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O poder do lóbi na UE - Escola Superior de Comunicação Social ...

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ª<br />

8COLINA<br />

PROPRIEDADE: ESCOLA SUPERIOR DE COMUNICAÇÃO SOCIAL • DIRECTOR: PAULO MOURA PERIODOCIDADE: TRIMESTRAL • JUNHO 2006 • Nº 3<br />

Skinheads<br />

<strong>de</strong> Lenine<br />

Partilham o interesse pela política e o orgulho <strong>de</strong> classe. Rapam o cabelo, usam botas à militar.<br />

Vestem t-shirts <strong>do</strong> Lenine. Vê-se que são skinheads, vê-se que são <strong>de</strong> esquerda. Conheça<br />

o outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s skins portugueses. Pág. 6<br />

O <strong>po<strong>de</strong>r</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>lóbi</strong> <strong>na</strong> <strong>UE</strong><br />

CULTURA - Pág. 30<br />

Entrevista com o<br />

‘lisboeta’ Sérgio<br />

Tréfaut<br />

Em Bruxelas milhares <strong>de</strong> organizações<br />

procuram influenciar<br />

as <strong>de</strong>cisões comunitárias. São<br />

mais <strong>de</strong> 15 mil lobistas profissio<strong>na</strong>is,<br />

cujo objectivo é <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />

os interesses <strong>do</strong>s seus<br />

clientes. O fenómeno não é re-<br />

MEDIA - Pág. 22<br />

Beleza em<br />

televisão: mito<br />

ou realida<strong>de</strong>?<br />

cente. Apesar <strong>de</strong> ser um assunto<br />

tabu para muitos, há mesmo<br />

quem o consi<strong>de</strong>re essencial<br />

para o bom funcio<strong>na</strong>mento<br />

da <strong>de</strong>mocracia. Mas a falta <strong>de</strong><br />

legislação po<strong>de</strong> <strong>de</strong>itar tu<strong>do</strong> a<br />

per<strong>de</strong>r. Pág. 12<br />

LETRAS - Pág. 24<br />

O erotismo que<br />

se escreve em<br />

Portugal<br />

POLÍTICA<br />

I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

“jota”<br />

Quan<strong>do</strong> os jovens entram <strong>na</strong><br />

política. Convicção ou escola.<br />

Interesse ou oportunismo.<br />

Hoje a política também é das<br />

juventu<strong>de</strong>s. O rejuvenescimento<br />

<strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s pelos<br />

políticos <strong>de</strong> amanhã. Pág. 8<br />

DESPORTO<br />

Campeão <strong>de</strong><br />

kickboxing<br />

Aos 21 anos Ricar<strong>do</strong> Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s<br />

é o mais novo campeão<br />

europeu <strong>de</strong> kickboxing <strong>de</strong> sempre.<br />

Das rixas <strong>de</strong> bairro para<br />

os KO nos ringues. Pág. 20<br />

SOCIEDADE<br />

Um lar <strong>de</strong><br />

génios<br />

Destacaram-se no campo da<br />

cultura. Pintavam, ilustravam,<br />

escreviam poemas. Alguns<br />

ainda o fazem. É <strong>na</strong> Faria Mantero<br />

que sete mentes prodígio<br />

vivem hoje. Pág. 4<br />

ESCOLA SUPERIOR<br />

DE COMUNICAÇÃO SOCIAL<br />

DOSSIER: AGRICULTURA E PESCA | Apren<strong>de</strong>r a arte<br />

PUB


2 SOCIEDADE<br />

SÃO POUCOS OS HECTARES CULTIVADOS NA CIDADE<br />

Uma horta em Lisboa<br />

CRISTINA PEREIRA<br />

Ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma barraca <strong>de</strong> arrumação<br />

<strong>de</strong> materiais agrícolas<br />

encontram-se senta<strong>do</strong>s a conversar,<br />

num fi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> tar<strong>de</strong> ainda<br />

