janelas <strong>de</strong> suas casas?<br />
Sílvia Dias<br />
NAZARET NASCIMENTO
6 SOCIEDADE<br />
RED SKINS<br />
“Sou um<br />
refugia<strong>do</strong><br />
político”<br />
<br />
<br />
TEVE PISTOLAS DENTRO DA BOCA. É COORDENADOR DA RASH UNIDA GALIZA-PORTU-<br />
<br />
<br />
É PERSEGUIDO PELOS NEO-NAZIS.<br />
SUSANA SANTOS<br />
Paulitus caminha sem pressa pelas<br />
ruas da cida<strong>de</strong> tranquila. Traja<br />
um blusão e umas botas à militar,<br />
apesar <strong>do</strong> calor. O pescoço distendi<strong>do</strong>,<br />
o sorriso suspenso, toda a linha<br />
firme <strong>do</strong> seu corpo, espadaú<strong>do</strong>,<br />
possante. Arrasta os pés, mas sem<br />
<strong>de</strong>sânimo. Pesa-lhe nos olhos o<br />
<strong>de</strong>nso rescal<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma noite liberti<strong>na</strong><br />
e vaga.<br />
Ao virar <strong>de</strong> cada esqui<strong>na</strong>, o sorriso<br />
alarga-se, a mão esten<strong>de</strong>-se para<br />
cumprimentar quem passa, numa<br />
troca <strong>de</strong> palavras sere<strong>na</strong> e prazenteira.<br />
Combi<strong>na</strong>m-se “uns copos”<br />
e uma ida ao futebol. Quem o vê<br />
assim, passean<strong>do</strong> tranquilamente<br />
pela cida<strong>de</strong>, não imagi<strong>na</strong> que Paulitus,<br />
35 anos, segurança numa fábrica,<br />
é persegui<strong>do</strong> por boneheads<br />
(skinheads neo-<strong>na</strong>zis) há anos.<br />
À primeira vista, <strong>na</strong>da o distingue<br />
daqueles a quem chama “o inimigo”:<br />
a mesma cor <strong>de</strong> pele, a mesma<br />
ausência <strong>de</strong> cabelo, o mesmo estilo<br />
<strong>de</strong> calça arregaçada, o mesmo ar<br />
rebel<strong>de</strong>. Mas um olhar atento facilmente<br />
<strong>de</strong>scobre indícios <strong>de</strong> outra<br />
i<strong>de</strong>ologia: as botas <strong>de</strong> cano alto têm<br />
ataca<strong>do</strong>res vermelhos e o blusão<br />
escon<strong>de</strong> a foice e o martelo estam-<br />
pa<strong>do</strong>s <strong>na</strong> t-shirt que traz vestida.<br />
Num crachá preso ao peito, letras<br />
amarelas sobre fun<strong>do</strong> vermelho<br />
formam a palavra “redskin” (‘careca’<br />
vermelho). De gran<strong>de</strong>s olhos<br />
castanhos, com longas patilhas cobrin<strong>do</strong>-lhe<br />
parte das faces, Paulitus<br />
acumula a condição <strong>de</strong> militante<br />
<strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista Português<br />
(PCP) com a <strong>de</strong> coor<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong>r da<br />
RASH (Red & A<strong>na</strong>rchist SkinHeads)<br />
Unida Galiza-Portugal, secção<br />
luso-galega <strong>de</strong> uma organização<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> skinheads a<strong>na</strong>rquistas<br />
e <strong>de</strong> esquerda. É skinhead<br />
e é comunista. Gosta <strong>de</strong> futebol e<br />
<strong>de</strong> música ska. Usa suspensórios e<br />
“A RASH-São Paulo tem<br />
cerca <strong>de</strong> 150 pessoas,<br />
das quais 85% são<br />
mulheres”<br />
t-shirts <strong>de</strong> Lenine. Rapa o cabelo e<br />
chorou a morte <strong>de</strong> Álvaro Cunhal.<br />
A crescente i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong>s ‘cabeças<br />
rapadas’ com a extrema-direita<br />
levou outros a<strong>de</strong>ptos da cultura<br />
skinhead a organizarem-se para <strong>de</strong>monstrar<br />
que po<strong>de</strong> ser-se skin sem<br />
se ser racista ou partidário <strong>do</strong> <strong>na</strong>zismo.<br />
Na realida<strong>de</strong>, “os verda<strong>de</strong>iros<br />
skinheads não têm preconceitos<br />
raciais, até porque o movimento<br />
<strong>na</strong>sceu <strong>de</strong> uma fusão <strong>de</strong> culturas entre<br />
imigrantes negros jamaicanos e<br />
operários brancos <strong>do</strong>s subúrbios <strong>de</strong><br />
Londres”.<br />
Fundada em 1993, em Nova Iorque,<br />
a RASH é hoje constituída<br />
por 126 secções, dispersas por 66<br />
países da América, Europa e Ásia.<br />
Contra o fascismo, o capitalismo,<br />
o Esta<strong>do</strong>, a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classes,<br />
a exploração <strong>do</strong> homem pelo homem<br />
e o preconceito em todas as<br />
suas formas, propõem-se “repor a<br />
verda<strong>de</strong> acerca da cultura skin”,<br />
retoman<strong>do</strong> a sua “origem proletária<br />
e multi-étnica”. O anti-racismo<br />
vem por arrasto. “Obviamente,<br />
não po<strong>de</strong>mos aceitar que pessoas<br />
maltratem outras ape<strong>na</strong>s pela cor<br />
da pele. Combateremos sempre<br />
to<strong>do</strong> e qualquer indivíduo, grupo<br />
ou instituição que perfilhe, explicitamente<br />
ou não, essa atitu<strong>de</strong>”.<br />
Uns franceses<br />
“muito estranhos”<br />
Paulitus não esquece o dia em que<br />
se tornou redskin. “Foi há 20 anos.<br />
Eu era punk e conheci um grupo<br />
<strong>de</strong> franceses muito estranho, que<br />
apareceu num Fiat Punto rouba<strong>do</strong>.<br />
Eram quatro ou cinco tipos, muito<br />
limpos, <strong>de</strong> botas impecáveis e tshirts<br />
com gran<strong>de</strong>s foices e martelos”.<br />
Um prodígio <strong>de</strong> imagem e <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ias. Curioso, não pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />
meter conversa. Não fumava, mas<br />
foi-lhes pedir um cigarro.<br />
“Eu já era músico, era baterista em<br />
bandas <strong>de</strong> metal e punk, mas andava<br />
sempre sozinho”. Não tinha ninguém<br />
com quem se i<strong>de</strong>ntificasse,<br />
ele próprio um a<strong>do</strong>lescente em luta<br />
aberta contra o mun<strong>do</strong>. Andava vesti<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> uma forma estranha e veio a<br />
<strong>de</strong>scobrir que se vestia exactamente<br />
como eles: a t-shirt com a foice e<br />
“Telefo<strong>na</strong>vam para a<br />
minha mãe às seis da<br />
manhã e chamavam-lhe<br />
puta bolchevique”<br />
o martelo, os blusões <strong>de</strong> ganga a que<br />
se rasgavam as mangas e em que se<br />
cosiam emblemas <strong>na</strong>s costas. “Eu<br />
metia símbolos ‘red’ sem saber o<br />
que era. Na altura, ainda não havia<br />
Internet. Nunca tinha sequer ouvi<strong>do</strong><br />
falar em redskins”.<br />
Em pouco tempo, ficou a saber que<br />
um <strong>de</strong>les tocava <strong>na</strong> banda Mano Negra,<br />
um grupo <strong>de</strong> culto <strong>do</strong>s redskins<br />
franceses <strong>de</strong> on<strong>de</strong> veio a sair o músico<br />
Manu Chau. Emprestaram-lhe<br />
“uns sons” e ficou “completamente<br />
fasci<strong>na</strong><strong>do</strong>”. “Um colega meu, que<br />
era baixista da minha banda, tinha<br />
uma garagem on<strong>de</strong> costumávamos<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
ensaiar, mesmo ao la<strong>do</strong> da garagem<br />
<strong>do</strong> Kalú, <strong>do</strong>s Xutos e Pontapés, on<strong>de</strong><br />
também ensaiávamos <strong>de</strong> vez em<br />
quan<strong>do</strong>. Fizémos uma jam session<br />
e, pela música, fomos fican<strong>do</strong> amigos”.<br />
No Verão seguinte, o estranho<br />
grupo <strong>de</strong> franceses regressou a Portugal<br />
e trouxe, para oferecer a Paulitus,<br />
o simbólico crachá que traz<br />
preso ao blusão e que ainda hoje<br />
guarda “religiosamente”.<br />
Durante <strong>de</strong>z anos esteve sozinho<br />
em Portugal. “Não havia mais ninguém<br />
como eu, cheguei a pensar<br />
que era anormal!” Mas era possível<br />
que mais alguém fosse diferente. Foi<br />
durante um concerto, numa passagem<br />
<strong>de</strong> ano em Linda-a-Velha, que<br />
o vocalista <strong>do</strong>s Crise Total lhe veio<br />
dizer: “Paulitus, há mais um red!<br />
Um tipo <strong>do</strong> Porto!” Conheceram-se<br />
nesse dia e tor<strong>na</strong>ram-se inseparáveis.<br />
Des<strong>de</strong> logo <strong>de</strong>cidiram criar<br />
uma organização dividida em duas<br />
secções - secção Norte e secção Sul<br />
- e, em 1996, fundaram a RASH-Portugal.<br />
Em breve começariam, numa<br />
espantosa e improvável <strong>de</strong>scoberta,<br />
a amar furiosamente a Galiza.<br />
“Numa passagem <strong>de</strong> ano fomos a<br />
Vigo, assistir a um concerto, e ficámos<br />
completamente apaixo<strong>na</strong><strong>do</strong>s.<br />
Eram cente<strong>na</strong>s <strong>de</strong> redskins! Iniciámos<br />
logo relações com os galegos<br />
porque eles é que tinham força numérica<br />
e organizacio<strong>na</strong>l”.<br />
Em pouco tempo a RASH Unida Galiza-Portugal<br />
tornou-se “a mais forte”<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, com mais membros e<br />
mais bem organizada. “Agora é <strong>na</strong><br />
América Lati<strong>na</strong> - Chile, Colombia,<br />
México, Venezuela - que se concentram<br />
os núcleos mais <strong>po<strong>de</strong>r</strong>osos. A<br />
VERA MOUTINHO
VERA MOUTINHO<br />
8ª COLINA I JUNHO 2006 SOCIEDADE 7<br />
secção que abrimos recentemente<br />
em Pequim também está com muita<br />
força. São cerca <strong>de</strong> 180 reds e têm<br />
duas bandas”. Na Europa, há algumas<br />
secções mais orientadas para a<br />
a<strong>na</strong>rquia ou o a<strong>na</strong>rco-sindicalismo,<br />
como é o caso da RASH-Paris. “À<br />
frente das manifestações estudantis<br />
que <strong>de</strong>correram em França, estiveram<br />
sempre membros da RASH. Se<br />
eu olhasse bem para as imagens, facilmente<br />
os i<strong>de</strong>ntificava”.<br />
Em fuga<br />
Paulitus faz parte <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista<br />
Português <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os três anos<br />
<strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. “Depois <strong>do</strong> 25 <strong>de</strong> Abril, o<br />
meu pai pôs-me logo nos pioneiros”.<br />
Cresceu <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> PCP. “O Parti<strong>do</strong><br />
é a minha casa”. Ainda a<strong>do</strong>lescente,<br />
alistou-se <strong>na</strong> Marinha, on<strong>de</strong> foi militar<br />
durante cinco anos e meio. Mal<br />
esperava vir a criar o ‘Linha Dura’,<br />
um grupo - entretanto extinto - <strong>de</strong><br />
seguranças especiliza<strong>do</strong> em eventos<br />
culturais. “No primeiro festival<br />
<strong>do</strong> Su<strong>do</strong>este fui eu quem lá meteu<br />
seguranças. Era pessoal liga<strong>do</strong> à<br />
RASH. Temos a particularida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
toda a gente nos convidar para fazer<br />
segurança, até o próprio Parti<strong>do</strong>”.<br />
Foi ma<strong>na</strong>ger <strong>de</strong> várias bandas un<strong>de</strong>rground.<br />
Foi ele quem lançou os<br />
Black Company; foi com ele que Jay<br />
Jay Neige, <strong>do</strong>s Da Weasel, começou<br />
a tocar, numa banda chamada Matavelha.<br />
“O Carlitos [Pacman] era<br />
muito novo e ajudava a transportar<br />
o amplifica<strong>do</strong>r <strong>do</strong> irmão”. Organiza<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> espectáculos encarta<strong>do</strong>,<br />
soma 280 concertos realiza<strong>do</strong>s sob<br />
a sua coor<strong>de</strong><strong>na</strong>ção, <strong>do</strong>s quais 180<br />
em torno <strong>do</strong> movimento RASH.<br />
Aju<strong>do</strong>u a trazer “gran<strong>de</strong>s bandas”<br />
à Festa <strong>do</strong> Avante, como Betagarri,<br />
Banda Bassoti, I<strong>na</strong>daptats, Skarnio<br />
e Peste&Sida. Sempre funcionou <strong>de</strong><br />
uma forma militante, “ou era pago<br />
em cervejas ou não era pago”.<br />
Para escapar ao ódio corrosivo <strong>do</strong>s<br />
boneheads, teve <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r a casa<br />
on<strong>de</strong> viveu durante anos em Almada.<br />
“Como esses meninos sempre<br />
foram uns imensos cobar<strong>de</strong>s, vin-<br />
gavam-se com pinturas <strong>na</strong> minha<br />
porta. E a minha mãe, que até era<br />
católica, não achava muita piada<br />
aos telefonemas às seis da manhã a<br />
chamarem-lhe puta bolchevique”.<br />
Foi 28 vezes vítima <strong>de</strong> agressão.<br />
“Posso dizer que sou um refugia<strong>do</strong><br />
político. Chego a mudar <strong>de</strong> casa <strong>de</strong><br />
seis em seis meses porque a polícia<br />
diz que não po<strong>de</strong> ter um homem à<br />
minha porta to<strong>do</strong>s os dias. Já fui várias<br />
vezes a<strong>na</strong>valha<strong>do</strong>, já tive pistolas<br />
<strong>de</strong>ntro da minha boca”. Quan<strong>do</strong><br />
po<strong>de</strong>, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se; quan<strong>do</strong> não po<strong>de</strong>,<br />
encolhe-se “no chão” e espera “que<br />
passe”. Mas não se queixa. “Há<br />
camaradas que já sofreram muito<br />
mais <strong>do</strong> que eu. Des<strong>de</strong> que a<strong>de</strong>ri ao<br />
movimento, já morreram seis camaradas<br />
meus, que se saiba, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong><br />
a agressões diárias <strong>do</strong>s fascistas”.<br />
Força<strong>do</strong> a aban<strong>do</strong><strong>na</strong>r Almada,<br />
essa “magnífica cida<strong>de</strong>” on<strong>de</strong> já<br />
foi “agradável viver”, partiu enfim<br />
para a Galiza. Não duvidava<br />
<strong>de</strong> que havia quem o amparasse<br />
em Vigo, on<strong>de</strong> acabou por ficar ao<br />
fim <strong>de</strong> vários meses a <strong>de</strong>ambular<br />
pelo País Basco. “Era segurança<br />
no estádio <strong>de</strong> Balaí<strong>do</strong>s e, como<br />
também fazia parte da claque, era<br />
um trabalho que me dava imenso<br />
jeito: ninguém me chateava!” De<br />
volta a Portugal, ficou encarregue<br />
<strong>de</strong> coor<strong>de</strong><strong>na</strong>r as secções portuguesas<br />
e galegas da RASH. Ia à Galiza<br />
<strong>de</strong> quinze em quinze dias, to<strong>do</strong>s os<br />
meses. Agora, com os horários a<br />
que tem <strong>de</strong> submeter-se, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />
ter tempo para essas andanças.<br />
“Os camaradas <strong>do</strong> Porto, como<br />
estão geograficamente mais próximos,<br />
vão lá mais amiú<strong>de</strong>. Mas vou<br />
manten<strong>do</strong> o contacto através da<br />
Internet e <strong>do</strong> telefone, não só com<br />
os galegos mas com redskins <strong>de</strong><br />
outros países. Com os <strong>de</strong> Pequim e<br />
<strong>do</strong>s países <strong>de</strong> Leste - Rússia, Sérvia-<br />
MonteNegro, etc. - tor<strong>na</strong>-se mais<br />
complica<strong>do</strong> porque o inglês <strong>de</strong>les é<br />
muito pobre”.<br />
Paulitus ocupa-se sobretu<strong>do</strong> da ligação<br />
com a América Lati<strong>na</strong>. Está<br />
a coor<strong>de</strong><strong>na</strong>r a criação da RASH<br />
<br />
<br />
no Brasil, que congrega já <strong>de</strong>zoito<br />
secções. “A RASH-São Paulo tem<br />
cerca <strong>de</strong> 150 pessoas, das quais 85%<br />
são mulheres”. Mas está longe <strong>de</strong><br />
se sentir satisfeito com a sua prestação.<br />
“É raro organizarmos um<br />
evento, por exemplo, um congresso.<br />
Em termos operativos, geralmente<br />
só nos reunimos quan<strong>do</strong> há<br />
uma manifestação <strong>na</strong>zi, para fazer<br />
a contra-manifestação. Movimentamo-nos<br />
sobretu<strong>do</strong> por resposta”.<br />
Já ao movimento redskin, a sua entrega<br />
é “<strong>de</strong> alma e coração”. “Tu<strong>do</strong><br />
o que faço, tu<strong>do</strong> o que bebo, tu<strong>do</strong> o<br />
que como, tu<strong>do</strong> o que visto, o que<br />
componho, on<strong>de</strong> trabalho - tu<strong>do</strong><br />
tem a ver com o movimento”. Se<br />
fosse diferente, não era ele.<br />
Cida<strong>de</strong> livre <strong>de</strong> <strong>na</strong>zis<br />
Na cida<strong>de</strong> que escolheu para viver,<br />
conta com o apoio <strong>de</strong> 30 redskins.<br />
“O pessoal mais ‘entra<strong>do</strong>te’ começa<br />
a reparar em nós, a conviver<br />
connosco, e mais ce<strong>do</strong> ou mais tar<strong>de</strong><br />
começamos a vê-los com umas<br />
botas, com as calças arregaçadas, o<br />
cabelo vai <strong>de</strong>saparecen<strong>do</strong>... Temos<br />
ti<strong>do</strong> algumas surpresas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res<br />
negros da construção<br />
civil a estudantes universitários”.<br />
E há muitos jovens que ainda não<br />
se atreveram a aproximar-se. “Têm<br />
vergonha porque nós tor<strong>na</strong>mo-nos<br />
uma espécie <strong>de</strong> mito. Dizem que já<br />
matei para aí 10 <strong>na</strong>zis! E polícias<br />
também!”<br />
A RASH Unida Galiza-Portugal<br />
está directamente ligada a movimentos<br />
<strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> com os<br />
povos em luta, como o povo basco e<br />
o irlandês. “É a nossa função inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista”.<br />
Quan<strong>do</strong>, em Novembro<br />
<strong>de</strong> 2002, o petroleiro Prestige<br />
<strong>na</strong>ufragou nos mares da Galiza,<br />
não hesitaram. “Organizámos uma<br />
brigada para ir ajudar os camara-<br />
“O pior é ser confundi<strong>do</strong><br />
com o inimigo. Cheguei<br />
a pensar que seria<br />
morto por engano”<br />
das galegos a limpar a praia. Ficámos<br />
a <strong>do</strong>rmir em casa <strong>de</strong> pesca<strong>do</strong>res.<br />
Puseram <strong>de</strong> la<strong>do</strong> as diferenças<br />
estéticas e aceitaram-nos como irmãos”.<br />
Em Portugal, já há claques<br />
<strong>de</strong> futebol <strong>de</strong> on<strong>de</strong> os boneheads foram<br />
excluí<strong>do</strong>s e que hoje são <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>das<br />
pelos redskins. “Estamos a<br />
tentar <strong>de</strong>struir a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que to<strong>do</strong><br />
o hooligan é <strong>de</strong> direita. Nas claques<br />
em que estamos inseri<strong>do</strong>s, fizemos<br />
<strong>de</strong>saparecer os fascistas”.<br />
Há essa ira <strong>do</strong>lorosa, essa i<strong>de</strong>ia<br />
fixa, ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> execução. “Limpámos<br />
a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>na</strong>zis”. Quer isso<br />
dizer que os expulsaram? “Não.<br />
Digamos que ou são ‘betinhos’ ou<br />
não saem <strong>de</strong> casa”. Só em último<br />
caso usam a violência. “Primeiro,<br />
dirigimo-nos às pessoas civilizadamente,<br />
convidamo-las para beber<br />
uma cervejinha e dizemos ‘Olhem<br />
que isso é capaz <strong>de</strong> vos fazer mal à<br />
saú<strong>de</strong>’. Quan<strong>do</strong> não resulta, aí sim<br />
parte-se para a acção. Mas é raro”.<br />
Aconteceu pela última vez há três<br />
meses. Um grupo organiza<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
neo-<strong>na</strong>zis tentou infiltrar-se numa<br />
das claques <strong>do</strong> clube local. Correu<br />
mal. “E foram os nossos mais no-<br />
VERA MOUTINHO<br />
vos que trataram <strong>do</strong> assunto. Um<br />
tinha <strong>de</strong>zasseis, o outro <strong>de</strong>zoito e<br />
o outro vinte anos e <strong>de</strong>ram conta<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>z tipos. Estou muito orgulhoso<br />
<strong>de</strong>sses putos. Ficaram os heróis<br />
da claque em que estão e a semente<br />
<strong>de</strong> fascismo que os <strong>na</strong>zis queriam<br />
plantar foi extraída <strong>de</strong> raiz”.<br />
Paulitus sabe-se soberbo, intimidante.<br />
“Costumamos ter uma postura<br />
agressiva, que é uma forma<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa. Mesmo que estejamos<br />
sossega<strong>do</strong>s, há-<strong>de</strong> haver sempre<br />
alguém arma<strong>do</strong> em mau que pensa<br />
‘Eu sou mais forte <strong>do</strong> que aquele<br />
tipo. Ele pensa que é duro mas eu<br />
<strong>do</strong>u conta <strong>de</strong>le’”. Já se acostumou<br />
ao choque inicial, inevitável, que<br />
não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> provocar nos outros.<br />
Mas não precisa <strong>de</strong> muito tempo<br />
para vencer os preconceitos. “As<br />
pessoas começam a ver-me com algum<br />
senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> humor. Começam<br />
a reparar nos símbolos, <strong>na</strong>s t-shirts<br />
com a foice e o martelo, e há sempre<br />
alguém que se aproxima. Sou<br />
um tipo muito expansivo, muito<br />
sociável. Vivo sozinho, trabalho,<br />
tenho <strong>de</strong> fazer compras, tenho <strong>de</strong><br />
ter vida social”.<br />
O pior, crê, é ser confundi<strong>do</strong> com o<br />
inimigo. “Em Almada, havia gangs<br />
<strong>de</strong> negros e era muito complica<strong>do</strong>.<br />
Porque eu não podia dizer ‘Eu não<br />
sou <strong>de</strong>sses, sou <strong>do</strong>s outros!’ Quais<br />
outros? Cheguei a pensar que seria<br />
morto por engano. É fácil saber que<br />
o inimigo é aquele indivíduo específico,<br />
muito concreto, que é o fascista.<br />
No nosso caso, po<strong>de</strong>mos ter<br />
o azar <strong>de</strong> ser mortos por engano. O<br />
que, acontecen<strong>do</strong>, seria ridículo”.<br />
Paulitus caminha sem pressa pelas<br />
ruas da cida<strong>de</strong> tranquila. De<br />
um la<strong>do</strong> e <strong>do</strong> outro, algum comércio<br />
antigo resiste heroicamente à<br />
competição com os centros comerciais.<br />
Uns metros adiante, a praça<br />
ampla e translúcida oferece-lhe a<br />
imagem da sua própria liberda<strong>de</strong>.<br />
Habita o início, o silêncio <strong>de</strong> si<br />
próprio. A cida<strong>de</strong> está “limpa” <strong>de</strong><br />
<strong>na</strong>zis. É inevitável pensar que tu<strong>do</strong><br />
quanto existe <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le acaba <strong>de</strong><br />
entrar numa nova estação. “Está<br />
<strong>na</strong> altura <strong>de</strong> me mudar para uma<br />
localida<strong>de</strong> mais peque<strong>na</strong>. Tenho <strong>de</strong><br />
ir pregar para outras freguesias.<br />
Literalmente”.
8 POLÍTICA<br />
JUVENTUDES PARTIDÁRIAS<br />
Gente com J<br />
CATARINA SANTANA<br />
INÊS HENRIQ<strong>UE</strong>S<br />
A jota reúne-se e o hábito manda<br />
que já passe da hora marcada.<br />
Na cave da secção <strong>de</strong> Algés, uma<br />
fatia <strong>de</strong> pizza e um cigarro antece<strong>de</strong>m<br />
a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> trabalhos que<br />
a Juventu<strong>de</strong> <strong>Social</strong> Democrata<br />
(JSD) tem para cumprir. É preciso<br />
pensar <strong>na</strong>s acções <strong>de</strong> convívio <strong>do</strong><br />
Verão e <strong>na</strong> reentré em Setembro.<br />
Só <strong>de</strong>pois vêm as activida<strong>de</strong>s mais<br />
“sérias”: uma acção <strong>de</strong> formação<br />
para o emprego, um <strong>de</strong>bate i<strong>de</strong>ológico<br />
entre as várias juventu<strong>de</strong>s<br />
partidárias… As i<strong>de</strong>ias são muitas<br />
e os consensos os necessários<br />
para prosseguir. Aos poucos, o<br />
palanque laranja vai-se compon<strong>do</strong><br />
e entre os que vêm pela primeira<br />
vez, os mais <strong>de</strong>spacha<strong>do</strong>s, os mais<br />
cala<strong>do</strong>s, há sempre quem aproveite<br />
para alongar a acta ou a noite.<br />
O sério esta<strong>do</strong> da política motiva<br />
mais um cigarro e uma <strong>de</strong>longa,<br />
sob o olhar circunspecto das figuras<br />
<strong>de</strong> fun<strong>do</strong>: prega<strong>do</strong>s <strong>na</strong> pare<strong>de</strong>,<br />
Cavaco Silva e Sá Carneiro são o<br />
passa<strong>do</strong> que alguns nem viveram,<br />
mas que to<strong>do</strong>s querem lembrar.<br />
“A minha secção funcio<strong>na</strong> <strong>na</strong><br />
base <strong>do</strong> mérito”<br />
João Annes, 22 anos, está em Estu<strong>do</strong>s<br />
Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is no ISCSP e é<br />
presi<strong>de</strong>nte da Comissão Política <strong>de</strong><br />
Secção da JSD <strong>de</strong> Algés. A 5ª maior<br />
secção <strong>do</strong> país, <strong>de</strong> que fazem parte<br />
cinco freguesias <strong>do</strong> concelho <strong>de</strong><br />
Oeiras. Um dia leu um livro <strong>de</strong> Sá<br />
Carneiro que <strong>de</strong>finia a social-<strong>de</strong>mocracia<br />
e hoje consi<strong>de</strong>ra-se um<br />
<strong>do</strong>s poucos que leva a sério a i<strong>de</strong>ologia.<br />
Por isso está <strong>na</strong> JSD e porque<br />
-<br />
-<br />
<br />
ENTRE OS JOVENS. PODEM SER UM TRAMPOLIM PARA<br />
<br />
JOVENS ÀS CHAMADAS “JOTAS”?<br />
acredita que po<strong>de</strong> ajudar a resolver<br />
“a situação <strong>do</strong> país, a cultura <strong>do</strong><br />
Portugal <strong>do</strong>s pequeninos”.<br />
Na sua opinião há quatro tipos <strong>de</strong><br />
militantes <strong>na</strong>s chamadas “jotas”:<br />
“os que conhecem a i<strong>de</strong>ologia e<br />
têm vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se pôr ao serviço<br />
das comunida<strong>de</strong>s”; os que estão<br />
“para ajudar os amigos, que acreditam<br />
neles, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />
<strong>de</strong> serem <strong>do</strong> PSD”; “aqueles cuja<br />
formação académica os leva a<br />
integrar as juventu<strong>de</strong>s, como os<br />
estudantes <strong>de</strong> Direito ou Ciência<br />
Política” e “a malta <strong>do</strong> tacho”, que<br />
procura “uma forma <strong>de</strong> se realizar,<br />
<strong>de</strong> melhorar a vida”. João afirma<br />
fazer parte <strong>do</strong> primeiro grupo,<br />
mas consi<strong>de</strong>ra to<strong>do</strong>s os militantes<br />
legítimos. Garante que a sua secção<br />
funcio<strong>na</strong> “<strong>na</strong> base <strong>do</strong> mérito”<br />
e que só quem se <strong>de</strong>dica é que tem<br />
recompensas: “abrem-se janelas<br />
<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s, mas primeiro<br />
temos que mostrar o que sabemos,<br />
<strong>de</strong>pois vêm outros voos”.<br />
Confessa que a política não é a sua<br />
vida, o que o move é ape<strong>na</strong>s o apego<br />
ao parti<strong>do</strong> e não sabe o que o futuro<br />
lhe reserva: “Já provei a mim<br />
mesmo que posso ganhar eleições.<br />
<br />
Não sei o que vou fazer. Se a minha<br />
li<strong>de</strong>rança for boa é porque tenho<br />
futuro <strong>na</strong> política, senão para<br />
que é que vou subir?”.<br />
“Sou <strong>de</strong> direita, direita”<br />
Pedro Morais tem 23 anos e estuda<br />
<strong>Comunicação</strong> <strong>Social</strong> <strong>na</strong> Universida<strong>de</strong><br />
In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Quer seguir<br />
jor<strong>na</strong>lismo político, para “criticar<br />
os que lá estão [<strong>na</strong> política]”. É<br />
secretário-geral da Comissão Política<br />
<strong>de</strong> Algés e militante da JSD<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 16 anos. Sempre se sentiu<br />
liga<strong>do</strong> à direita, quanto mais não<br />
fosse pela admiração que sente<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> ce<strong>do</strong> por figuras como Marcelo<br />
Rebelo <strong>de</strong> Sousa ou Durão<br />
Barroso. Em casa, tu<strong>do</strong> o puxava<br />
nesse senti<strong>do</strong>. Filho <strong>de</strong> Isaltino<br />
Morais, presi<strong>de</strong>nte da Câmara Municipal<br />
<strong>de</strong> Oeiras, diz que o cargo<br />
<strong>do</strong> pai lhe está “às costas”, embora<br />
não se sinta próximo <strong>do</strong> círculo <strong>de</strong><br />
pessoas que o ro<strong>de</strong>ia, nem apoie todas<br />
as <strong>de</strong>cisões <strong>do</strong> PSD. Já encabeçou<br />
listas candidatas <strong>na</strong> JSD e uma<br />
das coisas que lhe dá mais “gozo”<br />
é dizer às pessoas que insistem em<br />
tratá-lo como ‘o filho <strong>do</strong> Isaltino’<br />
“aqui está a lista <strong>do</strong> Pedro!”.<br />
Confessa que é <strong>de</strong> “direita, direita”,<br />
mas acha que os jovens hoje<br />
em dia estão mais liga<strong>do</strong>s à esquerda,<br />
“porque é moda aceitar<br />
a legalização das drogas leves, o<br />
aborto”. No entanto, não tem objectivos<br />
<strong>na</strong> política, até porque<br />
não há nenhum parti<strong>do</strong> no panorama<br />
político actual que lhe encha<br />
as medidas. Não é <strong>do</strong> PP, porque<br />
não se sente liga<strong>do</strong> “à família,<br />
nem à Igreja”. Não é <strong>do</strong> PNR, pois<br />
lamenta a conotação com os skinheads.<br />
Falta-lhe um “bloco <strong>de</strong> direita”.<br />
Na JSD encontrou um espaço<br />
para exercer o gosto que tem<br />
pela política local, por isso “marca<br />
diferença”. Mas é no convívio das<br />
festas e <strong>do</strong>s congressos que vive o<br />
que <strong>de</strong> melhor há <strong>na</strong> jota.<br />
Para Pedro, as pessoas estão <strong>na</strong>s<br />
juventu<strong>de</strong>s políticas não “pela<br />
consciência cívica, nem partidária”,<br />
mas para “tentar arranjar<br />
um trabalhinho”. As jotas, os parti<strong>do</strong>s,<br />
“estão contami<strong>na</strong><strong>do</strong>s pelos<br />
interesses pessoais”, constata: “Na<br />
JSD há muitos militantes compra<strong>do</strong>s,<br />
outros que vêm para ajudar o<br />
amigo e que sabem que no caso <strong>de</strong><br />
esse amigo chegar mais longe também<br />
vão tirar parti<strong>do</strong> e há pessoas<br />
cujo trabalho é tirar gente das outras<br />
jotas, cacicagem”.<br />
“Empregos <strong>na</strong> política significam<br />
<strong>de</strong>semprego <strong>de</strong> 4 em 4<br />
anos”<br />
Na noite em que Guterres se <strong>de</strong>mitiu<br />
<strong>do</strong> Governo, António Dias,<br />
22 anos, entrou <strong>na</strong> Juventu<strong>de</strong> <strong>Social</strong>ista<br />
(JS). Diz que sempre foi,<br />
“Tanto quanto um miú<strong>do</strong> po<strong>de</strong><br />
ser”, <strong>de</strong> centro esquerda, “assim<br />
a arranhar o centro direita em<br />
questões <strong>de</strong> política económica”,<br />
um “traquejo” <strong>de</strong> família. Nos seus<br />
“momentos mais fervorosos <strong>de</strong> ímpeto<br />
político-juvenil”, andava com<br />
fichas <strong>de</strong> filiação no carro. Hoje,<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
SANDRO ARCANJO<br />
comissário político <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, uma<br />
função <strong>de</strong> “aconselhamento ao secretaria<strong>do</strong><br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”, sente que o<br />
ânimo já arrefeceu: “São quatro<br />
anos <strong>de</strong> lutas inter<strong>na</strong>s, já não tenho<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrar em alguns car<strong>na</strong>vais”.<br />
Um <strong>de</strong>scrédito que é partilha<strong>do</strong><br />
com algumas pessoas da jota:<br />
“Dentro da JS há uma corrente que<br />
se pergunta se não seria melhor pegar<br />
numa vassoura e meter isto no<br />
caixote <strong>do</strong> lixo”.<br />
Uma das principais críticas que<br />
António faz é em relação à falta<br />
<strong>de</strong> discussão i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong>ntro da<br />
juventu<strong>de</strong>, que foi substituída pela<br />
caça ao voto. Sabe-se <strong>de</strong> militantes<br />
que filiam 50 pessoas numa sema<strong>na</strong>.<br />
António chama--lhes “máqui<strong>na</strong>s<br />
<strong>de</strong> filiação partidária”, mas<br />
esta engre<strong>na</strong>gem já não é surpresa<br />
para ninguém <strong>de</strong>ntro da jota. O estudante<br />
<strong>de</strong> Direito <strong>de</strong>fine-a como<br />
costume: “prática reiterada com<br />
convicção <strong>de</strong> obrigatorieda<strong>de</strong>”.<br />
[As jotas] “são uma<br />
escola <strong>de</strong> preparação e<br />
formação política, uma<br />
forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação ao<br />
parti<strong>do</strong>” – Pedro Moura<br />
Ferreira.<br />
“Sabemos perfeitamente que é<br />
muito difícil que essas 50 pessoas<br />
saibam o que estão a fazer e que<br />
possam contribuir activamente.<br />
Estamos a falar <strong>de</strong> votos”. E é com<br />
votos que se sobe <strong>na</strong> hierarquia.<br />
António aponta o <strong>de</strong><strong>do</strong> à excessiva<br />
preocupação <strong>de</strong> alguns militantes<br />
com o seu percurso pessoal <strong>na</strong> política:<br />
“Humm, se quero ser <strong>de</strong>puta<strong>do</strong><br />
daqui por uns anos, se quero<br />
ser assessor… não se iludam! É a<br />
JS, a JSD, a JP o melhor caminho.<br />
Nas jotas <strong>de</strong>senvolve-se uma re<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> contactos que, no mínimo, dará<br />
jeito”. Mas para “quem quer ter<br />
uma vida política activa haverá caminhos<br />
melhores <strong>do</strong> que as jotas”,<br />
nomeadamente, a filiação directa<br />
no parti<strong>do</strong>. “Nas juventu<strong>de</strong>s acabamos<br />
por nos focar mais em lutas inter<strong>na</strong>s”,<br />
afirma, lamentan<strong>do</strong> a falta<br />
da “componente <strong>de</strong> formação”.<br />
Por vezes, a se<strong>de</strong> pelo <strong>po<strong>de</strong>r</strong> po<strong>de</strong><br />
mesmo traduzir-se em situações<br />
irregulares. “No momento em que<br />
começamos a roçar, a aguçar ou<br />
a a<strong>do</strong>cicar o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> ambição<br />
<strong>de</strong> certas pessoas, alguns valores<br />
morais são <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s para trás”.<br />
E António consegue lembrar-se<br />
<strong>de</strong> algumas situações “no mínimo<br />
alegais e não ilegais”. Ouvem-se<br />
histórias <strong>de</strong> casos “<strong>de</strong> coação pela<br />
força, <strong>de</strong> imprimir algum temor<br />
não só pela integrida<strong>de</strong> física <strong>do</strong><br />
alvo, mas também pela sua potencial<br />
carreira.” Ou <strong>de</strong> casos <strong>de</strong><br />
pessoas que “votaram 40 vezes”<br />
ou falsificaram assi<strong>na</strong>turas “com<br />
o consentimento <strong>de</strong> quem supostamente<br />
<strong>de</strong>veria assi<strong>na</strong>r. Infelizmente,<br />
<strong>de</strong>ntro da jota, estas coisas<br />
chocantes tor<strong>na</strong>m-se terça-feira”.<br />
Apesar <strong>de</strong> reconhecer que o curso<br />
<strong>de</strong> Direito é o “caminho <strong>na</strong>tural”<br />
para a política, António Dias não<br />
tem intenções <strong>de</strong> seguir carreira<br />
<strong>na</strong> área: “Empregos <strong>na</strong> política
8ª COLINA I JUNHO 2006 POLÍTICA 9<br />
<br />
significam <strong>de</strong>semprego, ou, pelo<br />
menos, instabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 4 em 4<br />
anos. E era preciso dar muito mais<br />
<strong>de</strong> mim à JS <strong>do</strong> que <strong>do</strong>u agora, era<br />
preciso ver e ser visto muito mais<br />
<strong>do</strong> que o que sou agora”.<br />
“O carreirismo político <strong>de</strong>svirtua<br />
a <strong>de</strong>mocracia”<br />
Em 2004, o então euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> PSD, Pacheco Pereira, veio a<br />
público criticar o carreirismo político<br />
promovi<strong>do</strong> pelas juventu<strong>de</strong>s<br />
partidárias. Hoje, a opinião mantém-se.<br />
Consi<strong>de</strong>ra que as jotas não<br />
só rejuvenescem os parti<strong>do</strong>s como<br />
são elas próprias instrumentos<br />
políticos com “efeitos muito perversos”.<br />
Para o historia<strong>do</strong>r e comenta<strong>do</strong>r,<br />
“o carreirismo político<br />
<strong>de</strong>svirtua a <strong>de</strong>mocracia, porque<br />
as pessoas têm <strong>de</strong> ter a liberda<strong>de</strong>,<br />
num parti<strong>do</strong>, <strong>de</strong> dizer que sim ou<br />
que não. Se esse parti<strong>do</strong> for o emprego<br />
das pessoas, raras vezes elas<br />
têm liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> dizer que não.”<br />
Mas o ataque não é cego. Pacheco<br />
Pereira reconhece que cada pessoa<br />
é um caso e aponta o <strong>de</strong><strong>do</strong> ape<strong>na</strong>s<br />
àqueles que “nunca tiveram<br />
uma profissão, nem dificulda<strong>de</strong>s<br />
em a arranjar, ou em ter dinheiro,<br />
ou uma casa, porque viveram<br />
sempre da política”. São jovens<br />
privilegia<strong>do</strong>s forma<strong>do</strong>s num “casulo<br />
partidário, que acabam por<br />
não conhecer o país e a realida<strong>de</strong>.<br />
Habituam-se a andar <strong>de</strong> carro com<br />
motorista, a ter um gabinete, secretárias<br />
e to<strong>do</strong>s os seus esforços<br />
acabam por ser para manter esta<br />
situação e não para exercer uma<br />
função útil para o país”.<br />
“A política utilitária é fruto<br />
<strong>do</strong>s nossos tempos”<br />
O carreirismo <strong>na</strong>s juventu<strong>de</strong>s partidárias<br />
é para o sociólogo Pedro<br />
Moura Ferreira um espelho <strong>do</strong> que<br />
acontece nos parti<strong>do</strong>s e cuja legi-<br />
“Se o parti<strong>do</strong> for o<br />
emprego das pessoas,<br />
raras vezes elas têm<br />
liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> dizer que<br />
não” – Pacheco Pereira<br />
timida<strong>de</strong> “é uma discussão que as<br />
<strong>de</strong>mocracias têm <strong>de</strong> ter”.<br />
Na sua opinião, “as jotas são uma<br />
antecâmara <strong>de</strong> voos mais altos, <strong>de</strong><br />
formação <strong>de</strong> quadros, <strong>de</strong> projecção”.<br />
Por essa razão, consi<strong>de</strong>ra que<br />
os parti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> governo motivam<br />
mais os jovens a entrar <strong>na</strong> política.<br />
“A política utilitária é fruto<br />
<strong>do</strong>s nossos tempos”, consi<strong>de</strong>ra.<br />
No entanto, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> referir<br />
que, numa altura em que “há um<br />
gran<strong>de</strong> distanciamento da política<br />
por parte <strong>do</strong>s jovens”, as jotas “são<br />
uma escola <strong>de</strong> preparação e formação<br />
política, uma forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação<br />
ao parti<strong>do</strong> e isso é positivo”.<br />
“Para quem vem para o tacho,<br />
escolher a JP é um caminho<br />
muito mais difícil”.<br />
Nuno van U<strong>de</strong>n, 23 anos, estuda Ciência<br />
Política <strong>na</strong> Universida<strong>de</strong> Lusíada.<br />
Filiou-se <strong>na</strong> Juventu<strong>de</strong> Popular<br />
(JP) aos 18 anos, “quan<strong>do</strong> já<br />
tinha uma base para <strong>de</strong>cidir”. Pelos<br />
valores, pelo discurso e pela maneira<br />
<strong>de</strong> fazer política: “Normalmente<br />
i<strong>de</strong>ntificam-se as jotas com aquilo<br />
que a JCP [Juventu<strong>de</strong> Comunista<br />
Portuguesa] faz… é a mais infiltrada<br />
no meio universitário, com cartazes<br />
em tu<strong>do</strong> o que é universida<strong>de</strong>.<br />
Nós não achamos que os jovens e<br />
as associações académicas <strong>de</strong>vam<br />
servir <strong>de</strong> mar-keting para as juven-<br />
tu<strong>de</strong>s partidárias. Devemos apoiar<br />
mas nunca exigir a nossa marca”.<br />
Para Nuno, os jovens hoje em dia<br />
estão mais <strong>de</strong>sinteressa<strong>do</strong>s, sobretu<strong>do</strong><br />
pela política e, por isso, são<br />
“facilmente agarra<strong>do</strong>s por jotas ou<br />
por parti<strong>do</strong>s que têm slogans e uma<br />
campanha mais… sexy”.<br />
Sabe que existem os militantes activos,<br />
“com espírito crítico”, e os<br />
que não o são, mas afirma que to<strong>do</strong>s<br />
têm o seu papel <strong>na</strong> jota. Estes<br />
últimos são quem faz “o trabalho<br />
chato que é preciso fazer”, como o<br />
das campanhas eleitorais.<br />
Diz que quer ser a<strong>na</strong>lista político<br />
e não fecha a porta a uma oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> exercer política para ver<br />
aquilo que está “a a<strong>na</strong>lisar”, mas<br />
assegura que a JP não é o melhor<br />
caminho para “o tacho”: “porque<br />
somos uma juventu<strong>de</strong> partidária<br />
peque<strong>na</strong>, um parti<strong>do</strong> pequeno. Escolher<br />
a JP é um caminho muito<br />
mais difícil <strong>do</strong> que uma JSD ou JS.<br />
Para o bem e para o mal.”<br />
“Nos parti<strong>do</strong>s mais pequenos<br />
não há <strong>na</strong>da para ganhar”<br />
João Calviño tem 21 anos e estuda<br />
Audiovisual e Multimédia <strong>na</strong><br />
<strong>Escola</strong> <strong>Superior</strong> <strong>de</strong> <strong>Comunicação</strong><br />
<strong>Social</strong>. Começou por acompanhar<br />
os pais a reuniões e à Festa <strong>do</strong><br />
Avante! e foi meio caminho anda<strong>do</strong><br />
para entrar <strong>na</strong> JCP. Desempenhou<br />
um papel activo durante seis anos.<br />
Agora “funcio<strong>na</strong> um boca<strong>do</strong> por<br />
responsabilida<strong>de</strong>s”, mas o próximo<br />
“passo lógico” é filiar-se no parti<strong>do</strong>,<br />
“por uma questão <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong>”.<br />
O que mais o atrai é a discussão <strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ias, a política em si, que, <strong>na</strong> sua<br />
opinião, po<strong>de</strong> ir <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a conversa<br />
com o vizinho porque o eleva<strong>do</strong>r<br />
funcio<strong>na</strong> mal, até à queixa ao presi<strong>de</strong>nte<br />
da Junta <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à falta <strong>de</strong><br />
lugares para estacio<strong>na</strong>mento. E <strong>na</strong><br />
SARA MATOS<br />
JCP, garante, discute-se muita política:<br />
“há cursos i<strong>de</strong>ológicos on<strong>de</strong><br />
existe um <strong>de</strong>bate, há o trabalho<br />
<strong>de</strong> preparação <strong>do</strong>s congressos, e,<br />
sempre que sai uma política nova,<br />
tentamos fazer uma análise e perceber<br />
os prós e contras e como é<br />
que vamos marcar a nossa posição<br />
em relação aos contras”.<br />
Para João, quem está <strong>na</strong>s jotas<br />
“<strong>de</strong>stes parti<strong>do</strong>s mais pequenos,<br />
à esquerda” está por convicção.<br />
“Não po<strong>de</strong> ser um tacho porque<br />
não há sítio para on<strong>de</strong> ir. Não há<br />
<strong>na</strong>da para ganhar!”.<br />
No PCP, afirma não haver políticos<br />
profissio<strong>na</strong>is, “<strong>na</strong> óptica <strong>de</strong> ‘eu<br />
vou fazer carreira <strong>na</strong> política’. Não<br />
são pessoas que aos 23 anos, mal<br />
acabam o curso, começam a ser<br />
pagos profissio<strong>na</strong>lmente <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong><br />
parti<strong>do</strong> e fazem to<strong>do</strong> o seu percurso<br />
como seus funcionários. Há os que<br />
trabalham activamente <strong>na</strong> política,<br />
mas quase que garanto que o fazem<br />
por gosto, acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>”.<br />
“As jotas não servem para<br />
<strong>na</strong>da”<br />
Re<strong>na</strong>to Ribeiro, 27 anos, começou<br />
por estudar Gestão e agora está em<br />
História. Quan<strong>do</strong> entrou <strong>na</strong> faculda<strong>de</strong><br />
i<strong>de</strong>ntificou-se com o projecto<br />
“Há pessoas cujo<br />
trabalho é tirar gente<br />
das outras jotas,<br />
cacicagem” – Pedro<br />
Morais<br />
da JS, on<strong>de</strong> esteve três anos, apesar<br />
<strong>de</strong> nunca ter si<strong>do</strong> militante <strong>do</strong> PS.<br />
Acabou por se <strong>de</strong>siludir com a falta<br />
<strong>de</strong> uma oposição crítica: “só se era<br />
contra as i<strong>de</strong>ias <strong>do</strong>s outros por serem<br />
<strong>do</strong>s outros”. Hoje faz parte <strong>do</strong><br />
grupo <strong>de</strong> jovens <strong>do</strong> BE, que não tem<br />
uma juventu<strong>de</strong> partidária organizada<br />
como nos outros parti<strong>do</strong>s.<br />
Para Re<strong>na</strong>to isto é positivo, porque<br />
consi<strong>de</strong>ra que as jotas “não servem<br />
para <strong>na</strong>da”, senão para ganhar<br />
“certos vícios que, vistos <strong>de</strong> fora,<br />
só prejudicam”. No futuro, não tem<br />
ambição <strong>de</strong> chegar a um “lugar específico”,<br />
mas “gostava <strong>de</strong> ser reconheci<strong>do</strong>,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que fosse por mérito<br />
próprio.” Afi<strong>na</strong>l, “toda a gente<br />
gostava <strong>de</strong> ser reconhecida”.<br />
<br />
SANDRO ARCANJO
10 POLÍTICA<br />
EDITORIAL<br />
por Paulo Moura<br />
Um jor<strong>na</strong>l é<br />
mais <strong>do</strong> que<br />
um jor<strong>na</strong>l<br />
Um jor<strong>na</strong>l <strong>de</strong>ve ser um laboratório.<br />
Um think-tank, uma agência <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectives,<br />
uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> explora<strong>do</strong>res,<br />
um grupo <strong>de</strong> guerrilha, uma<br />
seita <strong>de</strong> visionários, um coman<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> operações especiais, um gabinete<br />
<strong>de</strong> investigação, um centro <strong>de</strong><br />
escutas, um posto <strong>de</strong> observação,<br />
uma câmara <strong>de</strong> interrogatórios, um<br />
serviço <strong>de</strong> urgências, uma sala <strong>de</strong><br />
cirurgia, um divã <strong>de</strong> psicanálise, um<br />
clube <strong>de</strong> meditação.<br />
Um jor<strong>na</strong>l não po<strong>de</strong> ser ape<strong>na</strong>s<br />
um jor<strong>na</strong>l. Ou acabará a embrulhar<br />
castanhas, a forrar gavetas. Já<br />
poucos precisam <strong>de</strong>le. Uns lêem-no<br />
por hábito ou con<strong>de</strong>scendência, outros<br />
folheiam-no sem o ler, outros<br />
diminuem-se, para <strong>po<strong>de</strong>r</strong>em continuar<br />
a ler. Privam-se, <strong>de</strong>sistem,<br />
por comodismo. Conformam-se ao<br />
seu jor<strong>na</strong>l, que circunscreve o seu<br />
mun<strong>do</strong>. Limita o seu mun<strong>do</strong>. Ora<br />
acontece que é preciso agir. Um<br />
jor<strong>na</strong>l tem <strong>de</strong> partir à aventura.<br />
É preciso pôr tu<strong>do</strong> em questão.<br />
Não aceitar a realida<strong>de</strong> como nos é<br />
apresentada, mas interrogá-la nos<br />
seus fundamentos. Olhá-la como<br />
se fosse a primeira vez. Com toda<br />
a estranheza.<br />
O 8ª Coli<strong>na</strong> procura esse caminho.<br />
Olhar a política não pelos enre<strong>do</strong>s<br />
construi<strong>do</strong>s pelos próprios políticos,<br />
mas para além <strong>de</strong>les. Tentámos<br />
perceber <strong>de</strong> que massa é feita a<br />
política e os políticos. Investigámos<br />
as juventu<strong>de</strong>s partidárias: são escolas<br />
<strong>de</strong> formação para a vida pública?<br />
São fóruns <strong>de</strong> participação social<br />
para os jovens? São trampolins para<br />
carreiras <strong>de</strong> oportunismo? Os nossos<br />
repórteres interrogaram, confrontaram,<br />
problematizaram.<br />
Radiografámos também o mun<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s <strong>lóbi</strong>s em Bruxelas. Como actuam<br />
os grupos <strong>de</strong> pressão <strong>na</strong> capital<br />
europeia? Quem tem <strong>po<strong>de</strong>r</strong> real e<br />
influencia as <strong>de</strong>cisões comunitárias,<br />
para além <strong>do</strong>s comissários e<br />
<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s eleitos? Os nossos “correspon<strong>de</strong>ntes<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is” no local<br />
foram tentar perceber como se<br />
organiza to<strong>do</strong> este sistema.<br />
Averiguámos ainda o fenómeno<br />
<strong>do</strong>s “skinheads” vermelhos e a sua<br />
relação com a consciência política<br />
e <strong>de</strong> classe, com a exclusão, a pertença<br />
e as tribos urba<strong>na</strong>s. Estudámos<br />
os mecanismos sociais e psicológicos<br />
<strong>do</strong> êxito no caso <strong>de</strong> um<br />
campeão <strong>de</strong> kickboxing oriun<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
um bairro pobre.<br />
Fizémos experiências. Um estudante<br />
<strong>de</strong> jor<strong>na</strong>lismo tem hoje essa<br />
obrigação. Não basta apren<strong>de</strong>r os<br />
saberes feitos. Porque um jor<strong>na</strong>l<br />
tem <strong>de</strong> ser mais <strong>do</strong> que um jor<strong>na</strong>l e<br />
é preciso estar à altura <strong>do</strong> <strong>de</strong>safio.<br />
Os leitores exigem-no: on<strong>de</strong> estão<br />
os jor<strong>na</strong>listas quan<strong>do</strong> precisamos<br />
<strong>de</strong>les? •<br />
PERFIL • HUGO XAMBRE PEREIRA<br />
“Não dispenso as<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
minhas saídas à noite”<br />
<br />
<br />
SÍLVIA CARVALHO<br />
VERA ESTEVES<br />
Quem o vê <strong>na</strong> rua não imagi<strong>na</strong> o cargo que <strong>de</strong>sempenha.<br />
Com um ar informal <strong>de</strong> quem dispensa<br />
um nó <strong>de</strong> gravata ao pescoço, recebe todas<br />
as quintas-feiras os eleitores que queiram<br />
esclarecer alguma dúvida ou expor um problema<br />
<strong>do</strong> bairro. Acessível e hospitaleiro, tenta<br />
ajudar no que for preciso. Com ar <strong>de</strong> “menino<br />
bem comporta<strong>do</strong>”, Hugo Xambre Pereira não<br />
faz as coisas <strong>de</strong> forma linear. Revelou-se um<br />
homem que segue caminhos inversos.<br />
Ao contrário. Hugo Xambre parece não seguir<br />
o rumo normal das pessoas da sua ida<strong>de</strong>.<br />
Os jovens não se interessam por política. Ele<br />
sempre se interessou porque as pessoas à sua<br />
volta a discutiam. E fez parte das Associações<br />
<strong>de</strong> Estudantes das escolas on<strong>de</strong> an<strong>do</strong>u.<br />
Ao contrário. Hugo Xambre não quer fazer<br />
carreira <strong>na</strong> política. Nem <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> quem o<br />
faça. Aliás, tem uma visão bem <strong>de</strong>finida daquilo<br />
que quer: “sempre achei que a política<br />
não <strong>de</strong>via ser uma coisa contínua. Não<br />
sei se me vou recandidatar daqui a quatro<br />
anos. Essa não é a minha priorida<strong>de</strong>. A minha<br />
priorida<strong>de</strong> é resolver os problemas <strong>do</strong><br />
bairro”. Assim, consi<strong>de</strong>ra os estu<strong>do</strong>s uma<br />
segurança para a sua vida futura.<br />
Ao contrário. Os amigos <strong>de</strong> Hugo vêem<br />
como única vantagem da presidência da<br />
Junta o facto <strong>de</strong> ter o telemóvel pago. No<br />
entanto, este presi<strong>de</strong>nte não consi<strong>de</strong>ra isso<br />
uma coisa positiva, já que “se esquecem<br />
que esse mesmo telemóvel está sempre a<br />
tocar”, esclarece sorri<strong>de</strong>nte.<br />
Ao contrário. Quem se interessa por questões<br />
políticas e se i<strong>de</strong>ntifica com uma <strong>do</strong>utri<strong>na</strong>,<br />
inscreve-se <strong>na</strong> juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um parti<strong>do</strong>.<br />
Xambre optou pelo caminho oposto: alistou-<br />
se primeiro no Parti<strong>do</strong> <strong>Social</strong>ista <strong>na</strong> secção<br />
<strong>do</strong> Alto Pi<strong>na</strong>, em 2002. Só mais tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>cidiu<br />
juntar-se à Juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta força política.<br />
Ao contrário. Até a nível <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia não<br />
se <strong>de</strong>ixou influenciar. O actual Presi<strong>de</strong>nte<br />
da Junta <strong>do</strong> Beato i<strong>de</strong>ntificou-se com os valores<br />
socialistas, mas o facto <strong>de</strong> os pais “não<br />
serem propriamente <strong>do</strong> PS” não o impediu<br />
<strong>de</strong> seguir as suas próprias convicções.<br />
Uma <strong>de</strong>stas convicções recai sobre a influência<br />
da política <strong>na</strong>s causas sociais: fez voluntaria<strong>do</strong><br />
no Banco Alimentar Contra a Fome<br />
e <strong>de</strong>u explicações gratuitas a quem não tinha<br />
recursos. Esta experiência fez com que criasse<br />
agora no Beato salas <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> acompanha<strong>do</strong><br />
em troca <strong>de</strong> quantias simbólicas.<br />
Mora<strong>do</strong>r há oito anos no Beato, Hugo Xambre<br />
Pereira associa a sua vitória ao facto <strong>de</strong> ter<br />
concorri<strong>do</strong> pelo PS e acredita que “se tives-<br />
Deu explicações gratuitas<br />
a quem não tinha recursos.<br />
Isto fê-lo criar no Beato salas<br />
<strong>de</strong> estu<strong>do</strong> acompanha<strong>do</strong> em<br />
troca <strong>de</strong> quantias simbólicas.<br />
se si<strong>do</strong> candidato <strong>de</strong> outro parti<strong>do</strong> não teria<br />
ganho. As pessoas votam em marcas [parti<strong>do</strong>s]<br />
e não em caras”. As pessoas queriam<br />
mudança. Ele não acredita que a sua ida<strong>de</strong> o<br />
tenha prejudica<strong>do</strong>. Mas tinha consciência <strong>de</strong><br />
que podia estar a “abrir um flanco para que a<br />
campanha adversária dissesse ‘é um puto’”.<br />
Mas este “puto” também gosta da área cientí-<br />
<br />
“Já não consigo ter conversas<br />
<strong>de</strong> café. Tenho conhecimento<br />
das coisas mais por <strong>de</strong>ntro<br />
e consigo explicar as<br />
especulações <strong>do</strong>s meus<br />
amigos” - Hugo Xambre<br />
Pereira<br />
fica e está quase a termi<strong>na</strong>r o curso <strong>de</strong> Engenharia<br />
Química, no Instituto <strong>Superior</strong> Técnico.<br />
Apesar <strong>de</strong> faltarem algumas ca<strong>de</strong>iras,<br />
o curso <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser priorida<strong>de</strong>. A política<br />
académica também ficou a per<strong>de</strong>r: não lhe<br />
resta tempo para este género <strong>de</strong> activida<strong>de</strong>s.<br />
Sobre os tempos livres, Hugo Xambre foi<br />
firme <strong>na</strong> resposta: “não dispenso das minhas<br />
saídas à noite. Já avisei os meus colegas<br />
da assembleia que à sexta-feira temos<br />
<strong>de</strong> acabar mais ce<strong>do</strong>, para aproveitarmos<br />
a noite”. Lê livros sobre direito, gestão e<br />
urbanismo, áreas que lhe interessam e que<br />
lhe são úteis no seu dia-a-dia.<br />
Até nos seus tempos livres está associa<strong>do</strong><br />
a questões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m política: intervém a<br />
nível interno no PS e em Comissões <strong>de</strong> Mora<strong>do</strong>res.<br />
“Já não consigo ter conversas <strong>de</strong><br />
café. Tenho conhecimento das coisas mais<br />
por <strong>de</strong>ntro e consigo explicar as especulações<br />
<strong>do</strong>s meus amigos que me procuram<br />
para saber a minha opinião sobre algo”.<br />
Hugo Xambre Pereira tem a política a correr-lhe<br />
<strong>na</strong>s veias. Em nenhum tópico sugeri<strong>do</strong><br />
pelo 8ª coli<strong>na</strong>, este jovem autarca<br />
conseguiu esquecer-se <strong>de</strong>la.<br />
SÍLVIA ALEXANDRE
8ª COLINA I JUNHO 2006 ENSINO 11<br />
ENSINAR A ARTE DE MISTURAR SOM<br />
DJ’ing<br />
<br />
<br />
PEDRO ORGANIZA PEQ<strong>UE</strong>NOS CURSOS DE COMO SER UM<br />
<br />
VÂNIA SANTOS uma profissão, compreen<strong>de</strong>, en-<br />
Está vermelho! É agora, a seguir<br />
aos si<strong>na</strong>is. Sobe-se a rampa. Na<br />
Nacio<strong>na</strong>l 10, ao chegar à Póvoa<br />
<strong>de</strong> Santa Iria, os carros já se<br />
amontoam, <strong>na</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> chegar<br />
<strong>de</strong>pressa a casa. O parque<br />
<strong>de</strong> estacio<strong>na</strong>mento já começa a<br />
estar cheio. É um mal comum<br />
nesta zo<strong>na</strong>. Ao entrar, é-se invadi<strong>do</strong><br />
por uma sensação <strong>de</strong> vazio.<br />
Permanecem os vestígios da<br />
festa tardia, <strong>na</strong> noite anterior,<br />
como algumas ca<strong>de</strong>iras fora <strong>do</strong><br />
lugar, beatas no lixo, garrafas <strong>de</strong><br />
cerveja vazias <strong>na</strong> gra<strong>de</strong> por trás<br />
<strong>do</strong> balcão. Mas os copos já estão<br />
lava<strong>do</strong>s. Já são sete da tar<strong>de</strong>, e<br />
há que arrumar as coisas para<br />
receber os clientes. É aqui, no<br />
Beat bar, que o DJ Pedro Diaz,<br />
Dias para os amigos, fala sobre<br />
as aulas que dá, há cerca <strong>de</strong> sete<br />
meses, a alguns jovens, geralmente<br />
entre os 16 e os 23 anos,<br />
mas abertas a to<strong>do</strong>s aqueles<br />
que queiram conhecer a arte <strong>de</strong><br />
DJ’ing. Esta arte, para muitos<br />
INÊS CHARRUA<br />
A sala é peque<strong>na</strong> e tem um quadro<br />
preto ao fun<strong>do</strong>. Senta<strong>do</strong> numa<br />
ca<strong>de</strong>ira, está o Lourenço. Faz um<br />
<strong>de</strong>senho. Sozinho. É o único menino<br />
<strong>na</strong> sala. Na secretária ao fun<strong>do</strong>,<br />
está a professora, Leonor. Mas Leonor<br />
não é uma professora qualquer,<br />
é também sua tia. O Lourenço é<br />
ape<strong>na</strong>s uma das muitas crianças<br />
que ela já ensinou ao longo <strong>de</strong> mais<br />
<strong>de</strong> vinte anos <strong>de</strong> profissão, entre os<br />
quais os seus <strong>do</strong>is filhos.<br />
Na folha <strong>de</strong> papel branca os rabiscos<br />
mal se percebem. A professora<br />
segura a mão <strong>do</strong> pequeno e tenta<br />
ensiná-lo a fazer os <strong>de</strong>senhos.<br />
“Lourenço, tens <strong>de</strong> agarrar assim<br />
no lápis”, diz. Lourenço frequenta<br />
o Ensino Particular Doméstico,<br />
que consiste em ensi<strong>na</strong>r crianças<br />
em casa, em vez <strong>de</strong> estas frequentarem<br />
uma escola convencio<strong>na</strong>l.<br />
No caso <strong>de</strong> Leonor, as aulas só são<br />
dadas até ao 4º ano <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>.<br />
“É um ensino como tantos outros,<br />
apren<strong>de</strong>-se exactamente o mesmo,<br />
a única diferença é que quan<strong>do</strong> chegam<br />
ao fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> 4º ano as crianças<br />
são submetidas a um exame numa<br />
escola pertencente à área escolar<br />
que frequentam. Quem <strong>de</strong>termi<strong>na</strong><br />
é a <strong>de</strong>legação escolar”, explica.<br />
Apesar <strong>de</strong> ser uma prática pouco<br />
comum, a professora confessa<br />
não ter ti<strong>do</strong> entraves <strong>na</strong> opção<br />
que escolheu e que várias vezes<br />
a procuraram pais dispostos a pagarem-lhe<br />
pelo ensino <strong>do</strong>s filhos.<br />
tre outras coisas, o conhecer as<br />
velocida<strong>de</strong>s das músicas (BPM,<br />
ou, batidas por minuto) para<br />
<strong>po<strong>de</strong>r</strong> misturá-las, a mixagem,<br />
usan<strong>do</strong> o vinil, cd’s ou arquivos<br />
digitais sonoros. Um<br />
Disco Jockey (DJ)<br />
<strong>de</strong>ve, para isso, conhecer<br />
diferentes<br />
estilos <strong>de</strong> música e<br />
todas as técnicas e<br />
materiais relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s<br />
com o som.<br />
Em suma, o gran<strong>de</strong><br />
objectivo, como testemunha<br />
o Pedro “é<br />
fazer as pessoas dançarem,divertiremse,<br />
libertarem-se e<br />
gostarem”.<br />
Apesar <strong>de</strong> acreditar<br />
em to<strong>do</strong> o valor <strong>de</strong><br />
uma formação, o Pedro<br />
tornou-se DJ <strong>de</strong><br />
forma auto-didacta,<br />
trei<strong>na</strong>n<strong>do</strong> em casa<br />
com um amplifica<strong>do</strong>r,<br />
Quan<strong>do</strong> a escola é em casa<br />
HÁ CRIANÇAS Q<strong>UE</strong> NÃO VÃO À ESCOLA: APRENDEM EM CASA. OS PAIS SENTEM-SE MAIS<br />
<br />
Os alunos não eram muitos, mas<br />
foram os suficientes para <strong>de</strong>ixar<br />
boas recordações. Dos que teve,<br />
mantém contacto com muitos:<br />
“Ainda hoje alguns, que já são<br />
adultos, me vêm visitar. Até vou<br />
aos casamentos <strong>de</strong>les”, conta com<br />
um sorriso. Diz que to<strong>do</strong>s a marcaram<br />
por razões especiais, no<br />
entanto, os filhos são os alunos<br />
que nunca esquecerá, e uma das<br />
razões <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ntes para começar<br />
a dar aulas em casa: “Eu<br />
já dava aulas e explicações antes<br />
<strong>de</strong> casar, só que <strong>de</strong>pois fiquei grávida,<br />
e optei por ficar em casa a<br />
tempo inteiro para não ter <strong>de</strong> me<br />
separar <strong>do</strong>s meus filhos. Não queria<br />
per<strong>de</strong>r o crescimento <strong>de</strong>les”.<br />
A experiência foi magnífica, embora<br />
muitos a criticassem. “Algumas<br />
pessoas dizem que eu protegi <strong>de</strong>mais<br />
os meus filhos e que isso não<br />
estava correcto. Diziam que eu tinha<br />
<strong>de</strong> os <strong>de</strong>ixar viver como as outras<br />
crianças. É verda<strong>de</strong> que eu os<br />
protegia, mas isso também não foi<br />
assim tão mau para eles”. Não ligan<strong>do</strong><br />
às críticas, a professora conseguiu<br />
assim conjugar aquilo a que<br />
gira-discos e uma mesa <strong>de</strong> mistura,<br />
que ele próprio comprou, começan<strong>do</strong><br />
a tocar em peque<strong>na</strong>s festas,<br />
para os amigos. O curso <strong>de</strong> mistura<br />
e sequenciação <strong>na</strong> <strong>Escola</strong> Técnica<br />
<strong>de</strong> Imagem e <strong>Comunicação</strong> (ETIC)<br />
veio mais tar<strong>de</strong>, ao sentir a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> progredir enquanto DJ<br />
e mesmo para <strong>de</strong>senvolver outros<br />
projectos, como uma editora musical,<br />
a Loop 128 Records, on<strong>de</strong> é<br />
necessário avaliar o trabalho daqueles<br />
que sonham com o mun<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> DJ’ing.<br />
Com as suas ma<strong>de</strong>ixas louras,<br />
alguns piercings, roupa casual,<br />
ar <strong>de</strong>scontraí<strong>do</strong> e bem disposto,<br />
o papel <strong>de</strong> um professor rígi<strong>do</strong><br />
fica só para as aulas, que se prolongam<br />
por <strong>do</strong>is meses, e que<br />
chama “<strong>do</strong>is em um”: ganhar o suficiente<br />
para a família e estar perto<br />
<strong>do</strong>s filhos. O trabalho era muito,<br />
mas a própria garante que valeu a<br />
pe<strong>na</strong>: “Trabalhei muito, mas posso-me<br />
orgulhar <strong>de</strong> ter ensi<strong>na</strong><strong>do</strong> os<br />
meus filhos e <strong>de</strong> ter presencia<strong>do</strong> os<br />
melhores anos da vida <strong>de</strong>les”. O fi-<br />
Apesar <strong>de</strong> ser uma<br />
prática pouco comum,<br />
a professora confessa<br />
não ter ti<strong>do</strong> entraves <strong>na</strong><br />
opção que escolheu.<br />
lho, Ber<strong>na</strong>r<strong>do</strong>, agora com 18 anos,<br />
recorda com sauda<strong>de</strong>s o tempo em<br />
que aprendia a ler e escrever no<br />
“conforto <strong>do</strong> lar”: “Às vezes tenho<br />
sauda<strong>de</strong>s, era tu<strong>do</strong> muito diferente<br />
e não havia a malda<strong>de</strong> que há entre<br />
as crianças <strong>na</strong>s outras escolas.”<br />
Quan<strong>do</strong> questio<strong>na</strong><strong>do</strong> sobre uma<br />
possível distinção entre a irmã,<br />
ele e os colegas, a resposta é directa:<br />
“A minha mãe nunca fez distinção<br />
nem me facilitava mais a mim<br />
ou à minha irmã. Éramos to<strong>do</strong>s<br />
possibilitam os primeiros passos<br />
acompanha<strong>do</strong>s no mun<strong>do</strong> nocturno<br />
da música. Os estilos que<br />
apren<strong>de</strong>m são varia<strong>do</strong>s: house,<br />
techno ou trance. Nas aulas, os<br />
aspirantes a DJ’s vêem filmes e<br />
<strong>do</strong>cumentários sobre mixagem<br />
ou actuações em palco <strong>de</strong> DJ’s <strong>de</strong><br />
renome, experimentam a mistura<br />
<strong>de</strong> temas, <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong> lenta,<br />
para se iniciarem nesta arte e<br />
paixão. A avaliação, por agora,<br />
é feita com testes teóricos, mas<br />
mais tar<strong>de</strong> será feita pelo público,<br />
pelos <strong>do</strong>nos das discotecas e<br />
por to<strong>do</strong>s os gran<strong>de</strong>s profissio<strong>na</strong>is<br />
<strong>do</strong> DJ’ing. Ainda assim, e<br />
como as aulas <strong>de</strong>correm num<br />
bar, os aprendizes experimentam<br />
a reacção <strong>do</strong> público ao seu<br />
<br />
VÂNIA SANTOS<br />
iguais”, diz. A professora concorda:<br />
“Da porta <strong>de</strong> casa para fora era<br />
a mãe, da porta da sala para <strong>de</strong>ntro<br />
era a professora”. Quan<strong>do</strong> chegou<br />
a altura <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> escola, a integração<br />
foi difícil: “Eu não estava<br />
acostuma<strong>do</strong> a dizer as asneiras<br />
que os outros diziam, nem sabia<br />
certas coisas que eles sabiam”,<br />
comenta. Para Leonor a dificulda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> adaptação não se <strong>de</strong>ve só ao<br />
facto <strong>de</strong> se ter esta<strong>do</strong> numa escola<br />
diferente. “É frequente em casos<br />
<strong>de</strong>ste tipo a integração ser difícil,<br />
no entanto, isso varia <strong>de</strong> criança<br />
para criança. É um ambiente<br />
novo, com outras crianças, e como<br />
se sabe, os miú<strong>do</strong>s são muito cruéis<br />
uns com os outros”, diz.<br />
Para os pais, as mais valias são<br />
“mais que muitas”. Estão dispostos<br />
a pagar a alguém que possa per<strong>de</strong>r<br />
tempo e atenção com os filhos. O<br />
apoio emocio<strong>na</strong>l e atenção <strong>de</strong>dicada<br />
às crianças são pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntes<br />
<strong>na</strong> escolha, assim como a fraca qualida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ensino <strong>na</strong>s escolas. “Muitos<br />
(pais) vêm ter comigo porque<br />
os filhos não apren<strong>de</strong>m <strong>na</strong>da <strong>na</strong>s<br />
escolas, e por isso querem alguém<br />
trabalho, pon<strong>do</strong> música às sextas<br />
e sába<strong>do</strong>s à noite. “Eles são tími<strong>do</strong>s,<br />
têm me<strong>do</strong>, estão aqui no<br />
bar com umas cem pessoas e as<br />
mãos tremem, como me aconteceu<br />
a primeira vez que toquei a<br />
sério, em que nem olhava para<br />
a pista… estava extremamente<br />
nervoso, tinha seiscentas pessoas<br />
à minha frente, numa festa a<br />
sério, com o Luís Leite, e outros,<br />
pessoas que eu olhava como fã”,<br />
lembra o Pedro, com um sorriso<br />
rasga<strong>do</strong> e olhos perdi<strong>do</strong>s no<br />
tempo. No meio das lembranças,<br />
vai contan<strong>do</strong> que é importante<br />
experimentar outras realida<strong>de</strong>s,<br />
como lhe aconteceu, durante os<br />
quatro anos que viveu <strong>na</strong> Suécia,<br />
em que contactou com outros estilos<br />
musicais, como o eurotrance.<br />
Pedro promete que estas aulas<br />
não ficam por aqui: “Quan<strong>do</strong> tiver<br />
uma verda<strong>de</strong>ira escola, sei<br />
que vou ter mais alunos e posso<br />
apresentar um projecto <strong>na</strong> câmara<br />
municipal para tirar os miú<strong>do</strong>s<br />
das drogas, já que po<strong>de</strong>m vir<br />
aqui tirar cursos… aí farei preços<br />
mais reduzi<strong>do</strong>s e posso fazer outros<br />
projectos neste meio”.<br />
Olhan<strong>do</strong> para o relógio, que<br />
aponta agora para as oito, o Pedro<br />
apercebe-se que está <strong>na</strong> hora<br />
<strong>de</strong> pôr as cervejas no frigorífico<br />
para logo. Fecha-se a porta. Mais<br />
uma hora e o bar está aberto,<br />
para os clientes que vêm jogar<br />
matraquilhos, beber um copo,<br />
falar com os amigos. As aulas ficam<br />
para amanhã.<br />
que possa per<strong>de</strong>r tempo com eles”,<br />
diz Leonor. A falta <strong>de</strong> segurança<br />
nos estabelecimentos <strong>de</strong> ensino<br />
é outro motivo que leva os pais a<br />
preferirem o ensino particular <strong>do</strong>méstico,<br />
principalmente quan<strong>do</strong><br />
as crianças têm dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> integração<br />
e <strong>de</strong> concentração.<br />
Actualmente, Rute frequenta o 7º<br />
ano, mas antes passou os primeiros<br />
anos <strong>de</strong> infância com Leonor, até ir<br />
para o 5º ano. Rute sabe que a sua<br />
“eter<strong>na</strong>” professora é alguém com<br />
quem po<strong>de</strong> sempre contar. “Ainda<br />
a venho visitar, costumamos falar<br />
pela Internet. A minha professora<br />
conhece-me melhor <strong>do</strong> que a minha<br />
mãe”, diz com um sorriso.<br />
Actualmente, Leonor <strong>de</strong>dica-se inteiramente<br />
ao sobrinho <strong>de</strong> ape<strong>na</strong>s<br />
4 anos e a algumas explicações. Se<br />
<strong>po<strong>de</strong>r</strong>á vir a ensiná-lo tal como o fez<br />
com outras crianças, a resposta é<br />
clara: “Prefiro que ele esteja aqui e<br />
aprenda realmente bem. Fico mais<br />
<strong>de</strong>scansada e segura”. Não se sabe<br />
como será o futuro <strong>de</strong> Lourenço,<br />
nem como será a sua integração<br />
numa outra escola, mas certamente<br />
se sabe que irá guardar <strong>na</strong> memória<br />
as recordações da tia – professora.<br />
Longe vão os tempos em que<br />
Ber<strong>na</strong>r<strong>do</strong> e Rute ali se sentaram. As<br />
recordações são boas: os amigos, os<br />
passeios pelo parque e pelo campo,<br />
até mesmo os “raspanetes” da professora.<br />
Recordações <strong>de</strong> uma escola<br />
que como Ber<strong>na</strong>r<strong>do</strong> diz é uma “escola<br />
como tantas outras”.