com sol, Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Loureiro<br />

e Armin<strong>do</strong> Dias. Contam com o<br />

garrafão <strong>de</strong> vinho como terceiro<br />

acompanhante e é ele que serve<br />

<strong>de</strong> pretexto para o grupo não<br />

rumar já a casa. Per<strong>de</strong>ram a<br />

conta <strong>do</strong>s anos ali passa<strong>do</strong>s – no<br />

Bairro Padre Cruz – e das chatices<br />

acumuladas: a expansão <strong>do</strong><br />

Metropolitano, ao retirar-lhes<br />

alguns metros <strong>de</strong> terreno, foi<br />

um <strong>de</strong>sses dissabores.<br />

O encruzilha<strong>do</strong> <strong>de</strong> rugas e as<br />

mãos rijas e ásperas são uma<br />

constante <strong>na</strong>queles que não temem<br />

a enxada e o sujo <strong>de</strong> terra,<br />

mesmo num espaço em que o<br />

circundante não é o ver<strong>de</strong> <strong>de</strong> extensos<br />

campos, mas sim infindáveis<br />

e cinzentas urbanizações.<br />

Um cenário que não coinci<strong>de</strong><br />

com o que o plano urbano <strong>de</strong><br />

Lisboa para cerca <strong>de</strong> 3 milhões<br />

e meio <strong>de</strong> habitantes prevê: 25<br />

000 hectares <strong>de</strong> edifícios e 76<br />

000 <strong>de</strong> área <strong>de</strong> produção agrícola.<br />

Na realida<strong>de</strong>, não passam<br />

<strong>de</strong> algumas cente<strong>na</strong>s os hectares<br />

ocupa<strong>do</strong>s por hortas.<br />

Gonçalo Ribeiro Telles, arquitecto<br />

paisagista, sorri ironicamente<br />

e revela que “as propostas<br />

<strong>de</strong> espaços e <strong>de</strong> acções estão<br />

<strong>na</strong> gaveta. Só há espaço para<br />

palmeiras e <strong>de</strong>cisões que dêem<br />

lucros”. Loures, Lisboa, Almada<br />

e Setúbal são cida<strong>de</strong>s-exemplo<br />

<strong>de</strong> um <strong>po<strong>de</strong>r</strong> autárquico<br />

que ignora as leis estabelecidas<br />

pela Estrutura Ecológica Municipal<br />

(EEM); esta legislação<br />

prevê a inclusão obrigatória <strong>de</strong><br />

produção agrícola no planeamento<br />

<strong>do</strong> perímetro urbano.<br />

Projectos <strong>na</strong> gaveta<br />

As questões legais, no entanto,<br />

não preocupam Maria Pereira,<br />

O PLANO URBANO DE LISBOA PREVÊ A CRIAÇÃO DE ZONAS AGRÍCOLAS. MAS O Q<strong>UE</strong> EXIS-<br />

TE SÃO UMAS CENTENAS DE HECTARES DE HORTAS CLANDESTINAS. O IC19 É A ESTRADA<br />

COM MAIS HORTAS DA EUROPA.<br />

<br />

<strong>de</strong> Lamego. Enquanto lava as batatas<br />

apanhadas há pouco, explica<br />

o gosto que sente por aquele<br />

pedaço <strong>de</strong> terra mesmo junto ao<br />

Centro Comercial Colombo, em<br />

Benfica. “Alivia o stress. Gosto<br />

<strong>de</strong> ver crescer a Natureza”, diz.<br />

A sorte <strong>de</strong> ter uma horta mesmo<br />

ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s poços<br />

abertos pela população que ali<br />

cultiva é um <strong>do</strong>s motivos que a<br />

leva, há já vinte e cinco anos,<br />

a fazer o mesmo trajecto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

casa, para cultivar “<strong>na</strong>bos,<br />

favas, batatas, espi<strong>na</strong>fres”. A<br />

incerteza <strong>do</strong> futuro acrescenta-lhe<br />

algumas rugas ao rosto,<br />

quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>sabafa: “acho que<br />

<br />

seria importante os jovens saberem<br />

agricultura, saberem<br />

pegar <strong>na</strong> enxada, porque não se<br />

conhece o dia <strong>de</strong> amanhã”.<br />

O “dia <strong>de</strong> amanhã” po<strong>de</strong>, segun<strong>do</strong><br />

Ribeiro Telles, viver das<br />

consequências <strong>do</strong>s dias <strong>de</strong> hoje;<br />

“as catástrofes <strong>na</strong>turais provocadas<br />

pela <strong>de</strong>struição <strong>do</strong> sistema<br />

hidráulico das cida<strong>de</strong>s, a<br />

pobreza e os conflitos sociais”<br />

são aponta<strong>do</strong>s pelo arquitecto<br />

como alguns <strong>do</strong>s cenários prováveis<br />

<strong>na</strong>s gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s.<br />

Mas nos pequenos terrenos reparti<strong>do</strong>s<br />

pelos horticultores ao<br />

longo <strong>de</strong> décadas, os conflitos resumem-se<br />

a roubos e a picardias<br />

SUSANA TEODORO<br />

quanto à utilização da água.<br />

Também em Benfica, José Lourenço,<br />

<strong>de</strong> 65 anos, já viu assalta<strong>do</strong><br />

o seu “cantinho <strong>na</strong> cida<strong>de</strong>”,<br />

como gosta <strong>de</strong> lhe chamar, <strong>de</strong>ze<strong>na</strong>s<br />

<strong>de</strong> vezes ao longo <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<br />

anos <strong>de</strong> exploração. Nasci<strong>do</strong><br />

em Ansião (Pombal), <strong>de</strong>screve<br />

passo a passo, entre autênticas<br />

dissertações sobre os sistemas<br />

<strong>de</strong> rega e <strong>de</strong> adubação, o processo<br />

<strong>de</strong> revitalização daqueles<br />

hectares proposto pela Junta<br />

<strong>de</strong> Freguesia <strong>de</strong> Benfica. “O espaço<br />

iria ser lotea<strong>do</strong>, ficaríamos<br />

to<strong>do</strong>s com um bocadinho e com<br />

água disponível; acho que também<br />

estavam previstos espaços<br />

Per<strong>de</strong>ram a conta <strong>do</strong>s<br />

anos ali passa<strong>do</strong>s e das<br />

chatices acumuladas; a<br />

expansão <strong>do</strong> Metro foi<br />

um <strong>de</strong>sses dissabores.<br />

<strong>de</strong> jardi<strong>na</strong>gem e <strong>de</strong> passeio”.<br />

Numa das várias salas <strong>do</strong> escritório<br />

<strong>de</strong> Ribeiro Telles, uma<br />

pare<strong>de</strong> repleta <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos e<br />