12 MUNDO<br />
LÓBIS<br />
Bruxelas, capital<br />
europeia <strong>do</strong> <strong>lóbi</strong><br />
<br />
<br />
<br />
<br />
OS LÓBIS NA CAPITAL DA EUROPA.<br />
TERESA MOURÃO FERREIRA<br />
ANTÓNIO VIEIRA<br />
CORRESPONDENTES EM BRUXELAS<br />
Bruxelas, uma tar<strong>de</strong> como tantas<br />
outras. Sob um céu cinzento e<br />
triste per<strong>de</strong>-se a conta <strong>do</strong>s vultos<br />
que pelas ruas <strong>de</strong>ambulam. Estamos<br />
em pleno Bairro Europeu.<br />
Este foi outrora conheci<strong>do</strong> por<br />
Quartier Leopold, uma elegante<br />
zo<strong>na</strong> resi<strong>de</strong>ncial da cida<strong>de</strong>, planeada<br />
à semelhança <strong>do</strong> Bloomsbury<br />
londrino, com diversos<br />
edifícios Arte Nova, que praticamente<br />
<strong>de</strong>sapareceram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />
Bruxelas se tornou a capital da<br />
vida europeia. Hoje, encontramse<br />
aqui, entre a Avenue <strong>de</strong>s Arts<br />
e o Parc du Cinquente<strong>na</strong>ire, não<br />
só gran<strong>de</strong>s centros mundiais <strong>de</strong><br />
<strong>po<strong>de</strong>r</strong> como também as se<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
milhares <strong>de</strong> instituições que os<br />
procuram influenciar. O fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong><br />
dia é aproveita<strong>do</strong> ao máximo por<br />
estas estruturas para dar a conhecer<br />
aos órgãos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão os<br />
seus pontos <strong>de</strong> vista.<br />
Do Parlamento saem em romaria<br />
alguns <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s. Dirigem-se ao<br />
Hotel Resi<strong>de</strong>nce, on<strong>de</strong> em poucos<br />
minutos entrarão num outro<br />
mun<strong>do</strong>, numa realida<strong>de</strong> que não<br />
é a sua… por enquanto. Com um<br />
cocktail generoso, num ambiente<br />
<strong>de</strong>scontraí<strong>do</strong> e informal, a European<br />
Internet Foundation (EIF)<br />
apresenta aos que vão chegan<strong>do</strong><br />
as últimas invenções tecnológicas<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da comunicação.<br />
Televisores ambulantes ultra-leves,<br />
ecrãs com imagens a três dimensões,<br />
máqui<strong>na</strong>s fotográficas<br />
com Bluetooth, controlo <strong>de</strong> segurança<br />
habitacio<strong>na</strong>l à distância,<br />
entre outras, parecem surpreen<strong>de</strong>r<br />
os convida<strong>do</strong>s. Esta fundação,<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, sem fins lucrativos<br />
e anti-partidária, procura <strong>do</strong>tar<br />
os <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s conhecimentos<br />
fundamentais da Socieda<strong>de</strong> em<br />
Re<strong>de</strong>. Só assim a <strong>po<strong>de</strong>r</strong>ão regulamentar<br />
com eficácia, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m as<br />
associações <strong>do</strong> <strong>lóbi</strong> audiovisual<br />
que compõem a EIF.<br />
Apesar <strong>de</strong> <strong>na</strong> maior parte <strong>do</strong>s<br />
países mediterrânicos ser ainda<br />
consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um assunto tabu, a<br />
verda<strong>de</strong> é que este fenómeno está<br />
bem presente <strong>na</strong>s <strong>de</strong>mocracias<br />
mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong>s. “Em todas as socieda<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong>senvolvidas os <strong>lóbi</strong>s têm<br />
si<strong>do</strong> fundamentais para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />
os interesses <strong>do</strong>s grupos mais<br />
pequenos e garantir o equilíbrio<br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong> o sistema <strong>de</strong>mocrático”,<br />
nota Joaquim Martins Lampreia<br />
<strong>na</strong> última obra que publicou,<br />
Lóbi – Ética, Técnica e Aplicação.<br />
Este perito em gestão <strong>de</strong> crise é o<br />
único lobista português acredita<strong>do</strong><br />
pelo Parlamento Europeu.<br />
Existem cerca <strong>de</strong> 15.000 lobistas<br />
em Bruxelas. A maioria, mais <strong>de</strong><br />
70%, pertence a gran<strong>de</strong>s empre-<br />
Embora muitos evitem<br />
assumi-lo, como<br />
acontece no nosso<br />
país, ser lobista é uma<br />
profissão como outra<br />
qualquer<br />
sas ou corporações, 20% <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />
os interesses das regiões, cida<strong>de</strong>s<br />
e instituições inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, e<br />
ape<strong>na</strong>s 10% representa as organizações<br />
não gover<strong>na</strong>mentais (e<br />
entre elas, sindicatos e grupos <strong>de</strong><br />
protecção <strong>do</strong> ambiente). Ninguém<br />
po<strong>de</strong> ignorar a força que o <strong>lóbi</strong><br />
tem vin<strong>do</strong> a adquirir no panorama<br />
europeu. Qualquer empresa<br />
ou sector tem os seus interesses<br />
representa<strong>do</strong>s, principalmente<br />
perante instituições como a Co-<br />
missão Europeia, o Conselho da<br />
União Europeia e o Parlamento<br />
Europeu.<br />
Gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s lobistas tem<br />
formação em advocacia. Po<strong>de</strong>m<br />
pertencer a associações <strong>de</strong> classe<br />
e confe<strong>de</strong>rações, empresas e<br />
grupos empresariais, especialistas<br />
em comunicação, ONGs,<br />
entre outros. Embora muitos<br />
evitem assumi-lo, como acontece<br />
no nosso país, ser lobista<br />
é uma profissão como outra<br />
qualquer. Exige bases sólidas<br />
em direito e política, boas capacida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> comunicação e<br />
constante actualização. O seu<br />
trabalho não se resume à busca<br />
<strong>de</strong> argumentos que <strong>de</strong>fendam<br />
<strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong>s interesses perante<br />
o legisla<strong>do</strong>r. É uma activida<strong>de</strong><br />
cada vez mais complexa, que<br />
reúne também competências <strong>de</strong><br />
estratégia. Talvez seja por isso<br />
que muitos lobistas profissio<strong>na</strong>is<br />
tenham pertenci<strong>do</strong> a governos,<br />
se<strong>na</strong><strong>do</strong>s ou instituições<br />
comunitárias. Note-se o caso <strong>de</strong><br />
Henry Kissinger, ex-Secretário<br />
<strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> norte-americano.<br />
A sua experiência e prestígio,<br />
alia<strong>do</strong>s a um conhecimento profun<strong>do</strong><br />
das instâncias políticas e<br />
<strong>do</strong> seu funcio<strong>na</strong>mento, levaramno<br />
a tor<strong>na</strong>r-se num <strong>do</strong>s mais influentes<br />
lobistas <strong>do</strong>s EUA.<br />
<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
O Q<strong>UE</strong> É O LÓBI?<br />
Deriva <strong>do</strong> anglo-americano “Lobby”, palavra que começou por<br />
<strong>de</strong>sig<strong>na</strong>r os corre<strong>do</strong>res da Câmara <strong>do</strong>s Comuns em Inglaterra,<br />
on<strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> pressão procuravam influenciar os parlamentares.<br />
Em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX adquire a sua concepção<br />
mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong>. Define qualquer grupo <strong>de</strong> interesses forma<strong>do</strong> com o<br />
objectivo <strong>de</strong> influenciar a <strong>de</strong>cisão política, a lei, ou o rumo <strong>de</strong><br />
outras situações. Não se trata <strong>de</strong> corrupção mas <strong>de</strong> pressão,<br />
tu<strong>do</strong> nos limites da legalida<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong> ser feito, por exemplo,<br />
através <strong>de</strong> organizações, associações <strong>de</strong> consumi<strong>do</strong>res, or<strong>de</strong>ns<br />
profissio<strong>na</strong>is e sindicatos. Pelo <strong>lóbi</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m-se não só<br />
interesses económicos e estatais mas também os da socieda<strong>de</strong><br />
civil em geral.<br />
A IGREJA CATÓLICA TAMBÉM FAZ LÓBI. Ainda há pouco tempo<br />
o Vaticano procurou influenciar o Parlamento Europeu para que<br />
este incluísse uma referência ao Cristianismo no novo Trata<strong>do</strong><br />
Constitucio<strong>na</strong>l. O Padre Firmino Cachada, representante em<br />
Bruxelas da ONG Sol Sem Fronteiras, teve diversos contactos<br />
com membros das Instituições. Com Ribeiro e Castro, actual lí<strong>de</strong>r<br />
<strong>do</strong> CDS-PP, trabalhou <strong>na</strong> luta pelos direitos humanos: em<br />
Moçambique, no combate ao tráfico <strong>de</strong> órgãos, e nos países <strong>de</strong><br />
África, América e Pacífico <strong>na</strong> reabilitação <strong>do</strong>s povos recém-saí<strong>do</strong>s<br />
<strong>de</strong> guerras civis.<br />
Da sua experiência como lobista <strong>na</strong> União Europeia, o sacer<strong>do</strong>te<br />
realça: os <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s e funcionários europeus são mais acessíveis<br />
<strong>do</strong> que se pensa. Por vezes até agra<strong>de</strong>cem os contactos e<br />
normalmente respon<strong>de</strong>m sempre; a Comissão Europeia também<br />
o faz, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o assunto aborda<strong>do</strong> seja sério. Como existem<br />
muitas solicitações, os <strong>do</strong>ssiês <strong>de</strong>vem ser bem prepara<strong>do</strong>s, para<br />
terem credibilida<strong>de</strong>. Não é forçoso ter um gabinete em Bruxelas<br />
para se fazer <strong>lóbi</strong> junto das instituições europeias. Mas uma visita<br />
ou um encontro pessoal (se possível) tem sempre outro peso.<br />
PORTUGAL E O LÓBI. Portugal faz <strong>lóbi</strong>, como acontece com a<br />
maioria <strong>do</strong>s governos <strong>de</strong>mocráticos. Uma parte <strong>do</strong> orçamento<br />
<strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros é <strong>de</strong>sti<strong>na</strong>da a subsidiar<br />
(<strong>de</strong> forma confi<strong>de</strong>ncial) esta activida<strong>de</strong>. Do turismo à política,<br />
passan<strong>do</strong> pela cultura, comércio ou indústria, os interesses <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is<br />
são <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>s pelo mun<strong>do</strong> fora sem que muitos portugueses<br />
o saibam. No fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong>s anos noventa, por exemplo, Bruce<br />
Cameron, lobista americano regista<strong>do</strong>, procurou chamar a atenção<br />
<strong>do</strong> Governo <strong>do</strong> seu país para o que se passava em Timor-Leste. Contrata<strong>do</strong><br />
pelo Esta<strong>do</strong> Português, que como antigo coloniza<strong>do</strong>r <strong>de</strong>fendia<br />
a auto<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong> povo timorense, conseguiu o apoio <strong>do</strong>s<br />
EUA para que se negociasse um acor<strong>do</strong> com a In<strong>do</strong>nésia.<br />
Na Europa é igualmente comum<br />
que antigos funcionários políticos<br />
se juntem a grupos <strong>de</strong> interesses<br />
no fi<strong>na</strong>l da sua carreira.<br />
A este fenómeno dá-se o nome <strong>de</strong><br />
revolving <strong>do</strong>ors. Em Bruxelas, o<br />
<strong>lóbi</strong> tem-se vin<strong>do</strong> a mostrar cada<br />
vez mais abrangente. Note-se que<br />
aos 300 lobistas regista<strong>do</strong>s no<br />
Parlamento Europeu <strong>na</strong> década<br />
TERESA MOURÃO FERREIRA / ANTÓNIO VIEIRA<br />
<strong>de</strong> 90 suce<strong>de</strong>m agora 5000, ou seja,<br />
uma média <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 7 lobistas<br />
para cada euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>. Mesmo<br />
assim, falta uma legislação comunitária<br />
neste <strong>do</strong>mínio.<br />
Olivier Hoe<strong>de</strong>man, <strong>do</strong> Corporate<br />
Europe Observatory, uma entida<strong>de</strong><br />
que estuda os impactos negativos<br />
<strong>do</strong> exercício das corporações<br />
e respectivos <strong>lóbi</strong>s nos direitos<br />
<strong>do</strong>s cidadãos europeus, consi<strong>de</strong>ra<br />
fundamental que se estabeleçam<br />
regras <strong>de</strong> transparência: “A luz<br />
<strong>do</strong> sol é o melhor <strong>de</strong>sinfectante e é<br />
mais difícil haver práticas irresponsáveis<br />
<strong>de</strong> <strong>lóbi</strong> quan<strong>do</strong> estas<br />
são visíveis e escruti<strong>na</strong>das pelo<br />
público. O secretismo em que está<br />
envolto o <strong>lóbi</strong> da <strong>UE</strong> é símbolo <strong>de</strong><br />
um défice <strong>de</strong>mocrático a que se<br />
<strong>de</strong>verá pôr fim”. Hoe<strong>de</strong>man sublinha<br />
a força que os <strong>lóbi</strong>s têm vin<strong>do</strong><br />
a adquirir em Bruxelas, lembran<strong>do</strong><br />
as palavras <strong>do</strong> lobista veterano<br />
Daniel Guéguen: “no futuro, vamos<br />
ten<strong>de</strong>r a a<strong>do</strong>ptar estratégias<br />
<strong>de</strong> <strong>lóbi</strong> ainda mais duras, que<br />
<strong>po<strong>de</strong>r</strong>ão incluir práticas como a<br />
manipulação, <strong>de</strong>stabilização ou<br />
<strong>de</strong>sinformação”.<br />
Até nos EUA, on<strong>de</strong> a legislação é<br />
rigorosa, se notam alguns abusos.<br />
Lembre-se o recente escândalo Jack<br />
Abramoff, um <strong>po<strong>de</strong>r</strong>oso lobista <strong>de</strong><br />
Washington, que prejudicou os seus<br />
clientes em 82,5 milhões <strong>de</strong> dólares,
TERESA MOURÃO FERREIRA / ANTÓNIO VIEIRA<br />
8ª COLINA I JUNHO 2006<br />
representam, qual a sua missão<br />
e como são fi<strong>na</strong>ncia<strong>do</strong>s”, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />
Kallas. Também para José Manuel<br />
Barroso este é um <strong>do</strong>s assuntos a<br />
ter em conta <strong>na</strong> discussão <strong>do</strong> futuro<br />
da Europa ao longo <strong>do</strong> mês <strong>de</strong><br />
Junho: “Precisamos <strong>de</strong> uma maior<br />
transparência perante o público, se<br />
queremos manter a legitimida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />
processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão europeu”.<br />
Tanto os comissários como gran<strong>de</strong><br />
parte <strong>do</strong>s grupos <strong>de</strong> pressão se têm<br />
mostra<strong>do</strong> empenha<strong>do</strong>s em preparar<br />
leis que evitem fenómenos<br />
como as campanhas <strong>de</strong> “mass comunication”,<br />
conflitos <strong>de</strong> interesse<br />
<strong>de</strong> parti<strong>do</strong>s fi<strong>na</strong>ncia<strong>do</strong>s pela <strong>UE</strong>,<br />
força excessiva <strong>do</strong>s <strong>lóbi</strong>s <strong>de</strong> corporações<br />
com acesso privilegia<strong>do</strong>,<br />
falta <strong>de</strong> transparência em relação<br />
aos fun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> cada grupo, casos <strong>de</strong><br />
“revolving <strong>do</strong>ors”, alianças entre<br />
<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s e Indústria ou <strong>lóbi</strong> intensivo<br />
no Parlamento. A par da regulamentação,<br />
prevê-se ainda que se<br />
estabeleçam códigos <strong>de</strong> conduta e<br />
sanções para quem não os aplicar.<br />
Não se po<strong>de</strong> portanto dizer que haja<br />
<strong>na</strong> Europa um sistema <strong>de</strong> <strong>lóbi</strong>s idêntico<br />
ao americano, nem tão pouco<br />
um controle estrito como acontece<br />
“Sejam bem-vin<strong>do</strong>s!” - exclama alegremente<br />
Frances Moore, chefe <strong>do</strong> escritório<br />
regio<strong>na</strong>l da IFPI, Inter<strong>na</strong>tio<strong>na</strong>l Fe<strong>de</strong>ration<br />
of the Phonograph Industry, em Bruxelas.<br />
Por corre<strong>do</strong>res <strong>de</strong>cora<strong>do</strong>s com fotografias<br />
<strong>de</strong> concertos e artistas, leva-nos a conhecer<br />
os restantes elementos da equipa. Recebem-nos<br />
com sorrisos e com gran<strong>de</strong> orgulho<br />
em mostrar o que fazem. Aqui, cada<br />
um tem uma função específica, mas to<strong>do</strong>s<br />
agem para o mesmo objectivo: <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a<br />
<strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Atlântico.<br />
Os EUA e o Ca<strong>na</strong>dá<br />
têm legislação para assegurar<br />
a integrida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s<br />
<strong>lóbi</strong>s, tal como a Polónia,<br />
a Lituânia e a Hungria.<br />
“Mais <strong>do</strong> que copiar os<br />
mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> transparência<br />
que se têm <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong><br />
nesses países, a União Europeia<br />
<strong>de</strong>ve criar um sistema<br />
mo<strong>de</strong>rno próprio”,<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Hoe<strong>de</strong>man, acrescentan<strong>do</strong><br />
que “o registo<br />
online <strong>do</strong>s lobistas e seus<br />
objectivos, das fontes <strong>de</strong><br />
fi<strong>na</strong>nciamento e <strong>do</strong>s interesses<br />
representa<strong>do</strong>s po<strong>de</strong><br />
ser feito a baixo custo e<br />
sem burocracia usan<strong>do</strong><br />
tecnologias avançadas”.<br />
Do seu ponto <strong>de</strong> vista,<br />
esta informação <strong>de</strong>veria<br />
estar acessível ao público<br />
europeu e não ape<strong>na</strong>s às<br />
instituições da <strong>UE</strong>.<br />
Enquanto isso não<br />
acontece, o bom-senso<br />
continua a ser o único orienta<strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong> lobista europeu. Uns<br />
aproveitar-se-ão disso para ope-<br />
Que tal pôr a Europa<br />
a ouvir música?<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> subor<strong>na</strong>r pessoas <strong>do</strong> Congresso,<br />
<strong>de</strong>mocratas e republicanos,<br />
com férias <strong>de</strong> sonho nos mais diversos<br />
<strong>de</strong>stinos. O <strong>lóbi</strong> americano é<br />
profundamente marca<strong>do</strong> pelo <strong>po<strong>de</strong>r</strong><br />
<strong>do</strong> capital, não existe nenhuma lei<br />
que proíba a oferta <strong>de</strong> viagens. Em<br />
Bruxelas, mesmo com um ambiente<br />
adverso à influência <strong>do</strong> dinheiro,<br />
<strong>na</strong>da garante que esta não exista.<br />
A 3 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong>ste ano, Siim Kallas,<br />
Vice-Presi<strong>de</strong>nte da Comissão, apresentou<br />
a Iniciativa Europeia <strong>de</strong><br />
Transparência, propon<strong>do</strong> um sistema<br />
voluntário <strong>de</strong> registo <strong>de</strong> <strong>lóbi</strong>s.<br />
“O <strong>lóbi</strong> é perfeitamente legítimo,<br />
mas à medida que o fenómeno cresce,<br />
<br />
<strong>de</strong>vemos assegurar que há clare-<br />
<br />
música <strong>na</strong> União Europeia.<br />
Frances frisa que “o <strong>lóbi</strong> implica um<br />
trabalho colectivo, sen<strong>do</strong> essencial que<br />
haja bom espírito <strong>de</strong> equipa”. A <strong>de</strong>scontracção<br />
<strong>do</strong> ambiente comprova-o, mas a<br />
responsabilida<strong>de</strong> é elevada. A legislação<br />
europeia tem um gran<strong>de</strong> impacto <strong>na</strong> indústria<br />
fonográfica e cabe à IFPI exercer<br />
pressão <strong>de</strong> forma a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os interesses<br />
<strong>do</strong>s artistas e editoras.<br />
A tarefa não tem si<strong>do</strong> fácil. Lutar pelos di-<br />
rar <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> ilícito, sem olhar a<br />
meios para atingir os seus objectivos.<br />
Outros terão em conta os<br />
limites morais e procurarão influenciar<br />
sem entrar em excessos.<br />
No fun<strong>do</strong>, é como em qual-<br />
reitos <strong>de</strong> autor ou combater a pirataria, por<br />
exemplo, acaba por ir contra os interesses<br />
<strong>de</strong> outras entida<strong>de</strong>s. Note-se o caso das empresas<br />
<strong>de</strong> telecomunicações. No ano 2000,<br />
quan<strong>do</strong> a Comissão Europeia começou a<br />
trabalhar <strong>na</strong> directiva para os copyright<br />
<strong>na</strong> Internet, “as companhias <strong>de</strong> telecomunicações<br />
começaram a enviar cente<strong>na</strong>s <strong>de</strong><br />
cartas para a Comissão, o que a preocupou.<br />
Os comissários não percebiam que<br />
se tratava <strong>de</strong> uma técnica <strong>de</strong> <strong>lóbi</strong>: mandar<br />
um eleva<strong>do</strong> número <strong>de</strong> cartas <strong>de</strong> forma a<br />
criar a ilusão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sequilíbrio”, recorda<br />
Frances. A IFPI respon<strong>de</strong>u, optan<strong>do</strong> por<br />
continuar a apostar <strong>na</strong> qualida<strong>de</strong> e não <strong>na</strong><br />
quantida<strong>de</strong>. E acabou por ganhar o <strong>de</strong>bate.<br />
“Há muitas técnicas <strong>de</strong> <strong>lóbi</strong>”, diz Frances,<br />
“o segre<strong>do</strong> está em saber a<strong>na</strong>lisar a situação<br />
e compreen<strong>de</strong>r qual a mais indicada”.<br />
MUNDO 13<br />
quer outra activida<strong>de</strong>: tu<strong>do</strong> se<br />
resume a uma questão <strong>de</strong> ética e<br />
profissio<strong>na</strong>lismo.<br />
Tu<strong>do</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong>s objectivos a alcançar e<br />
<strong>do</strong> contexto da actuação.<br />
Meetings, concertos ou almoços, entre outros,<br />
são realiza<strong>do</strong>s com frequência para<br />
divulgar o trabalho da indústria fonográfica.<br />
Práticas que procuram criar uma empatia<br />
com os <strong>po<strong>de</strong>r</strong>es políticos e que po<strong>de</strong>m<br />
vir a ser fulcrais aquan<strong>do</strong> da legislação.<br />
Neste processo, <strong>na</strong>da é <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> ao acaso.<br />
Até a possível utilização <strong>do</strong>s media é alvo<br />
<strong>de</strong> reflexão pon<strong>de</strong>rada. “Sabemos que a<br />
imprensa, como o Fi<strong>na</strong>ncial Times ou o Le<br />
Mon<strong>de</strong>, <strong>po<strong>de</strong>r</strong>á chamar a atenção <strong>do</strong>s <strong>de</strong>cisores”,<br />
lembra a jor<strong>na</strong>lista Francine Cunningham,<br />
responsável pelo <strong>de</strong>partamento<br />
<strong>de</strong> comunicação. No entanto, o recurso<br />
aos meios <strong>de</strong> comunicação social não é suficiente.<br />
“Uma campanha não se faz pelos<br />
media”, adverte Frances, “po<strong>de</strong>mos utilizálos<br />
se nos ajudarem, mas se fizermos uma<br />
campanha só a pensar neles, per<strong>de</strong>mo-la”.<br />
Nunca <strong>de</strong>ixam a arte <strong>de</strong> persuadir em mãos<br />
alheias. Na hora <strong>de</strong> abordar as instituições<br />
europeias, são os próprios elementos <strong>do</strong><br />
IFPI que entram em acção. “É uma questão<br />
<strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong>. Há muitas consultoras<br />
aqui em Bruxelas, o problema é que um<br />
dia abordam um euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong> por causa<br />
<strong>de</strong> uma coisa, e no dia seguinte já é outra<br />
qualquer”, critica Ágatha Pavia, advogada<br />
responsável pelas relações com o Parlamento<br />
Europeu e acrescenta: “Eu represento a<br />
IFPI há <strong>do</strong>is anos e sei como a indústria funcio<strong>na</strong>,<br />
o que me permite ser muito mais credível<br />
quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>fen<strong>do</strong> os seus interesses.”<br />
Ágatha encontra-se várias vezes por dia com<br />
os euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s. Tenta fazê-los compreen<strong>de</strong>r<br />
a posição da indústria fonográfica, esclarecen<strong>do</strong>-os<br />
quan<strong>do</strong> precisam <strong>de</strong> informações.<br />
“No fun<strong>do</strong>, é como uma relação social,<br />
em que nos ajudamos mutuamente”, conclui.<br />
Mas para se ser bem sucedi<strong>do</strong> aponta<br />
um factor fundamental: o da honestida<strong>de</strong>.<br />
Aí, to<strong>do</strong>s os elementos da IFPI mostram estar<br />
<strong>de</strong> acor<strong>do</strong>. Defen<strong>de</strong>m a rectidão da prática,<br />
sem recorrer a bluff ou exageros. Numa<br />
frase, Frances resume os seus pensamentos:<br />
“Quan<strong>do</strong> os argumentos são bons e se luta<br />
por boas causas, não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ultrapassar<br />
os limites”.
14 MUNDO<br />
O euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong> português, membro<br />
da Comissão da Cultura e da Educação,<br />
consi<strong>de</strong>ra o <strong>lóbi</strong> necessário no panorama<br />
comunitário, <strong>na</strong> medida em que<br />
este po<strong>de</strong> <strong>do</strong>tar os representantes <strong>de</strong><br />
informação válida. Reconhece porém<br />
a urgência <strong>de</strong> se criar em torno <strong>do</strong> sistema<br />
uma legislação que o torne mais<br />
perceptível e claro.<br />
De que forma po<strong>de</strong> o <strong>lóbi</strong> contribuir<br />
para o trabalho <strong>de</strong> um Euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>?<br />
Enquanto fornecer elementos <strong>de</strong> informação,<br />
é extremamente útil. Ninguém<br />
é abrangente num senti<strong>do</strong> enciclopédico<br />
em relação à realida<strong>de</strong> e<br />
portanto há entida<strong>de</strong>s e instâncias que<br />
preparam projectos <strong>de</strong> legislação. Há<br />
sempre interesses sacrifica<strong>do</strong>s e interesses<br />
<strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>s. O <strong>lóbi</strong> visa, por<br />
conta <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>sses interesses,<br />
dar-lhes expressão e conseguir que<br />
isso se repercuta num <strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong><br />
texto legal. É perfeitamente admissível<br />
que seja feito em termos lícitos,<br />
que permitam que uma opinião seja<br />
conhecida e fundamentada.<br />
Mas há casos mais complica<strong>do</strong>s, com<br />
questões éticas envolvidas, em que o<br />
<strong>lóbi</strong> não é assim tão evi<strong>de</strong>nte…<br />
Neste momento discute-se o apoio<br />
ao fi<strong>na</strong>nciamento da investigação <strong>na</strong>s<br />
células estami<strong>na</strong>is embrionárias. Não<br />
po<strong>de</strong>mos falar propriamente em <strong>lóbi</strong>,<br />
mas a verda<strong>de</strong> é que vão começar a<br />
chegar aos <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s mails a dizer<br />
“<strong>de</strong>fenda a vida, não se transforme<br />
num apoio ao assassínio”. Os milhares<br />
<strong>de</strong> pessoas que se manifestam pró ou<br />
contra, funcio<strong>na</strong>m também como uma<br />
espécie <strong>de</strong> <strong>lóbi</strong>. A sua actuação traduz-se<br />
<strong>na</strong> pressão sobre um <strong>de</strong>cisor<br />
político.<br />
VASCO GRAÇA MOURA<br />
“É importante que haja transparência”<br />
Como é o <strong>lóbi</strong> <strong>do</strong> nosso país?<br />
Em Portugal existe <strong>lóbi</strong>, mas é <strong>de</strong> uma<br />
forma inorgânica, informal. Há vários<br />
níveis. Num contexto europeu, se vier<br />
uma associação <strong>de</strong> empresários <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />
os seus pontos <strong>de</strong> vista, o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong><br />
tem interesse em conhecer a posição <strong>do</strong><br />
seu país <strong>na</strong>quele sector. Por exemplo, a<br />
Socieda<strong>de</strong> Portuguesa <strong>de</strong> Reumatologia<br />
contactou os <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s para conseguir<br />
que a investigação em torno <strong>de</strong>sta <strong>do</strong>ença,<br />
que afecta milhões <strong>de</strong> pessoas,<br />
seja subsidiada e incluída no próximo<br />
Programa Comunitário <strong>de</strong> Apoio. Isto<br />
parece-me bem justifica<strong>do</strong>, mas se não<br />
nos tivessem chama<strong>do</strong> a atenção, se<br />
calhar passava-nos completamente.<br />
Mantém-se algum tipo <strong>de</strong> relação en-<br />
O que elas têm a dizer<br />
Tu<strong>do</strong> começou há 16 anos,<br />
quan<strong>do</strong> vários grupos feministas<br />
europeus se uniram no<br />
esforço <strong>de</strong> criar uma representação<br />
sua em Bruxelas capaz<br />
<strong>de</strong> influenciar as <strong>de</strong>cisões<br />
comunitárias. Nascia assim o<br />
Lóbi Europeu das Mulheres<br />
(LEM). O organismo, o maior<br />
<strong>do</strong> género <strong>na</strong> <strong>UE</strong>, foi crescen<strong>do</strong><br />
e hoje conta já com filiações<br />
em 25 países.<br />
Lutam por ser ouvidas, mas<br />
sabem que há um longo caminho<br />
a percorrer. “A <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><br />
ainda está bem presente”,<br />
lamenta Cécile Greboval,<br />
coor<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong>ra das activida<strong>de</strong>s<br />
<strong>do</strong> LEM, “a diferença salarial<br />
média entre sexos atinge os<br />
20% <strong>na</strong> União Europeia, além<br />
disso continua a haver poucas<br />
mulheres nos lugares <strong>de</strong> chefia,<br />
note-se por exemplo que<br />
70% <strong>do</strong> Parlamento Europeu<br />
é composto por homens”.<br />
O objectivo <strong>de</strong>sta instituição<br />
é fundamentalmente<br />
político: promover a<br />
TERESA MOURÃO FERREIRA / ANTÓNIO VIEIRA<br />
<br />
igualda<strong>de</strong> entre homens e<br />
mulheres e, em termos laborais,<br />
implementar medidas<br />
que facilitem o acesso<br />
<strong>de</strong>stas últimas aos órgãos<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão. As instituições<br />
europeias têm-se mostra<strong>do</strong><br />
receptivas, no entanto, é<br />
comum que os seus esforços<br />
falhem. Para Cécile é<br />
fundamental que haja uma<br />
acção integrada, o que não<br />
tem vin<strong>do</strong> a acontecer: “Os<br />
Governos <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m que as<br />
mulheres <strong>de</strong>vem trabalhar,<br />
mas <strong>de</strong>pois há cortes<br />
nos serviços encarrega<strong>do</strong>s<br />
da guarda <strong>de</strong> crianças e a<br />
participação <strong>do</strong>s homens<br />
no trabalho <strong>do</strong>méstico<br />
continua quase inexistente.<br />
Para nós é preciso uma<br />
reflexão mais global: não<br />
po<strong>de</strong> haver igualda<strong>de</strong> <strong>na</strong><br />
socieda<strong>de</strong>, se esta não existir<br />
em casa.”<br />
Para Cécile, a sua formação<br />
em Ciências Políticas tem<br />
si<strong>do</strong> útil. “Num <strong>lóbi</strong> eficaz<br />
TERESA MOURÃO FERREIRA / ANTÓNIO VIEIRA<br />
não é suficiente <strong>de</strong>nunciar. É<br />
preciso apresentar alter<strong>na</strong>tivas.<br />
Trata-se <strong>de</strong> um trabalho<br />
muito técnico em que temos<br />
<strong>de</strong> saber propor emendas a<br />
directivas e outros textos”.<br />
Quanto à reacção <strong>do</strong>s euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s,<br />
esta nem sempre<br />
é consensual. No problema<br />
das quotas <strong>de</strong> representação<br />
femini<strong>na</strong>, por exemplo. Céci-<br />
tre <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s e <strong>lóbi</strong>s?<br />
No meu caso não, é tu<strong>do</strong> meramente<br />
esporádico.<br />
É possível misturar-se <strong>lóbi</strong> com propaganda?<br />
Às vezes acontece. Por exemplo, quan<strong>do</strong><br />
se <strong>de</strong>bateu a <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>ção <strong>de</strong> chocolate<br />
puro, houve um <strong>lóbi</strong> que teve não<br />
só contactos com muitos <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s,<br />
como manifestações exter<strong>na</strong>s à entrada<br />
<strong>do</strong> Parlamento com umas meni<strong>na</strong>s<br />
com ban<strong>de</strong>iras a darem chocolates.<br />
A Philips, no Natal <strong>do</strong> ano passa<strong>do</strong>,<br />
também tinha em Estrasburgo muitas<br />
caixas e isso era meramente promocio<strong>na</strong>l,<br />
para chamar a atenção. Ofereciam<br />
umas velas eléctricas aos <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s,<br />
foi uma promoção magnífica,<br />
le admite que existem muitos<br />
tabus, mas lembra que “to<strong>do</strong><br />
o sistema político <strong>de</strong>mocrático<br />
é organiza<strong>do</strong> com regras”,<br />
e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que “a parida<strong>de</strong> e as<br />
quotas são medidas para chegar<br />
a recursos que <strong>de</strong> outra<br />
forma seriam i<strong>na</strong>cessíveis.”<br />
As técnicas <strong>de</strong> <strong>lóbi</strong> utilizadas<br />
variam conforme a situação.<br />
“Po<strong>de</strong>m ser um encontro<br />
com um político, uma tomada<br />
pública <strong>de</strong> posição, petições<br />
ou comunica<strong>do</strong>s <strong>de</strong> imprensa”,<br />
enumera. A acção<br />
<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
sem gran<strong>de</strong>s custos.<br />
Mesmo sem legislação, há já limites<br />
para as ofertas?<br />
O bom senso é que regulamenta essas<br />
coisas. Já viu se me viessem entregar<br />
uma salva <strong>de</strong> ouro? Era um problema<br />
<strong>de</strong> bom senso e <strong>de</strong> serieda<strong>de</strong>. Num<br />
<strong>lóbi</strong> sem regras, selvagem, é possível<br />
que isso aconteça. Aqui não me apercebi<br />
disso. O <strong>lóbi</strong> é uma profissão que<br />
po<strong>de</strong> ser legítima, mas <strong>de</strong>ve ser regulamentada.<br />
Não correspon<strong>de</strong> necessariamente<br />
a batota. É uma expressão<br />
<strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s com uma<br />
<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da intervenção <strong>de</strong>cisória <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong> conjunto <strong>de</strong> interesses.<br />
Po<strong>de</strong>mos encontrar <strong>na</strong> Europa casos<br />
<strong>de</strong> chantagem?<br />
Não tenho conhecimento, mas é possível<br />
que sim, principalmente ao nível<br />
<strong>do</strong>s países. A regulamentação <strong>do</strong><br />
funcio<strong>na</strong>mento <strong>de</strong>ssas estruturas organizadas<br />
<strong>de</strong>ve ser colocada em termos<br />
<strong>de</strong> transparência e permitir que<br />
se perceba quem são, que interesses<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m e como funcio<strong>na</strong>m, para não<br />
haver manobras obscuras, para não<br />
haver “compras”….<br />
Existem também consultoras que<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m os interesses das mais<br />
variadas empresas, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> chegar<br />
a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r valores opostos em momentos<br />
diferentes…<br />
É importante que haja transparência e<br />
regulamentação, porque eles po<strong>de</strong>m<br />
mudar <strong>de</strong> poleiro. Até se diz que há ex<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s<br />
e ex-funcionários, pessoas<br />
que passaram a conhecer muito bem o<br />
mecanismo, a fazer <strong>lóbi</strong> hoje em dia…<br />
Já pensou nisso?<br />
Não, <strong>de</strong> maneira nenhuma. Eu nem pelos<br />
meus filhos faço <strong>lóbi</strong>! •<br />
<strong>do</strong> LEM centra-se sobretu<strong>do</strong><br />
<strong>na</strong>s instituições europeias,<br />
mas apoia também cada organização<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l para que<br />
esta exerça <strong>lóbi</strong> no seu país.<br />
Por vezes a abordagem parte<br />
<strong>do</strong>s próprios euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s<br />
e comissários. “Contactamos<br />
com muita gente para<br />
passar a nossa mensagem,<br />
mas também é comum serem<br />
as instituições a pedir-nos<br />
<strong>do</strong>cumentos ou a opinião”.<br />
Cria-se assim uma relação<br />
<strong>de</strong> confiança entre o <strong>po<strong>de</strong>r</strong> e<br />
o grupo <strong>de</strong> interesse.<br />
Lóbi e Feminismo, <strong>do</strong>is termos<br />
incómo<strong>do</strong>s a muita gente.<br />
Causam celeuma ainda<br />
maior quan<strong>do</strong> se apresentam<br />
juntos. Para a coor<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong>ra<br />
das activida<strong>de</strong>s <strong>do</strong><br />
LEM é tu<strong>do</strong> muito simples:<br />
“Para mim o feminismo não<br />
é mais <strong>do</strong> que trabalhar pelos<br />
direitos das mulheres.<br />
Se nós queremos a igualda<strong>de</strong>,<br />
menos violência e um<br />
respeito pelos direitos <strong>do</strong><br />
Homem, então muitos são<br />
um pouco feministas. Mas<br />
é verda<strong>de</strong> que poucos o vão<br />
admitir”.
VERA MOUTINHO<br />
8ª COLINA<br />
DOSSIÊ<br />
<br />
<strong>do</strong> meu avô<br />
<br />
PERDIDAS. AINDA HÁ ADOLESCENTES Q<strong>UE</strong> Q<strong>UE</strong>REM SER AGRICULTORES<br />
-<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
MAIS Q<strong>UE</strong> TELEVISÃO E INTERNET NA NOVA GERAÇÃO.
ANA RITA HENRIQ<strong>UE</strong>S<br />
16 DOSSIÊ<br />
ESCOLA PROFISSIONAL AGRÍCOLA D. DINIS DA PAIÃ<br />
ANA RITA HENRIQ<strong>UE</strong>S<br />
MARTA PAIS LOPES<br />
O dia é <strong>de</strong> festa <strong>na</strong> <strong>Escola</strong> Profissio<strong>na</strong>l<br />
D. Dinis <strong>na</strong> Paiã: o palco<br />
monta<strong>do</strong>, grupos <strong>de</strong> alunos prepara<strong>do</strong>s<br />
para dançar folclore,<br />
professores sua<strong>do</strong>s <strong>do</strong> jogo <strong>de</strong><br />
futebol contra os funcionários,<br />
mas em to<strong>do</strong>s se nota o cuida<strong>do</strong><br />
da roupa escolhida para aquele<br />
dia. Só o peditório para a<br />
garraiada daquele dia, que um<br />
aluno <strong>do</strong> terceiro ano estava a<br />
fazer <strong>de</strong> lata <strong>na</strong> mão, <strong>de</strong>ixava<br />
adivinhar que estávamos numa<br />
escola agrícola.<br />
Mas não era para a diversão<br />
que vínhamos. A parte formal<br />
<strong>do</strong> dia da escola estava a acontecer<br />
longe, nos campos mais<br />
abaixo, com uma visita guiada<br />
pelas instalações e os cinquenta<br />
e cinco hectares <strong>de</strong> exploração<br />
agrícola. Valeu-nos a boleia <strong>do</strong><br />
engenheiro Toni, responsável<br />
por toda a área agrícola, no seu<br />
Re<strong>na</strong>ult 4, que supúnhamos ser<br />
bege <strong>de</strong>baixo <strong>do</strong> cinzento da poeira.<br />
“Deixe-me só limpar aqui<br />
o banco. Sente-se em cima <strong>de</strong>ste<br />
saco <strong>de</strong> plástico.” Mesmo assim,<br />
a roupa saiu <strong>de</strong> lá amarela. Fi<strong>na</strong>lmente<br />
juntámo-nos ao grupo<br />
<strong>de</strong> professores, pais e convida<strong>do</strong>s,<br />
que ainda se <strong>de</strong>leitavam<br />
com a mesa <strong>de</strong> boas-vindas, <strong>de</strong><br />
croquetes e sumo <strong>de</strong> laranja.<br />
As gravatas e os saltos altos<br />
não nos pareceram apropria<strong>do</strong>s<br />
para o que se ia seguir.<br />
O Sr. Custódio, motorista da<br />
escola, hoje trocou os tractores<br />
pelo autocarro que conduz os<br />
visitantes. “À vossa esquerda,<br />
temos trigo. Temos ainda um<br />
pomar <strong>de</strong> macieiras e um pomar<br />
pedagógico, com as espécies<br />
mais representativas <strong>do</strong> país. À<br />
direita, três hectares <strong>de</strong> vinha.”<br />
- o engenheiro Aires, presi<strong>de</strong>nte<br />
<strong>do</strong> Conselho Directivo, é o<br />
On<strong>de</strong> estudar<br />
é or<strong>de</strong>nhar<br />
NO NONO ANO TOMA-SE A PRIMEIRA GRANDE DECISÃO. O Q<strong>UE</strong> LEVA ADOLESCENTES DE<br />
15 ANOS A ESCOLHER ESTUDAR AGRICULTURA? A VISITA A UMA ESCOLA Q<strong>UE</strong> É UM PEDA-<br />
CINHO DE CAMPO NO MEIO DE LISBOA.<br />
<br />
Sofia não sabe andar<br />
bem a cavalo, mas<br />
to<strong>do</strong>s os sába<strong>do</strong>s<br />
vai à escola ajudar a<br />
tratar <strong>do</strong> seu animal<br />
preferi<strong>do</strong>.<br />
cicerone da visita. De toda a escola,<br />
esta é a parte preferida <strong>de</strong><br />
Francisco. O miú<strong>do</strong> que vem <strong>de</strong><br />
Cascais, loiro, <strong>de</strong> olhos azuis,<br />
está no segun<strong>do</strong> ano <strong>do</strong> curso <strong>de</strong><br />
<br />
Produção Agrária e, tal como os<br />
seus colegas, para o ano terá <strong>de</strong><br />
escolher entre produção animal<br />
e produção vegetal. Francisco<br />
não tem dúvidas: “É vegetal, não<br />
estou muito vira<strong>do</strong> para os animais.<br />
Os suínos é horrível, tu<strong>do</strong><br />
menos suínos, é um cheiro… é<br />
nojento, é péssimo!”<br />
Depois das estufas e já <strong>de</strong> volta<br />
ao autocarro, sentimos os cheiros<br />
a mudar. A primeira paragem<br />
<strong>na</strong> parte da pecuária é o<br />
pica<strong>de</strong>iro. A receber-nos estão<br />
os alunos da escola <strong>de</strong> equitação<br />
da Paiã, que funcio<strong>na</strong> <strong>na</strong>s<br />
instalações da escola agrícola.<br />
Durante uns breves minutos os<br />
cavalos mostram toda a sua graça,<br />
em movimentos trei<strong>na</strong><strong>do</strong>s.<br />
Sofia não sabe andar bem a cavalo,<br />
mas to<strong>do</strong>s os sába<strong>do</strong>s vai à<br />
escola ajudar a tratar <strong>do</strong> seu animal<br />
preferi<strong>do</strong>. Tal como muitas<br />
raparigas da sua ida<strong>de</strong>, Sofia,<br />
18 anos, usa tops justos e calças<br />
<strong>de</strong>scaídas, ouve Black Eyed Peas<br />
e gosta <strong>do</strong>s Morangos com Açúcar.<br />
Como o Francisco, é loira,<br />
<strong>de</strong> olhos azuis. Mas, ao contrário<br />
<strong>do</strong> seu colega <strong>de</strong> turma, ela não<br />
tem nojo das vacas e <strong>do</strong>s porcos<br />
e, para o ano que vem, vai escolher<br />
produção animal.<br />
Sumário: Extracção <strong>do</strong> leite<br />
Foi junto a animais que encontrámos<br />
Sofia uns dias mais tar<strong>de</strong>,<br />
<strong>na</strong> aula <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nha, com o<br />
cós das calças <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> por causa<br />
da tatuagem ainda fresca no<br />
fun<strong>do</strong> das costas. Apesar <strong>de</strong> gostar<br />
<strong>de</strong> tratar das vacas, quan<strong>do</strong><br />
chega a altura <strong>de</strong> tirar o leite,<br />
Ir e vir <strong>de</strong> Be<strong>na</strong>vente to<strong>do</strong>s os<br />
dias seria um encargo muito<br />
gran<strong>de</strong> para Carlos, 19 anos. Por<br />
isso, <strong>de</strong>cidiu ficar a viver <strong>na</strong> escola,<br />
com mais 20 alunos. O inter<strong>na</strong>to<br />
da <strong>Escola</strong> Agrícola funcio<strong>na</strong><br />
durante a sema<strong>na</strong> e custa<br />
a cada aluno 200 Euros por mês.<br />
Rapazes e raparigas estão separa<strong>do</strong>s<br />
e os horários são muitos<br />
rígi<strong>do</strong>s. Têm até, to<strong>do</strong>s os dias,<br />
duas hora <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, que nem<br />
sempre são usadas para esse<br />
fim: “nós somos obriga<strong>do</strong>s a estar<br />
<strong>na</strong> sala <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, não somos<br />
obriga<strong>do</strong>s a estudar. Po<strong>de</strong>mos<br />
jogar às cartas, monopólio...”,<br />
confessa Carlos. Os rapazes po<strong>de</strong>m<br />
ir estudar para a sala das<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
ANA RITA HENRIQ<strong>UE</strong>S<br />
O INTERNATO<br />
não se sente muito segura: “Já<br />
não faço isto há muito tempo.<br />
Nós o ano passa<strong>do</strong> era todas as<br />
sema<strong>na</strong>s, mas este ano foi mesmo<br />
a primeira e última vez.” A<br />
professora Rosário vai dan<strong>do</strong><br />
indicações aos alunos <strong>do</strong> 2ºA.<br />
Primeiro limpa-se as tetas da<br />
vaca; <strong>de</strong>pois com as mãos tirase<br />
o primeiro leite e testa-se a<br />
sua qualida<strong>de</strong>; só então se coloca<br />
a máqui<strong>na</strong> para a extracção<br />
<strong>do</strong> leite e, no fi<strong>na</strong>l, <strong>de</strong>sinfecta-se<br />
as tetas. Sofia chama o Sr. Telmo,<br />
responsável pela vacaria,<br />
mas a professora não o <strong>de</strong>ixa<br />
ajudá-la. “Ela é insegura, mas<br />
As vacas estão <strong>na</strong> rua<br />
à espera da sua vez <strong>de</strong><br />
entrar.<br />
<strong>de</strong>pois faz sempre bem”, explica.<br />
Já Francisco, fazen<strong>do</strong> jus<br />
à hiperactivida<strong>de</strong> que lhe foi<br />
diagnosticada, não parece <strong>na</strong>da<br />
atrapalha<strong>do</strong> e até vai dan<strong>do</strong> uns<br />
palpites aos outros. “O que uma<br />
tem <strong>de</strong> auto-estima a menos, o<br />
outro tem a mais…”, critica,<br />
risonha, a professora Rosário.<br />
As vacas estão <strong>na</strong> rua à espera.<br />
Entram aos pares e, por isso, só<br />
<strong>do</strong>is alunos <strong>de</strong> cada vez po<strong>de</strong>m<br />
fazer a or<strong>de</strong>nha. Enquanto uns<br />
observam os colegas, outros vão<br />
preparar a alimentação <strong>do</strong>s vitelos,<br />
que só mamam <strong>do</strong> leite da<br />
mãe durante sete dias. A professora<br />
explica que, para ser misturada<br />
com o leite em pó, a água<br />
não po<strong>de</strong> estar nem muito fria,<br />
raparigas, mas o contrário não<br />
é permiti<strong>do</strong>. Apesar da rigi<strong>de</strong>z<br />
aparente, os alunos <strong>do</strong> inter<strong>na</strong>to<br />
não têm <strong>de</strong> cumprir as regras à<br />
risca. “Eu e os meus colegas <strong>do</strong><br />
terceiro ano, se quisermos sair<br />
to<strong>do</strong>s os dias, to<strong>do</strong>s os dias temos<br />
dispensa <strong>do</strong> engenheiro Aires<br />
até à meia-noite.” O quartos<br />
têm <strong>de</strong> estar sempre arruma<strong>do</strong>s<br />
e os alunos não po<strong>de</strong>m levar<br />
para lá <strong>na</strong>da além <strong>do</strong> básico.<br />
Mas as noites são animadas pela<br />
televisão, DVD e Playstation, que<br />
durante o dia não existem à vista<br />
<strong>de</strong> ninguém. Apesar <strong>de</strong> a vida<br />
no inter<strong>na</strong>to não ser <strong>de</strong>masia<strong>do</strong><br />
controlada, Carlos preferia ir<br />
para casa todas as noites.
8ª COLINA I JUNHO 2006 DOSSIÊ 17<br />
nem muito quente: “É como se<br />
fossem beber à temperatura <strong>do</strong><br />
leite da mãe”. A resposta <strong>de</strong> um<br />
aluno foi pronta: “Ó stôra, mas<br />
eu não me lembro…”.<br />
Quan<strong>do</strong> eu for gran<strong>de</strong><br />
A <strong>Escola</strong> Agrícola da Paiã é um<br />
oásis no meio <strong>de</strong> um <strong>de</strong>serto <strong>de</strong><br />
poluição. Em cima, a Pontinha,<br />
um conjunto <strong>de</strong> casas <strong>de</strong>gradadas<br />
com habitantes envelheci<strong>do</strong>s.<br />
Em baixo, estradas cheias<br />
<strong>de</strong> carros que voam em direcção<br />
aos prédios suburbanos.<br />
Ali mesmo ao la<strong>do</strong>, o Odivelas<br />
Parque. Foi este pedaço <strong>de</strong> ruralida<strong>de</strong><br />
que estes rapazes e<br />
raparigas <strong>de</strong> 16 e 17 anos escolheram<br />
para estudar. A Sofia<br />
esteve numa escola secundária<br />
normal, mas não se <strong>de</strong>u bem.<br />
“Depois fui para uma psicóloga<br />
e ela disse-me que havia<br />
esta escola. Nunca pensei que<br />
houvesse uma escola aqui tão<br />
perto que tivesse animais.” Ao<br />
contrário da maior parte <strong>do</strong>s<br />
alunos da Paiã, a Universida<strong>de</strong><br />
está nos planos <strong>de</strong> Sofia, que<br />
quer ser veterinária.<br />
A ambição <strong>de</strong> tirar um curso<br />
superior, nesta escola, não é<br />
regra. O professor Miguel, <strong>do</strong>cente<br />
<strong>de</strong> Área <strong>de</strong> Integração,<br />
afirma que “há uma <strong>de</strong>smotivação<br />
muito gran<strong>de</strong>, uma crise no<br />
ensino, que também se reflecte<br />
aqui.” Diz ainda que <strong>na</strong> escola<br />
já houve alunos melhores <strong>do</strong><br />
que agora. A engenheira Margarida,<br />
vice-presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> Con-<br />
A maior parte <strong>do</strong>s<br />
alunos quer acabar<br />
o 12º ano e seguir os<br />
negócios da família.<br />
selho Directivo, admite que os<br />
alunos da <strong>Escola</strong> Agrícola não<br />
são os que têm notas brilhantes.<br />
A maior parte quer acabar<br />
o 12º ano e seguir os negócios da<br />
família.<br />
Nos alunos da escola da Paiã, a<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s pais tor<strong>na</strong>-se muitas<br />
vezes <strong>na</strong> sua própria vonta<strong>de</strong>.<br />
A família <strong>de</strong> Francisco, 17<br />
anos, tem produção <strong>de</strong> ga<strong>do</strong> no<br />
Brasil, eucaliptos e pereiras.<br />
“Eu fui sempre muito pressio<strong>na</strong><strong>do</strong><br />
porque tenho quatro primos<br />
e uma irmã e foram to<strong>do</strong>s<br />
para coisas completamente diferentes.<br />
Eu sou o mais novo,<br />
alguém teve <strong>de</strong> seguir as coisas<br />
da família.” Esta não era a sua<br />
i<strong>de</strong>ia inicial: “Eu sempre gostei<br />
muito <strong>de</strong> arquitectura, era para<br />
ir para artes, mas… teve <strong>de</strong> ser.”<br />
A voz <strong>de</strong> Francisco não <strong>de</strong>nota<br />
qualquer tristeza ou embaraço<br />
quan<strong>do</strong> nos fala da escolha que<br />
fizeram por ele. “O meu avô é director<br />
da Caixa Agrícola, vai ao<br />
Brasil, vai às empresas. Mas tem<br />
85 anos e ele, o meu pai, a minha<br />
mãe dizem-me que ele precisa <strong>de</strong><br />
ajuda, começa a ficar velho.” A<br />
i<strong>de</strong>ia é o Francisco tomar o lugar<br />
<strong>do</strong> avô e toda a gente faz por<br />
isso. Como o Francisco, há outros<br />
exemplos. Conta-nos Sofia:<br />
“Há um rapaz que mora no Monsanto,<br />
o pai é guarda-florestal e<br />
ele vai para o pé <strong>do</strong> pai. Há outro<br />
que gosta tanto <strong>de</strong> tractores, que<br />
mal acabe isto, fica cá como tractorista.<br />
Como o Ricar<strong>do</strong>.”<br />
Ao Ricar<strong>do</strong> fomos encontrá-lo<br />
em cima <strong>do</strong> seu tractor. Parou<br />
para nos cumprimentar com o<br />
seu cativante sorriso tími<strong>do</strong> e<br />
simpático. As calças empoeiradas,<br />
a camisa aos quadra<strong>do</strong>s, <strong>de</strong><br />
mangas arregaçadas, e <strong>na</strong> cabeça<br />
uma boi<strong>na</strong> como usam os<br />
avós. Ricar<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>u <strong>na</strong> Casa<br />
Pia até ao nono ano, mesmo ali<br />
<strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da estrada, e acabou<br />
o ano passa<strong>do</strong> o curso <strong>de</strong><br />
Produção Agrária <strong>na</strong> <strong>Escola</strong> da<br />
Paiã. Depois <strong>de</strong> uma má experiência<br />
<strong>de</strong> trabalho em Castelo<br />
Branco, voltou às origens e hoje<br />
trabalha <strong>na</strong> escola como auxiliar<br />
agrícola. Mas o que Ricar<strong>do</strong><br />
quer mesmo é ser motorista,<br />
como o pai Custódio.<br />
Gosto mais <strong>de</strong> prática<br />
As ligações familiares não se<br />
ficam pelos laços <strong>de</strong> sangue entre<br />
o Ricar<strong>do</strong> e o Sr. Custódio.<br />
“A<strong>do</strong>ro os meus professores.<br />
Isto é como se fosse uma família.<br />
Toda a gente fala abertamente.”,<br />
diz Sofia. Para Francisco, no entanto,<br />
as coisas não correm assim<br />
tão bem. “Sempre me portei<br />
um boca<strong>do</strong> mal, fui expulso <strong>de</strong> 3<br />
escolas. Acho que aqui assentei<br />
um bocadinho, principalmente<br />
no segun<strong>do</strong> ano. No primeiro<br />
ano tivemos muitos problemas,<br />
mas não fui só eu, foi a turma inteira,<br />
dava-se tu<strong>do</strong> mal. Este ano<br />
correu bem.”<br />
O bom ambiente <strong>na</strong> escola é talvez<br />
facilita<strong>do</strong> pela partilha das activida<strong>de</strong>s<br />
ao ar livre. Sen<strong>do</strong> uma escola<br />
profissio<strong>na</strong>l, a escola da Paiã<br />
tem uma componente prática<br />
muito gran<strong>de</strong>, mas não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />
ser uma escola <strong>do</strong> ensino secundário.<br />
Sofia não se sente diminuída<br />
perante os amigos <strong>de</strong> fora: “Eu<br />
tenho amigos que querem seguir<br />
Medici<strong>na</strong> e é isso que eu quero<br />
<br />
também, Medici<strong>na</strong> Veterinária.<br />
An<strong>do</strong> numa escola agrícola porque<br />
gosto mais <strong>de</strong> prática.”<br />
Os alunos <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> ano têm<br />
oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estagiar num<br />
sítio à sua escolha, durante três<br />
sema<strong>na</strong>s. Tanto para Francisco,<br />
como para Sofia, o estágio serviu<br />
para confirmar os seus gostos.<br />
O rapaz não foi trabalhar com<br />
A <strong>Escola</strong> D. Dinis da Paiã é uma<br />
entre as 18 escolas profissio<strong>na</strong>is<br />
agrícolas <strong>do</strong> país e tem<br />
quatro cursos à escolha. Qualquer<br />
um <strong>do</strong>s cursos dá equivalência<br />
ao 12º ano e permite o<br />
ingresso tanto no ensino superior<br />
como no merca<strong>do</strong> trabalho,<br />
com uma qualificação <strong>de</strong> técnico<br />
profissio<strong>na</strong>l. Os cursos que<br />
trabalham com a terra são o <strong>de</strong><br />
Produção Agrária e o <strong>de</strong> Jardi-<br />
OS CURSOS<br />
<br />
o avô <strong>na</strong> Serra <strong>de</strong> Montejunto<br />
porque não se queria privar da<br />
companhia <strong>do</strong>s amigos e das tar<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> surf em Cascais. A minha<br />
mãe é veterinária e directora da<br />
divisão oeste <strong>do</strong> Ministério da<br />
Agricultura, e eu, para ver se<br />
era mesmo para vegetal que ia,<br />
fui fazer com ela a parte animal,<br />
em Loures.” Já Sofia só <strong>po<strong>de</strong>r</strong>ia<br />
<strong>na</strong>gem e Espaços Ver<strong>de</strong>s. Com<br />
um cariz mais mo<strong>de</strong>rno, existe<br />
o <strong>de</strong> Gestão <strong>de</strong> Ambiente e o <strong>de</strong><br />
Processamento e Controlo Alimentar.<br />
Os alunos <strong>de</strong>ste último<br />
curso encarregam-se da a<strong>de</strong>ga<br />
e da zo<strong>na</strong> <strong>de</strong> transformação alimentar<br />
– são eles que fabricam<br />
os queijos, vinhos, licores, compotas,<br />
enchi<strong>do</strong>s, que a escola<br />
ven<strong>de</strong> para fora e aos próprios<br />
alunos e funcionários.<br />
VERA MOUTINHO<br />
VERA MOUTINHO<br />
ter i<strong>do</strong> para ao pé <strong>do</strong>s cavalos.<br />
Estagiou <strong>na</strong> GNR, o que a fez<br />
repensar o futuro. “Têm muitos<br />
cavalos, comecei a gostar <strong>de</strong> lá<br />
estar e a pensar se queria mesmo<br />
ser veterinária.” Costuma<br />
dizer-se que, em Portugal, os<br />
pais querem to<strong>do</strong>s que os filhos<br />
sejam <strong>do</strong>utores, mas trabalhar<br />
<strong>na</strong> GNR era a maior alegria que<br />
Sofia podia dar ao pai. “Quan<strong>do</strong><br />
Costuma dizer-se que,<br />
em Portugal, os pais<br />
querem to<strong>do</strong>s que os<br />
filhos sejam <strong>do</strong>utores,<br />
mas trabalhar <strong>na</strong> GNR<br />
era a maior alegria que<br />
Sofia podia dar ao pai.<br />
acabar o terceiro ano, inscrevome<br />
no curso <strong>de</strong> nove meses da<br />
GNR. Quan<strong>do</strong> acabar, inscrevome<br />
nos exames <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. Se<br />
conseguir entrar <strong>na</strong> Universida<strong>de</strong><br />
vou para Veterinária, senão<br />
fico <strong>na</strong> GNR.” Sofia sabe que<br />
para fazer os exames vai ter <strong>de</strong><br />
ficar um ano a ter explicações <strong>de</strong><br />
Matemática e Biologia. Aliás, to<strong>do</strong>s<br />
os alunos da <strong>Escola</strong> da Paiã<br />
que querem ir para o Ensino<br />
<strong>Superior</strong> o sabem, uma vez que<br />
a bagagem teórica que levam é<br />
muito reduzida quan<strong>do</strong> comparada<br />
com a <strong>do</strong> ensino regular.<br />
Em dia <strong>de</strong> festa, estágios, futuro,<br />
cursos tor<strong>na</strong>m-se realida<strong>de</strong>s<br />
difusas. No fim da visita guiada,<br />
voltamos ao la<strong>do</strong> informal, à zo<strong>na</strong><br />
barulhenta e confusa. As únicas<br />
preocupações <strong>do</strong>s alunos, neste<br />
momento, são os passos <strong>de</strong> folclore<br />
ensaia<strong>do</strong>s nos últimos dias, a<br />
corrida às sardinhas assadas, a<br />
guerreada <strong>do</strong> fim da tar<strong>de</strong>. A Sofia,<br />
o Francisco, o Carlos são a<strong>do</strong>lescentes<br />
iguais aos outros. Têm<br />
ape<strong>na</strong>s uma particularida<strong>de</strong>:<br />
escolheram não <strong>de</strong>ixar morrer a<br />
profissão <strong>do</strong>s nossos avós.
18 DOSSIÊ<br />
CENTRO DE FORMAÇÃO PROFISSINAL FORPESCAS<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
Pesca<strong>do</strong>res <strong>de</strong> água <strong>do</strong>ce<br />
<br />
HÁ OUTROS Q<strong>UE</strong> DECIDEM DEDICAR-SE À PESCA. EM COMUM TÊM O GOSTO<br />
PELA BIOLOGIA MARINHA E O SONHO DE INGRESSAR NO ENSINO SUPERIOR.<br />
TELMA BARONA<br />
Faltam 10 minutos para as duas da tar<strong>de</strong>.O<br />
tempo convida a um mergulho, ainda mais<br />
para quem está perto da praia. No ar corre<br />
uma brisa agradável e um cheiro a mar e a<br />
Verão.Numa das ruas que contor<strong>na</strong>m a coli<strong>na</strong><br />
encontramos o Forpescas <strong>de</strong> Sesimbra.<br />
No átrio os alunos aproveitam a pausa <strong>do</strong><br />
almoço para conversar. E Vitor Martins,<br />
21 anos, não é excepção. Com uma entoação<br />
forte <strong>de</strong>clara: “se chumbar, bazo”.<br />
O calão faz parte <strong>do</strong> seu vocabulário. Vítor<br />
esforça-se por animar o ambiente. As piadas<br />
e as brinca<strong>de</strong>iras ajudam a <strong>de</strong>scontrair e esquecer<br />
que se encontra longe <strong>de</strong> casa, <strong>do</strong>s<br />
pais e <strong>do</strong>s amigos. Proveniente da Guarda,<br />
é por intermédio da prima que tem conhecimento<br />
<strong>do</strong> Forpescas e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> inscrever-se<br />
no curso <strong>de</strong> Técnico <strong>de</strong> Aquacultura. “Eu<br />
estava no 12º ano, em científico-<strong>na</strong>tural,<br />
mas como não fiz Física e para não estar lá<br />
mais uns anos <strong>de</strong>cidi vir para cá”, explica.<br />
Para o Vítor, o que mais o atraiu <strong>na</strong> escola<br />
foi a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficar com a equivalência<br />
<strong>de</strong> 12º ano e uma bolsa <strong>de</strong> alimentação<br />
e <strong>de</strong> alojamento. “A minha mãe apoiou-me<br />
muito - conta -, mas o meu pai não gostou<br />
por ser muito longe <strong>de</strong> casa”.<br />
O início das aulas foi para Vitor o início<br />
<strong>de</strong> uma vida nova. Aluno <strong>do</strong> primeiro ano,<br />
Vítor já tem planos para o futuro: “Em acaban<strong>do</strong><br />
o curso estou a pensar ficar por aqui<br />
e tentar o acesso à universida<strong>de</strong> <strong>na</strong> área <strong>de</strong><br />
Biologia Marinha”.<br />
Uma perspectiva <strong>de</strong> futuro<br />
O Forpescas é um Centro <strong>de</strong> Formação<br />
Profissio<strong>na</strong>l para o Sector das Pescas, com<br />
várias filiais espalhadas por to<strong>do</strong> o país:<br />
Via<strong>na</strong> <strong>do</strong> Castelo, Póvoa <strong>do</strong> Varzim, Matosinhos,<br />
Ílhavo, Figueira da Foz, Peniche,<br />
Sesimbra e Olhão. Os alunos que procuram<br />
a escola têm <strong>na</strong> sua maioria o 9º ano<br />
e procuram a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obter a equivalência<br />
ao 12º ano.<br />
Maria<strong>na</strong> Ca<strong>na</strong>leira, Técnica <strong>Superior</strong> <strong>de</strong><br />
Coor<strong>de</strong><strong>na</strong>ção <strong>do</strong>s Cursos, explica que, no<br />
início, os alunos, quase sempre homens,<br />
queriam frequentar o curso <strong>de</strong> pesca<strong>do</strong>r,<br />
porque tinham pais pesca<strong>do</strong>res e queriam<br />
aprofundar conhecimentos. “Actualmente,<br />
a maior parte <strong>de</strong>les não vem com o objectivo<br />
<strong>de</strong> continuar. De há 5 ou 6 anos para cá,<br />
inscrevem-se no curso <strong>de</strong> Técnico <strong>de</strong> Aquacultura<br />
com o objectivo <strong>de</strong> termi<strong>na</strong>r o 12º<br />
ano”, explicita. Mas mesmo assim o número<br />
<strong>de</strong> alunos inscritos tem vin<strong>do</strong> a diminuir.<br />
“Chegámos a ter duas e três turmas a<br />
funcio<strong>na</strong>r em cada ano. Agora só conseguimos<br />
constituir uma”, completa.<br />
A escola, para além da componente técnica,<br />
procura dar uma formação <strong>na</strong> área das<br />
Humanida<strong>de</strong>s, daí que discipli<strong>na</strong>s como<br />
Mun<strong>do</strong> Actual ou Desenvolvimento Pessoal<br />
e <strong>Social</strong> façam parte <strong>do</strong> plano curricular.<br />
Maria<strong>na</strong> reconhece a importância <strong>de</strong>ste<br />
tipo <strong>de</strong> matérias para estimular a cidadania<br />
e ainda fala <strong>na</strong> importância <strong>de</strong> a escola<br />
fazer o acompanhamento psicológico <strong>do</strong>s<br />
alunos. “Era importante ter uma psicóloga,<br />
porque vêm aqui parar muitos jovens com<br />
um ambiente familiar <strong>de</strong>sestrutura<strong>do</strong>”.<br />
Há uma preocupação da escola com a integração<br />
<strong>de</strong>stes alunos no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho.<br />
Mas o sector da Aquacultura absorve<br />
muito pouca mão-<strong>de</strong>-obra: “Não é que não<br />
haja empresas <strong>de</strong> aquacultura, mas são<br />
familiares, on<strong>de</strong> trabalham os primos, os<br />
tios, os pais e os filhos. E só durante um<br />
ou <strong>do</strong>is meses <strong>na</strong> época da pesca é que procuram<br />
pessoas, mas querem pessoas com<br />
mais força e que ganhem pouco. É por isso<br />
que procuram os emigrantes <strong>do</strong> Leste”.<br />
A importância da literatura<br />
Já são duas horas da tar<strong>de</strong>. É tempo <strong>de</strong> começarem<br />
as aulas. Vítor vai ter Português.<br />
Cantigas <strong>de</strong> amigo, cantigas <strong>de</strong> amor e cantigas<br />
<strong>de</strong> escárnio e maldizer já soam familiares<br />
a Vítor e aos seus colegas <strong>do</strong> 1º ano.<br />
Os cinco minutos iniciais servem para a forma<strong>do</strong>ra<br />
perguntar pelos trabalhos <strong>de</strong> casa e<br />
confirmar se os alunos os fizeram. Desta vez<br />
foi pedi<strong>do</strong> que, em grupos <strong>de</strong> <strong>do</strong>is, recolhessem<br />
letras <strong>de</strong> músicas galaico-portuguesas<br />
que exemplificassem o tipo <strong>de</strong> música no<br />
século XII. Ninguém trouxe a música, só a<br />
letra em papel. Vítor é o primeiro que, num<br />
tom <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira, se tenta <strong>de</strong>sculpar.<br />
Na sala, as poucas mesas que existem estão<br />
organizadas em U. Por trás <strong>de</strong> Vítor, uma<br />
janela gran<strong>de</strong> dá para a praia. Ainda assim<br />
Vítor acompanha a aula com atenção e vai<br />
explican<strong>do</strong> ao Marco, o seu colega <strong>do</strong> la<strong>do</strong>,<br />
o que este não enten<strong>de</strong>. Hoje estão to<strong>do</strong>s<br />
com uma atenção re<strong>do</strong>brada, a forma<strong>do</strong>ra<br />
está a falar <strong>do</strong> teste e da matéria que vão<br />
ter <strong>de</strong> estudar. Vítor, que não pára <strong>de</strong> dizer<br />
gracinhas, comenta: “a //setôra hoje parece<br />
a Wei Min <strong>do</strong>s Morangos com Açúcar”.<br />
A criação e comercialização <strong>de</strong> peixe<br />
A frequentar o mesmo curso que Vitor<br />
está Djamico Neto, 22 anos, <strong>de</strong> Massamá.<br />
Faz parte <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong> fi<strong>na</strong>listas. Partilha<br />
o sonho <strong>do</strong> Vítor <strong>de</strong> ir para a universida<strong>de</strong>.<br />
“Eu escolhi este curso porque o<br />
meu objectivo era fazer Biologia Marinha.<br />
Tentei fazer por via geral, mas era<br />
dificil. Foi então que encontrei este cur-<br />
so, que era mais fácil e estava perto <strong>de</strong><br />
casa”. Djamico não se arrepen<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter<br />
aban<strong>do</strong><strong>na</strong><strong>do</strong> a escola a meio <strong>do</strong> 10º ano,<br />
porque no Forpesca ficou a saber mais<br />
sobre aquacultura, uma área que o interessa<br />
e que o leva a encarar com ânimo<br />
o estágio <strong>de</strong> fi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> curso numa empresa<br />
<strong>do</strong> ramo. Djamico está numa sala no<br />
corre<strong>do</strong>r transversal à sala <strong>de</strong> Vítor . A<br />
aula é <strong>de</strong> Área Tecnológica. Hoje é dia <strong>de</strong><br />
apresentação <strong>de</strong> trabalhos, mas <strong>de</strong>vi<strong>do</strong><br />
a um problema nos computa<strong>do</strong>res só o<br />
grupo <strong>de</strong> Djamico é que consegue fazer a<br />
apresentação.<br />
Esta sala <strong>de</strong> aulas tem uma organização diferente.<br />
As mesas estão junto à pare<strong>de</strong> e formam<br />
um quadra<strong>do</strong>. Agora o projector está liga<strong>do</strong><br />
porque a apresentação está a <strong>de</strong>correr.<br />
Os alunos conversam uns com os outros. Viram-se<br />
para trás, riem-se, brincam, gozam.<br />
Até que chega a vez <strong>de</strong> Djamico ser a vítima<br />
das brinca<strong>de</strong>iras. Mas ele, concentra<strong>do</strong>, começa<br />
a apresentação <strong>do</strong> seu trabalho sobre a<br />
visita <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> à Abadia, on<strong>de</strong> viram aquaculturas<br />
<strong>de</strong> truta, prega<strong>do</strong>, lingua<strong>do</strong>, ro<strong>do</strong>valho<br />
e ainda uma empresa <strong>de</strong> rações.<br />
A<strong>na</strong> Marques, forma<strong>do</strong>ra da Área Tecnológica,<br />
explica que “os alunos estão <strong>de</strong>smotiva<strong>do</strong>s<br />
para o ensino oficial e muitos nem<br />
sabem o que querem. A primeira turma que<br />
tive era mesmo isto que queria”, completa.<br />
“O problema é que, com a remo<strong>de</strong>lação,<br />
estes cursos não preparam os alunos para<br />
ingressar <strong>na</strong> universida<strong>de</strong>. Se em tempos<br />
LUÍS FRANCO<br />
houve alunos que fizeram os exames <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is<br />
e entraram, agora isso não é possível<br />
porque foram retiradas muitas discipli<strong>na</strong>s<br />
fundamentais”. Perante uma turma <strong>de</strong> alunos<br />
sem muita motivação, A<strong>na</strong> tem <strong>de</strong> encontrar<br />
um méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> ensino que os motive:<br />
“Eles não conseguem estar muito tempo<br />
a ouvir a teoria e para<strong>do</strong>s, por isso temos <strong>de</strong><br />
dar muitos exemplos práticos”. Leccio<strong>na</strong> <strong>na</strong><br />
escola <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1996, o que diz ter-lhe da<strong>do</strong> muita<br />
experiência <strong>de</strong> vida porque já ensinou até<br />
os pesca<strong>do</strong>res mais velhos que procuravam<br />
aprofundar o seu saber.<br />
As mulheres <strong>na</strong> Aquacultura<br />
Na turma <strong>de</strong> Djamico as mulheres representam<br />
meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> número <strong>de</strong> alunos. Há alguns<br />
anos, as mulheres da família entravam no<br />
mun<strong>do</strong> da pesca para ajudarem os mari<strong>do</strong>s.<br />
Actualmente, a realida<strong>de</strong> é diferente. Estas<br />
jovens escolhem a área da pesca por vonta<strong>de</strong><br />
própria. É uma área <strong>de</strong> que gostam, até<br />
porque o trabalho numa Aquacultura é menos<br />
rigoroso <strong>do</strong> que num barco <strong>de</strong> pesca.<br />
A<strong>na</strong> Filipa Capitão, 19 anos, é a alu<strong>na</strong><br />
mais nova <strong>de</strong>sta turma <strong>de</strong> 3º ano. Como os<br />
outros alunos, preferiu a escola profissio<strong>na</strong>l<br />
ao ensino oficial. “Na escola normal<br />
não tinha ânimo <strong>de</strong> estudar e vim para<br />
aqui para tirar o 12º ano. Estou a pensar<br />
ir para a faculda<strong>de</strong> para tirar Biologia<br />
Marinha ou Fiscalização <strong>do</strong> Pesca<strong>do</strong>”. A<br />
escolha <strong>de</strong> A<strong>na</strong> era ir para anima<strong>do</strong>ra sócio-cultural<br />
em Setúbal, mas neste curso<br />
<strong>po<strong>de</strong>r</strong>á seguir as pegadas da família, que<br />
trabalha no ramo da pesca. “Uns comercializam,<br />
outros fazem o transporte – e,<br />
com ar preocupa<strong>do</strong>, confessa - tenho muito<br />
me<strong>do</strong> <strong>do</strong> futuro, mas como o meu tio<br />
está nesta área po<strong>de</strong> ser que consiga alguma<br />
coisa para mim. Ou então vou para o<br />
Intermaché ven<strong>de</strong>r peixe”, ri.<br />
É uma pessoa comunicativa e por isso fala<br />
<strong>do</strong> estágio no aquário Vasco da Gama com<br />
alegria: “A<strong>do</strong>rei a experiência, porque podia<br />
conviver com as pessoas”. Mas o seu<br />
<strong>de</strong>sejo é sair <strong>de</strong> Sesimbra: “Eu tenho muita<br />
vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir para outro meio, porque<br />
Sesimbra é um meio muito fecha<strong>do</strong>”.<br />
A aula terminou. Vítor é <strong>do</strong>s primeiros a<br />
sair. A A<strong>na</strong> Filipa hoje tem a companhia<br />
da mãe. Vão as duas às compras para o<br />
casamento, que está a planear para breve.<br />
Só Djamico é que ainda permanece senta<strong>do</strong>,<br />
em frente à professora, a tirar algumas<br />
dúvidas que ficaram sobre Aquacultura.<br />
LUÍS FRANCO
8ª COLINA I JUNHO 2006 DESPORTO 19<br />
O MUNDO DOS GINÁSIOS DE LUXO<br />
INÊS HENRIQ<strong>UE</strong>S<br />
E MARTA MESQUITA<br />
Boa tar<strong>de</strong>. Cartão <strong>de</strong> sócio. Toalha<br />
e chaves em troca. Balneários<br />
da pisci<strong>na</strong> ou <strong>do</strong> ginásio? Senha<br />
para Body Combat. Po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar a<br />
criança no Kids Place. Próximo.<br />
Cartão <strong>de</strong> sócio. Renovar atesta<strong>do</strong><br />
médico, muito importante.<br />
Mensalida<strong>de</strong> em dia. Duas toalhas<br />
em vez <strong>de</strong> roupão. Pisci<strong>na</strong> e<br />
solário. Já conhece o nosso programa<br />
<strong>de</strong> perda <strong>de</strong> peso? Próximo.<br />
Informações sobre os preços<br />
das activida<strong>de</strong>s? Ali em frente,<br />
no atendimento. A seguir, se faz<br />
favor, atrapalham-se as meni<strong>na</strong>s<br />
da recepção. A seguir, uma fila<br />
interminável <strong>de</strong> executivos ainda<br />
engravata<strong>do</strong>s, mulheres bem<br />
parecidas e miú<strong>do</strong>s pela mão,<br />
raparigas e rapazes novos, irrequietos.<br />
Ou não fosse terça-feira<br />
fim <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>. Hora <strong>de</strong> enchente e<br />
<strong>do</strong> “livre-trânsito”. Fim <strong>de</strong> mais<br />
um dia <strong>de</strong> trabalho, altura i<strong>de</strong>al<br />
para o <strong>de</strong>sporto, dizem, quan<strong>do</strong><br />
o corpo atinge a sua temperatura<br />
máxima.<br />
O luxo que se procura<br />
Ali ajudam a preparar a fórmula<br />
<strong>do</strong> corpo perfeito, a melhorar a performance,<br />
a auto-estima, a saú<strong>de</strong>, a<br />
qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, o gosto pelo <strong>de</strong>sporto,<br />
quem sabe as relações interpessoais.<br />
É só escolher um horário<br />
fixo ou <strong>de</strong> livre circulação, adquirir<br />
o cartão mágico, que é como o<br />
ADN <strong>do</strong> sócio e optar diariamente<br />
pelas activida<strong>de</strong>s: <strong>na</strong>tação, ginástica<br />
localizada, cardiofitness, musculação,<br />
Body Pump, Body Combat,<br />
RPM, ténis. Talvez ce<strong>de</strong>r aos<br />
apelos <strong>do</strong>s programas especiais,<br />
anuncia<strong>do</strong>s nos placards, mesmo<br />
por cima das nossas cabeças: danças<br />
africa<strong>na</strong>s e brasileiras, express<br />
yourself, pilates, hidro<strong>de</strong>ep, perda<br />
<strong>de</strong> peso. Usufruir <strong>de</strong> um person<strong>na</strong>l<br />
trainer, para não ce<strong>de</strong>r aos <strong>de</strong>scui<strong>do</strong>s<br />
perniciosos da vaida<strong>de</strong> e seguir<br />
um treino a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> ao esta<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
saú<strong>de</strong> e às motivações <strong>de</strong> cada um.<br />
Levar os miú<strong>do</strong>s e inscrevê-los no<br />
mini-mergulho, no futebol, <strong>de</strong>ixálos<br />
a brincar no Kids Place ou no<br />
castelo insuflável. Levar a família<br />
para as aulas em grupo e os mais<br />
velhos para a hidroginástica. Desfrutar<br />
<strong>do</strong> jardim com solário <strong>na</strong>tural,<br />
relaxar <strong>na</strong> sau<strong>na</strong> e no banho<br />
turco e termi<strong>na</strong>r <strong>na</strong> espla<strong>na</strong>da a<br />
apreciar as vistas sobre a mata <strong>do</strong><br />
Jamor. Só não vale arranjar <strong>de</strong>sculpas<br />
para ficar em casa ou limitar-se<br />
a passear o cão.<br />
Nos últimos anos muitos ginásios<br />
brotaram à sombra <strong>do</strong> culto<br />
da boa forma física. Para além<br />
<strong>do</strong>s ginásios <strong>de</strong> bairro, que ainda<br />
subsistem, foram sobretu<strong>do</strong><br />
as ca<strong>de</strong>ias inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e os<br />
chama<strong>do</strong>s Health Clubs, Fitness<br />
Centers ou SPA que cresceram.<br />
Nomes pomposos e mais atraentes,<br />
que aliam as activida<strong>de</strong>s da<br />
moda e os mais mo<strong>de</strong>rnos equi-<br />
Complexo <strong>de</strong> Adónis<br />
<br />
-<br />
<br />
E CONVIDAM A TRABALHAR O CORPO PARA O VERÃO.<br />
NÚMEROS SOBRE O FITNESS<br />
Em Portugal há cerca <strong>de</strong><br />
1500 ginásios, estiman<strong>do</strong>se<br />
que sejam frequenta<strong>do</strong>s<br />
diariamente por meio milhão<br />
<strong>de</strong> portugueses.<br />
Um estu<strong>do</strong> da Marktest diz<br />
que cerca <strong>de</strong> 58% <strong>do</strong>s indivíduos<br />
que frequentam os ginásios<br />
são mulheres, 39,5%<br />
resi<strong>de</strong>m em Lisboa e Porto,<br />
63,3% pertencem às classes<br />
sociais alta e média e 41,1%<br />
são quadros médios e superiores<br />
ou estudantes.<br />
pamentos <strong>de</strong> treino físico ao conforto<br />
e bem-estar e a uma certa<br />