planeamentos em folhas A3 exibe<br />

o projecto feito para o espaço<br />

paralelo ao Centro Colombo. “Dinheiro?!<br />

Não. Falta <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> e<br />

outros interesses económicos”.<br />

Assim justifica o arquitecto a<br />

suspensão <strong>do</strong> plano.<br />

Espaços esqueci<strong>do</strong>s<br />

As peque<strong>na</strong>s parcelas <strong>de</strong> terra<br />

cultivada repetem-se noutras<br />

freguesias <strong>do</strong> perímetro urbano<br />

<strong>de</strong> Lisboa. Pela Ama<strong>do</strong>ra, Damaia<br />

e Benfica passa a estrada<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

SUSANA TEODORO<br />

com o maior número <strong>de</strong> hortas<br />

<strong>na</strong> Europa – o IC19. A sul das urbanizações<br />

<strong>de</strong> Chelas e <strong>do</strong>s Olivais,<br />

o metropolitano circula<br />

no exterior e permite ver terras<br />

cultivadas ao longo <strong>do</strong>s vales.<br />

Nestas e noutras zo<strong>na</strong>s, os lavra<strong>do</strong>res<br />

são, no essencial, reforma<strong>do</strong>s<br />

ou imigrantes. Pessoas<br />

que se recusam a ficar o<br />

dia to<strong>do</strong> em casa ou cuja exploração<br />

agrícola é fundamental<br />

para ter o que pôr <strong>na</strong> mesa.<br />

Mas em Lisboa são hoje raros<br />

os exemplos <strong>de</strong> quem se <strong>de</strong>dica<br />

a esta activida<strong>de</strong> por uma questão<br />

<strong>de</strong> sobrevivência. As motivações<br />

pren<strong>de</strong>m-se maioritariamente<br />

com a distracção. “É<br />

para espairecer! A cama só traz<br />

<strong>do</strong>enças e a televisão farta”. É<br />

<strong>de</strong>sta forma que Maria Armandi<strong>na</strong><br />

Forte sintetiza os <strong>de</strong>zoito<br />

anos <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação ao pequeno<br />

espaço que cultiva no Bairro<br />

Padre Cruz (Carni<strong>de</strong>).<br />

Aponta para as várias parcelas<br />

referin<strong>do</strong> o nome <strong>de</strong> cada um<br />

<strong>do</strong>s cerca <strong>de</strong> vinte “proprietários”<br />

e mencio<strong>na</strong> ainda as pessoas<br />

que ven<strong>de</strong>m no merca<strong>do</strong><br />

da Pontinha. Esta bracarense<br />

não escon<strong>de</strong> que, durante<br />

alguns dias <strong>do</strong> ano passa<strong>do</strong>,<br />

tentou também “ven<strong>de</strong>r umas<br />

poucas <strong>de</strong> couves <strong>na</strong>s paragens<br />

<strong>do</strong>s autocarros”; o ganho único<br />

<strong>de</strong> <strong>do</strong>is euros fê-la <strong>de</strong>sistir. O<br />

gosto por “esgravatar no chão”,<br />

como <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>, é hoje media<strong>do</strong><br />

por um contrato <strong>de</strong> utilização<br />

estabeleci<strong>do</strong> entre os vários<br />

horticultores e o real proprietário<br />

<strong>do</strong>s terrenos, sen<strong>do</strong> renovável<br />

<strong>de</strong> seis em seis meses.<br />

Subsistência em risco?<br />

A cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XXI precisa<br />

<strong>do</strong> abastecimento em quantida<strong>de</strong>s<br />

suficientes <strong>de</strong> alimentos<br />

frescos e saudáveis; tal abastecimento<br />

é, para Ribeiro Telles,<br />

“incomportável se não existirem<br />

<strong>na</strong>s cida<strong>de</strong>s os espaços <strong>de</strong><br />

produção agrícola necessários”.<br />

Mas, nem com os eleva<strong>do</strong>s<br />

custos <strong>de</strong> transporte <strong>de</strong> produtos<br />

perecíveis que entram<br />

<strong>na</strong>s gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s as hortas<br />

intra-urba<strong>na</strong>s merecem a atenção<br />

<strong>do</strong>s órgãos locais, autárquicos<br />

e políticos. Estas são regulamentadas<br />

segun<strong>do</strong> contratos<br />

<strong>de</strong> utilização ou mediante burocracias<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>spejo. Deste último<br />

cenário são exemplo os<br />

espaços agrícolas da Ama<strong>do</strong>ra,<br />

nomeadamente <strong>do</strong> IC19.<br />

Em <strong>de</strong>clarações ao jor<strong>na</strong>l Público,<br />

o antigo verea<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s espaços<br />

ver<strong>de</strong>s da Câmara <strong>de</strong> Lisboa, Gabriel<br />

Alves, consi<strong>de</strong>ra i<strong>na</strong>dmissível<br />

a manutenção <strong>de</strong> hortas “até<br />

por razões <strong>de</strong> segurança e <strong>de</strong> legalida<strong>de</strong>”,<br />

ape<strong>na</strong>s aceitável “porque<br />

estamos em Portugal”.<br />

Acumulam-se os problemas <strong>de</strong><br />

organização <strong>de</strong> espaço no interior<br />

centro e <strong>na</strong>s periferias das cida<strong>de</strong>s.<br />

Para o arquitecto Gonçalo<br />

Ribeiro Telles “a subsistência <strong>po<strong>de</strong>r</strong>á,<br />

no futuro, conduzir a medidas<br />

drásticas <strong>de</strong> sobrevivência”.<br />

E, <strong>de</strong> forma retórica, acrescenta:<br />

“mas não será já tar<strong>de</strong>?”.


SUSANA SANTOS<br />

8ª COLINA I JUNHO 2006 SOCIEDADE 3<br />

CAMINHADAS URBANAS<br />

Numa rua<br />

perto <strong>de</strong> si<br />

ANA RITA HENRIQ<strong>UE</strong>S<br />

JOÃO GODINHO<br />

Na Rua <strong>do</strong>s Escritores não há<br />

escritores. Ninguém passa com<br />

caneta e papel <strong>na</strong> mão, não há<br />

tempo para a inspiração. A única<br />

inspiração que existe vem <strong>do</strong><br />

<strong>na</strong>riz e é precisa para manter a<br />

passada. Na Avenida da República,<br />

não se proclama <strong>na</strong>da das<br />

varandas, ape<strong>na</strong>s se per<strong>de</strong>m<br />

alguns olhares pela noite, não<br />

muito atentos ao que se passa<br />

cá em baixo <strong>na</strong> rua. Por fim, <strong>na</strong><br />

Avenida <strong>do</strong>s Descobrimentos, já<br />

não há <strong>na</strong>da para <strong>de</strong>scobrir pelos<br />

caminhantes que por aqui passam<br />

todas as noites e conhecem<br />

<strong>de</strong> cor estes passeios da Portela.<br />

Lur<strong>de</strong>s Andra<strong>de</strong> não corre para o<br />

sofá <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> jantar, veste as calças<br />