projecção social.<br />
António Macias, presi<strong>de</strong>nte da ca<strong>de</strong>ia<br />
Active Life, afirma que o conceito<br />
<strong>de</strong> ginásio “está a <strong>de</strong>saparecer”.<br />
As pessoas procuram agora<br />
o “clube”, para ocupar o tempo e<br />
“fazer novas amiza<strong>de</strong>s” e ali “experienciam<br />
mais <strong>do</strong> que um treino”,<br />
têm “emoções e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
vida” entre as várias activida<strong>de</strong>s e<br />
serviços <strong>de</strong> que dispõem.<br />
João Ribeiro, 24 anos, person<strong>na</strong>l<br />
trainer e instrutor <strong>de</strong> RPM no<br />
Holmes Place das Amoreiras,<br />
adianta que os frequenta<strong>do</strong>res <strong>de</strong><br />
“ginásios <strong>de</strong> luxo” são pessoas “da<br />
classe média e média alta”. Neste<br />
clube, a mensalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 90 euros<br />
é um luxo acessível a poucos, mas<br />
que tem como contrapartida “um<br />
serviço físico que, alia<strong>do</strong> a tu<strong>do</strong><br />
o que o ginásio oferece, se tor<strong>na</strong><br />
também mental”, uma espécie <strong>de</strong><br />
incentivo. Mas há outros e João<br />
ressalva o factor <strong>do</strong> status social:<br />
“Algumas pessoas inscrevem-se<br />
só para dizer que andam nos Holmes<br />
Place, on<strong>de</strong> há famosos, mas<br />
<strong>de</strong>pois não aparecem”.<br />
Trabalhar o corpo po<strong>de</strong> representar<br />
uma gran<strong>de</strong> quebra no<br />
orçamento familiar e no tempo<br />
disponível, por isso há quem só<br />
procure os ginásios como preparação<br />
para a época balnear. Em<br />
Setembro po<strong>de</strong>m respirar <strong>de</strong> alívio<br />
e sucumbir ao <strong>do</strong>lce far niente.<br />
As infinitas possibilida<strong>de</strong>s que<br />
as mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong>s ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> ginásios<br />
oferecem, procuram assim contrariar<br />
a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o exercício<br />
físico é uma prática sazo<strong>na</strong>l e provar<br />
que toda a activida<strong>de</strong> espontânea<br />
durante o ano é preferível<br />
a sujeitarmos o organismo a um<br />
stress força<strong>do</strong>, <strong>de</strong> alguns meses.<br />
Mas se os dias mais compri<strong>do</strong>s e a<br />
menor quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> roupa fazem<br />
aumentar a disposição para o <strong>de</strong>sporto,<br />
é também nesta altura que os<br />
clubes se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bram em manobras<br />
<strong>de</strong> charme que lhes permitam equilibrar<br />
as contas durante o resto <strong>do</strong><br />
Os frequenta<strong>do</strong>res <strong>de</strong><br />
“ginásios <strong>de</strong> luxo” são<br />
pessoas “da classe<br />
média e média alta”.<br />
- João Ribeiro<br />
ano. Reforçam a publicida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong><br />
as mulheres surgem em <strong>de</strong>staque,<br />
pois são as que mais se preocupam<br />
com a imagem, sobem ligeiramente<br />
os preços ou apostam em pacotes<br />
especiais, como o caso <strong>do</strong> Holmes<br />
Place, que durante o Verão oferece<br />
uma inscrição a quem trouxer um<br />
amigo para se fazer sócio. Mas <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> se ganhar o gosto pelas activida<strong>de</strong>s<br />
e mimos que estes clubes<br />
oferecem, muitos são os que não<br />
querem abdicar <strong>de</strong>stes serviços e<br />
que renovam as inscrições, seja<br />
Verão ou Inverno, porque afi<strong>na</strong>l o<br />
que interessa é o bem-estar que se<br />
sente por fazer parte <strong>de</strong>stas comunida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> “luxo”.<br />
Clubes para to<strong>do</strong>s<br />
Raquel Nunes, 20 anos, confessa<br />
que entrou para o Solplay com o<br />
objectivo <strong>de</strong> emagrecer milagrosamente:<br />
“Chegava às 7h da manhã<br />
e só saía às 21h. Corria entre<br />
a escola e o ginásio, porque tenho<br />
livre passe e quase não comia”. O<br />
resulta<strong>do</strong> foi uma anorexia e uma<br />
<strong>de</strong>pressão, que a obrigaram a <strong>de</strong>sistir<br />
<strong>do</strong> <strong>de</strong>sporto. Hoje em dia regressou<br />
ao clube, on<strong>de</strong> frequenta<br />
um curso <strong>de</strong> instrutora <strong>de</strong> fitness<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Já consegue estabelecer<br />
a diferença entre o exercício<br />
saudável e obsessivo, mas<br />
reconhece que não fica um dia<br />
sem se “mexer” e que ainda passa<br />
uma hora a correr <strong>na</strong> passa<strong>de</strong>ira,<br />
“que é o limite da máqui<strong>na</strong>”. Ganhou<br />
o gosto pela sensação “<strong>de</strong><br />
trabalhar o corpo” e até o ambiente<br />
<strong>do</strong> ginásio melhorou aos seus<br />
olhos: “agora é como se estivesse<br />
em casa, já não estou aqui com o<br />
mesmo objectivo e nem me incomoda<br />
a competitivida<strong>de</strong> pela boa<br />
aparência física que aqui existe,<br />
sobretu<strong>do</strong> entre as mulheres”.<br />
Aos 77 anos “quase perdi<strong>do</strong>s”, Lívia<br />
<strong>de</strong> Melo é um exemplo <strong>de</strong> jovialida<strong>de</strong><br />
e boa forma e a prova <strong>de</strong><br />
que o exercício físico não é necessariamente<br />
um sacrifício. Peque-<br />
CLARA DINIS<br />
<strong>na</strong>, <strong>de</strong>sinquieta e <strong>de</strong> ar janota, é a<br />
mascote <strong>do</strong> Solplay, porque trata<br />
to<strong>do</strong>s por “amor” e faz “uma festa<br />
<strong>de</strong> qualquer activida<strong>de</strong>”, mas a<br />
prática <strong>de</strong>sportiva vai muito além<br />
<strong>do</strong> ginásio. Participa em provas<br />
<strong>de</strong> corrida sempre que po<strong>de</strong>, que<br />
já lhe valeram “bonitas taças” e<br />
o hábito vem-lhe <strong>de</strong> longe: “<strong>de</strong>scobri<br />
o bichinho da corrida <strong>na</strong>s<br />
praias <strong>do</strong> Brasil, mas já quan<strong>do</strong><br />
era mecânica e ajudava o meu<br />
mari<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> o que ele me pedia<br />
era assim: vai buscar a chave <strong>de</strong><br />
fendas, corre, corre!”. Viúva há<br />
15 anos, sem filhos, o <strong>de</strong>sporto é<br />
um escape a uma vida <strong>de</strong> solidão,<br />
mas também o seu maior prazer,<br />
porque lhe dá uma sensação <strong>de</strong><br />
liberda<strong>de</strong> e “já bastava quan<strong>do</strong><br />
era controlada pelo mari<strong>do</strong>”. Enquanto<br />
“houver sol”, diz que não<br />
consegue “estar quieta” e que só<br />
é feliz <strong>na</strong> rua, pois “a vida é bela<br />
<strong>de</strong> mais para ficar sentada em<br />
casa”. Faz jus ao mote estampa<strong>do</strong><br />
<strong>na</strong> t-shirt ver<strong>de</strong>-vivo, “toca a mexer”<br />
e não passa um dia sem vir<br />
ao ginásio, sobretu<strong>do</strong> às aulas <strong>de</strong><br />
<strong>na</strong>tação. Até já tentou convencer<br />
as amigas a vir, mas “elas já só falam<br />
em <strong>do</strong>enças”. Cuida<strong>do</strong>sa com<br />
a alimentação, sobretu<strong>do</strong> “com as<br />
gorduras”, Lívia não tem “uma<br />
<strong>do</strong>r <strong>de</strong> ossos” e assegura que o coração<br />
“está uma rocha”.<br />
O dia no ginásio termi<strong>na</strong> ao som<br />
da aula <strong>de</strong> Combat. Experimentam-se<br />
as técnicas <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa pessoal,<br />
saboreia-se a sensação <strong>de</strong><br />
auto-<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> corpo. Os fatos<br />
sisu<strong>do</strong>s <strong>de</strong>spiram-se para os tops<br />
justos, para os calções curtos que<br />
realçam os contornos <strong>do</strong>s músculos.<br />
Agarra-se o ritmo <strong>do</strong>s movimentos<br />
projecta<strong>do</strong>s nos espelhos,<br />
alguns mais <strong>de</strong>scoor<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong>s, aceleram-se<br />
as repetições das séries<br />
<strong>de</strong> passos e o compasso <strong>de</strong>mora<strong>do</strong><br />
pelo esforço. Soltam-se os gritos<br />
combi<strong>na</strong><strong>do</strong>s com o trejeito das<br />
per<strong>na</strong>s, o balançar <strong>do</strong>s braços, o<br />
incentivo <strong>do</strong> professor. Esconjura-se<br />
o stress <strong>de</strong> mais um dia, para<br />
além das quatro pare<strong>de</strong>s <strong>do</strong> amplo<br />
estúdio e, no fi<strong>na</strong>l, aplau<strong>de</strong>-se o<br />
empenho <strong>de</strong> uns e <strong>de</strong> outros.<br />
<br />
<br />
CLARA DINIS
20 DESPORTO<br />
RICARDO FERNANDES, CAMPEÃO EUROPEU DE KICKBOXING<br />
O herói da<br />
Cova da Moura<br />
<br />
RICARDO<br />
-<br />
<br />
O MAIS JOVEM CAMPEÃO EUROPEU DA HISTÓRIA DO <br />
JOANA DALILA SANTOS<br />
“Para o canto vermelho, sem<br />
mais <strong>de</strong>mora, vamos chamar o<br />
atleta que veio <strong>de</strong> França: Alli<br />
Haddad! E para o canto azul, 21<br />
anos, 1,78, 71 kg, o atleta Ricar<strong>do</strong><br />
Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s!”. O público entra em<br />
alvoroço e grita pelo <strong>de</strong>sportista<br />
português. Este é mais um <strong>do</strong>s<br />
muitos torneios em que Ricar<strong>do</strong><br />
participa, o K-1 Gala <strong>do</strong>s Campeões,<br />
no pavilhão Paz e Amiza<strong>de</strong><br />
em Loures. O K-1 é uma junção<br />
<strong>de</strong> várias técnicas provenientes<br />
<strong>do</strong> kickboxing e nele só lutam os<br />
melhores <strong>de</strong> entre os melhores,<br />
num único sistema <strong>de</strong> regras:<br />
<strong>do</strong>is combates e uma fi<strong>na</strong>l on<strong>de</strong> o<br />
KO <strong>de</strong>fine o vence<strong>do</strong>r.<br />
Um ringue vazio à espera <strong>de</strong> acção,<br />
música, luzes e um calor humano<br />
sufocante. Assim começa<br />
a competição. O cheiro activo a<br />
mentol a<strong>po<strong>de</strong>r</strong>a-se <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o pavilhão<br />
e faz ar<strong>de</strong>r os olhos, mas ninguém<br />
liga. O gel diminui as <strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong>s joga<strong>do</strong>res e o público, <strong>na</strong> sua<br />
maioria constituí<strong>do</strong> por homens,<br />
quer é ver gran<strong>de</strong>s combates.<br />
As luzes apagam-se e os olhares<br />
viram-se para o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> on<strong>de</strong> saem, como feras, os<br />
atletas. Caminhar para o ringue é<br />
uma estranha forma <strong>de</strong> <strong>na</strong>rcisismo,<br />
um estranho gosto pelo sofrimento.<br />
Para<strong>do</strong>, com as mãos <strong>na</strong><br />
cintura e a sua crista vermelha,<br />
Ricar<strong>do</strong> Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s observa, com<br />
um ar <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio, toda a plateia,<br />
e só <strong>de</strong>pois avança para o ringue,<br />
no meio <strong>do</strong> fumo e ao som <strong>do</strong> rap<br />
<strong>de</strong> Redman. Ele conhece a acção.<br />
Sempre a conheceu. A única diferença<br />
é que no primeiro ringue<br />
on<strong>de</strong> entrou não havia árbitro<br />
nem regras. Lutava-se pela sobrevivência<br />
no meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>alers<br />
e gangsters. A norma era cada<br />
um por si <strong>na</strong>s ruas <strong>de</strong> um bairro<br />
on<strong>de</strong> <strong>na</strong>da é facilita<strong>do</strong> e ninguém<br />
facilita. O objectivo? Não per<strong>de</strong>r<br />
esta guerra obrigatória. O Ricar-<br />
JOANA SANTOS<br />
<strong>do</strong> conseguiu e tornou-se uma<br />
das melhores notícias da Cova da<br />
Moura.<br />
“Foi a loucura total”<br />
A mesma entrada em palco aconteceu<br />
num <strong>do</strong>s momentos mais<br />
marcantes da sua, tão curta mas<br />
talentosa, carreira: a luta pelo<br />
Título Europeu. “Foi em Novembro<br />
<strong>do</strong> ano passa<strong>do</strong>, em Milão. A<br />
lotação estava esgotada e ter 5000<br />
pessoas a olhar para ti… aí sim,<br />
quan<strong>do</strong> entras tens <strong>de</strong> te fazer <strong>de</strong><br />
forte à brava! Entrei, olhei à volta<br />
e avancei, mas quan<strong>do</strong> chegou a<br />
vez <strong>do</strong> outro foi a loucura total”,<br />
recorda o Ricar<strong>do</strong>. O italiano Michele<br />
Valleri era, obviamente, o<br />
preferi<strong>do</strong>. Afi<strong>na</strong>l era ele o campeão<br />
da Europa até então. “Não<br />
me <strong>de</strong>ixei intimidar, apesar <strong>de</strong><br />
ele vir <strong>de</strong> quarenta combates e <strong>de</strong><br />
ter ganho to<strong>do</strong>s por KO. Quan<strong>do</strong><br />
ele vinha em força para me bater<br />
eu <strong>de</strong>sviava-me e acertava-lhe<br />
<strong>na</strong> per<strong>na</strong> <strong>de</strong> apoio até ele cair”,<br />
“Eram 5000 pessoas a<br />
torcer pelo italiano. E<br />
foi um silêncio tão bom<br />
quan<strong>do</strong> eu ganhei!”<br />
acrescenta o atleta português.<br />
A ce<strong>na</strong> repete-se esta noite em<br />
Loures. Logo no primeiro combate,<br />
o Ricar<strong>do</strong> parece estar possuí<strong>do</strong><br />
e ataca sem parar, como se não<br />
existisse mais <strong>na</strong>da <strong>na</strong>quele momento.<br />
“Calma”, grita o trei<strong>na</strong><strong>do</strong>r<br />
<strong>do</strong> canto <strong>do</strong> ringue, mas Ricar<strong>do</strong><br />
não faz caso e ape<strong>na</strong>s a campainha<br />
obe<strong>de</strong>ce à or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> mestre,<br />
assi<strong>na</strong>lan<strong>do</strong> o fim <strong>do</strong> primeiro assalto.<br />
Só há tempo para ouvir uns<br />
conselhos tácticos, o trei<strong>na</strong><strong>do</strong>r e a<br />
ve<strong>de</strong>ta batem as mãos e o combate<br />
recomeça.<br />
À primeira vista parece uma relação<br />
meramente profissio<strong>na</strong>l entre<br />
um trei<strong>na</strong><strong>do</strong>r exalta<strong>do</strong> e um atleta<br />
sua<strong>do</strong>. Na verda<strong>de</strong>, são pai e filho:<br />
“Damo-nos bem”, diz o Ricar<strong>do</strong>,<br />
timidamente. “Se eu for trei<strong>na</strong>r<br />
está tu<strong>do</strong> muito bem, se eu não<br />
for ele fica <strong>do</strong>ente!”, acrescenta.<br />
Mário Fuzeta é o nome <strong>de</strong>ste pai<br />
trei<strong>na</strong><strong>do</strong>r e os olhos <strong>do</strong> atleta revelam<br />
a relação não muito pacífica<br />
entre os <strong>do</strong>is: “O kickboxing<br />
aproximou-nos. Antes<br />
mal o via porque sempre<br />
vivi só com a minha<br />
mãe no bairro”, explica.<br />
“P`ra cima <strong>de</strong>le, Ricar<strong>do</strong>!”,<br />
gritam os especta<strong>do</strong>res<br />
que apoiam o<br />
jovem português. Há<br />
até quem vista t-shirts<br />
que dizem: “Senta-te<br />
em cima <strong>de</strong>les!”. Ricar<strong>do</strong><br />
a<strong>do</strong>rou a surpresa.<br />
“Esses meus amigos são<br />
um espectáculo, fizeram<br />
isso sem eu saber para<br />
me virem dar apoio. Dizem<br />
que eu uso muitas<br />
vezes essa expressão e<br />
então aproveitaram”,<br />
conta o kickboxer. De<br />
facto, são muitos os amigos<br />
que vieram a Loures<br />
ver o Ricar<strong>do</strong>. Senta<strong>do</strong>s<br />
o mais próximo possível<br />
<strong>do</strong> ringue estão a Rita, o<br />
António, a Vera, o Amorim<br />
e, no fun<strong>do</strong> da fila,<br />
com um ar ansioso, está<br />
o Russo. “Nós conhecemo-nos<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, crescemos<br />
juntos”, diz, cheio <strong>de</strong> orgulho. É<br />
fácil verificar que o Luís, como<br />
<strong>na</strong> realida<strong>de</strong> se chama, foi assim<br />
baptiza<strong>do</strong> no bairro <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à sua<br />
aparência. Muito louro e com uns<br />
gran<strong>de</strong>s olhos azuis, o Russo rói<br />
as unhas ao ver o amigo <strong>de</strong> infância<br />
lutar <strong>na</strong> are<strong>na</strong> e só respira<br />
<strong>de</strong> alívio quan<strong>do</strong> o árbitro dá as<br />
mãos aos <strong>do</strong>is atletas e se ouve:<br />
“E a vitória vai para… Ricar<strong>do</strong><br />
Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s”. O português tor<strong>na</strong>se<br />
assim no terceiro semifi<strong>na</strong>lista<br />
<strong>de</strong>sta noite e o seu próximo<br />
<strong>de</strong>safio é contra Ozeas Correia,<br />
que, em ape<strong>na</strong>s alguns segun<strong>do</strong>s,<br />
venceu o seu anterior adversário<br />
por KO.<br />
Ricar<strong>do</strong> não correspon<strong>de</strong> à imagem<br />
estereotipada <strong>de</strong> um praticante<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sportos <strong>de</strong> combate.<br />
Não seria o candidato com mais<br />
hipóteses num recrutamento<br />
para segurança <strong>de</strong> discoteca. No<br />
entanto, quan<strong>do</strong> pisa o tapete,<br />
transforma-se, e isso vê-se aqui,<br />
esta noite em Loures, quan<strong>do</strong> o<br />
Ricar<strong>do</strong> quase bateu Ozeas por<br />
KO. Quase.<br />
Neste segun<strong>do</strong> duelo nota-se que<br />
os atletas estão cansa<strong>do</strong>s. É um<br />
ver quem aguenta mais, apesar<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
<br />
da <strong>do</strong>rmência nos braços e <strong>do</strong><br />
aperto no estômago por já “cheirar<br />
a fi<strong>na</strong>l”. É um lutar com toda<br />
a força para que a fi<strong>na</strong>l não seja<br />
já ali. Mas Ricar<strong>do</strong> já aguentou<br />
muito mais <strong>do</strong> que isso. Crescer<br />
<strong>na</strong> Cova da Moura é ter essa<br />
força a <strong>do</strong>brar: “Vi coisas muito<br />
más para uma criança, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> toxico<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
a traficantes,<br />
ali via <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>. No bairro somos<br />
habitua<strong>do</strong>s a viver com a agressivida<strong>de</strong>,<br />
tem <strong>de</strong> ser assim para<br />
nos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rmos e sermos respeita<strong>do</strong>s.<br />
Essa raiva tem <strong>de</strong> ser<br />
incutida aos putos que começam<br />
a fazer kickboxing e que não são<br />
<strong>do</strong> bairro. Isso em mim já não foi<br />
preciso. Ter vivi<strong>do</strong> <strong>na</strong> Cova tem<br />
muito a ver com o meu <strong>de</strong>sempenho<br />
no kick e graças a isso nunca<br />
bebi, nem fumei, nem <strong>na</strong>da”.<br />
Foi um longo combate, este que<br />
levou o jovem <strong>do</strong> bairro à fi<strong>na</strong>l.<br />
Mais uma das muitas fi<strong>na</strong>is em<br />
que Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s já participou:<br />
“Comecei a trei<strong>na</strong>r Light Contact<br />
com 14 anos. Depois inicieime<br />
no KO ama<strong>do</strong>r, que são discipli<strong>na</strong>s<br />
<strong>de</strong> contacto total. Com<br />
16 anos fui campeão da Taça <strong>de</strong><br />
Lisboa <strong>de</strong> Kickboxing e da Taça<br />
<strong>de</strong> Lisboa <strong>de</strong> May-Taai”, expli-
8ª COLINA I JUNHO 2006 DESPORTO 21<br />
<br />
ca o atleta. Era praticamente<br />
uma criança quan<strong>do</strong> começou<br />
a ganhar troféus, e vê-se <strong>na</strong> sua<br />
expressão que nem ele percebe<br />
muito bem como tal aconteceu:<br />
“Eu era ama<strong>do</strong>r, portanto, teoricamente,<br />
não podia lutar nestes<br />
torneios on<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s eram<br />
muitos mais velhos <strong>do</strong> que eu.<br />
Mas ia e ganhava. Aos 17 anos<br />
fui ao campeo<strong>na</strong>to regio<strong>na</strong>l e,<br />
mais tar<strong>de</strong>, ao <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Full<br />
Contact e também ganhei”,<br />
acrescenta em tom <strong>de</strong> gozo. A<br />
verda<strong>de</strong> é que ainda com 17<br />
anos já o Ricar<strong>do</strong> Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s<br />
tinha i<strong>do</strong> a Espanha e se tinha<br />
tor<strong>na</strong><strong>do</strong> campeão ibérico.<br />
A gran<strong>de</strong> fi<strong>na</strong>l<br />
Mas nem tu<strong>do</strong> são vitórias <strong>na</strong><br />
história <strong>de</strong>ste jovem. Voltemos a<br />
Loures. Os atletas mais aplaudi<strong>do</strong>s<br />
da noite, Luís Reis e Ricar<strong>do</strong><br />
Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, vão <strong>de</strong>frontar-se <strong>na</strong><br />
fi<strong>na</strong>l, que se prevê muito renhida.<br />
Neste terceiro confronto os<br />
gladia<strong>do</strong>res ultrapassam os seus<br />
próprios limites <strong>de</strong> força e a <strong>do</strong>r<br />
tor<strong>na</strong>-se inexistente. É o momento<br />
em que uma lágrima se confun<strong>de</strong><br />
com as gotas <strong>de</strong> suor que saltam<br />
da are<strong>na</strong>.<br />
Mas as lágrimas <strong>de</strong> Ricar<strong>do</strong> são<br />
reais. E o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> glória que<br />
estava prestes a explodir <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>do</strong> “miú<strong>do</strong>” <strong>de</strong>saparece. Luís<br />
Reis acabou por vencer o combate<br />
logo no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> primeiro<br />
round por <strong>de</strong>sistência <strong>do</strong> adversário<br />
lesio<strong>na</strong><strong>do</strong>.<br />
É nestas alturas que os amigos<br />
actuam. E foi nesta altura que<br />
mais barulho fizeram. Russo<br />
correu para o ringue, acompanha<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os outros, e receberam<br />
o campeão <strong>do</strong> bairro<br />
com um sorriso como quem diz:<br />
“<strong>de</strong>ixa, amanhã ganhas, agora<br />
vamos para casa”.<br />
“As <strong>de</strong>rrotas cá em Portugal <strong>de</strong>ixam-me<br />
frustra<strong>do</strong>, no estrangeiro<br />
isso não acontece, sempre que<br />
perdi lá fora foi porque mereci”,<br />
<strong>de</strong>sabafa o atleta.<br />
De facto, existem alguns episódios<br />
menos felizes <strong>na</strong> vida <strong>do</strong> Ricar<strong>do</strong>.<br />
Um campeão não se faz sem tocar<br />
no tapete: “Lembro-me <strong>de</strong> uma<br />
<strong>de</strong>rrota com o Eugénio Monteiro.<br />
Ele era profissio<strong>na</strong>l, tinha muitos<br />
combates e 32 anos, eu era ama<strong>do</strong>r,<br />
era o meu décimo combate e<br />
tinha 16 anos. Fui, literalmente,<br />
atropela<strong>do</strong>!”, recorda o Ricar<strong>do</strong>,<br />
acrescentan<strong>do</strong>: “No dia seguinte<br />
cheguei à escola to<strong>do</strong> incha<strong>do</strong>…<br />
o caminho <strong>de</strong> casa à escola que<br />
costumava fazer em 5 minutos <strong>de</strong>morou<br />
para aí 45!”.<br />
De volta às origens<br />
Apesar da sua casa já não ser<br />
no bairro, a visita às origens é<br />
constante e, quan<strong>do</strong> <strong>na</strong> Cova da<br />
Moura se pronuncia o seu nome,<br />
No caminho para o<br />
“palco” há um ponto em<br />
que se <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> pensar,<br />
em que as emoções<br />
se misturam e em que<br />
os sentimentos <strong>de</strong><br />
prazer e <strong>de</strong> terror se<br />
sobrepõem.<br />
ouvem-se <strong>de</strong> imediato muitos<br />
elogios. A Tininha é uma <strong>de</strong>ssas<br />
vozes. Vizinha <strong>de</strong> Ricar<strong>do</strong> no<br />
bairro, esta senhora tem o olhar<br />
cansa<strong>do</strong> <strong>de</strong> quem sabe bem o que<br />
é a vida <strong>na</strong> Cova da Moura. “É<br />
um menino muito bom e não é<br />
agressivo fora <strong>do</strong> ringue. Quan<strong>do</strong><br />
era pequeno tinha muitas<br />
queixas <strong>do</strong>s professores, qualquer<br />
coisa que acontecesse era<br />
sempre ele. É o estigma <strong>de</strong> ser<br />
daqui”, recorda Tininha. “Eu<br />
achava muita piada ao Ricar<strong>do</strong>,<br />
punha-se à janela a gritar que<br />
ninguém lhe podia fazer mal ou<br />
ele chamava o pai que era GNR.<br />
Agora já não é <strong>de</strong> cá, mas sempre<br />
que volta traz a mesma simpatia”.<br />
O Ricar<strong>do</strong> não consegue<br />
largar o sítio que fez <strong>de</strong>le aquilo<br />
que é hoje, o local on<strong>de</strong> encontrou<br />
a força, a coragem e a sua<br />
perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>: “Eu lembro-me<br />
muito <strong>de</strong>ssa vizinha, sempre lhe<br />
chamei Tangeri<strong>na</strong>, porque não<br />
conseguia dizer o nome”. Mas<br />
admite que não foi uma criança<br />
fácil: “O meu corpo chamava<br />
problemas e sempre que havia<br />
confusões com amigos meus<br />
eu tinha <strong>de</strong> estar lá! Fiz coisas<br />
<strong>de</strong> que não me orgulho muito.”<br />
Acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, o campeão não<br />
consegue largar os seus amigos:<br />
“Eu e o Russo estávamos mesmo<br />
sempre juntos, só íamos para<br />
casa quan<strong>do</strong> nos vinham buscar<br />
pelas orelhas”. O Russo acrescenta:<br />
“Ele sempre foi um puto<br />
traqui<strong>na</strong> e acho que ter cresci<strong>do</strong><br />
com os pais separa<strong>do</strong>s influen-<br />
JOANA SANTOS<br />
ciava o seu comportamento. Depois,<br />
quan<strong>do</strong> entrou para o kick,<br />
acalmou bastante, por um la<strong>do</strong><br />
porque o pai era o trei<strong>na</strong><strong>do</strong>r, por<br />
outro porque se trata <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sporto<br />
com muita discipli<strong>na</strong> ”.<br />
To<strong>do</strong>s os campeões têm alguns<br />
<strong>de</strong>sgostos e Ricar<strong>do</strong> não é excepção.<br />
As suas <strong>de</strong>rrotas mais marcantes<br />
coinci<strong>de</strong>m com o maior<br />
objectivo <strong>de</strong> qualquer <strong>de</strong>sportista:<br />
a luta pelo Título <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>.<br />
“Primeiro foi em Dublin… a primeira<br />
vez que fui para fora, estava<br />
lá sozinho e amedrontei-me<br />
um boca<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> comecei a<br />
jogar a sério já era tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais”,<br />
confessa o Ricar<strong>do</strong>, e acrescenta<br />
a sorrir: “Depois, quan<strong>do</strong> tinha 19<br />
“No bairro somos<br />
habitua<strong>do</strong>s a viver com<br />
a agressivida<strong>de</strong>, tem<br />
<strong>de</strong> ser assim para nos<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rmos e sermos<br />
respeita<strong>do</strong>s.”<br />
anos, an<strong>de</strong>i a trei<strong>na</strong>r <strong>do</strong>is meses<br />
<strong>de</strong> manhã à noite para ir à Rússia<br />
e, <strong>do</strong>is dias antes da viagem,<br />
lesionei-me… uma melga que me<br />
picou e uma per<strong>na</strong> que ficou <strong>do</strong><br />
tamanho <strong>de</strong> quatro.”<br />
Mas o azar não ficou por aqui e o<br />
Ricar<strong>do</strong> explica a sua última tentativa:<br />
“Fui a Paris lutar com o<br />
campeão <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> e perdi injustamente.<br />
Ele próprio o afirmou!<br />
Mas essa <strong>de</strong>rrota fez com que<br />
eu subisse no ranking e, graças<br />
a isso, fui convida<strong>do</strong> para lutar<br />
pelo Título Europeu”.<br />
Eis o auge <strong>de</strong> duas décadas <strong>de</strong><br />
vida, o lançamento <strong>de</strong> apresentação<br />
ao Mun<strong>do</strong>, em Milão,<br />
Itália. O nervosismo da estreia<br />
a<strong>po<strong>de</strong>r</strong>a-se <strong>do</strong> kickboxer, a ansieda<strong>de</strong><br />
é visível no corpo unta<strong>do</strong><br />
e <strong>na</strong> expressão ausente <strong>do</strong><br />
rosto: “Eu vou ganhar”, pensa<br />
Ricar<strong>do</strong>. No caminho para o<br />
“palco” há um ponto em que se<br />
<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> pensar, em que as emoções<br />
se misturam e em que os<br />
sentimentos <strong>de</strong> prazer e <strong>de</strong> terror<br />
se sobrepõem.<br />
Bastaram três assaltos e muito<br />
estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> jogo para que se sagrasse<br />
o mais jovem campeão europeu<br />
<strong>de</strong> kickboxing. “Também<br />
tive falhas que me iam custan<strong>do</strong><br />
um KO”, recorda o vence<strong>do</strong>r,<br />
explican<strong>do</strong> o segre<strong>do</strong> da vitória:<br />
“Ele enervou-se comigo e foi a<br />
morte <strong>do</strong> artista. Para lutar tem<br />
<strong>de</strong> se ter raiva, mas não se po<strong>de</strong><br />
per<strong>de</strong>r o controlo.”<br />
Com agressivida<strong>de</strong> e vonta<strong>de</strong>,<br />
Ricar<strong>do</strong> consegue o KO técnico<br />
e, por instantes, sente-se o <strong>do</strong>no<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. E é o Mun<strong>do</strong> o próximo<br />
objectivo <strong>de</strong>ste luta<strong>do</strong>r,<br />
sempre apoia<strong>do</strong> pelos amigos:<br />
“É essa raiva, essa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
ganhar e esse talento que o faz<br />
ser campeão. E ainda há muita<br />
margem <strong>de</strong> progressão, tem 21<br />
anos”, afirma o Russo. Num quadra<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> três metros por três, foi<br />
o rei daquele espaço. “Eram 5000<br />
pessoas a torcer pelo italiano. E<br />
foi um silêncio tão bom quan<strong>do</strong><br />
eu ganhei!”.
22 MEDIA<br />
BELEZA E TELEVISÃO<br />
TODOS OS ANOS SURGEM NOS VÁRIOS CANAIS DE TELEVISÃO CARAS NOVAS. Q<strong>UE</strong>REM SER “A GRANDE<br />
DESCOBERTA” NUM MUNDO COMPETITIVO Q<strong>UE</strong> POUCAS VEZES SE ABRE. SEMPRE Q<strong>UE</strong> HÁ CASTINGS<br />
CORREM AOS MILHARES. MAS POUCOS SÃO AQ<strong>UE</strong>LES Q<strong>UE</strong> PODEM UM DIA VIR A SER APRESENTADORES.<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
<br />
apresenta<strong>do</strong>res vistosos <strong>de</strong>mais”<br />
MARTA MESQUITA<br />
Luís <strong>de</strong> Matos, antigo consultor<br />
<strong>de</strong> imagem da RTP, SIC e<br />
TVI, foi o responsável pela<br />
imagem <strong>de</strong> muitos <strong>do</strong>s apresenta<strong>do</strong>res<br />
e pivots <strong>de</strong> informação<br />
da televisão portuguesa.<br />
Começou pelas Belas-Artes<br />
e mais tar<strong>de</strong> envere<strong>do</strong>u pela<br />
cenografia. Descobriu a BBC,<br />
on<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>u Imagem, Postura<br />
e <strong>Comunicação</strong>. Voltou<br />
para Portugal e em 1972 tornou-se<br />
o gestor <strong>de</strong> imagem da<br />
estação pública. Actualmente,<br />
Luís <strong>de</strong> Matos é consultor <strong>de</strong><br />
imagem em multi<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is.<br />
Continua atento à televisão<br />
e acredita que o talento para<br />
comunicar ainda é mais valoriza<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> que a beleza.<br />
A beleza é o que mais conta<br />
para se ser uma cara da televisão?<br />
Não, <strong>de</strong> forma alguma. O que<br />
mais conta em televisão é a<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicar. Não<br />
vale <strong>de</strong> <strong>na</strong>da a pessoa ser bonita<br />
se não sabe comunicar com<br />
O que mais conta em<br />
televisão é a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> comunicar.<br />
a câmara. Mas o que vemos <strong>na</strong><br />
televisão muitas vezes são pessoas<br />
vistosas, o que é muito diferente<br />
<strong>de</strong> pessoas bonitas. As<br />
pessoas bonitas têm uma imagem<br />
agradável no seu conjunto,<br />
uma cara com traços bonitos,<br />
gestos suaves, voz, dicção, sabem<br />
passar uma mensagem,<br />
comunicam com o corpo.... E<br />
o público <strong>de</strong>sconfia sempre <strong>de</strong><br />
apresenta<strong>do</strong>res vistosos <strong>de</strong>mais.<br />
Mas o que muitas vezes se vê<br />
<strong>na</strong> televisão são apresenta<strong>do</strong>res<br />
muito vistosos...<br />
Pois é, mas <strong>na</strong> maior parte <strong>do</strong>s<br />
casos não sabem comunicar. E<br />
posso dar um exemplo. A Isabel<br />
Figueiras é uma excelente<br />
mo<strong>de</strong>lo, uma topmo<strong>de</strong>l, mas já<br />
não tem o mesmo talento para a<br />
apresentação. Lá no programa<br />
que apresenta diz meia dúzia<br />
<strong>de</strong> linhas e mais <strong>na</strong>da. Se lhe<br />
tirassem o teleponto não sabia<br />
como o fazer. E isso não é o que<br />
se procura num comunica<strong>do</strong>r.<br />
Os castings têm leva<strong>do</strong> mui-<br />
tas pessoas a fazer testes<br />
para serem apresenta<strong>do</strong>res.<br />
É uma boa forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir<br />
novos talentos?<br />
Esses castings não servem<br />
para <strong>na</strong>da. Eu já <strong>de</strong>i formação<br />
a pessoas que foram seleccio<strong>na</strong>das<br />
em castings e em<br />
muitos casos só uma ou duas<br />
é que ficaram a trabalhar em<br />
televisão. E quan<strong>do</strong> se aposta<br />
em dar formação a estas pessoas,<br />
os ca<strong>na</strong>is gastam muito dinheiro<br />
com elas e <strong>de</strong>pois o que<br />
acontece é que não é rentabiliza<strong>do</strong>,<br />
porque <strong>de</strong> facto não têm<br />
perfil para serem apresenta<strong>do</strong>res<br />
ou pivots. Po<strong>de</strong>m ser bonitos<br />
mas falta o resto. E muitas<br />
vezes o que esses castings fazem<br />
é só ver quem é que é bonito<br />
ou quem é que está mais<br />
à vonta<strong>de</strong> perante as câmaras.<br />
Não dá para ver mais <strong>na</strong>da e<br />
<strong>de</strong>pois acontecem situações <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>silusão.<br />
Os castings tal como são feitos<br />
não funcio<strong>na</strong>m porque<br />
não conseguem revelar todas<br />
as potencialida<strong>de</strong>s das<br />
pessoas ou têm ainda mais<br />
falhas?<br />
Os castings não mostram as<br />
potencialida<strong>de</strong>s das pessoas<br />
mas muitas vezes também são<br />
mal conduzi<strong>do</strong>s ou feitos por<br />
pessoas que percebem pouco<br />
<strong>do</strong> assunto. Mas o mesmo<br />
acontece com os cursos <strong>de</strong><br />
formação. Eu acho um <strong>de</strong>sperdício<br />
em alguns cursos aceitarem-se<br />
pessoas que não têm<br />
a mínima hipótese <strong>de</strong> virem<br />
a trabalhar em televisão mas<br />
como têm 800 contos para pagar<br />
é-lhes dada formação. E<br />
isso é uma malda<strong>de</strong> para quem<br />
alimenta um sonho que lhe vai<br />
ser impossível realizar!<br />
Eu acho que <strong>de</strong>via haver <strong>na</strong>s<br />
escolas <strong>de</strong> comunicação uma<br />
selecção. Ver quem é que po<strong>de</strong><br />
pensar em trabalhar <strong>na</strong> televisão.<br />
E existir parcerias entre<br />
as escolas e os ca<strong>na</strong>is televisivos<br />
<strong>de</strong> forma a que a formação<br />
profissio<strong>na</strong>l fosse dada a pessoas<br />
que têm realmente hipóteses<br />
<strong>de</strong> realizar um bom tra-<br />
Os castings não<br />
mostram as<br />
potencialida<strong>de</strong>s das<br />
pessoas<br />
<br />
Hugo Andra<strong>de</strong>, subdirector <strong>de</strong> programas da<br />
RTP, é quem vai escolher as <strong>de</strong>z novas caras<br />
para o entretenimento da estação pública. Responsável<br />
pela organização <strong>do</strong> casting que levou<br />
à Avenida Marechal Gomes da Costa milhares<br />
<strong>de</strong> pessoas que procuram a oportunida<strong>de</strong> para<br />
entrar <strong>na</strong> televisão, Hugo Andra<strong>de</strong> acredita que<br />
se po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>scobrir novos talentos através <strong>de</strong>sta<br />
forma <strong>de</strong> selecção.<br />
A este casting foram pessoas <strong>de</strong> todas as ida<strong>de</strong>s<br />
e com to<strong>do</strong> o tipo <strong>de</strong> ambições. Pessoas<br />
conhecidas, licencia<strong>do</strong>s em comunicação, actores<br />
ou curiosos que só queriam ver o que é um<br />
casting foram alguns <strong>do</strong>s perfis que passaram<br />
pelos estúdios da RTP. Hugo Andra<strong>de</strong> diz que<br />
esta diversida<strong>de</strong> não o surpreen<strong>de</strong>u, porque há<br />
ambições que levam as pessoas a tentarem o<br />
tu<strong>do</strong> por tu<strong>do</strong>. “Algumas pessoas vieram ao casting,<br />
porque querem ser famosas. Está <strong>na</strong> moda<br />
ser-se famoso. Mas muitas pessoas que por<br />
aqui passaram querem é trabalhar nesta área,<br />
porque até têm formação e vêem este processo<br />
O HOMEM Q<strong>UE</strong> DECIDE...<br />
como uma janela, uma oportunida<strong>de</strong> para conseguirem<br />
um trabalho”, afirma o subdirector <strong>de</strong><br />
programas da RTP.<br />
Para Hugo Andra<strong>de</strong>, o mito da beleza como uma<br />
mais valia para se apresentar programas já caiu<br />
por terra. “Toda a gente tem espaço para apresentar<br />
programas. A beleza é algo <strong>de</strong> secundário. E as<br />
pessoas começam a ter noção disso, o que faz com<br />
que o panorama da apresentação esteja a mudar”,<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o director <strong>do</strong> casting da estação pública.<br />
Mas se há quem queira ser famoso ou simplesmente<br />
<strong>de</strong>seje trabalhar <strong>na</strong> área em que tem formação,<br />
há quem vá a castings por mero divertimento<br />
ou por hábito. “Há pessoas que sabem<br />
que não têm perfil para apresenta<strong>do</strong>res, porque<br />
não sabem comunicar, mas que vêm, umas para<br />
não ficarem sozinhas em casa e outras porque<br />
já é um hábito - não per<strong>de</strong>m um casting. Estes<br />
profissio<strong>na</strong>is <strong>do</strong>s castings querem é conhecer<br />
pessoas e trocam telefones e e-mails. Já formam<br />
uma verda<strong>de</strong>ira comunida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> já se<br />
conhecem to<strong>do</strong>s”, explica Hugo Andra<strong>de</strong>.
SUSANA TEODORO<br />
8ª COLINA I JUNHO 2006 MEDIA 23<br />
SUSANA TEODORO<br />
balho. Mas isso não acontece,<br />
porque em muitos casos seria<br />
lucro fácil que muitas entida<strong>de</strong>s<br />
não receberiam.<br />
Como é que percebe se uma<br />
pessoa tem ou não imagem<br />
para ser um pivot ou um<br />
apresenta<strong>do</strong>r?<br />
Uma boa imagem para televisão,<br />
que é diferente <strong>de</strong> uma<br />
boa imagem para comunicar<br />
fora da televisão, está praticamente<br />
centrada <strong>na</strong> elipse<br />
que vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o queixo até aos<br />
olhos. É aqui que se centra a<br />
comunicação. Por isso é fundamental<br />
ter uns bons <strong>de</strong>ntes,<br />
um olhar expressivo, um<br />
sorriso bonito.... As pessoas<br />
preocupam-se muito com os<br />
cabelos e com as roupas...isso<br />
não vale <strong>de</strong> <strong>na</strong>da <strong>na</strong> imagem,<br />
porque isso compõe-se <strong>de</strong>pois.<br />
Agora este triângulo, olhos e<br />
boca, é que é fundamental. Se<br />
estamos a falar <strong>de</strong> apresenta<strong>do</strong>res<br />
<strong>de</strong> entretenimento, convém<br />
ter um corpo agradável.<br />
Mas isto não é o fundamental<br />
para um apresenta<strong>do</strong>r.<br />
Procura-se a <strong>na</strong>turalida<strong>de</strong><br />
para comunicar mas <strong>de</strong>pois<br />
o apresenta<strong>do</strong>r sofre uma<br />
gran<strong>de</strong> transformação. No fi<strong>na</strong>l<br />
o resulta<strong>do</strong> é algo <strong>de</strong> muito<br />
produzi<strong>do</strong>…<br />
É verda<strong>de</strong>. Por isso é que eu<br />
acho que os castings nos mol<strong>de</strong>s<br />
em que são feitos não valem<br />
<strong>de</strong> muito. Claro que uma<br />
pessoa para dar a cara em televisão<br />
e para fazer um bom<br />
trabalho tem <strong>de</strong> ter um à vonta<strong>de</strong><br />
<strong>na</strong>tural para lidar com as<br />
câmaras e, sobretu<strong>do</strong>, tem <strong>de</strong><br />
se sentir confortável <strong>na</strong> forma<br />
como passa uma mensagem. E<br />
este à vonta<strong>de</strong> para comunicar<br />
não é algo que se aprenda,<br />
porque é i<strong>na</strong>to. Ou a pessoa<br />
sabe comunicar ou não sabe.<br />
Mas claro que <strong>de</strong>pois há muito<br />
para ser trabalha<strong>do</strong> e há<br />
sempre coisas que se po<strong>de</strong>m<br />
e <strong>de</strong>vem melhorar. Os cursos<br />
<strong>de</strong> formação são bons, porque<br />
ajudam as pessoas a serem<br />
melhores, a saberem estar pe-<br />
rante as câmaras, a lidar com<br />
imprevistos, a terem a postura<br />
correcta. E perante esta formação<br />
é claro que o resulta<strong>do</strong><br />
fi<strong>na</strong>l é produzi<strong>do</strong>.<br />
Exige-se mais, em termos <strong>de</strong><br />
beleza, <strong>de</strong> um apresenta<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> entretenimento <strong>do</strong> que <strong>de</strong><br />
um pivot <strong>de</strong> informação?<br />
É diferente. Um pivot <strong>de</strong> informação<br />
está senta<strong>do</strong> e um<br />
apresenta<strong>do</strong>r em pé. Um pivot<br />
tem <strong>de</strong> saber sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
jor<strong>na</strong>lismo. Tem <strong>de</strong> ter uma<br />
gran<strong>de</strong> cultura geral, tem <strong>de</strong><br />
saber como passar uma mensagem<br />
credível. Um apresenta<strong>do</strong>r<br />
tem <strong>de</strong> ter charme e<br />
saber conduzir um programa.<br />
E há <strong>de</strong> facto uma procura <strong>de</strong><br />
outra beleza, que não há num<br />
pivot ou num repórter, que<br />
também são pessoas importantes<br />
quan<strong>do</strong> estamos a falar<br />
<strong>de</strong> comunicação em formatos<br />
informativos.<br />
Como é que as pessoas com<br />
quem trabalha reagem normalmente<br />
às mudanças que<br />
propõe?<br />
Reagem bem… To<strong>do</strong>s gostamos<br />
<strong>de</strong> ficar melhora<strong>do</strong>s.<br />
Já houve alguém a quem não<br />
Este à-vonta<strong>de</strong> para<br />
comunicar não é<br />
algo que se aprenda,<br />
porque é i<strong>na</strong>to.<br />
teve <strong>de</strong> sugerir absolutamente<br />
nenhuma mudança?<br />
Já. Lembro-me agora da Soraia<br />
Chaves. Ela esteve comigo<br />
numa formação e <strong>de</strong> facto<br />
ela é muito bonita. Mas era<br />
muito tímida, não falava quase<br />
<strong>na</strong>da. E <strong>de</strong>pois conseguiu,<br />
sem per<strong>de</strong>r a humilda<strong>de</strong>, libertar-se<br />
e melhorar a sua capacida<strong>de</strong><br />
comunicativa. E a Soraia<br />
tem algo muito bom e que já é<br />
raro nos dias <strong>de</strong> hoje: ela sabe<br />
ouvir. Lembro-me que estava<br />
sempre com muita atenção e<br />
que gostava <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com<br />
os outros.<br />
<br />
UMA COLUNA NA COLINA<br />
por Oscar Mascarenhas<br />
Anda por aí um canibal<br />
autoriza<strong>do</strong><br />
Joaquim Pi<strong>na</strong> Moura foi ministro<br />
das Fi<strong>na</strong>nças e da Economia<br />
– um super-super-ministro,<br />
portanto – <strong>do</strong> segun<strong>do</strong><br />
Governo <strong>de</strong> António Guterres.<br />
Nessa qualida<strong>de</strong>, tomou <strong>de</strong>cisões<br />
importantes relativas a<br />
empresas inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is com<br />
interesses em Portugal. Hoje<br />
já não é ministro, mas continua<br />
<strong>de</strong>puta<strong>do</strong> <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Governo<br />
– e é administra<strong>do</strong>r-presi<strong>de</strong>nte<br />
da maior empresa investi<strong>do</strong>ra<br />
espanhola em Portugal. Dele<br />
terá dito o antecessor <strong>na</strong> pasta<br />
das Fi<strong>na</strong>nças, Sousa Franco,<br />
<strong>na</strong>quele célebre episódio da<br />
conversa <strong>de</strong> restaurante relatada<br />
pelo In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte: «É o<br />
homem <strong>do</strong>s espanhóis.» Até<br />
morrer, Sousa Franco nunca<br />
<strong>de</strong>smentiu especificamente<br />
esta afirmação.<br />
Temos, pois, um homem que,<br />
quan<strong>do</strong> membro <strong>do</strong> Governo,<br />
era visto pelo seu ex-colega<br />
como «o homem <strong>do</strong>s espanhóis».<br />
E vemo-lo, hoje, fora<br />
<strong>do</strong> Governo mas ainda no Parlamento,<br />
como «o homem <strong>do</strong>s<br />
espanhóis». Países há em que<br />
um gover<strong>na</strong>nte que tenha da<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong>spacho seja ao que for relacio<strong>na</strong><strong>do</strong><br />
com uma empresa, não<br />
po<strong>de</strong> trabalhar para ela até oito<br />
ou mais anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong><br />
as funções gover<strong>na</strong>mentais,<br />
sob pe<strong>na</strong> <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> <strong>de</strong>volver<br />
to<strong>do</strong>s os vencimentos que<br />
recebeu enquanto membro da<br />
administração pública. Em Portugal<br />
não existe essa norma.<br />
Jor<strong>na</strong>listas perguntaram a<br />
Pi<strong>na</strong> Moura se não sentia <strong>de</strong>sconforto<br />
ético em ter si<strong>do</strong> ministro<br />
<strong>de</strong> pastas económicas<br />
relacio<strong>na</strong>das com investimento<br />
estrangeiro e ser hoje administra<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> uma empresa<br />
estrangeira <strong>de</strong> investimento.<br />
Respon<strong>de</strong>u o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r<br />
que o seu cre<strong>do</strong> é a<br />
«ética republica<strong>na</strong>». Pois, por<br />
isso mesmo, contrapuseram<br />
os jor<strong>na</strong>listas, a «ética republica<strong>na</strong>»<br />
<strong>de</strong>le não lhe dava uma<br />
gui<strong>na</strong>da <strong>na</strong> alma ao ter si<strong>do</strong><br />
ministro e agora administra<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> empresa sobre a qual<br />
tomou <strong>de</strong>cisões como gover<strong>na</strong>nte?<br />
Não, respon<strong>de</strong>u placidamente,<br />
Pi<strong>na</strong> Moura. É que,<br />
segun<strong>do</strong> ele, a «ética republica<strong>na</strong>»<br />
é «a ética da lei!»<br />
Homem perigoso, este Pi<strong>na</strong><br />
Moura! Explico porquê: aqui<br />
há poucos anos, <strong>do</strong>is alemães<br />
combi<strong>na</strong>ram uma orgia sórdida<br />
que terminou com um<br />
<strong>de</strong>les a comer o outro (comer<br />
no senti<strong>do</strong> literal, alimentar,<br />
<strong>do</strong> termo, não se faça confusão).<br />
Pois o alemão sobrevivo<br />
foi con<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong> a uns oito anos<br />
<strong>de</strong> prisão, por uma série <strong>de</strong><br />
crimes – menos por canibalismo.<br />
Porquê? Porque ninguém<br />
se tinha lembra<strong>do</strong>, <strong>na</strong> Alemanha,<br />
<strong>de</strong> elaborar uma lei que<br />
proibisse o canibalismo. Não<br />
sen<strong>do</strong> proibi<strong>do</strong> – é permiti<strong>do</strong>.<br />
Eis como Pi<strong>na</strong> Moura encontra<br />
uma alma gémea no seu<br />
bunker da «ética republica<strong>na</strong>»:<br />
um canibal alemão.<br />
O pior é que ele não está <strong>de</strong>sacompanha<strong>do</strong>:<br />
tem o Parlamento<br />
português <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong>.<br />
Há dias, assisti a um <strong>de</strong>bate<br />
sobre a ética política <strong>do</strong>s <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s.<br />
Não ouvi falar <strong>de</strong><br />
escrúpulo – que é a essência<br />
da ética. Não os ouvi dizer que<br />
a ética política <strong>do</strong>s eleitos é<br />
tão-somente a lealda<strong>de</strong> ao<br />
compromisso e o compromisso<br />
<strong>de</strong> lealda<strong>de</strong>. Não. Só discutiram<br />
as leis que <strong>de</strong>veriam<br />
ser feitas para impor ética aos<br />
representantes <strong>do</strong> povo. Ou<br />
seja, tratam-se a si próprios<br />
como malandros a quem <strong>de</strong>ve<br />
ser imposto o escrúpulo mínimo<br />
obrigatório que é a lei e a<br />
repressão que acarreta o seu<br />
não cumprimento.<br />
O insólito – e hipócrita – <strong>de</strong> tu<strong>do</strong><br />
isto é ver os dirigentes partidários<br />
reclamar mais normas<br />
legais para impor comportamentos<br />
éticos aos <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s.<br />
É que o sistema eleitoral português<br />
dá, <strong>de</strong> facto, uma supremacia<br />
enorme ao parti<strong>do</strong><br />
sobre o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>: o parti<strong>do</strong><br />
controla o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> e <strong>na</strong>da o<br />
Eis como Pi<strong>na</strong> Moura<br />
encontra uma alma<br />
gémea no seu bunker<br />
da «ética republica<strong>na</strong>»:<br />
um canibal alemão.<br />
impe<strong>de</strong> até <strong>de</strong> obrigar o candidato<br />
a assi<strong>na</strong>r uma <strong>de</strong>claração<br />
<strong>de</strong> renúncia, sem data, para o<br />
manter <strong>na</strong> linha. Mas, em lugar<br />
<strong>de</strong> ser o parti<strong>do</strong> a comprometer-se<br />
com a ética <strong>do</strong>s seus,<br />
quer que to<strong>do</strong>s entrem em<br />
consenso para <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>r leis<br />
<strong>de</strong> comportamento. Nenhum<br />
parti<strong>do</strong> se orgulha da sua própria<br />
ética como diferencia<strong>do</strong>ra<br />
da <strong>do</strong>s restantes. Nem um só<br />
parti<strong>do</strong> tem um código <strong>de</strong> ética<br />
próprio para apresentar aos<br />
eleitores como compromisso<br />
<strong>do</strong>s seus candidatos.<br />
A «ética <strong>do</strong> canibal», também<br />
dita «ética republica<strong>na</strong>», faz<br />
gran<strong>de</strong> escola no Parlamento.<br />
Proponho mesmo que <strong>na</strong><br />
solene sala <strong>do</strong> plenário, bem<br />
acima da cabeça <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte<br />
da Assembleia, fique grava<strong>do</strong><br />
no mármore este lema: «Pi<strong>na</strong><br />
Moura forever – olé». •
24 LETRAS<br />
MARIA TERESA HORTA, A MULHER Q<strong>UE</strong> (AINDA) OUSA OUSAR<br />
“A literatura erótica<br />
excita o leitor”<br />
<br />
<br />
-<br />
RAM-LHE. NÃO SE INTIMIDOU. E CONTINUOU A SUA LUTA POR UMA LITERATURA TANTAS VEZES MARGINALIZADA E PELA<br />
<br />
<br />
IRINA MELO<br />
Sempre que escreve um poema<br />
erótico, Maria Teresa Horta lê-o<br />
várias vezes para se convencer<br />
<strong>de</strong> que não <strong>po<strong>de</strong>r</strong>ia ter si<strong>do</strong> escrito<br />
por um homem, tal como fez<br />
A<strong>na</strong>ïs Nin com “Delta <strong>de</strong> Vénus”.<br />
“Tu<strong>do</strong> o que há <strong>de</strong> referência <strong>na</strong> literatura<br />
erótica é feito em função<br />
<strong>do</strong> imaginário masculino, e é esse<br />
o meu receio. Há que <strong>de</strong>scobrir a<br />
escrita erótica no feminino!”<br />
Com voz <strong>do</strong>ce, a escritora faz-nos<br />
entrar <strong>na</strong> sombria sala <strong>de</strong> trabalho,<br />
emoldurada por livros, on<strong>de</strong><br />
escreveu (e escreve) a poesia sensual<br />
que outrora tanto perturbou o<br />
regime e a socieda<strong>de</strong> bem pensante<br />
e bem ciente <strong>do</strong> papel <strong>de</strong> <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ção<br />
<strong>do</strong> homem perante a mulher.<br />
A sua figura frágil, ainda que sólida,<br />
não condiz com a mulher que<br />
foi tida durante anos como implacável<br />
feminista, inimiga <strong>de</strong> qualquer<br />
espécime <strong>do</strong> sexo masculino.<br />
Pelo contrário, Teresa Horta mostra-se<br />
sempre pronta a aten<strong>de</strong>r os<br />
telefonemas <strong>do</strong>s amigos e <strong>do</strong> filho,<br />
a quem ainda fala <strong>de</strong> forma ternurenta,<br />
apesar <strong>de</strong> estar há dias<br />
fechada em casa com um braço ao<br />
peito. Uma sema<strong>na</strong> antes, durante<br />
um encontro <strong>de</strong> poetas em Cracóvia<br />
(Polónia), sofreu uma queda<br />
que lhe podia ter custa<strong>do</strong> a vida ou<br />
tor<strong>na</strong><strong>do</strong> paraplégica – “os médicos<br />
dizem que foi um milagre”.<br />
Com a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem tem muito<br />
para dizer em pouco tempo, a escritora<br />
vai <strong>de</strong>bitan<strong>do</strong> o que pensa,<br />
como as más recordações que tem<br />
<strong>do</strong> erotismo no masculino. “A única<br />
poesia erótica vinda <strong>de</strong> homens<br />
que não me ofen<strong>de</strong>u foi a <strong>do</strong> David<br />
Mourão-Ferreira”, diz, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong><br />
que nomes como Henry Miller<br />
ou Alberto Moravia confun<strong>de</strong>m<br />
sensualida<strong>de</strong> com pornografia.<br />
Mas a sua principal preocupação é<br />
balizar a escrita erótica da amorosa.<br />
“A literatura <strong>do</strong> amor disten<strong>de</strong>,<br />
a pessoa fica ter<strong>na</strong>; a erótica mexe<br />
com o <strong>de</strong>sejo, exulta, o corpo respon<strong>de</strong><br />
ao que está a ler!”<br />
E em Portugal não há literatura<br />
erótica, afirma Maria Teresa<br />
Horta: “Há uma escrita em que<br />
o corpo está presente mas não é<br />
erótica, são intimida<strong>de</strong>s. A poesia<br />
da Florbela Espanca, que foi<br />
Para além <strong>do</strong>s livros, muitas<br />
bruxas (bonecas, entenda-se)<br />
povoam a sala <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong><br />
Maria Teresa Horta. O encantamento<br />
por estes seres vem<br />
da família pater<strong>na</strong>, dada a misticismos,<br />
mas também da própria<br />
luta pela emancipação das<br />
mulheres. Para a escritora as<br />
feiticeiras foram as primeiras<br />
feministas: “Não tenho dúvidas,<br />
porque eram elas que cuidavam<br />
das pessoas, que tinham<br />
as ervas que curavam, eram<br />
“BRUXAS, AS PRIMEIRAS FEMINISTAS”<br />
mulheres in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e com<br />
<strong>po<strong>de</strong>r</strong>, o que assustava os <strong>po<strong>de</strong>r</strong>es<br />
instituí<strong>do</strong>s”, diz, referin<strong>do</strong>-se<br />
à perseguição feita pela<br />
Inquisição da Igreja Católica.<br />
E o tributo às “Feiticeiras” escreveu-o<br />
o ano passa<strong>do</strong>, num<br />
longo poema lírico que <strong>de</strong>u origem<br />
a uma cantata em quatro<br />
actos musicada para trompa,<br />
trombone, harpa e percussão<br />
pelo compositor António Chagas<br />
Rosa. “É o meu primeiro<br />
texto feminista concreto, que<br />
também é erótico. Foi sempre<br />
um gran<strong>de</strong> sonho <strong>na</strong> minha<br />
vida tratar este tema e acho<br />
que é uma gran<strong>de</strong> home<strong>na</strong>gem<br />
às feiticeiras”.<br />
A estreia <strong>de</strong>ste trabalho conjunto<br />
entre a escritora e o pianista<br />
aconteceu no início <strong>do</strong><br />
ano no Théâtre les Ber<strong>na</strong>dines,<br />
em Marselha, a que se seguiu<br />
uma mini-digressão por França.<br />
Em Portugal, “Feiticeiras”<br />
só chega em Março <strong>de</strong> 2007 ao<br />
palco da Culturgest.<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
“SEGREDO”<br />
Não contes <strong>do</strong> meu<br />
vesti<strong>do</strong><br />
que tiro pela cabeça<br />
nem que corro os<br />
corti<strong>na</strong><strong>do</strong>s<br />
para uma sombra mais espessa<br />
<strong>de</strong>ixa que feche o<br />
anel<br />
em re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> teu pescoço<br />
com as minhas longas<br />
per<strong>na</strong>s<br />
e a sombra <strong>do</strong> meu poço<br />
Não contes <strong>do</strong> meu<br />
novelo<br />
nem da roca <strong>de</strong> fiar<br />
nem o que faço<br />
com eles<br />
a fim <strong>de</strong> te ouvir gritar<br />
muito ousada <strong>na</strong> época, é amorosa.<br />
A Natália Correia passa pela<br />
sexualida<strong>de</strong>, mas não é específica<br />
<strong>de</strong> uma literatura erótica.”<br />
O processo das três Marias<br />
Nascida em Lisboa no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong>s<br />
anos trinta, estudante <strong>na</strong> Faculda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Letras <strong>de</strong> Lisboa, que viria<br />
a aban<strong>do</strong><strong>na</strong>r para enveredar pelo<br />
jor<strong>na</strong>lismo, Teresa Horta publica<br />
em 1960 Espelho Inicial, o seu primeiro<br />
livro <strong>de</strong> poesia. Mas seria<br />
preciso esperar onze anos pelo lan-<br />
“Tu<strong>do</strong> o que há <strong>de</strong><br />
referência <strong>na</strong> literatura<br />
erótica é feito em<br />
função <strong>do</strong> imaginário<br />
masculino. Há que<br />
<strong>de</strong>scobrir a escrita<br />
erótica no feminino!”<br />
çamento daquele que será talvez o<br />
mais controverso livro da literatura<br />
portuguesa contemporânea<br />
– “Novas Cartas Portuguesas”.<br />
Escrito em co-autoria com Maria<br />
Isabel Barreno e Maria Velho da<br />
Costa, a obra reúne cartas fictícias<br />
<strong>de</strong> várias mulheres, fazen<strong>do</strong><br />
um retrato sociológico da condição<br />
femini<strong>na</strong> em Portugal, mas<br />
também <strong>do</strong> conturba<strong>do</strong> momento<br />
político, através das chamadas<br />
“Cartas d’África” (enviadas a solda<strong>do</strong>s<br />
<strong>na</strong> guerra colonial).<br />
Imediatamente após a edição, o livro<br />
é censura<strong>do</strong> pelo regime e dá<br />
origem àquele que ficou conheci<strong>do</strong><br />
por “processo das três Marias”,<br />
com as escritoras a serem acusadas<br />
<strong>de</strong> “pornografia, obscenida<strong>de</strong><br />
e abuso <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imprensa”<br />
pela polícia <strong>de</strong> costumes. Até ao 25<br />
<strong>de</strong> Abril, as três mulheres estiveram<br />
proibidas <strong>de</strong> sair <strong>do</strong> país e <strong>de</strong><br />
ser referidas <strong>na</strong> imprensa.<br />
Apesar <strong>de</strong> ter passa<strong>do</strong> <strong>de</strong>spercebi<strong>do</strong><br />
<strong>na</strong> opinião pública portuguesa,<br />
“Novas Cartas Portuguesas” teve<br />
uma gran<strong>de</strong> repercussão no estrangeiro,<br />
com o movimento feminista<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l a organizar marchas<br />
e manifestações <strong>de</strong> protesto <strong>na</strong>s<br />
principais capitais europeias. Na<br />
Holanda, um grupo feminista ocupou<br />
a embaixada portuguesa em
8ª COLINA I JUNHO 2006 LETRAS 25<br />
O Q<strong>UE</strong> PENSAM OS CRÍTICOS<br />
A poesia erótica em português está morta?<br />
“Depois <strong>de</strong> Maria Teresa Horta,<br />
Eros Frenético <strong>de</strong> A<strong>na</strong> Hatherly<br />
é o mais importante livro <strong>de</strong> poesia<br />
erótica em Portugal”, diz<br />
Pedro Se<strong>na</strong>-Lino, referin<strong>do</strong>-se<br />
a uma obra datada <strong>de</strong> 1968.<br />
A afirmação <strong>de</strong>ste critico <strong>de</strong><br />
poesia, que colabora com o suplemento<br />
“Mil Folhas” <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l<br />
Público, vem <strong>de</strong>monstrar que o<br />
erotismo não é um campo propriamente<br />
caro da literatura<br />
portuguesa contemporânea.<br />
Mas o que po<strong>de</strong> sugerir uma<br />
perda é ape<strong>na</strong>s o reflexo <strong>do</strong>s<br />
tempos.<br />
Após um perío<strong>do</strong> em que este<br />
género literário foi essencial<br />
para a <strong>de</strong>finição das socieda<strong>de</strong>s<br />
contemporâneas, pela sua<br />
componente <strong>de</strong> subversão aos<br />
preconceituosos <strong>po<strong>de</strong>r</strong>es instituí<strong>do</strong>s,<br />
começou a entrar em<br />
<strong>de</strong>clínio. Com <strong>na</strong>turalida<strong>de</strong>,<br />
como explica Se<strong>na</strong>-Lino: “A<br />
poesia é a primeira arma em<br />
to<strong>do</strong>s os campos para abrir caminho,<br />
como aconteceu com<br />
“GOZO III”<br />
Põe meu amor<br />
teu preceito<br />
teu pénis<br />
meu pão tão ce<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> vestir e <strong>de</strong> enfeitar<br />
espasmos toma<strong>do</strong>s<br />
por <strong>de</strong>ntro<br />
e guarnecer o <strong>de</strong>itar<br />
daquilo que vou gemen<strong>do</strong><br />
Meu amor<br />
por me habitares<br />
com jeito <strong>de</strong> teu<br />
invento<br />
ou com raiva<br />
<strong>de</strong> gritares<br />
quan<strong>do</strong> te monto<br />
e me fen<strong>do</strong><br />
Amesterdão e, em França, as escritoras<br />
Simone Beauvoir, Marguerite<br />
Duras e Christiane Rochefort<br />
promoveram uma procissão <strong>de</strong> velas<br />
com milhares <strong>de</strong> mulheres que<br />
atravessou Paris.<br />
A publicação em 1971 <strong>de</strong> “Novas<br />
Cartas Portuguesas” só foi possível<br />
<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à edição um ano antes<br />
<strong>de</strong> “Minha Senhora <strong>de</strong> Mim”, <strong>de</strong><br />
Maria Teresa Horta. Um livro feito<br />
<strong>de</strong> versos que misturam amor<br />
com erotismo numa clara afronta<br />
a uma or<strong>de</strong>m social e religiosa<br />
castra<strong>do</strong>ra das mulheres.<br />
“[Minha Senhora <strong>de</strong> Mim] tem<br />
muito a ver com a poesia medieval,<br />
as cantigas <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> amigo. A<br />
partir daí há uma evolução clara no<br />
senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> projectar uma mulher<br />
que se diz senhora <strong>de</strong> si própria,<br />
Minha Senhora <strong>de</strong> Mim. O livro foi<br />
tão escandaloso que foi apreendi<strong>do</strong><br />
e apanhei uma tareia <strong>na</strong> rua. Já há<br />
muito que tínhamos a i<strong>de</strong>ia das Novas<br />
Cartas e a Maria Velho da Costa<br />
disse: “Se uma mulher sozinha<br />
faz este barulho, imagi<strong>na</strong> três…””,<br />
conta a escritora.<br />
a poesia erótica e satírica <strong>do</strong>s<br />
cancioneiros medievais. Actualmente<br />
não se cultiva este<br />
género, ninguém faz um livro<br />
ape<strong>na</strong>s <strong>de</strong> poesia erótica. É um<br />
pouco a<strong>na</strong>crónico”.<br />
Também para Pedro Mexia,<br />
critico literário com crónicas<br />
regulares no Diário <strong>de</strong> Notícias,<br />
o tempo marcou este género.<br />
Se não há quem se<br />
<strong>de</strong>dique em exclusivo<br />
ao erotismo, gran<strong>de</strong><br />
parte <strong>do</strong>s autores<br />
incorporam-no nos<br />
seus escritos<br />
“Em Portugal, a literatura erótica<br />
foi mais importante quan<strong>do</strong><br />
era transgressora, nos tempos<br />
em que o catolicismo era forte<br />
e para o Esta<strong>do</strong> Novo era tão<br />
mal vista e censurada quanto<br />
Consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> por alguns como<br />
o seu livro mais ousa<strong>do</strong>, Teresa<br />
Horta prefere atribuir esse título<br />
a Educação Sentimental, escrito<br />
durante o ‘processo das três Marias’<br />
como resposta ao clássico,<br />
com o mesmo nome, <strong>de</strong> Flaubert:<br />
“Educação Sentimental é muito<br />
mais <strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong> para ser insubordi<strong>na</strong><strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> que Minha Senhora<br />
<strong>de</strong> Mim. Há um projecto didáctico<br />
em que explico aos homens o que<br />
as mulheres sentem, e que socialmente<br />
e moralmente não convém<br />
dizer. E claro que vou cantar o corpo<br />
<strong>do</strong>s homens porque eles sempre<br />
cantaram o das mulheres! Porque<br />
é que isto é escandaloso?!”<br />
“Sou feminista.” E <strong>de</strong>pois?<br />
Em toda a obra <strong>de</strong> Maria Teresa<br />
Horta, que já conta com mais <strong>de</strong><br />
20 livros <strong>de</strong> poesia e muitos outros<br />
<strong>de</strong> ficção e contos, está presente a<br />
sua faceta feminista. Recusan<strong>do</strong><br />
ser panfletária, a autora parte <strong>de</strong><br />
uma escrita intimista para uma<br />
mensagem social global <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa<br />
<strong>do</strong>s direitos da mulher.<br />
Assumidamente feminista <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o início da década <strong>de</strong> 70, e funda<strong>do</strong>ra<br />
<strong>do</strong> Movimento <strong>de</strong> Libertação<br />
das Mulheres, Teresa Horta afirma<br />
“A literatura amorosa<br />
amor disten<strong>de</strong>, a<br />
pessoa fica ter<strong>na</strong>; <strong>na</strong><br />
literatura erótica o<br />
corpo respon<strong>de</strong> ao que<br />
está a ler!”<br />
não saber <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> se sentiu<br />
atraída pelo feminismo. “Não sei<br />
quan<strong>do</strong> comecei, provavelmente<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeni<strong>na</strong>, porque as injustiças<br />
sempre me fizeram confusão.<br />
Acho que todas as pessoas merecem<br />
a intervenção política. É difícil<br />
encontrar poemas eróticos em<br />
escritores com menos <strong>de</strong> 50<br />
anos”.<br />
Mas se actualmente não há<br />
quem se <strong>de</strong>dique em exclusivo<br />
ao erotismo, gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s<br />
autores incorporam-no nos<br />
seus escritos. “Nos anos 80 e<br />
90, existem várias linguagens<br />
poéticas on<strong>de</strong> o discurso erótico<br />
está integra<strong>do</strong>. Encontramolo<br />
principalmente <strong>na</strong> poesia <strong>de</strong><br />
Al Berto e Luís Miguel Nava,<br />
mas também em Joaquim<br />
Manuel Magalhães, Eduar<strong>do</strong><br />
Pitta, Ama<strong>de</strong>u Baptista, entre<br />
outros. Autores como Daniel<br />
Faria ou “valter hugo mãe”<br />
(sic) fazem a integração <strong>do</strong><br />
erotismo <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista<br />
místico”, diz Se<strong>na</strong>-Lino. Pedro<br />
Mexia refere ainda a presença<br />
<strong>de</strong> um erotismo excêntrico <strong>na</strong><br />
obra <strong>de</strong> Adília Lopes.<br />
Na prosa, também são muitos<br />
os romances e contos a que não<br />
falta a <strong>do</strong>se certa <strong>de</strong> <strong>de</strong>scri-<br />
ser felizes e parece-me uma gran<strong>de</strong><br />
injustiça que a maior parte da humanida<strong>de</strong>,<br />
porque é mulher, não tenha<br />
esse direito. Ainda me lembro<br />
daquele provérbio português “Mãe,<br />
o que é casar? Filha, é amar, parir e<br />
chorar. Acho isto horrível!”<br />
A infância terá si<strong>do</strong>, sem dúvida,<br />
a sementeira <strong>do</strong> seu feminismo,<br />
quan<strong>do</strong> a avó pater<strong>na</strong> (que foi a<br />
primeira mulher a frequentar o<br />
liceu em Portugal) a levava às reuniões<br />
da Casa-Jardim. Aí, enquanto<br />
Teresa Horta lia livros infantis<br />
da ‘Colecção Manecas’, senhoras<br />
da burguesia, entre elas Maria Lamas,<br />
bebiam chá e comiam bolos<br />
éclair enquanto discutiam a emancipação<br />
das mulheres, como o acesso<br />
à educação e o direito ao voto.<br />
Mais tar<strong>de</strong> outras mulheres seriam<br />
marcantes <strong>na</strong> sua a<strong>de</strong>são ao movimento<br />
feminista, sobretu<strong>do</strong> Simone<br />
Beauvoir, <strong>de</strong> quem leu O Segun<strong>do</strong><br />
Sexo aos quinze anos. “Eu fui educada<br />
por mulheres: a minha mãe,<br />
a minha avó, as tias, as primas… E<br />
os gran<strong>de</strong>s marcos da minha vida,<br />
quer literários quer <strong>de</strong> pensamento,<br />
são mulheres: Simone, Duras, Virgínia<br />
Woolf, A<strong>na</strong>ïs Nin… A minha<br />
vida foi sempre modificada pelas<br />
mulheres e a minha escrita passa<br />
necessariamente pela minha vida”,<br />
diz Maria Teresa Horta.<br />
Apesar <strong>de</strong> a sua poesia assentar <strong>na</strong><br />
partilha e complementarida<strong>de</strong> entre<br />
os <strong>do</strong>is sexos, a espontaneida<strong>de</strong><br />
com que assumiu a sexualida<strong>de</strong> da<br />
mulher e a sua militância feminista<br />
criaram um cocktail explosivo que<br />
lhe trouxe muitos dissabores, entre<br />
os académicos (por quem, admite,<br />
“ser levada menos a sério”) mas<br />
também entre o gran<strong>de</strong> público.<br />
Durante muito tempo chegavamlhe<br />
frequentemente telefonemas<br />
<strong>de</strong> homens anónimos que ora a<br />
insultavam ora a convidavam<br />
para encontros amorosos, mas<br />
ções eróticas. Pedro Se<strong>na</strong>-Lino<br />
exemplifica com o último livro<br />
<strong>de</strong> Dulce Maria Car<strong>do</strong>so, Meus<br />
sentimentos, lança<strong>do</strong> em 2005.<br />
“Ao longo <strong>de</strong> 15 pági<strong>na</strong>s é relatada<br />
uma ce<strong>na</strong> <strong>de</strong> sexo numa<br />
estação <strong>de</strong> serviço”.<br />
De Gil Vicente a<br />
Natália Correia<br />
As origens <strong>do</strong> erotismo <strong>na</strong> poesia<br />
em Portugal po<strong>de</strong>m ser<br />
encontradas <strong>na</strong>s “Cantigas <strong>de</strong><br />
Escárnio e Mal-dizer” <strong>do</strong> Cancioneiro<br />
Geral <strong>de</strong> Garcia <strong>de</strong><br />
Resen<strong>de</strong> (1516), on<strong>de</strong> já estão<br />
representa<strong>do</strong>s poetas como<br />
Gil Vicente. No mesmo século,<br />
surge o célebre Canto IX (A Ilha<br />
<strong>do</strong>s Amores) <strong>do</strong>s “Lusíadas”,<br />
em que Luís <strong>de</strong> Camões relata<br />
os prazeres da carne com que<br />
os <strong>de</strong>uses <strong>de</strong>cidiram premiar<br />
os heróis portugueses. Mais<br />
tar<strong>de</strong>, no século XVIII, Bocage<br />
mistura em extensos poemas<br />
o erótico com o satírico, numa<br />
‘ofensa à moral e bons costu-<br />
também eram muitas as mulheres<br />
que a procuravam, em busca<br />
<strong>de</strong> alguém que as ajudasse a fugir<br />
<strong>de</strong> uma vida <strong>de</strong> me<strong>do</strong> e violência<br />
conjugal. “Um dia uma senhora<br />
ligou-me <strong>do</strong> hospital a dizer que<br />
já não aguentava mais e que se ia<br />
suicidar. Quan<strong>do</strong> soube que o fez,<br />
fiquei muito chocada e tive mesmo<br />
<strong>de</strong> tirar o meu nome da lista<br />
telefónica”, lembra Teresa Horta.<br />
Algumas décadas <strong>de</strong>pois da escri-<br />
mes’ que o leva à prisão.<br />
No século XX, os rituais <strong>de</strong><br />
Eros (<strong>de</strong>us grego <strong>do</strong> amor e<br />
<strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo) são celebra<strong>do</strong>s por<br />
poetas como Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Pessoa<br />
(English Poems), Mário <strong>de</strong> Sá-<br />
Carneiro, Guerra Junqueiro,<br />
António Botto, Jorge <strong>de</strong> Se<strong>na</strong><br />
ou Melo e Castro. Nas mulheres,<br />
para além <strong>de</strong> Teresa Horta,<br />
as referências vão para Judite<br />
Teixeira e Natália Correia,<br />
que em 1966 publica Antologia<br />
da Poesia Portuguesa Erótica<br />
e Satírica. Com autores mais<br />
e menos conheci<strong>do</strong>s, esta colectânea<br />
revela também como<br />
a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão se<br />
foi alteran<strong>do</strong> com o tempo,<br />
<strong>de</strong>masiadas vezes no senti<strong>do</strong><br />
contrário ao que seria <strong>de</strong> pensar.<br />
Pela feitura da Antologia,<br />
Natália Correia foi con<strong>de</strong><strong>na</strong>da<br />
a três anos <strong>de</strong> prisão com pe<strong>na</strong><br />
suspensa. •<br />
SUGESTÕES DE LEITURA<br />
Iri<strong>na</strong> Melo<br />
Um jogo <strong>de</strong> espelhos. A<strong>na</strong> Paula<br />
Costa silencia a sua voz <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> ao<br />
leitor a <strong>de</strong>scoberta da açoria<strong>na</strong> <strong>de</strong><br />
“carácter vulcânico” que foi poeta,<br />
romancista, dramaturga, ensaísta,<br />
tradutora, conferencista, editora e<br />
<strong>de</strong>putada.<br />
Correspondência <strong>de</strong> Sophia <strong>de</strong> Mello Breyner e<br />
Jorge <strong>de</strong> Se<strong>na</strong> (1959-1978)<br />
Autores: Sophia <strong>de</strong> Mello Breyner<br />
Andresen e Jorge <strong>de</strong> Se<strong>na</strong><br />
Editora: Guerra e Paz<br />
Nas décadas <strong>de</strong> 60 e 70, <strong>do</strong>is amigos,<br />
separa<strong>do</strong>s por um oceano e um<br />
velho dita<strong>do</strong>r, trocam cartas como<br />
quem troca segre<strong>do</strong>s. Com intimida<strong>de</strong>.<br />
Sobre cida<strong>de</strong>s, política e, claro,<br />
literatura. Não fossem eles Sophia<br />
<strong>de</strong> Mello Breyner e Jorge <strong>de</strong> Se<strong>na</strong>.<br />
ta <strong>de</strong> Novas Cartas Portuguesas<br />
e <strong>do</strong>s versos eróticos que se atreveu<br />
a publicar, o país evoluiu e<br />
já não há quem se indigne (pelo<br />
menos publicamente) com a sua<br />
ousadia <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> feita escrita.<br />
Mesmo assim, “Em Portugal, não<br />
é fácil ser mari<strong>do</strong> ou filho da Teresa<br />
Horta”, diz a escritora, com<br />
a mesma expressão matreira,<br />
mas ter<strong>na</strong>, com que sempre fintou<br />
quem a tentava amordaçar.<br />
Fotobiografia <strong>de</strong><br />
Natália Correia<br />
Autora: A<strong>na</strong> Paula Costa<br />
Editora: Publicações D. Quixote
26 LETRAS CONTO<br />
SÍLVIA CANECO<br />
Olho-a pelo canto <strong>do</strong><br />
olho, to<strong>do</strong>s os dias ela<br />
<strong>na</strong>quela ca<strong>de</strong>ira encostada<br />
ao vidro, to<strong>do</strong>s os<br />
dias por instantes os seus <strong>de</strong><strong>do</strong>s<br />
a massajarem-lhe as rugas, por<br />
instantes as suas rugas a <strong>na</strong>ufragarem<br />
<strong>na</strong> ari<strong>de</strong>z <strong>do</strong>s seus <strong>de</strong><strong>do</strong>s. A<br />
sua pali<strong>de</strong>z esboçada no bule pousa<strong>do</strong><br />
<strong>na</strong> mesa, a sua boca inquieta<br />
a soprar o chá com assobios <strong>de</strong> cuspo<br />
rente à boca da cháve<strong>na</strong>, rente<br />
à boca da cháve<strong>na</strong>. To<strong>do</strong>s os dias<br />
saber que os meus olhos a fitam e<br />
muitos outros a <strong>de</strong>voram, saber<br />
que ao meu la<strong>do</strong> muitos comentam<br />
a sua figura, olha-me só para<br />
aquela que já <strong>de</strong>via ter ida<strong>de</strong> para<br />
ter juízo, olha lá que já podia ser<br />
nossa avó, saber que ela o sente e o<br />
sabe e a incomoda e saber quan<strong>do</strong><br />
me olha nos olhos o seu <strong>de</strong>sejo e o<br />
sangue <strong>de</strong> uma ferida que vai crescen<strong>do</strong>,<br />
crescen<strong>do</strong>, crescen<strong>do</strong>.<br />
Olho-a pelo canto <strong>do</strong> olho, to<strong>do</strong>s<br />
os dias ela e o seu rosto <strong>de</strong> pólvora<br />
no precipício <strong>do</strong> vidro, to<strong>do</strong>s os<br />
dias o seu olhar baço a olhar fixamente<br />
para o vidro <strong>do</strong> bule, para o<br />
vidro da cháve<strong>na</strong>, para o vidro <strong>do</strong><br />
vidro. To<strong>do</strong>s os dias o seu rosto a<br />
disfarçar-se <strong>de</strong> garboso pela blusa<br />
<strong>de</strong> renda guardada há anos <strong>na</strong><br />
gaveta, to<strong>do</strong>s os dias o perfume<br />