<strong>de</strong> lycra cinzentas e a t-shirt<br />

da “Corrida da Liberda<strong>de</strong>”, calça<br />

os ténis brancos e sai <strong>de</strong> casa todas<br />

as noites às nove em ponto. O<br />

ritual repete-se há quatro anos,<br />

<strong>de</strong> Verão ou <strong>de</strong> Inverno, sozinha<br />

ou acompanhada. “Eu fui a primeira.<br />

Fui eu que comecei aqui<br />

<strong>na</strong> Portela”, exclama Lur<strong>de</strong>s à velocida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> quem busca alguma<br />

coisa mas que só encontra o que<br />

quer nos passos que a <strong>de</strong>volvem<br />

a casa. Do baixo <strong>do</strong> seu metro e<br />

meio, Lur<strong>de</strong>s percorre 4,5 km em<br />

pouco menos <strong>de</strong> uma hora – 4 voltas<br />

ao percurso estabeleci<strong>do</strong>. O<br />

corpo franzino, o cabelo loiro apanha<strong>do</strong><br />

sem preocupação e o vigor<br />

da sua passada <strong>de</strong>ixam entrever<br />

os anos em que praticou atletismo.<br />

Aos 58 anos, o andar todas as<br />

noites foi a forma que encontrou<br />

<strong>de</strong> “não estar parada”.<br />

A tendência é recente, mas parece<br />

ter surgi<strong>do</strong> por to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> mais<br />

ou menos ao mesmo tempo. Andar<br />

tornou-se moda. De manhã, antes<br />

<strong>de</strong> ir para o trabalho, ou à noite,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>do</strong> jantar, os vizinhos juntam-se<br />

para fazer caminhadas no<br />

seu bairro, quer seja <strong>na</strong> Portela,<br />

em Alfornelos, ou em Cacilhas.<br />

Neste <strong>de</strong>sporto, tu<strong>do</strong> é leva<strong>do</strong> a<br />

sério. Vestem-se a rigor: a roupa<br />

<strong>do</strong> dia-a-dia é <strong>de</strong>ixada em casa e<br />

os fatos <strong>de</strong> treino, as t-shirts e os<br />

ténis saem <strong>do</strong> armário.<br />

Lur<strong>de</strong>s sai to<strong>do</strong>s os dias, porque<br />

foi o que sempre fez, mas nem<br />

to<strong>do</strong>s têm motivações tão fortes<br />

como ela. “Às vezes estou à janela<br />

e até rezo para que chova”, con-<br />

“Ontem até <strong>de</strong>via ter<br />

da<strong>do</strong> mais uma volta<br />

por ter comi<strong>do</strong> um<br />

mil-folhas.”<br />

fessa Miraldi<strong>na</strong>, 62 anos, amiga<br />

<strong>de</strong> caminhada <strong>de</strong> Lur<strong>de</strong>s. O grupo<br />

costuma variar entre quatro e cinco<br />

vizinhas, que já sentem a obrigação<br />

moral <strong>de</strong> ir andar, para não<br />

faltarem ao “compromisso” que<br />

têm com as outras. Por cada caminhante<br />

um caminho diferente: uns<br />

andam por causa <strong>do</strong> coração, outros<br />

para estarem ocupa<strong>do</strong>s, para<br />

manter a linha, ou simplesmente<br />

“porque faz bem”. A activida<strong>de</strong> é<br />

levada com muito profissio<strong>na</strong>lis-<br />

Quis o <strong>de</strong>stino que duas jovens austríacas se <strong>de</strong>ixassem encantar<br />

pelo colori<strong>do</strong> histórico <strong>de</strong> Alfama e aí abrissem um<br />

café, ao fim <strong>de</strong> vários anos a viajar pela Europa. O nome ficou<br />

“Pois”, palavra que elas não sabem o que significa, mas que os<br />

portugueses não se cansam <strong>de</strong> dizer. Situa<strong>do</strong> <strong>na</strong> rua São João<br />

da Praça, o Pois, Café <strong>na</strong>sceu <strong>de</strong> uma constatação mais ou<br />

-<br />

CIA ESTÁ NAS RUAS. UM MISTO DE DESPORTO E DE CONVÍVIO JUNTA VIZINHOS E<br />

DESCONHECIDOS EM CAMINHADAS PELO BAIRRO DEPOIS DE JANTAR. CADA UM<br />

TEM OS SEUS MOTIVOS E CADA UM TEM OS SEUS CAMINHOS.<br />

mo. Mesmo que não se comece ao<br />

mesmo tempo, as quatro voltas diárias<br />

são impreterivelmente cumpridas,<br />

quer se acabe sozinho ou<br />

acompanha<strong>do</strong>. E os <strong>de</strong>slizes são<br />

menos óbiva: faltava a Lisboa um espaço assim.<br />

“Quan<strong>do</strong> começámos a trabalhar aqui, andávamos<br />

sempre à procura <strong>de</strong> um sítio agradável on<strong>de</strong> nos<br />

pudéssemos sentar durante o dia, ler alguma coisa,<br />

beber ape<strong>na</strong>s um copo. Mas o típico café ou<br />

s<strong>na</strong>ck-bar lisboeta tem pouco espaço, é to<strong>do</strong> em<br />

alumínio e em azulejo, e só se vêem pessoas ao<br />

balcão a comer à pressa”. Inconformadas, Barbara<br />

e Catherine não pensaram duas vezes: compraram<br />

um antigo armazém <strong>de</strong> especiarias (que<br />

também já foi um atelier <strong>de</strong> <strong>de</strong>sign <strong>de</strong> interiores)<br />

e criaram, elas próprias, o café que procuravam.<br />

Como resulta<strong>do</strong>, ficou um espaço on<strong>de</strong> as pessoas<br />

po<strong>de</strong>m usar os sofás para ler, as mesas para estudar,<br />

para encontros e reuniões <strong>de</strong> trabalho ou simplesmente<br />

para beber um copo. A <strong>de</strong>coração é à antiga, com mesas e<br />

ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira todas diferentes, compradas em segunda<br />

mão. Nas pare<strong>de</strong>s imensas, interligadas por belos arcos<br />

<strong>de</strong> pedra, po<strong>de</strong> ver-se a pintura serigráfica <strong>de</strong> Pedro Revez,<br />

sinónimo <strong>de</strong> penitência: “Ontem<br />

até <strong>de</strong>via ter da<strong>do</strong> mais uma volta<br />

por ter comi<strong>do</strong> um mil-folhas”,<br />

confi<strong>de</strong>ncia Miraldi<strong>na</strong>. Há quem<br />

marque local <strong>de</strong> encontro todas<br />

as noites, outros encontram-se<br />

pelas ruas e tomam como suas as<br />

calçadas já gastas. Pelos mesmos<br />

caminhos da Portela cruzam-se<br />

“caminhantes das nove da noite”,<br />

atletas a sério, <strong>de</strong> calções curtos,<br />

t-shirts suadas e cronómetro <strong>na</strong><br />

mão, praticantes <strong>de</strong> Tai Chi e joga<strong>do</strong>res<br />

<strong>de</strong> futebol.<br />

Normalmente, os caminhantes andam<br />

ligeiros, carregan<strong>do</strong> ape<strong>na</strong>s o<br />

peso das chaves <strong>de</strong> casa. Mas outros<br />

há que, para além disto, carregam<br />

o peso da cruz. Um grupo<br />

<strong>de</strong> senhoras concentra-se em frente<br />

à igreja. São conhecidas por to<strong>do</strong>s<br />

por rezarem o terço enquanto<br />

caminham. “A missão é rezar o<br />

terço em Maio”, mês em que saem<br />

todas as noites, mas “a missão<br />

continua sempre”, explica Teresa<br />

Silva, lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong> grupo <strong>do</strong> terço.<br />

Conhecem os outros mas não se<br />

distraem no caminho e tampouco<br />

se per<strong>de</strong>m em conversas.<br />

Os grupos <strong>de</strong> vizinhos da Portela<br />

cruzam-se. Cruzam os olhares<br />

mas as palavras, essas são<br />

breves, como se fossem presas<br />

aos pés apressa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> quem as<br />

diz. Um caminho feito a correr<br />

e que só tem como <strong>de</strong>stino chegar<br />

a casa e, no próximo dia,<br />

estar lá outra vez.<br />

UM ESPAÇO EM LISBOA<br />

Pois, Café:<br />

um bocadinho <strong>de</strong> Áustria em Alfama<br />

FILIPE TEIXEIRA<br />

São conhecidas por<br />

to<strong>do</strong>s por rezarem<br />

o terço enquanto<br />

caminham.<br />

amigo das proprietárias. No próximo mês, a <strong>de</strong>coração será<br />

entregue a outro artista, que po<strong>de</strong> muito bem ser um cliente<br />

cuja arte se i<strong>de</strong>ntifique com as pessoas que ali vão.<br />

O Pois, Café é um bocadinho <strong>de</strong> Áustria em Alfama, com a<br />

sua música ligeira e o seu ambiente familiar. Tem uma banca<br />

<strong>de</strong> jor<strong>na</strong>is e revistas i<strong>de</strong>al para se saber o que se passa no<br />

mun<strong>do</strong> e um cantinho com papel e tintas para os mais novos.<br />

Por to<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> há livros que se po<strong>de</strong>m levar para casa <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que se traga outro para trocar. “Começámos sobretu<strong>do</strong> com<br />

livros em holandês, que nos foram ofereci<strong>do</strong>s por uma amiga,<br />

mas agora também já temos em português, inglês e francês”,<br />

constata Barbara. Para comer há refeições ligeiras, tostas,<br />

sanduíches e saladas, que quase passam para segun<strong>do</strong> plano<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se provarem os <strong>do</strong>ces tipicamente austríacos.<br />

Singular é a fusão <strong>de</strong> culturas, representada pela lasagne <strong>de</strong><br />

bacalhau, um verda<strong>de</strong>iro sucesso. •<br />

Susa<strong>na</strong> Santos


4 SOCIEDADE<br />

RESIDÊNCIA FARIA MANTERO<br />

<br />

Pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cultura<br />

É NUMA CASA APALAÇADA NO RESTELO Q<strong>UE</strong> SETE MENTES-PRODÍGIO PARTILHAM ESPA-<br />

ÇOS E RECORDAÇÕES. PARA TRÁS ESTÁ UMA VIDA Q<strong>UE</strong> CONSTRUÍRAM COM TALENTO. A<br />

SOCIEDADE PORTUG<strong>UE</strong>SA CONHECE-OS BEM.<br />

TÂNIA REIS ALVES<br />

O busto <strong>de</strong> Enrique Mantero<br />

Belard ergue-se subtil no amplo<br />

jardim das traseiras da<br />

casa. As feições são discretas,<br />

compenetradas, misteriosas.<br />

O homem observa a sua obra,<br />

recorda as vidas que a fizeram<br />

crescer, o sentimento que a<br />

alimentou: a história da casa é<br />

uma história <strong>de</strong> amor.<br />

Dentro daquela Residência,<br />

para on<strong>de</strong> foge o olhar <strong>do</strong> antigo<br />

<strong>do</strong>no, e que hoje pertence<br />

à Santa Casa da Misericórdia,<br />

respira-se cultura. No interior<br />

daquelas quatro pare<strong>de</strong>s e nos<br />

jardins que as circundam passeiam-se<br />

António Ramos Rosa,<br />

José Barata Moura, Maria Keil,<br />

Herberto Miranda, Falcão Sincer<br />

e Manuela Margari<strong>do</strong>.<br />

Foram chegan<strong>do</strong> aos poucos,<br />

empurra<strong>do</strong>s por uma vida que<br />

já não lhes pertencia completamente<br />

e é ali, <strong>na</strong>quela casa<br />

apalaçada, que vivem imersos<br />

no mar das suas recordações:<br />

a Residência Faria Mantero<br />

<strong>de</strong>sti<strong>na</strong>-se a acolher i<strong>do</strong>sos<br />