compra<strong>do</strong> <strong>na</strong> mercearia da esqui<strong>na</strong><br />
para disfarçar o cheiro a mofo,<br />
os cabelos brancos meticulosamente<br />
enrola<strong>do</strong>s numa <strong>de</strong>ze<strong>na</strong> <strong>de</strong><br />
ganchos, olhar-se ao espelho nem<br />
que seja por esta vez e repetir-lhe<br />
ajuda-me a querer-me, ajuda-me a<br />
querer-me, ajuda-me a querer-me.<br />
E os seus <strong>de</strong><strong>do</strong>s trémulos como os<br />
<strong>de</strong> uma criança, e os seus <strong>de</strong><strong>do</strong>s trémulos<br />
como os <strong>de</strong> alguém que se dá<br />
a outrem pela primeira vez, porque<br />
está tu<strong>do</strong> a olhar para mim? e os<br />
seus <strong>de</strong><strong>do</strong>s <strong>de</strong>sajeita<strong>do</strong>s, e o cigarro<br />
rente aos lábios, e os travos <strong>de</strong>sajeita<strong>do</strong>s,<br />
o rosto contorci<strong>do</strong> a olhar<br />
timidamente para o la<strong>do</strong> para ver<br />
se alguém repara, o conter a tosse<br />
e o fumo a sair compulsivo e <strong>de</strong>sajeita<strong>do</strong><br />
rente ao seu rosto, pu<strong>de</strong>sse<br />
Artigo1º<br />
(Âmbito e aplicação)<br />
1. Po<strong>de</strong>m participar no concurso literário<br />
to<strong>do</strong>s os jovens até aos 30 anos<br />
resi<strong>de</strong>ntes em Portugal e <strong>na</strong>s Regiões<br />
Autónomas que não possuam qualquer<br />
obra publicada. Estão excluí<strong>do</strong>s à partida<br />
to<strong>do</strong>s os colabora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l.<br />
2. O concurso terá duas categorias distintas:<br />
prosa e poesia.<br />
3. Serão admiti<strong>do</strong>s a concurso textos<br />
inéditos escritos em português.<br />
Artigo 2º<br />
(Apresentação <strong>do</strong>s Trabalhos)<br />
1. Cada concorrente <strong>po<strong>de</strong>r</strong>á ape<strong>na</strong>s apresentar<br />
uma obra para cada categoria.<br />
2. Os trabalhos entregues terão <strong>de</strong> ser<br />
assi<strong>na</strong><strong>do</strong>s com o verda<strong>de</strong>iro nome <strong>do</strong><br />
concorrente, anexan<strong>do</strong>-lhe uma ficha<br />
com os da<strong>do</strong>s pessoais (nome comple-<br />
A única coincidência<br />
que os une<br />
eu morrer hoje como me morreste<br />
<strong>na</strong>quela noite, e to<strong>do</strong>s os números,<br />
todas as imagens, todas as datas,<br />
toda uma vida num só traço <strong>de</strong> nevoeiro<br />
e carvão.<br />
A caminho <strong>de</strong> casa sempre o mesmo<br />
pensamento <strong>de</strong> não conseguir <strong>de</strong>ixar<br />
<strong>de</strong> pensar nela. E não conseguir<br />
<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pensar nele. E sempre a<br />
mesma questão: o cigarro mata?<br />
E ele <strong>de</strong> que nem me lembro, ele<br />
<strong>de</strong> quem nunca vi o rosto, ele cuja<br />
to, morada, telefone e e-mail). É ainda<br />
obrigatória a entrega <strong>de</strong> uma cópia <strong>do</strong><br />
Bilhete <strong>de</strong> I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />
3. Os trabalhos terão <strong>de</strong> ser elabora<strong>do</strong>s<br />
com o tipo <strong>de</strong> letra Arial 10, duplo espaçamento<br />
entre as linhas e pági<strong>na</strong>s enumeradas<br />
sequencialmente. A dimensão<br />
máxima é <strong>de</strong> 10.000 caracteres.<br />
Artigo 3º<br />
(Entrega <strong>do</strong>s Trabalhos)<br />
1. Os trabalhos <strong>de</strong>vem ser envia<strong>do</strong>s para<br />
o en<strong>de</strong>reço electrónico oitavacoli<strong>na</strong>@<br />
gmail.com ou para a seguinte morada:<br />
Concurso Literário ‘Oitava Coli<strong>na</strong>’, Jor<strong>na</strong>l<br />
Oitava Coli<strong>na</strong>, <strong>Escola</strong> <strong>Superior</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Comunicação</strong> <strong>Social</strong> <strong>de</strong> Lisboa, Campus<br />
<strong>de</strong> Benfica <strong>do</strong> IPL, 1549-014 Lisboa.<br />
3. A data limite <strong>de</strong> entrega <strong>do</strong>s textos é<br />
31 <strong>de</strong> Agosto.<br />
inocência quase podia jurar. Ele<br />
que nem posso olhar to<strong>do</strong>s os dias<br />
pelo canto <strong>do</strong> olho. Tão jovem.<br />
Ouvir a história e pensar a maior<br />
das ba<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s: como era jovem.<br />
To<strong>do</strong>s os dias, não olhá-lo sequer<br />
pelo canto <strong>do</strong> olho. Coita<strong>do</strong>, como<br />
era jovem. E ele que era pobre, 17<br />
anos e a chegada a um lugar novo,<br />
sem <strong>de</strong>moras arranjar dinheiro<br />
para a família e o Sr. Ernesto a<br />
arranjar-lhe um trabalhinho <strong>na</strong><br />
única mercearia da terra. E a<br />
inocência a pedir para durar. A<br />
inocência no seu corpo franzino a<br />
implorar Não me aban<strong>do</strong>nes, não<br />
me aban<strong>do</strong>nes, não me aban<strong>do</strong>nes…<br />
E logo um grupo <strong>de</strong> rapazes<br />
mais velhos a convencê-lo a roubar<br />
um maço para fumarem às<br />
escondidas, não, não posso fazer<br />
isso, sou <strong>de</strong>spedi<strong>do</strong>, não tenho dinheiro<br />
para o comprar, não posso,<br />
não posso, não posso, os outros a<br />
Artigo 4º<br />
(Júri <strong>do</strong> Concurso)<br />
1. O júri será composto por um elemento<br />
da redacção <strong>do</strong> 8º Coli<strong>na</strong> e <strong>do</strong>is reconheci<strong>do</strong>s<br />
especialistas <strong>na</strong> área <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s<br />
literários.<br />
2. Caberá ao júri <strong>de</strong>finir os critérios a<br />
a<strong>do</strong>ptar <strong>na</strong> avaliação <strong>do</strong>s trabalhos.<br />
Artigo 5º<br />
(Textos a premiar)<br />
1. De entre os trabalhos apresenta<strong>do</strong>s<br />
será premia<strong>do</strong> o melhor texto <strong>na</strong> categoria<br />
<strong>de</strong> prosa e o melhor texto <strong>na</strong> categoria<br />
<strong>de</strong> poesia.<br />
2. A <strong>de</strong>cisão <strong>do</strong> júri é sobera<strong>na</strong> sen<strong>do</strong><br />
que, da mesma, não haverá recurso.<br />
Artigo 6º<br />
(Prémio e comunicação <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s)<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
dizer-lhe és mesmo um puto e nem<br />
isso és capaz <strong>de</strong> fazer, a vonta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> ser o mais forte a falar mais<br />
alto, a vergonha <strong>de</strong> <strong>po<strong>de</strong>r</strong> ser pisa<strong>do</strong><br />
a falar ainda mais alto, e o<br />
patrão furioso, o patrão que tinha<br />
os maços conta<strong>do</strong>s a perguntar o<br />
que andaste tu a roubar? Quero<br />
que me chames já a tua mãe. E o<br />
seu coração a sangrar, a sangrar, a<br />
sangrar, por favor tu<strong>do</strong> menos a<br />
minha mãe, fazes isso e mato-me.<br />
Prefiro matar-me a que faças a<br />
minha mãe passar por essa vergonha.<br />
Prefiro matar-me. Prefiro<br />
matar-me. Horas <strong>de</strong>pois a mãe a<br />
reclamar-lhe a educação, a mãe a<br />
gritar aos seus ouvi<strong>do</strong>s, que vergonha,<br />
somos novos <strong>na</strong> terra e o<br />
que é que vão pensar, quan<strong>do</strong> o<br />
teu pai souber que cara vai ter ele<br />
para olhar para o Sr. Ernesto que<br />
foi um bom homem e te arranjou<br />
emprego, roubar cigarros? Amanhã<br />
no merca<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s a falarem<br />
<strong>de</strong> nós, a comentarem com os vizinhos,<br />
a comentarem por trás das<br />
nossas costas, que vergonha Custódio<br />
Emanuel, que vergonha. E<br />
<strong>de</strong>le nem um único si<strong>na</strong>l exterior,<br />
nem uma lágrima, nem uma palavra.<br />
E, no dia seguinte, ao primeiro<br />
minuto livre, prefiro matar-me<br />
a ver a minha mãe passar por<br />
essa vergonha, a ameaça surda<br />
<strong>de</strong> um trovão e o coração ainda a<br />
sangrar mais, Coita<strong>do</strong> <strong>do</strong> Custódio,<br />
era um rapaz tão jovem, e a<br />
vergonha a morrer nos olhares <strong>de</strong><br />
quem se sentia cúmplice. A morte<br />
<strong>de</strong>itada no lençol da terra. E a<br />
vergonha a <strong>de</strong>finhar lentamente<br />
com uma corda no pescoço e o<br />
sobreiro a guardar para sempre o<br />
seu grito sur<strong>do</strong> <strong>de</strong> socorro.<br />
Olho-a pelo canto <strong>do</strong> olho e nunca<br />
consigo <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pensar nele. Nele<br />
e nela e em como o cigarro é a única<br />
coincidência que os une. E penso<br />
como um cigarro mata. Como<br />
um cigarro mata a solidão.<br />
Ela é a senhora <strong>de</strong> 70 anos que<br />
encontro regularmente num café<br />
em Benfica. Ele era o irmão mais<br />
novo da minha mãe.<br />
R E G U L A M E N T O<br />
Prémio literário “8ª Coli<strong>na</strong>”<br />
SARA MATOS<br />
1.O trabalho premia<strong>do</strong> será publica<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />
próxima edição <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l Oitava Coli<strong>na</strong>,<br />
sem prejuízo para outros prémios que<br />
venham a existir.<br />
2. O titular <strong>do</strong> prémio será notifica<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
mesmo ainda antes <strong>de</strong> o seu texto ser<br />
publica<strong>do</strong> <strong>na</strong> edição <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l.<br />
3. Os trabalhos não premia<strong>do</strong>s não serão<br />
<strong>de</strong>volvi<strong>do</strong>s aos seus autores.<br />
Artigo 7º<br />
(Não aceitação <strong>do</strong>s Textos)<br />
Os promotores <strong>de</strong>sta iniciativa reservam-se<br />
o direito <strong>de</strong> não aceitar os textos a concurso<br />
que não obe<strong>de</strong>cem às regras estabelecidas<br />
no presente regulamento.<br />
Artigo 8º (Aceitação)<br />
O simples facto <strong>de</strong> participar neste concurso<br />
implica a aceitação <strong>de</strong> todas as regras<br />
<strong>de</strong>finidas no presente regulamento.
Agenda<br />
8ª COLINA I JUNHO 2006 CULTURA 27<br />
EXPOSIÇÃO<br />
Trajes <strong>de</strong> D. Inês<br />
“Estavas, linda Inês, posta em sossego,<br />
De teus anos colhen<strong>do</strong> <strong>do</strong>ce fruito,<br />
Naquele engano da alma, le<strong>do</strong> e cego,<br />
Que a fortu<strong>na</strong> não <strong>de</strong>ixa durar muito”<br />
(CAMÕES)<br />
Em 2006, a morte <strong>de</strong> D. Inês <strong>de</strong> Castro<br />
soma 650 anos. No âmbito <strong>de</strong>sta comemoração,<br />
<strong>na</strong>da melhor que imortalizar<br />
a morte da eter<strong>na</strong> apaixo<strong>na</strong>da <strong>de</strong> D.<br />
Pedro, projectan<strong>do</strong> as vestes <strong>de</strong>sta figura<br />
femini<strong>na</strong> para a realida<strong>de</strong> actual.<br />
Assim, com o intuito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alizar uma<br />
CONCERTO<br />
Bob Gel<strong>do</strong>f & Waterboys<br />
O ex-lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s Boomtown Rats e funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s projectos<br />
Live Aid e Live 8 actua pela primeira vez em Portugal,<br />
com os ingleses Waterboys. Bob Gel<strong>do</strong>f esteve recentemente<br />
em Lisboa, <strong>na</strong> cerimónia <strong>do</strong>s MTV Europe Music<br />
Awards, e <strong>de</strong>sta vez volta ao Pavilhão Atlântico para tocar<br />
alguns <strong>do</strong>s melhores temas da sua antiga banda.<br />
Quatro anos <strong>de</strong>pois da actuação <strong>na</strong> Covilhã, os Waterboys<br />
juntam-se a Gel<strong>do</strong>f num concerto que promete ser<br />
memorável para to<strong>do</strong>s os fãs portugueses. Os concertos<br />
estão inseri<strong>do</strong>s num festival com propósitos <strong>de</strong> carida<strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong> parte das receitas irão reverter a favor <strong>de</strong><br />
entida<strong>de</strong>s humanitárias empenhadas em ajudar países<br />
em vias <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. • Pavilhão Atlântico; Sala<br />
Atlântico • 7 <strong>de</strong> Julho, 20:00, 25 a 32 Euros.<br />
FEIRA<br />
Do It Yourself<br />
A i<strong>de</strong>ia é da Crew Hassan: incentivar a produção artística,<br />
com a condição máxima <strong>de</strong> se ter materiais próprios para<br />
(re)criar novos objectos. Nesta feira são bemvin<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s<br />
os artesãos <strong>de</strong> trazer por casa, que têm o especial gosto<br />
pelo reaproveitamento <strong>de</strong> materiais. O objectivo é incentivar<br />
a venda das criações únicas, sen<strong>do</strong> que cada feirante tem<br />
direito a um metro <strong>de</strong> “banca”. As inscrições são gratuitas<br />
em http://www.crewhassan.org/. A não a per<strong>de</strong>r a partir <strong>de</strong><br />
Julho, to<strong>do</strong>s os 1ºs sába<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mês (15h-22h). Crew Hassan |<br />
Rua <strong>de</strong> Portas <strong>de</strong> Sto. Antão, nº159, 1º andar | 213466119<br />
figura que correspon<strong>de</strong>sse à imagem<br />
<strong>de</strong> uma Inês <strong>de</strong> Castro <strong>do</strong>s nossos dias,<br />
foram convida<strong>do</strong>s alguns <strong>do</strong>s principais<br />
representantes da Moda-<strong>de</strong>-Autor em<br />
Portugal. Os cria<strong>do</strong>res convida<strong>do</strong>s são:<br />
A<strong>na</strong> Salazar, Augustus, Fátima Lopes,<br />
José António Tenente, Manuel Alves/<br />
José Manuel Gonçalves, Katty Xiomara,<br />
Luís Buchinho e Miguel Vieira. A exposição<br />
foi i<strong>na</strong>ugurada a 14 <strong>de</strong> Fevereiro<br />
<strong>de</strong>ste ano, e está aberta ao público até<br />
Novembro, no Museu <strong>do</strong> Traje. A não<br />
per<strong>de</strong>r! • Preço: 3 Euros.<br />
África Festival<br />
O África Festival volta a aquecer Lisboa com o som quente <strong>do</strong>s<br />
ritmos africanos. Integra<strong>do</strong> no programa das Festas <strong>de</strong> Lisboa,<br />
o festival irá realizar-se <strong>na</strong> Torre <strong>de</strong> Belém <strong>de</strong> 6 a 9 <strong>de</strong> Julho.<br />
Alguns <strong>do</strong>s principais representantes das músicas africa<strong>na</strong>s<br />
estarão presentes nestes quatro dias <strong>de</strong> concertos, que serão<br />
complementa<strong>do</strong>s com diversos workshops, ateliers e exposições<br />
a <strong>de</strong>correr no relva<strong>do</strong> da Torre. O recinto abre às 11 horas para<br />
as activida<strong>de</strong>s no relva<strong>do</strong> e os concertos terão início às 22 horas.<br />
A entrada é gratuita, bem como a participação nos ateliers<br />
e workshops.<br />
Sauda<strong>de</strong>:<br />
various artists from the Atlantic Coast<br />
As netlabels – editoras online que distribuem música<br />
em formato digital, enfatizan<strong>do</strong> o <strong>do</strong>wnload<br />
gratuito – surgem em Portugal em 2001, com a<br />
Enough Records. A MiMi Records, netlabel se<strong>de</strong>ada<br />
em Coimbra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2003 – ano da comemoração<br />
<strong>do</strong>s 460 anos <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> entre Portugal e<br />
Japão – <strong>de</strong>dica-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então ao lançamento <strong>de</strong><br />
música portuguesa e japonesa in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, com<br />
exclusivida<strong>de</strong> para a música electrónica. Contan<strong>do</strong><br />
já com cerca <strong>de</strong> 60 lançamentos, comemora<br />
o seu 50º trabalho com o projecto Sauda<strong>de</strong>: Va-<br />
Realiza<strong>do</strong>r: Michael Mann • Estreia<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l: 03/06/06. • Cinemas<br />
Castello Lopes • A série <strong>de</strong><br />
sucesso <strong>do</strong>s anos 80 chega às salas<br />
<strong>de</strong> cinema <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. Michael<br />
Mann é o realiza<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Miami Vice,<br />
Miami Vice<br />
um filme basea<strong>do</strong> num conjunto <strong>de</strong><br />
episódios que contam o dia-a-dia<br />
<strong>de</strong> <strong>do</strong>is policias, que perseguem<br />
criminosos em Miami. De acor<strong>do</strong><br />
com alguns fãs, esta foi a primeira<br />
série realmente nova e diferente<br />
Associação Loucos<br />
& Sonha<strong>do</strong>res<br />
A Associação Loucos e Sonha<strong>do</strong>res<br />
é um lugar especial. O ambiente<br />
escuro e acolhe<strong>do</strong>r proporcio<strong>na</strong><br />
momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontracção,<br />
on<strong>de</strong> os livros e os copos convivem<br />
harmoniosamente. Esta cave, <strong>de</strong>corada<br />
com os mais varia<strong>do</strong>s objectos<br />
vin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Marrocos e da Índia,<br />
transforma-se num ambiente<br />
familiar que muitas vezes acolhe<br />
tertúlias literárias. Se procura um<br />
bom sitio para relaxar, visite esta<br />
cave <strong>do</strong> Bairro Alto, junto à Livraria<br />
Ler Devagar (actualmente encerrada)<br />
e o Bar Agito.<br />
rious Artists from the Atlantic Coast lança<strong>do</strong> em<br />
Março <strong>de</strong>ste ano. Reúne treze artistas portugueses<br />
<strong>de</strong> maior e menor projecção, que marcam a<br />
electrónica portuguesa actual: várias linhas musicais<br />
e estruturas rítmicas, como o glitch, noise,<br />
I.D.M. (intelligent dance music) ou leftfield beats,<br />
comprovam a frescura da criativida<strong>de</strong> costeira e<br />
asseguram, para os aprecia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> estilo, que<br />
a música das netlabels não peca pela qualida<strong>de</strong>.<br />
• 68’’45’’; MiMi Records • On<strong>de</strong> adquirir: http://<br />
www.clubotaku.org/mimi/pt/album50.php.<br />
CINEMA<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a invenção da televisão a<br />
cores. Colin Farrel, Jamie Foxx e<br />
A<strong>na</strong> Cristi<strong>na</strong> <strong>de</strong> Oliveira compõem<br />
o elenco <strong>de</strong>ste filme que promete<br />
reviver as aventuras <strong>de</strong> Sonny<br />
Crockett e Rico Tubbs.
28 CULTURA<br />
GALERIA DE ARTE<br />
<br />
O futuro da 111<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
ESCOLHAS DA GALERIA E SONHA COM NOVA IORQ<strong>UE</strong>.<br />
VERA MOUTINHO ganhar uns dinheiros extra e<br />
Assim, à primeira vista, parece<br />
um pequeno império numa rua <strong>de</strong><br />
Lisboa. Três galerias, um armazém<br />
e um prédio, to<strong>do</strong>s cheios <strong>de</strong><br />
arte e <strong>de</strong> história da Galeria 111.<br />
No Campo Gran<strong>de</strong>, chamam-lhe a<br />
rua “<strong>do</strong>s Soares e <strong>do</strong>s Britos”: Mário<br />
Soares vive mais lá ao fun<strong>do</strong>,<br />
com vista para o Colégio Mo<strong>de</strong>rno,<br />
e a Galeria 111, <strong>do</strong>s Britos, a<br />
mais antiga <strong>do</strong> país, fica <strong>de</strong> frente<br />
para o jardim. Para conhecer a<br />
história da Galeria é preciso percorrer<br />
a rua <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> ao outro,<br />
passan<strong>do</strong> invariavelmente pela livraria<br />
<strong>do</strong> nº 111, on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> começou.<br />
Manuel <strong>de</strong> Brito era livreiro<br />
e foi numa peque<strong>na</strong> sala forrada<br />
<strong>de</strong> livros que fez a primeira exposição,<br />
convenci<strong>do</strong> por amigos.<br />
Hoje, o filho Rui Brito, 28 anos, é<br />
o galerista mais novo à frente da<br />
“mais antiga galeria portuguesa<br />
sem interrupção <strong>de</strong> funcio<strong>na</strong>mento<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua abertura”, lê-se <strong>na</strong><br />
história da instituição.<br />
À frente da galeria<br />
Rui Brito fez o primeiro negócio<br />
aos 16 anos: ven<strong>de</strong>u uma serigrafia<br />
da Vieira da Silva. Começou<br />
a trabalhar <strong>na</strong> galeria <strong>do</strong> pai aos<br />
Sába<strong>do</strong>s à tar<strong>de</strong>: “Precisava <strong>de</strong><br />
faltava um colabora<strong>do</strong>r nessa altura”.<br />
Ainda muito novo, saía <strong>do</strong><br />
Colégio Mo<strong>de</strong>rno e ia para a galeria,<br />
on<strong>de</strong> andava aos pontapés a<br />
artistas e clientes. “Comecei <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
miú<strong>do</strong> a andar nos ateliês, ia<br />
com os meus pais em viagens, visitámos<br />
museus… no fun<strong>do</strong> nunca<br />
se per<strong>de</strong>u esse contacto com a<br />
arte <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>na</strong>sci, até porque a<br />
minha casa estava completamente<br />
forrada <strong>de</strong> trabalhos”.<br />
Ainda assim, a escolha por seguir<br />
o negócio <strong>de</strong> família não foi<br />
“Para ven<strong>de</strong>r arte não<br />
é preciso ter um curso<br />
<strong>de</strong> História <strong>de</strong> Arte”<br />
- Rui Brito<br />
óbvia. Quan<strong>do</strong> começou a sentir<br />
a pressão da “continuida<strong>de</strong>” – os<br />
irmãos mais velhos seguiram outros<br />
percursos – a vonta<strong>de</strong> foi fugir.<br />
Hoje, no seu escritório openspace,<br />
uma espécie <strong>de</strong> varanda<br />
interior para o espaço <strong>de</strong> uma<br />
das galerias, fala <strong>de</strong> um percurso<br />
sinuoso com paragem em quatro<br />
cursos diferentes: “Na altura <strong>de</strong><br />
optar achei que <strong>de</strong>via fazer qualquer<br />
coisa diferente e fui para<br />
Gestão <strong>de</strong> Empresas. Não contente,<br />
mu<strong>de</strong>i <strong>de</strong> curso. Tinha gosta<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> uma ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Direito e então<br />
fui para Direito. Fiz um ano e<br />
achei que não era <strong>na</strong>da daquilo.<br />
Fui para Economia; o curso tinha<br />
si<strong>do</strong> reestrutura<strong>do</strong> e eu gostava<br />
<strong>de</strong> fi<strong>na</strong>nças. Mas <strong>de</strong>pois achei que<br />
não. Entretanto meti-me <strong>na</strong> Associação<br />
Académica, fui dirigente<br />
associativo durante <strong>do</strong>is anos e<br />
tal e an<strong>de</strong>i entreti<strong>do</strong> por outros<br />
la<strong>do</strong>s”, conta com um sorriso<br />
largo, mas tími<strong>do</strong>. “Depois é que<br />
achei que aquilo era tu<strong>do</strong> uma<br />
perda <strong>de</strong> tempo, voltei a fazer as<br />
<br />
específicas, entrei <strong>na</strong> Clássica e<br />
fiz História <strong>de</strong> Arte. Quan<strong>do</strong> não<br />
estava aqui <strong>na</strong> galeria, era só subir<br />
a Cida<strong>de</strong> Universitária”.<br />
Na faculda<strong>de</strong> esforçou-se por<br />
passar <strong>de</strong>spercebi<strong>do</strong>. Conseguiu,<br />
até ao último ano: “ O Rui<br />
Mário Gonçalves, que era daqueles<br />
a quem eu andava ao pontapé<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> miú<strong>do</strong>, era meu professor<br />
e <strong>na</strong>s aulas dizia ‘então Rui, tu<br />
sabes tu<strong>do</strong>, não queres falar sobre<br />
isso?’”. Rui <strong>de</strong>stacava-se <strong>do</strong>s<br />
outros, falava <strong>de</strong> arte com um<br />
à vonta<strong>de</strong> que revelava não só<br />
conhecimento mas experiência,<br />
e reconhecia que era diferente<br />
<strong>do</strong>s colegas. A maior parte não<br />
se interessava por exposições,<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
VERA MOUTINHO<br />
nem aquelas <strong>de</strong> uma galeria ao<br />
fun<strong>do</strong> da rua, a 111. “Depois acabei<br />
por receber currículos <strong>de</strong>les<br />
a candidatarem-se a um cargo<br />
<strong>de</strong> colabora<strong>do</strong>r”, conta Rui, mas<br />
Rui Brito fez o primeiro<br />
negócio aos 16 anos:<br />
ven<strong>de</strong>u uma serigrafia<br />
<strong>de</strong> Vieira da Silva.<br />
não os contratou, por achar que<br />
não tinham perfil para trabalhar<br />
numa galeria. “Para ven<strong>de</strong>r<br />
arte não é preciso ter um curso<br />
<strong>de</strong> História <strong>de</strong> Arte. Aquilo que<br />
VERA MOUTINHO
8ª COLINA I JUNHO 2006 CULTURA 29<br />
ROTEIRO DE ARTES DO ESPECTÁCULO<br />
Pisa-papéis: agarrar o merca<strong>do</strong> da cultura<br />
Um pisa-papéis está sempre ali, em cima<br />
da mesa, pronto a ser usa<strong>do</strong>. Debaixo<br />
<strong>de</strong>le está informação valiosa, a não per<strong>de</strong>r.<br />
Foi <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ia que partiu a equipa<br />
responsável pelo roteiro Pisa-Papéis,<br />
projecto cria<strong>do</strong> em 2005 com o objectivo<br />
<strong>de</strong> sistematizar e divulgar informação<br />
sobre o merca<strong>do</strong> das Artes <strong>do</strong> Espectáculo<br />
em Portugal. “Sem complexos” – lê-se<br />
<strong>na</strong> introdução da primeira edição – “<strong>de</strong><br />
falar em merca<strong>do</strong> sem me<strong>do</strong> que este termo<br />
não rime com Cultura”. Nuno Ricou<br />
Salga<strong>do</strong>, um <strong>do</strong>s responsáveis pelo conceito<br />
e coor<strong>de</strong><strong>na</strong>ção <strong>do</strong> projecto, conta<br />
que o Pisa-Papéis surgiu, <strong>de</strong> facto, <strong>de</strong><br />
uma “necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>”. No seu<br />
trabalho como programa<strong>do</strong>r e produtor<br />
<strong>de</strong> teatro, <strong>na</strong> Companhia Chapitô, percebeu<br />
como fazia falta um instrumento<br />
<strong>de</strong> comunicação que compilasse todas as<br />
artes <strong>do</strong> espectáculo: “A realida<strong>de</strong> cultural<br />
funcio<strong>na</strong> muito em círculos fecha<strong>do</strong>s.<br />
Funcio<strong>na</strong> o circuito <strong>do</strong> Bairro Alto, Porto,<br />
Faro, mas <strong>de</strong>pois há pouca circulação.<br />
São circuitos que funcio<strong>na</strong>m a partir <strong>de</strong><br />
conhecimentos pessoais e on<strong>de</strong> é muito<br />
difícil entrar”. O Pisa-Papéis quis não só<br />
abrir os circuitos <strong>de</strong> espectáculos mas<br />
também aumentar a sua diversida<strong>de</strong>,<br />
representan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o país. Publica<strong>do</strong><br />
em livro – capa dura, <strong>de</strong>sign mo<strong>de</strong>rno<br />
eu aprendi <strong>na</strong> universida<strong>de</strong> se<br />
calhar aprendia sen<strong>do</strong> orienta<strong>do</strong><br />
para ler <strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong>s livros<br />
e autores”.<br />
A arte <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r<br />
Rui Brito diz que apren<strong>de</strong>u a ven<strong>de</strong>r<br />
arte “olhan<strong>do</strong>”. Depois <strong>do</strong> curso<br />
seguiu-se uma especialização<br />
<strong>de</strong> três meses em Nova Iorque,<br />
em Gestão e Marketing das Artes.<br />
Apesar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, vê o seu trabalho<br />
como mais que um negócio:<br />
“Gosto <strong>do</strong> que faço e gosto muito<br />
<strong>de</strong> arte”. E por isso, algumas vendas<br />
sabem melhor que outras: “O<br />
que me <strong>de</strong>smotiva são as pessoas<br />
que começam com uma conversa<br />
<strong>de</strong>ste género: ‘quero um trabalho<br />
para dar com os corti<strong>na</strong><strong>do</strong>s’ ou<br />
‘não po<strong>de</strong> ser este’ porque o sofá<br />
é não sei o quê… Ven<strong>do</strong>, mas com<br />
menos sorrisos”. As revistas <strong>de</strong><br />
arte espalhadas em cima da mesa<br />
<strong>do</strong> escritório dizem que continua<br />
a olhar, observa<strong>do</strong>r e atento, sobretu<strong>do</strong><br />
aos merca<strong>do</strong>s que mais<br />
lhe interessam: Berlim, Londres,<br />
Nova Iorque. Está sempre à procura<br />
<strong>do</strong> que é inova<strong>do</strong>r em Arte<br />
Contemporânea, afastan<strong>do</strong> o que<br />
já foi “feito e refeito”. Nos últimos<br />
tempos tem trabalha<strong>do</strong> num sonho:<br />
abrir uma galeria em Nova<br />
Iorque. Hesita em revelar mais,<br />
o receio <strong>de</strong> que ao contar o <strong>de</strong>sejo<br />
ele não se concretize. “Acho que<br />
a América continua a ser uma<br />
terra <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s”. A i<strong>de</strong>ia<br />
seria fazer uma galeria com artistas<br />
que vivessem nos EUA. “Por<br />
acaso an<strong>do</strong> um bocadinho mais à<br />
frente e já an<strong>do</strong> a ver espaços…<br />
Vou com frequência a escolas <strong>de</strong><br />
Arte e tenho acompanha<strong>do</strong> o trabalho<br />
<strong>de</strong> alguns artistas lá. Em<br />
e apelativo - está também disponível<br />
gratuitamente <strong>na</strong> Internet e é através<br />
da re<strong>de</strong> que os artistas ou companhias<br />
se po<strong>de</strong>m inscrever. Dividi<strong>do</strong> em treze<br />
secções, o roteiro inclui Teatro, Dança,<br />
Música, Festivais, entre outros. Os valores<br />
<strong>de</strong> inscrição procuram não <strong>de</strong>ixar<br />
ninguém <strong>de</strong> fora: 50 euros por ¼ <strong>de</strong> pági<strong>na</strong>,<br />
meia pági<strong>na</strong> por 100 euros e 400 euros<br />
por uma pági<strong>na</strong> dupla. “Qualquer pessoa<br />
que queira trabalhar profissio<strong>na</strong>lmente<br />
tem <strong>de</strong> investir e conseguir <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>r 50<br />
euros. É um jantar num restaurante indiano<br />
para duas pessoas!”, explica entre<br />
risos Nuno Ricou.<br />
Merca<strong>do</strong> das artes<br />
A i<strong>de</strong>ia inicial era fazer as pági<strong>na</strong>s<br />
amarelas da Cultura, numa espécie <strong>de</strong><br />
lista telefónica com contactos da área.<br />
<br />
to<strong>do</strong>s os países as pessoas olham<br />
primeiro para os artistas locais e<br />
por isso é importante criar uma<br />
base <strong>de</strong> artistas resi<strong>de</strong>ntes nos<br />
EUA e <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> vez em quan<strong>do</strong>,<br />
introduzir os portugueses”.<br />
A inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lização é o sonho<br />
<strong>do</strong>s que estão <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>: os artistas.<br />
A Galeria 111 tem alguns nomes<br />
que conseguiram atingir essa<br />
meta: Graça Morais, Paula Rego,<br />
Joa<strong>na</strong> Vasconcelos. Agora que está<br />
<strong>de</strong>finitivamente à frente da galeria,<br />
<strong>de</strong>pois da morte <strong>do</strong> pai, no ano passa<strong>do</strong>,<br />
Rui Brito avança que a i<strong>de</strong>ia<br />
é “alargar um pouco mais e expor<br />
fotografia, ví<strong>de</strong>o, instalação. No<br />
fun<strong>do</strong> é criar diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolhas.<br />
“. Mas tem aposta<strong>do</strong> também<br />
no intercâmbio com galerias fora<br />
<strong>de</strong> Portugal. “Nas viagens que eu<br />
faço tento levar a arte portuguesa<br />
para fora <strong>do</strong> país. O mun<strong>do</strong> está<br />
cada vez mais pequeno e os artistas<br />
portugueses têm qualida<strong>de</strong>”.<br />
O número 111<br />
No dia em que conversamos Rui<br />
Brito está <strong>de</strong> fato, mas sem gravata.<br />
Não gosta <strong>de</strong> o usar, mas ainda<br />
o espera a i<strong>na</strong>uguração <strong>de</strong> uma<br />
exposição no Porto, on<strong>de</strong> a Galeria<br />
111 tem uma “filial”. Faz questão<br />
<strong>de</strong> fazer uma visita guiada por<br />
to<strong>do</strong>s os espaços da 111. A sensação<br />
é a <strong>de</strong> que conseguiria fazê-lo<br />
<strong>de</strong> olhos fecha<strong>do</strong>s. Apresentada<br />
uma das galerias, on<strong>de</strong> está exposta,<br />
por exemplo, uma torre <strong>de</strong><br />
cartas, seguimos para o armazém.<br />
O conceito evoluiu para um projecto<br />
que Nuno Ricou <strong>de</strong>fine como não sen<strong>do</strong><br />
“popularucho, ten<strong>do</strong> um tipo <strong>de</strong> abrangência<br />
cultural que nos interessa”. Não<br />
haven<strong>do</strong> uma condição posta à partida<br />
para a entrada no Pisa-Papéis, acaba por<br />
haver uma selecção <strong>na</strong>tural <strong>do</strong> que está<br />
presente. “Temos informação sobre os<br />
amigos e sobre os inimigos. Ao ser uma<br />
coisa ‘supra-partidária’, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />
política cultural, somos transversais”,<br />
revela Nuno Ricou. E por isso ao la<strong>do</strong> da<br />
fadista Mariza e <strong>do</strong> Coro da Gulbenkian<br />
po<strong>de</strong> estar o Quim Barreiros. Mas há no<br />
Pisa-Papéis um esforço para revelar o<br />
que por norma não chega ao gran<strong>de</strong> público<br />
nem às mãos <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>: “O<br />
tipo <strong>de</strong> espectáculo que um programa<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> uma Câmara Municipal precisa<br />
para o Dia da Criança e para o Ano Novo<br />
Um “cofre” com poucos ca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s<br />
para um espaço on<strong>de</strong> encontramos,<br />
entre muitos quadros, esculturas,<br />
molduras, uma boneca<br />
cosida à mão por Paula Rêgo, nos<br />
anos 60. Rui Brito explica a “falha”<br />
<strong>de</strong> segurança: “Não é preciso,<br />
temos aí o polícia <strong>do</strong> Soares”.<br />
Continuamos para encontrar o<br />
senhor que faz as molduras, e que<br />
às vezes tem a ajuda <strong>do</strong> motorista.<br />
“Doutor, posso então enviar<br />
esta moldura? Ficou bonita…”.<br />
Rui Brito fica envergonha<strong>do</strong>, não<br />
gosta <strong>do</strong> “<strong>do</strong>utor”. Disfarça contan<strong>do</strong><br />
que as molduras são feitas<br />
ali, apontan<strong>do</strong> para as intermináveis<br />
traves <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, imediatamente<br />
antes <strong>de</strong> seguirmos para<br />
a próxima paragem <strong>na</strong> visita. O<br />
é diferente. E é preciso ele ter acesso a<br />
essa informação, para <strong>po<strong>de</strong>r</strong> escolher”.<br />
Nuno Ricou explica ainda que a mais-valia<br />
<strong>de</strong>ste projecto está <strong>na</strong> sua diferença:<br />
“Nós não <strong>de</strong>scobrimos o ouro, existem<br />
outros directórios, em França ou mesmo<br />
em Portugal, mas muitos <strong>de</strong>les são feitos<br />
pelos próprios agentes com espectáculos<br />
produzi<strong>do</strong>s por eles. Nós temos as águas<br />
bem separadas, e o Pisa-Papéis existe<br />
para as pessoas se apresentarem”. E<br />
para isso é preciso investir <strong>na</strong> distribuição:<br />
com o apoio <strong>do</strong> Instituto Português<br />
<strong>do</strong> Livro e das Bibliotecas (IPLB), o Instituto<br />
Camões e o Instituto das Artes, o<br />
Pisa-Papéis consegue distribuir uma boa<br />
parte da sua tiragem <strong>de</strong> 5.000 exemplares.<br />
Pela mão <strong>do</strong> Instituto Camões chegaram<br />
à Galiza, on<strong>de</strong> estarão representa<strong>do</strong>s <strong>na</strong><br />
próxima Feira <strong>de</strong> Teatro. Para a próxima<br />
edição, um problema a resolver: o<br />
Pisa-Papéis está cada vez mais pesa<strong>do</strong>,<br />
e as argolas, ainda que largas, já não suportam<br />
mais pági<strong>na</strong>s. Mas Nuno Ricou<br />
garante que o projecto nunca <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong><br />
ser publica<strong>do</strong> em papel. Tal como continuará<br />
a cumprir a sua função: “é preciso<br />
um pisa-papéis para que as informações<br />
não voem com o vento”.<br />
VERA MOUTINHO<br />
Vera Moutinho<br />
local on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> começou. O nº<br />
111 <strong>do</strong> Campo Gran<strong>de</strong> foi livraria,<br />
<strong>de</strong>pois galeria, e agora livraria<br />
<strong>de</strong> novo. Hoje, a Galeira 111 mora<br />
<strong>na</strong> verda<strong>de</strong> no nº 113, e por isso a<br />
passagem pela livraria é obrigatória.<br />
Rui Brito pe<strong>de</strong> licença para<br />
entrar, e a senhora sorri, como se<br />
a casa não fosse <strong>de</strong>le. “Foi aqui,<br />
nesta sala pequeni<strong>na</strong>”, explica<br />
Rui, “que o meu pai fez a primeira<br />
exposição”. Ainda há tempo <strong>de</strong><br />
ver a galeria que ocupa um andar<br />
<strong>do</strong> prédio que compraram <strong>na</strong> mesma<br />
rua, e on<strong>de</strong> estão obras para<br />
quem pergunta “não tem mais<br />
<strong>na</strong>da?”. Nesse mesmo prédio está<br />
“Nunca perdi o contacto<br />
com a arte <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />
<strong>na</strong>sci”. Rui Brito<br />
o escritório <strong>do</strong> pai. Rui Brito não<br />
o usa. Cada porta abre um novo<br />
mun<strong>do</strong> da arte: livros, obras, arquivos...<br />
“E há mais <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />
gavetas”, sussurra Rui Brito. A<br />
maior parte <strong>de</strong>stes bens irão para<br />
a Fundação Manuel <strong>de</strong> Brito, que<br />
abrirá em breve no Palácio Anjos,<br />
em Algés, numa estrutura<br />
museológica. “O meu pai foi um<br />
homem que partiu <strong>do</strong> <strong>na</strong>da e isto<br />
custou-lhe muito a construir”. Se<br />
vai estar, como o seu pai, à frente<br />
da galeria por mais quarenta<br />
anos? A resposta é esta: “Tenho<br />
essa gran<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>. Há<br />
pessoas que entram aqui, vêem a<br />
dimensão da galeria e perguntam<br />
se eu fico assusta<strong>do</strong>. Mas eu vi<br />
tu<strong>do</strong> isto crescer”.