que se <strong>de</strong>stacaram no campo<br />

da cultura mas sem condições<br />

para se manter sozinhos.<br />

A pintora<br />

“O espaço é horrível. Isto é tu<strong>do</strong><br />

feio, é um absur<strong>do</strong> idiota, terrível,<br />

uma monstruosida<strong>de</strong>.”,<br />

<strong>de</strong>clara Maria Keil, pintora,<br />

ilustra<strong>do</strong>ra, ceramista e outrora<br />

esposa <strong>do</strong> arquitecto Keil <strong>do</strong><br />

Amaral, quan<strong>do</strong> lhe perguntam<br />

se gosta da casa. “A casa estáme<br />

larga”, conclui. De facto, a<br />

TÂNIA REIS ALVES<br />

Faria Mantero, assim chamada<br />

por ter pertenci<strong>do</strong> a Gertru<strong>de</strong>s<br />

Verda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Faria e a Enrique<br />

Mantero Belard, não foi concebida<br />

para ser habitada, mas<br />

antes como um local <strong>de</strong> recepção<br />

e convívio. O enorme salão<br />

é disso exemplo. O tecto altíssimo,<br />

a lareira <strong>do</strong> tamanho <strong>de</strong><br />

um homem, os sofás <strong>de</strong> velu<strong>do</strong>,<br />

os móveis <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira maciça e<br />

os retratos <strong>do</strong>s antigos <strong>do</strong>nos da<br />

casa pinta<strong>do</strong>s por Barata Moura<br />

lembram-nos a to<strong>do</strong> o momento<br />

que estamos numa casa rica. Ali<br />

não é difícil imagi<strong>na</strong>r damas<br />

envergan<strong>do</strong> vesti<strong>do</strong>s compri<strong>do</strong>s<br />

e cavalheiros <strong>de</strong> cartola, ro<strong>do</strong>pian<strong>do</strong><br />

ao som <strong>de</strong> acor<strong>de</strong>s arran-<br />

ca<strong>do</strong>s ao piano <strong>de</strong> cauda.<br />

Ao contrário da maioria <strong>do</strong>s resi<strong>de</strong>ntes,<br />

Maria Keil não passa<br />

muito tempo no antigo salão<br />

<strong>de</strong> baile, on<strong>de</strong> o pequeno ecrã<br />

é agora protagonista. Diz que a<br />

televisão é um veneno que acaba<br />

com as pessoas e toma conta<br />

<strong>de</strong>las. “Ela enche as horas e<br />

António Ramos Rosa<br />

é “O Poeta”. Não vive<br />

neste mun<strong>do</strong>, não<br />

consi<strong>de</strong>ra aquela casa<br />

a sua casa. Na verda<strong>de</strong>,<br />

não é lá que vive.<br />

<br />

TÂNIA REIS ALVES<br />

os minutos e limita o convívio<br />

<strong>de</strong>ntro da casa”, diz. Do alto <strong>do</strong>s<br />

seus 91 anos e com uma luci<strong>de</strong>z<br />

e senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> humor <strong>de</strong>sconcertantes,<br />

Maria Keil recusa-se a<br />

fazer da Residência o centro<br />

<strong>do</strong>s seus dias. O estira<strong>do</strong>r ainda<br />

faz parte da mobília <strong>do</strong> seu<br />

quarto e o passe social e o táxi<br />

levam-<strong>na</strong> às exposições que não<br />

se cansa <strong>de</strong> ver e ao ateliê que<br />

mantém no Bairro Alto.<br />

Nem sempre assim foi. Maria<br />

Keil está há <strong>do</strong>is anos <strong>na</strong> Faria<br />

Mantero. Chegou após a morte<br />

da escritora Olga Gonçalves,<br />

quan<strong>do</strong> caiu à cama por ter toma<strong>do</strong><br />

medicamentos sem prescrição<br />

médica. Não veio por iniciativa<br />

própria, mas trazida por<br />

amigos que ven<strong>do</strong> o seu esta<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> apresentaram a sua<br />

candidatura à direcção da Residência.<br />

Os primeiros tempos<br />

foram complica<strong>do</strong>s. A pintora,<br />

que numa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> relativização<br />

constante <strong>do</strong> seu trabalho<br />

recusa o título <strong>de</strong> “meni<strong>na</strong><br />

<strong>do</strong>s azulejos”, não se conseguia<br />

adaptar à nova casa, sentia-se<br />

sozinha, presa. “Aqui <strong>de</strong>ntro<br />

não há <strong>na</strong>da para fazer. Então<br />

quan<strong>do</strong> cheguei fui lá para fora<br />

apanhar ar e <strong>de</strong>senhar. Desenhei<br />

as árvores todas <strong>do</strong> jardim,<br />

mas com olhos. A necessida<strong>de</strong><br />

que tinha <strong>de</strong> ir lá para fora<br />

era <strong>de</strong> estar livre, fazer parte <strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong>”, lembra.<br />

O jor<strong>na</strong>lista<br />

A sala <strong>de</strong> jogos é o <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong><br />

Falcão Sincer, 80 anos. Ilumi<strong>na</strong>da<br />

por uma luz amarelada que foge<br />

<strong>de</strong> <strong>do</strong>is can<strong>de</strong>eiros <strong>de</strong> pé e faz sobressair<br />

o teci<strong>do</strong> rico das pare<strong>de</strong>s,<br />

está uma peque<strong>na</strong> mesa re<strong>do</strong>nda<br />

carregada com os livros e os jor<strong>na</strong>is<br />

que sempre fizeram parte<br />

da vida daquele homem. É sobre<br />

eles que os seus olhos repousam<br />

durante gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong> dia.<br />

Falcão Sincer chegou à Faria<br />

Mantero, quan<strong>do</strong>, <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>,<br />

regressou <strong>do</strong>s Açores, on<strong>de</strong><br />

trabalhou como jor<strong>na</strong>lista <strong>na</strong><br />

imprensa regio<strong>na</strong>l. As dificulda<strong>de</strong>s<br />

económicas, que o levaram a<br />

ven<strong>de</strong>r o apartamento e gran<strong>de</strong><br />

parte da biblioteca, guiaram-no<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

até ali numa altura em que a<br />

casa funcio<strong>na</strong>va ape<strong>na</strong>s como<br />

Centro <strong>de</strong> Dia para a terceira ida<strong>de</strong>.<br />

Foi o primeiro a chegar, após<br />

a sobrinha <strong>de</strong> Enrique Mantero<br />

ter ameaça<strong>do</strong> processar a Santa<br />

Casa da Misericórdia por esta<br />

não respeitar a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> tio:<br />

a casa <strong>de</strong>via acolher i<strong>do</strong>sos com<br />

mérito cultural mas sem condições<br />

para se manter.<br />

O ex-jor<strong>na</strong>lista sabe <strong>de</strong> cor a história<br />

<strong>de</strong> amor daquela casa tal<br />

como, enquanto monárquico que<br />

é, consegue enumerar sem pausas<br />

reis e di<strong>na</strong>stias. A sua vasta<br />

cultura vastíssima é fruto <strong>de</strong> uma<br />

A tristeza por viver<br />

numa casa da<br />

Misericórdia não<br />

<strong>de</strong>sapareceu ao fim <strong>de</strong><br />

nove anos <strong>de</strong> estada.<br />

constante curiosida<strong>de</strong> que nos<br />

primeiros tempos <strong>de</strong> resi<strong>de</strong>nte<br />

alimentou com as tar<strong>de</strong>s passadas<br />

em exposições e bibliotecas.<br />

“Antigamente saía <strong>de</strong> manhã e<br />

ia para a Torre <strong>de</strong> Belém e à tar<strong>de</strong><br />

ou ia a um concerto ou a uma<br />

exposição ou a uma biblioteca.<br />

Só regressava quase à hora <strong>do</strong><br />

jantar”, diz ao mesmo tempo que<br />

passa a mão pela barba branca.<br />

Hoje, <strong>de</strong>bilita<strong>do</strong> por uma queda,<br />

resume as suas saída aos jardins<br />

da casa, on<strong>de</strong>, tal como to<strong>do</strong>s os<br />

resi<strong>de</strong>ntes, gosta <strong>de</strong> se sentar a<br />

apanhar sol. O essencial <strong>do</strong>s seus<br />

dias é, no entanto, passsa<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />

sala <strong>de</strong> jogos, on<strong>de</strong> ao som altíssimo<br />

<strong>do</strong> noticiário algumas utentes<br />

<strong>do</strong> Centro <strong>de</strong> Dia passam as tar<strong>de</strong>s<br />

contan<strong>do</strong> os pontos da ca<strong>na</strong>sta.<br />

“Sou trata<strong>do</strong> com carinho, tenho<br />

uma boa casa, um bom jardim,<br />

mas gostava muito da minha autonomia<br />

e perdi-a. Tenho muitas<br />

sauda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lismo”, diz. A<br />

tristeza por viver numa casa da<br />

Misericórdia não <strong>de</strong>sapareceu ao<br />

fim <strong>de</strong> nove anos <strong>de</strong> estada.<br />

O engenheiro<br />

Herberto Miranda é o prático<br />

da casa. Tem 93 anos, quase 94,<br />

como faz questão <strong>de</strong> dizer, e <strong>de</strong>dicou<br />

toda a vida à engenharia.<br />

Hoje, é o reitor da Universida<strong>de</strong><br />

Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l para a Terceira<br />

Ida<strong>de</strong> (UITI) e é para lá que parte<br />

todas as manhãs, só regressan<strong>do</strong><br />

para almoçar e, <strong>de</strong>pois,<br />

ao fim da tar<strong>de</strong>. É a prova viva<br />

daquilo que afirma constantemente:<br />

“Eu acho que a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

reforma não <strong>de</strong>via ser estabelecida<br />

<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a ida<strong>de</strong> real<br />

da pessoa mas com a ida<strong>de</strong> mental,<br />

com as suas capacida<strong>de</strong>s.”<br />

Herberto Miranda mantém<br />

uma constante boa disposição.<br />

Diz que não vai <strong>de</strong> férias porque<br />

<strong>na</strong>quela casa é mais bem<br />

trata<strong>do</strong> que em qualquer hotel<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A verda<strong>de</strong> é que o<br />

trabalho não lhe <strong>de</strong>ixa muito<br />

tempo livre: no quarto tem uma<br />

máqui<strong>na</strong> <strong>de</strong> escrever que lhe<br />

permite continuar os afazeres<br />

que não conclui <strong>na</strong> UITI e que


8ª COLINA I JUNHO 2006 SOCIEDADE 5<br />

o ajuda a preencher os momentos<br />

mortos <strong>de</strong> uma casa habitada<br />

por resi<strong>de</strong>ntes especiais.<br />

“Há aqui uma <strong>de</strong>formação <strong>de</strong><br />

separação. Estamos a falar <strong>de</strong><br />

pessoas que se encontraram no<br />

fi<strong>na</strong>l da sua vida e que tiveram<br />

profissões muito diferentes. To<strong>do</strong>s<br />

temos alta especialização,<br />

mas se nos pomos a falar disso<br />

os outros não po<strong>de</strong>m acompanhar.<br />

Quan<strong>do</strong> saímos <strong>do</strong> que a<br />

comunicação social está a dar<br />

não temos uma conversa contínua.”<br />

Mesmo assim, Herberto<br />

Miranda mostra-se feliz com a<br />

casa que escolheu para viver<br />

e que foi <strong>do</strong>ada por Henrique<br />

Mantero à Gulbenkian, que não<br />

a po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> manter a <strong>de</strong>u à Misericórdia.<br />