30 CULTURA<br />
SÉRGIO TRÉFAUT<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
O cinema como arma política<br />
<br />
LISBOETAS<br />
-<br />
O SEMANÁRIO. UM APAIXONA-<br />
DO PELA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. DEPOIS DE TER<br />
<br />
<br />
SÃO SOUSA<br />
Da sala da produtora <strong>de</strong> Sérgio<br />
Tréfaut, a Faux, vê-se Lisboa. E<br />
vêem-se os lisboetas. Esses lisboetas<br />
que <strong>de</strong>ram o título ao <strong>do</strong>cumentário<br />
que o realiza<strong>do</strong>r teve<br />
em exibição no cinema Nimas<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> Abril. Mas este <strong>de</strong>svendar<br />
<strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> que também<br />
é feita <strong>de</strong> imigrantes é ainda<br />
uma interrogação sobre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
que esteve sempre presente <strong>na</strong><br />
vida <strong>de</strong> Tréfaut.<br />
Filho <strong>de</strong> pai português e mãe<br />
francesa, foi <strong>na</strong>scer ao Brasil.<br />
Aí tomou contacto com a acção<br />
politica muito ce<strong>do</strong>, e, apesar <strong>de</strong><br />
nunca ter esta<strong>do</strong> liga<strong>do</strong> a um parti<strong>do</strong>,<br />
diz que o que faz é político.<br />
Passou pela filosofia, pelo jor<strong>na</strong>lismo,<br />
mas ren<strong>de</strong>u-se ao cinema.<br />
“Apaixonei-me por <strong>do</strong>cumentário,<br />
tinha 16 anos, quan<strong>do</strong> vi a<br />
retrospectiva <strong>do</strong> Joris Ivens <strong>na</strong><br />
Cinemateca Portuguesa”.<br />
Dos seus filmes, prefere falar <strong>de</strong><br />
três: Lisboetas (2004), Fleurette<br />
(2002) e Outro País (1999). As três<br />
histórias que mais dizem da sua<br />
própria história: a sua imigração,<br />
a sua família, a sua revolução.<br />
Vai agora saltar <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentário<br />
para a ficção, com o filme Business<br />
Class, ainda a ser roda<strong>do</strong>. Na<br />
base <strong>do</strong> filme continua uma história<br />
verda<strong>de</strong>ira, porque, segun<strong>do</strong><br />
Tréfaut, “o cinema enquanto<br />
reconstituição <strong>de</strong> um romance<br />
aborrece-me muito facilmente”.<br />
O filme Lisboetas ganhou o Indie<br />
Lisboa em 2004 e agora encheu<br />
pági<strong>na</strong>s <strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l. Existe<br />
uma i<strong>de</strong>ntificação entre aquela<br />
série <strong>de</strong> histórias huma<strong>na</strong>s que<br />
são mostradas e uma realida<strong>de</strong><br />
mais geral?<br />
Quan<strong>do</strong> a Pi<strong>na</strong> Bausch faz um retrato<br />
<strong>de</strong> Lisboa, ninguém lhe pe<strong>de</strong><br />
para ser estatisticamente ou sociologicamente<br />
fiel, mas sim para<br />
transmitir emoções. Eu fico mais<br />
próximo <strong>de</strong> alguma sociologia e<br />
traço alguns retratos que po<strong>de</strong>m<br />
ser representativos. Há pessoas<br />
que acham que a realida<strong>de</strong> parece<br />
dura. Eu acho que a realida<strong>de</strong> é<br />
pior <strong>do</strong> que o que ela parece no filme.<br />
As pessoas po<strong>de</strong>m dizer “mas<br />
não há histórias <strong>de</strong> sucesso?” O que<br />
é que é uma história <strong>de</strong> sucesso? É<br />
a senhora da praia que diz “estou<br />
<strong>na</strong> praia, o sol é bom, tenho traba-<br />
lho.” O trabalho <strong>de</strong>la: é empregada<br />
<strong>do</strong>méstica. Isso é uma história <strong>de</strong><br />
sucesso. O que queriam? O médico<br />
que é médico? Então também tinha<br />
<strong>de</strong> pôr a prostituta esquartejada,<br />
não? Também não está lá o operário<br />
que morreu <strong>na</strong> ponte, que era<br />
ilegal e que ficou durante seis meses<br />
num congela<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Instituto<br />
<strong>de</strong> Medici<strong>na</strong> Legal porque o repatriamento<br />
<strong>do</strong> corpo era impossível.<br />
As histórias terríficas não estão<br />
no filme. Tal como a meia dúzia <strong>de</strong><br />
médicos que são médicos.<br />
É filho <strong>de</strong> pai português, mãe<br />
francesa e <strong>na</strong>sceu no Brasil.<br />
Com esta tripla <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>,<br />
também se sente um daqueles<br />
lisboetas <strong>de</strong> que fala?<br />
Tenho uma relação afectiva <strong>de</strong><br />
muita i<strong>de</strong>ntificação. É uma fantasia<br />
minha, porque a minha vida<br />
não passa por uma imigração<br />
económica. Mas tenho problemas<br />
i<strong>de</strong>ntitários que são pareci<strong>do</strong>s<br />
com os <strong>do</strong>s imigrantes. Tive <strong>do</strong>cumentos<br />
portugueses pela primeira<br />
vez com 20 e tal anos, mas<br />
não os tinha porque achava que<br />
não era necessário. Porque por o<br />
meu pai ser português, não havia<br />
a menor dúvida <strong>de</strong> que eu era português.<br />
E, por outro la<strong>do</strong>, era-me<br />
sempre reenviada a imagem, <strong>de</strong><br />
uma maneira simpática, <strong>de</strong> que<br />
não era. Basta eu falar com alguém<br />
que me perguntam logo se<br />
sou <strong>de</strong> São Paulo ou <strong>do</strong> Rio.<br />
Como é que foi <strong>na</strong>scer ao Brasil?<br />
O meu pai [o jor<strong>na</strong>lista Miguel Urbano<br />
Rodrigues] era exila<strong>do</strong> político.<br />
Tinha saí<strong>do</strong> <strong>de</strong> Portugal em<br />
Em 1957, com uma ditadura em Portugal, Miguel<br />
Urbano Rodrigues partiu para o outro la<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> Atlântico. E foi em São Paulo, no Brasil, que,<br />
a 23 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 1965, <strong>na</strong>sceu o seu filho<br />
Sérgio Tréfaut Rodrigues. Numa “casa atafulhada<br />
<strong>de</strong> jor<strong>na</strong>is”, on<strong>de</strong> a luta contra Salazar<br />
não parava.<br />
“O meu pai dirigiu jor<strong>na</strong>is, trabalhou com o [Humberto]<br />
Delga<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> ele esteve no Brasil e fez<br />
as suas campanhas fora. Foi um <strong>do</strong>s comandantes<br />
<strong>do</strong> Santa Maria e os galegos que o comandavam<br />
para além <strong>do</strong> [Henrique] Galvão viviam <strong>na</strong> nossa<br />
casa”, recorda Sérgio. “Eu tinha 5 anos e estava<br />
<strong>na</strong>s manifestações da Frente Popular <strong>do</strong> [Salva<strong>do</strong>r]<br />
Allen<strong>de</strong>, em Santiago”.<br />
Sérgio fala <strong>do</strong> pai com orgulho, <strong>de</strong>moradamente.<br />
<br />
1957 e só voltou <strong>de</strong>pois em 1974.<br />
Consi<strong>de</strong>ra o Lisboetas um <strong>do</strong>cumentário<br />
político. Esta vonta<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> intervenção cívica foi<br />
influência <strong>do</strong> seu pai?<br />
Do meu pai, sim, <strong>de</strong> certeza. Mas<br />
não só. Eu cresci num universo<br />
muito politiza<strong>do</strong>, porque além <strong>de</strong><br />
jor<strong>na</strong>lista, o meu pai era uma pessoa<br />
empenhada <strong>na</strong> oposição ao Salazar<br />
no perío<strong>do</strong> antes <strong>de</strong> 1974 (ver<br />
caixa). E eu acho que o que faço é<br />
político. O Outro País girava em<br />
volta da Revolução, falan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um<br />
país que a um da<strong>do</strong> momento se<br />
tornou apaixo<strong>na</strong>nte para o mun<strong>do</strong><br />
inteiro, por questões i<strong>de</strong>ológicas.<br />
Pouco a pouco, acho que me vou<br />
dirigin<strong>do</strong> e não estou seguro <strong>de</strong><br />
que não tenha uma activida<strong>de</strong> política<br />
mais forte qualquer dia.<br />
Li que é amigo <strong>de</strong> infância da<br />
Maria <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros e da Teresa<br />
Villaver<strong>de</strong>.<br />
No primeiro dia <strong>de</strong> aulas, a Maria<br />
estava sentada <strong>na</strong> carteira à minha<br />
frente. Nós ficámos amigos<br />
logo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 11 anos. Era uma espécie<br />
<strong>de</strong> ilha <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> Liceu Fran-<br />
“NUMA CASA ATAFULHADA DE JORNAIS”<br />
cês, com o qual eu não me i<strong>de</strong>ntificava<br />
<strong>na</strong>da. A Teresa, o Manuel e a<br />
Joa<strong>na</strong> – que são três irmãos para<br />
nós impossíveis <strong>de</strong> separar – eram<br />
filhos <strong>do</strong> Alberto Villaver<strong>de</strong>, colega<br />
<strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l <strong>do</strong> meu pai. O Manuel<br />
tornou-se muito amigo da Maria<br />
quan<strong>do</strong> nós tínhamos 15 anos e foi<br />
aí que a coisa se formou.<br />
Eu estou no cinema<br />
mais <strong>do</strong> que sou <strong>do</strong><br />
cinema.<br />
É curioso que tenham segui<strong>do</strong><br />
os três os caminhos <strong>do</strong> cinema.<br />
Na altura já falavam nisso?<br />
A única pessoa que sempre disse<br />
que queria fazer cinema foi a Teresa.<br />
A Maria, no início, queria<br />
fazer pintura. É uma pessoa muito<br />
multifacetada, que escrevia fantasticamente,<br />
que era excelente a<br />
matemática. Ela é actriz, mas tem<br />
capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> realização muito<br />
gran<strong>de</strong>s. Mas eu estou no cinema<br />
mais <strong>do</strong> que sou <strong>do</strong> cinema. Eu<br />
Recusa consi<strong>de</strong>rá-lo um abrasileira<strong>do</strong>. Prefere<br />
referir-se a ele como “um português que abriu<br />
uma série <strong>de</strong> horizontes e que se tornou muito<br />
latino-americano”. Também aqui, tal como <strong>na</strong>s<br />
preocupações cívicas, o jor<strong>na</strong>lista marcou fortemente<br />
o filho. É daí, <strong>de</strong>sse acumular <strong>de</strong> pátrias<br />
<strong>do</strong> pai, que <strong>na</strong>sceram as questões i<strong>de</strong>ntitárias<br />
que ainda hoje existem em Sérgio Tréfaut.<br />
Mas esta infância ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> acção política não<br />
se traduziu, no entanto, num envolvimento partidário.<br />
Sérgio preferiu os filmes como forma<br />
<strong>de</strong> intervenção <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong>. Ainda assim, entusiasma-se<br />
a contar um seu momento <strong>de</strong> luta<br />
política: “Em 1986, vim propositadamente a Lisboa,<br />
moran<strong>do</strong> em Paris, raptar os meus amigos<br />
para irem para as manifestações estudantis”. •<br />
amo o <strong>do</strong>cumentário, mas o gesto<br />
político e ético interessam-me<br />
mais <strong>do</strong> que o estético. E nisso nós<br />
somos um pouco diferentes. A Teresa<br />
também tem um la<strong>do</strong> muito<br />
político, mas para ela sempre foi:<br />
“o cinema é o cinema e pronto”.<br />
Eu fiz muitas outras coisas.<br />
Quan<strong>do</strong> é que se começou a interessar<br />
por cinema?<br />
Apaixonei-me por <strong>do</strong>cumentário,<br />
tinha 16 anos, quan<strong>do</strong> vi a retrospectiva<br />
<strong>do</strong> Joris Ivens aqui <strong>na</strong> Cinemateca<br />
Portuguesa. Isso foi um<br />
marco <strong>na</strong> minha vida. Mas, ao mesmo<br />
tempo, fiquei completamente<br />
apaixo<strong>na</strong><strong>do</strong> por René Dumont, um<br />
engenheiro agrónomo que falava<br />
imenso da miséria em África e da<br />
questão da água. Depois, <strong>de</strong> facto,<br />
a Maria começou a fazer filmes, a<br />
Teresa começou a fazer filmes e eu<br />
também me comecei a interessar<br />
por esse <strong>de</strong>safio. E tinha 20 anos<br />
quan<strong>do</strong> apresentei o meu primeiro<br />
projecto ao ICAM: era estudante <strong>de</strong><br />
filosofia e apresentei uma adaptação<br />
<strong>do</strong> Fedro, <strong>do</strong> Platão, que tentei<br />
durante muito tempo fazer passar<br />
<strong>na</strong>s portas <strong>do</strong> ICAM e nunca consegui.<br />
Pouco a pouco fui trabalhan<strong>do</strong>.<br />
Depois mu<strong>de</strong>i, porque achei<br />
que não conseguia ter um mínimo<br />
<strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>, e fui jor<strong>na</strong>lista durante<br />
algum tempo, por razões <strong>de</strong><br />
sobrevivência. Foi durante o perío<strong>do</strong><br />
<strong>de</strong> jor<strong>na</strong>lismo que fiz a minha<br />
primeira curta-metragem.<br />
Na verda<strong>de</strong>, antes <strong>de</strong> chegar<br />
ao cinema, fez outras coisas.<br />
Que tal foi estudar filosofia<br />
<strong>na</strong> Sorbonne?<br />
Foi <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> prazer. Primeiro, era<br />
a in<strong>de</strong>pendência, era viver sozinho,<br />
lutar pela vida. A bolsa que tinha<br />
era absolutamente insuficiente e<br />
tinha <strong>de</strong> trabalhar. Trabalhava em<br />
tu<strong>do</strong>: era porteiro, pintava pare<strong>de</strong>s,<br />
cuidava <strong>de</strong> bebés. Inscrevi-me <strong>na</strong><br />
SÃO SOUSA
8ª COLINA I JUNHO 2006 CULTURA 31<br />
faculda<strong>de</strong> como aluno trabalha<strong>do</strong>r<br />
e isso funcionou dan<strong>do</strong>-me muito<br />
tempo para ir ao cinema – foi o<br />
perío<strong>do</strong> da minha vida em que eu<br />
ia mais vezes ao cinema: duas, três<br />
vezes por dia, muito facilmente. E<br />
foi muito bom, mas nunca quis ser<br />
professor.<br />
E enquanto jor<strong>na</strong>lista?<br />
Eu mergulhei no universo <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lismo<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeno. Portanto,<br />
era uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio. Eu procurava<br />
estabilida<strong>de</strong> e fui durante<br />
<strong>do</strong>is anos jor<strong>na</strong>lista d’ O Semanário.<br />
Era um jor<strong>na</strong>l aparentemente<br />
<strong>de</strong> direita, mas o Vítor da Cunha<br />
Rego, que o dirigia, era completamente<br />
inespera<strong>do</strong> e a verda<strong>de</strong> é<br />
que foi nessa altura que se escreveram<br />
os artigos mais assassinos<br />
relativamente ao Santa<strong>na</strong> Lopes.<br />
Eu lembro-me <strong>de</strong> ir para a faculda<strong>de</strong><br />
e ter o artigo que eu tinha escrito<br />
<strong>na</strong> pare<strong>de</strong>, com o Santa<strong>na</strong> Lopes<br />
<strong>do</strong>ente (risos). Não era um jor<strong>na</strong>l<br />
on<strong>de</strong> eu tive a experiência <strong>de</strong> trabalhar<br />
para o inimigo. Quan<strong>do</strong> a<br />
coisa mu<strong>do</strong>u <strong>de</strong> rumo, eu saí.<br />
Gosta <strong>de</strong> cinema <strong>de</strong> ficção?<br />
Sou mais sensível ao <strong>do</strong>cumentário.<br />
Quer dizer, uma das pessoas<br />
mais importantes da minha vida é<br />
o Luís Buñuel, portanto, gosto <strong>de</strong> cinema.<br />
A<strong>do</strong>ro o Chaplin, o Pasolini,<br />
ALEXANDRE FARTO<br />
Arte interdita<br />
Alexandre já foi um margi<strong>na</strong>l.<br />
Com ape<strong>na</strong>s 13 anos, iniciouse<br />
<strong>na</strong> prática <strong>do</strong> graffiti. “Eu<br />
e mais uns amigos da escola<br />
comprámos umas latas numa<br />
drogaria e fomos pintar para<br />
a rua”. Pintava em pare<strong>de</strong>s e<br />
comboios com latas <strong>de</strong> spray,<br />
à margem da arte, à margem<br />
da lei. Chegou a ter problemas<br />
com a Polícia. “Uma vez<br />
fui apanha<strong>do</strong>. Levaram-me<br />
para a esquadra e tentaram<br />
meter-me me<strong>do</strong>: ‘Olha que<br />
vais ficar aqui o dia inteiro’”.<br />
Não podia sequer imagi<strong>na</strong>r<br />
que um dia viria a expor numa<br />
galeria. Menos ainda que viria<br />
a <strong>de</strong>corar as montras da loja<br />
da Hermes, no Chia<strong>do</strong>. Paladino<br />
da arte interdita. Alexandre<br />
Farto é um artista. Artista urbano,<br />
artista plástico. Ilustra<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> montras, <strong>de</strong>cora<strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />
ruas. Ultimamente, tem feito<br />
vários trabalhos para marcas<br />
<strong>de</strong> street wear. “Fiz várias estampas<br />
e aju<strong>de</strong>i a criar um logotipo”.<br />
O trabalho para a Hermes<br />
surgiu através da Who,<br />
agência <strong>de</strong> talentos criativos<br />
que Alexandre integra <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
Março e on<strong>de</strong> faz, sobretu<strong>do</strong>,<br />
o Apocalipse Now. Gosto <strong>do</strong> <strong>po<strong>de</strong>r</strong><br />
mágico <strong>do</strong> cinema. Mas o cinema<br />
enquanto reconstituição <strong>de</strong> um<br />
romance aborrece-me muito facilmente.<br />
Acho mesmo, às vezes, péssimo.<br />
Por exemplo, acho o Capote<br />
quase criminoso, porque o Truman<br />
Capote foi um gran<strong>de</strong> autor da lite-<br />
ratura america<strong>na</strong> e por uma história<br />
que não tem gran<strong>de</strong> interesse<br />
fazem uma <strong>de</strong>smistificação que<br />
não ultrapassa um la<strong>do</strong> completamente<br />
caricatural. Mas eu não tive<br />
uma formação cinematográfica. A<br />
minha formação é muito mais musical,<br />
<strong>de</strong> música popular brasileira:<br />
Caetano Veloso, Chico Buarque.<br />
De que forma é que essa formação<br />
musical foi importante<br />
para o seu trabalho?<br />
O Caetano Veloso ensinou-me a<br />
amar o mun<strong>do</strong> e o Chico Buarque<br />
ensinou-me a amar as pessoas.<br />
Foram eles que me forma-<br />
<br />
<br />
ESTUDAR PARA BERLIM.<br />
Apaixonei-me por<br />
<strong>do</strong>cumentário, tinha<br />
16 anos, quan<strong>do</strong> vi a<br />
retrospectiva <strong>do</strong> Joris<br />
Ivens <strong>na</strong> Cinemateca<br />
trabalhos <strong>de</strong> ilustração. “O tema<br />
<strong>do</strong> briefing era ‘L’Air <strong>de</strong> Paris’,<br />
ou seja, o ar, o vento, o espaço<br />
cultural <strong>de</strong> Paris. Trabalhei em<br />
conjunto com o Filipe Faísca, que<br />
me <strong>de</strong>u bastante liberda<strong>de</strong>. Foi<br />
um projecto que correu bem”.<br />
Alexandre tem 19 anos e é estudante<br />
<strong>de</strong> Design Gráfico no Arco<br />
(Centro <strong>de</strong> Arte e <strong>Comunicação</strong><br />
Visual), em Lisboa. A partir das<br />
suas raízes <strong>de</strong> graffiti, tem vin<strong>do</strong><br />
a explorar novos campos, misturan<strong>do</strong><br />
o estilo vectorial com o<br />
<strong>de</strong>senho à mão livre. “Costumo<br />
fotografar partes da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
ram huma<strong>na</strong>mente. A mim e a<br />
milhões <strong>de</strong> pessoas.<br />
Pensa sempre os filmes a nível<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l?<br />
Des<strong>de</strong> o princípio. Não se consegue<br />
sobreviver fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentário<br />
com os fi<strong>na</strong>nciamentos portugueses.<br />
Não há uma política <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentário.<br />
A televisão em Portugal<br />
é criminosa. Mas a esse respeito<br />
tenho posições muito fortes. Acho<br />
que pessoas como o director <strong>de</strong><br />
programas da TVI <strong>de</strong>viam ser julgadas<br />
em tribu<strong>na</strong>l. Acho que é crime<br />
o que eles fazem há anos. E não<br />
só essas pessoas mas também os<br />
gover<strong>na</strong>ntes que perpetuam isso.<br />
Faz parte <strong>de</strong> crime contra a <strong>na</strong>ção,<br />
contra a cabeça das pessoas, contra<br />
a educação <strong>do</strong>s portugueses.<br />
Falou <strong>do</strong> Lisboetas, <strong>do</strong> Outro<br />
País. E o Fleurette, o que pretendia<br />
passar com esse filme?<br />
O filme diz uma coisa que po<strong>de</strong> ser<br />
universal: será que conhecemos<br />
as pessoas que nos são próximas?<br />
Será que as queremos conhecer?<br />
Será que elas querem que as conheçamos?<br />
Eu não quis que a minha<br />
mãe <strong>de</strong> repente <strong>de</strong>saparecesse<br />
e que aquela criatura tão estranha,<br />
contraditória e rica não tivesse um<br />
pouquinho da sua história contada.<br />
E transpor a história <strong>de</strong>la para<br />
Portuguesa <br />
REVELAÇÃO<br />
que gosto e usar as fotografias<br />
para fazer os meus trabalhos”.<br />
A arte <strong>do</strong> Alexandre já não cabe<br />
<strong>na</strong>s pare<strong>de</strong>s. Estoirou sem pedir<br />
licença. Brutal, incontrolável.<br />
Necessária.<br />
“O ano passa<strong>do</strong>, conheci <strong>do</strong>is<br />
artistas franceses, o Stak e o<br />
Honet, que foram <strong>do</strong>s primeiros<br />
a aplicar novos materiais <strong>na</strong>s<br />
ruas, em 98. Há quem chame a<br />
isso pós-graffiti ou street art. Eu<br />
aprovo essa evolução e faço tanto<br />
uma coisa como outra. Já não<br />
é aquela i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> vândalo que<br />
gosta <strong>de</strong> fugir à Polícia. Agora,<br />
é a concepção <strong>do</strong> artista plástico<br />
que vai trabalhar para a rua”.<br />
Alexandre é daquelas pessoas<br />
que gostam <strong>de</strong> saber sempre<br />
mais e mais. Estuda, investiga,<br />
experimenta, testa. Acaba <strong>de</strong> arranjar<br />
um novo <strong>de</strong>safio: “passar<br />
<strong>do</strong> estático para o anima<strong>do</strong>”. Na<br />
Restart, <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> Criativida<strong>de</strong> e<br />
Novas Tecnologias, on<strong>de</strong> estuda<br />
Animação, pô<strong>de</strong> produzir a curtametragem<br />
com que concorreu ao<br />
“Off Loop Festival”, um festival<br />
<strong>de</strong> Ví<strong>de</strong>o Arte que, to<strong>do</strong>s os anos,<br />
atrai cente<strong>na</strong>s <strong>de</strong> artistas <strong>de</strong> to<strong>do</strong><br />
<br />
<br />
VERA MOUTINHO<br />
SÃO SOUSA<br />
uma história mais universal era<br />
um <strong>de</strong>safio. O Outro País é um filme<br />
que funcio<strong>na</strong> muito em Portugal,<br />
em países <strong>de</strong> língua lati<strong>na</strong>, mas<br />
tem um universo mais fecha<strong>do</strong>. O<br />
Fleurette é um filme que há quem<br />
ache completamente <strong>na</strong>rcísico e<br />
vagabun<strong>do</strong>, mas que fez explosões<br />
em cabeças <strong>de</strong> pessoas que não tinham<br />
<strong>na</strong>da a ver.<br />
Porque <strong>de</strong>cidiu fazer agora um<br />
filme <strong>de</strong> ficção?<br />
Eu sempre quis fazer ficção,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio, mas era uma<br />
ficção mais lírica. Ainda não<br />
sei o que vai sair <strong>de</strong>ste filme.<br />
o mun<strong>do</strong> a Barcelo<strong>na</strong>. “Foi um<br />
trabalho que fiz com coisas minhas,<br />
pintadas mas animadas”.<br />
Foi um <strong>do</strong>s seleccio<strong>na</strong><strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />
entre <strong>do</strong>ze filmes estrangeiros.<br />
Em Portugal, Alexandre <strong>de</strong>u o<br />
passo que faltava. Nos últimos<br />
seis meses, tem exposto no espaço<br />
Vera Cortês, agência e galeria<br />
<strong>de</strong> arte contemporânea, em<br />
Santos. Já tinha participa<strong>do</strong> em<br />
várias exposições colectivas, entre<br />
as quais a anual “Visual Street<br />
Performance”, com alguns<br />
<strong>do</strong>s mais conceitua<strong>do</strong>s writers<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. “Juntávamo-nos ao<br />
fim-<strong>de</strong>-sema<strong>na</strong> e íamos pintar,<br />
to<strong>do</strong>s juntos, em sítios que eram<br />
legais e on<strong>de</strong> podíamos trabalhar<br />
à vonta<strong>de</strong>”. Mas <strong>de</strong>sta vez<br />
tem si<strong>do</strong> diferente. “Foi bom ter<br />
ouvi<strong>do</strong> opiniões <strong>de</strong> pessoas que<br />
percebem <strong>de</strong> arte. Apareceram<br />
muitos coleccio<strong>na</strong><strong>do</strong>res, pessoas<br />
que frequentam galerias <strong>de</strong> arte,<br />
e as apreciações foram bastante<br />
positivas”. Para o Alexandre, a<br />
exposição em galerias <strong>de</strong> arte é<br />
uma forma <strong>de</strong> se sustentar a si<br />
próprio. “No graffiti, é difícil conseguir-se<br />
isso sem que se perca<br />
a essência. Há aquelas pessoas<br />
que têm bares e que nos pe<strong>de</strong>m<br />
para fazer golfinhos e coisas assim.<br />
A um artista contemporâneo<br />
nunca pediriam para fazer uns<br />
golfinhos no quarto, mas a uma<br />
pessoa que faça graffiti já pe<strong>de</strong>m,<br />
porque consi<strong>de</strong>ram que o<br />
graffiti está abaixo. Na Vera [Cortês],<br />
isso já não acontece. São<br />
pessoas que nos dão valor pelo<br />
trabalho que fazemos e não pelo<br />
trabalho que nos pe<strong>de</strong>m para<br />
fazer”. Alexandre está a sonhar<br />
em gran<strong>de</strong>: quer ir estudar para<br />
Berlim. Porque “em Berlim é<br />
que as coisas estão a acontecer”.<br />
Eu tenho ple<strong>na</strong> noção <strong>de</strong> que<br />
aquilo parte <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentário:<br />
contar uma história<br />
<strong>de</strong> uma pessoa que existiu.<br />
Mas saber escrever os diálogos<br />
e contar o que aquilo tem <strong>de</strong><br />
mais forte remete muito mais<br />
para as capacida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> teatro.<br />
Eu, aliás, escolhi aquela que é<br />
a maior actriz portuguesa para<br />
mim, que é a Isabel Ruth. Ela<br />
não tem aquela dimensão <strong>de</strong> representar.<br />
Ela é. Como é o Marlon<br />
Bran<strong>do</strong>, como são os gran<strong>de</strong>s<br />
actores. Agora é fazer que o<br />
filme seja bom.<br />
“Fui lá há um mês e meio e vi<br />
três exposições <strong>de</strong> street art<br />
durante as duas sema<strong>na</strong>s em<br />
que lá estive. Em Portugal, fazse<br />
uma ou duas exposições por<br />
ano. Vi posters a cinco metros<br />
<strong>do</strong> chão; vi tipos a fazerem fachadas<br />
com rolos”. Fala e gesticula,<br />
<strong>de</strong>sembaraçadamente,<br />
entre um entusiasmo infantil e<br />
a adulta luci<strong>de</strong>z <strong>de</strong> quem sabe<br />
bem o que quer: “Conhecer<br />
mais e apren<strong>de</strong>r. Trazer algo<br />
<strong>de</strong> novo para Portugal e pôr as<br />
coisas a mexer cá”. Não per<strong>de</strong><br />
uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir para<br />
fora. Ter on<strong>de</strong> ficar nunca é<br />
problema. “Há sempre alguém<br />
que já fez um inter-rail. Antes<br />
<strong>de</strong> viajar, telefono aos meus<br />
amigos para saber se têm<br />
contactos lá fora. Quan<strong>do</strong> fui a<br />
Barcelo<strong>na</strong>, levei os contactos<br />
<strong>de</strong> um amigo meu que já tinha<br />
pinta<strong>do</strong> lá e fiquei a <strong>do</strong>rmir<br />
em casa <strong>de</strong>sse pessoal. Tenho<br />
viaja<strong>do</strong> pela Europa e tenho<br />
ti<strong>do</strong> sempre para on<strong>de</strong> ir”. A<br />
arte <strong>do</strong> Alexandre estoirou,<br />
tornou-se incontrolável. Invadiu<br />
as galerias, permanece<br />
<strong>na</strong>s ruas. “Foi daí que vim, foi<br />
aí que comecei a ter interesse<br />
pelas Artes”. Tem ar <strong>de</strong> bom<br />
rapaz, não o imagi<strong>na</strong>mos à<br />
noite, <strong>de</strong> latas <strong>na</strong> mão, a pintar<br />
pare<strong>de</strong>s à pressa antes<br />
que a Polícia apareça. Ele,<br />
que ilustra montras e enche<br />
exposições. Que representa<br />
Portugal em festivais inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is.<br />
Que quer ir estudar<br />
para Berlim. Alexandre Farto,<br />
artista urbano, artista plástico.<br />
Ilustra<strong>do</strong>r <strong>de</strong> montras, <strong>de</strong>cora<strong>do</strong>r<br />
<strong>de</strong> ruas. •<br />
Susa<strong>na</strong> Santos
a última da coli<strong>na</strong><br />
CRISTIANO RONALDO DIZ TRÊS VEZES:<br />
“Estou com comichão<br />
no pé esquer<strong>do</strong>.”<br />
Ojor<strong>na</strong>l 24 horas noticiou <strong>na</strong> sua<br />
edição <strong>de</strong> hoje que o <strong>na</strong>moradinho<br />
<strong>de</strong> Portugal afirmou pelo<br />
menos três vezes estar com comichão<br />
no pé esquer<strong>do</strong>. O Correio<br />
da Manhã também referiu o aconteci<strong>do</strong>,<br />
embora tenha dito que foram ape<strong>na</strong>s duas<br />
vezes e que a terceira é pura especulação<br />
jor<strong>na</strong>lística da concorrência. O Crime mostrou<br />
uma peça antiga em que uma famosa<br />
taróloga <strong>de</strong> Chelas previa que Cristiano Ro<strong>na</strong>l<strong>do</strong><br />
iria proferir três vezes que tinha a tal<br />
perturbação micótica no pé esquer<strong>do</strong>. Os<br />
médicos da selecção <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l já negaram o<br />
ocorri<strong>do</strong>, afirman<strong>do</strong> que foi ape<strong>na</strong>s uma vez<br />
e não necessariamente no pé esquer<strong>do</strong>, que<br />
foi tu<strong>do</strong> uma cabala montada pelos tablói<strong>de</strong>s<br />
ingleses e fi<strong>na</strong>lmente que não prestavam<br />
<strong>de</strong>clarações. Miguel Sousa Tavares, <strong>na</strong><br />
sua crónica sema<strong>na</strong>l no Público, comentou<br />
o caso dizen<strong>do</strong> que o Porto é o maior e que<br />
Bush é um palhaço. •<br />
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ª<br />
8COLINA<br />
O CORVO ARDINA<br />
JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />
A noite <strong>do</strong>s<br />
que esperam<br />
Ele passa a noite senta<strong>do</strong> <strong>na</strong> paragem<br />
<strong>do</strong> autocarro. Passam autocarros,<br />
passam táxis, mas ele não entra<br />
em nenhum, não quer ir a la<strong>do</strong> nenhum.<br />
Mas, se a noite correr bem,<br />
há-<strong>de</strong> sair dali. Não está sozinho,<br />
alguns metros abaixo e <strong>na</strong> rua perpendicular<br />
há outros iguais a ele.<br />
As noites agora já são menos frias<br />
e, por isso, quem espera já se tapa<br />
menos. Em toda a rua há mini-saias<br />
muito justas e muito curtas, tops<br />
muito pequenos e muito transparentes,<br />
saltos altos, muito batom e<br />
muita maquilhagem. Só a voz grossa<br />
e alguns gestos mais exagera<strong>do</strong>s<br />
traem o figurino – estamos no<br />
Con<strong>de</strong> Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, a rua que, à noite,<br />
é <strong>do</strong>s travestis.<br />
Todas as noites chegam e ocupam<br />
exemplarmente sempre o mesmo<br />
sítio: aos <strong>do</strong>is mais velhos pertence a<br />
rua perpendicular, a Gonçalves Crespo,<br />
mais escura e mais recolhida <strong>do</strong><br />
que a rua principal; os mais novos,<br />
<strong>de</strong> corpos <strong>de</strong>lga<strong>do</strong>s e per<strong>na</strong>s altas,<br />
partilham a <strong>de</strong>scida <strong>do</strong> Con<strong>de</strong> Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>;<br />
e <strong>de</strong>pois há o <strong>do</strong> carro vermelho<br />
<strong>de</strong>sportivo, <strong>na</strong> rua <strong>de</strong> trás, que espera<br />
senta<strong>do</strong> no lugar <strong>do</strong> condutor, com um<br />
eterno cigarro entre os lábios.<br />
A noite está agitada: passam muitos<br />
carros <strong>na</strong> rua <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> único, alguns<br />
abrandam, mas nenhum pára.<br />
Quem passa protegi<strong>do</strong> pela chapa<br />
não consegue evitar o olhar <strong>de</strong> gozo<br />
e o riso mal conti<strong>do</strong>, mas quem passa<br />
a pé finge que nem vê. Fi<strong>na</strong>lmente<br />
há um carro que encosta. Pela cara<br />
<strong>do</strong>s quatro ocupantes e pelo alari<strong>do</strong><br />
que fazem vê-se que não vêm com<br />
intenção <strong>de</strong> levar ninguém. Metemse<br />
com um <strong>do</strong>s travestis mais velhos,<br />
fazem perguntas, mandam piropos.<br />
Riem muito. Depois da diversão metem<br />
a primeira e arrancam. E ele<br />
fica no mesmo sítio, equilibra<strong>do</strong> nos<br />
saltos altos, à espera.<br />
Já passa da 1h da manhã quan<strong>do</strong> um<br />
carro encosta muito perto da paragem,<br />
sem <strong>de</strong>sligar o motor. No interior,<br />
<strong>do</strong>is militares efectuam a troca<br />
que parecia já combi<strong>na</strong>da: <strong>do</strong> banco<br />
<strong>de</strong> trás sai um travesti, que é agora<br />
<strong>de</strong>volvi<strong>do</strong> ao seu lugar <strong>na</strong> rua, para<br />
rapidamente entrar o outro. Não trocam<br />
palavras, nem sequer cruzam<br />
os olhares. Após a operação, que <strong>de</strong>mora<br />
poucos segun<strong>do</strong>s, o carro <strong>do</strong>s<br />
militares arranca sem hesitação.<br />
Esta noite acabou ce<strong>do</strong>. Durante o<br />
dia, o Con<strong>de</strong> Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> é outro. Ninguém<br />
fica, ninguém pára. Ninguém<br />
sabe que, à noite, a pressa dá lugar<br />
à paciência da espera.<br />
A<strong>na</strong> Rita Henriques<br />
Proprieda<strong>de</strong>: <strong>Escola</strong> <strong>Superior</strong> <strong>de</strong> <strong>Comunicação</strong> <strong>Social</strong> • Funda<strong>do</strong>ra: A<strong>na</strong>bela <strong>de</strong> Sousa Lopes • Projecto: Telmo Gonçalves • Director: Paulo Moura • Editora:<br />
Vera Moutinho • Política: João Godinho, Lilia<strong>na</strong> Batista e Vera Esteves • Socieda<strong>de</strong>: Sílvia Dias e Tânia Reis Alves • Ensino: Iri<strong>na</strong> Melo • Mun<strong>do</strong>: Pedro Gonçalves<br />
• Dossiê: A<strong>na</strong> Quieteres, Joa<strong>na</strong> Santos e Teresa Abecasis • Cultura: São Sousa e Vera Moutinho • Letras: A<strong>na</strong> Brasil e Andreia Gonçalves • Desporto:<br />
Dilpesh Laxmidas e Sílvia Carvalho • Media: Marta Mesquita • Agenda: Lilia<strong>na</strong> Batista e Rita Afonso • Humor: Marta Pais Lopes e A<strong>na</strong> Rita Henriques • Colunista:<br />
Oscar Mascarenhas • Grafismo: Jadir Martins e João Abreu • Pagi<strong>na</strong>ção: Jadir Martins, Teresa Abecasis, A<strong>na</strong> Quiteres e Joa<strong>na</strong> Santos • Fotografia:<br />
Nazaret Nascimento e Vera Moutinho • Ilustração: Filipe Teixeira • Impressão: Lisgráfica; Rua Consiglieri Pedroso, N90 • Tiragem: 18 000 exemplares •<br />
Periodicida<strong>de</strong>: Trimestral • Redacção: Campus <strong>de</strong> Benfica <strong>do</strong> Instituto Politécnico <strong>de</strong> Lisboa • NIF: 503535141 • Tel: 217119000 • oitavacoli<strong>na</strong>@gmail.com