Candidatou-se numa<br />

altura em que a mulher a<strong>do</strong>eceu,<br />

buscan<strong>do</strong> ajuda para cuidar<br />

<strong>de</strong>la. Quan<strong>do</strong> entrou para<br />

a casa, três meses <strong>de</strong>pois, já a<br />

mulher tinha faleci<strong>do</strong>.<br />

O Poeta<br />

“O poeta está no quarto”, “Aqui<br />

está o almoço <strong>do</strong> poeta”, dizem as<br />

funcionárias da Faria Mantero<br />

quan<strong>do</strong> se referem ao inquilino<br />

<strong>do</strong> maior quarto da casa. António<br />

Ramos Rosa é “o Poeta”. Não vive<br />

neste mun<strong>do</strong>, não consi<strong>de</strong>ra aquela<br />

casa a sua casa. Na verda<strong>de</strong>,<br />

não é lá que vive. Não habita em<br />

parte nenhuma. O seu universo é<br />

o das i<strong>de</strong>ias que imortaliza em forma<br />

<strong>de</strong> poema. Às vezes <strong>de</strong>ixa-se<br />

fasci<strong>na</strong>r pelas coisas comezinhas,<br />

filosofa sobre elas, cita versos<br />

<strong>de</strong> Pessoa que lhe parecem vir a<br />

propósito. Outras, ignora-as, passa-lhes<br />

por cima, como se a vida<br />

lhe escapasse por entre os <strong>de</strong><strong>do</strong>s<br />

e ele tivesse <strong>de</strong> correr para tocar<br />

a sua essência. A sua vida é a <strong>do</strong><br />

poeta. Foi poeta que escolheu ser<br />

quan<strong>do</strong> aban<strong>do</strong>nou as traduções,<br />

os ensaios e as explicações <strong>de</strong> línguas<br />

para viver unicamente para<br />

a poesia e da poesia, enfrentan<strong>do</strong><br />

até hoje as consequências <strong>de</strong>ssa<br />

escolha. É poeta que é quan<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> várias línguas se amontoam,<br />

juntamente com os <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong><br />

traços simples com que presenteia<br />

amigos e visitantes. Falcão<br />

Sincer diz que aquele quarto é a<br />

torre <strong>de</strong> marfim <strong>de</strong> Ramos Rosa.<br />

Mas os 82 anos e as consequentes<br />

dificulda<strong>de</strong>s em locomover-se não<br />

obrigam Ramos Rosa a uma existência<br />

<strong>de</strong> clausura: quase to<strong>do</strong>s os<br />

dias a seguir ao almoço aban<strong>do</strong><strong>na</strong><br />

a casa com <strong>de</strong>stino a um café<br />

das re<strong>do</strong>n<strong>de</strong>zas. Ao fim da tar<strong>de</strong>,<br />

quan<strong>do</strong> regressa <strong>de</strong> saco carrega<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> livros, senta-se a ler no<br />

jardim. Continua a escrever, escreve<br />

sempre, muitas vezes pela<br />

noite <strong>de</strong>ntro. “Não escrevo como<br />

Assim que a vê, o exjor<strong>na</strong>lista<br />

esquece a<br />

bengala que nunca<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> o acompanhar<br />

e corre até à amiga.<br />

Maria Keil segue-lhe<br />

os passos e os três<br />

abraçam-se, sorriem,<br />

dão pulos <strong>de</strong> alegria<br />

escrevia antigamente, a inspiração<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da nossa energia e a<br />

minha energia já não é a mesma”,<br />

diz. Quan<strong>do</strong> lhe pe<strong>de</strong>m para ler<br />

um poema sobre a casa que escreveu<br />

anteriormente diz não enten<strong>de</strong>r<br />

a própria letra, mas oferece-se<br />

prontamente para escrever outro.<br />

Pega <strong>na</strong> caneta, folha em branco e<br />

o mun<strong>do</strong> apaga-se. Só existem as<br />

palavras. Nesta casa, que é um<br />

acor<strong>de</strong> musical <strong>de</strong> espaços / propícios<br />

para o repouso e o silêncio<br />

/ (…) / em que o sol ver<strong>de</strong> transparece<br />

como uma folha ou como<br />

um poeta / <strong>na</strong>da é fantasia, tu<strong>do</strong><br />

tem a pureza <strong>do</strong> real / e <strong>do</strong> ser que<br />

o tor<strong>na</strong> visível.<br />

Segre<strong>do</strong>s <strong>de</strong> cultura<br />

“O mais difícil é o relacio<strong>na</strong>mento<br />

inter-pessoal. Os resi<strong>de</strong>ntes<br />

PRÉMIOS NUNES CORRÊA VERDADES DE FARIA<br />

A <strong>do</strong>ação da sua casa no Restelo<br />

não foi o único acto <strong>de</strong> benemérito<br />

<strong>de</strong> Enrique Mantero<br />

Belard. No seu testamento<br />

foram também contempladas<br />

a Cruz Vermelha Portuguesa,<br />

a Santa Casa da Misericórdia, a<br />

Câmara Municipal <strong>de</strong> Cascais,<br />

o Esta<strong>do</strong>, amigos, familiares<br />

e emprega<strong>do</strong>s. No entanto, a<br />

maior origi<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste generoso<br />

testamento são os prémios<br />

Nunes Corrêa Verda<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> Faria. Estes galardões, atribuí<strong>do</strong>s<br />

anualmente pela Santa<br />

Casa da Misericórdia, são mais<br />

estabelece com os seus interlocutores<br />

o <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong><strong>do</strong>r comum da<br />

poesia. É poeta que é <strong>na</strong> forma <strong>de</strong><br />

habitar aquela residência.<br />

As horas <strong>na</strong> casa passa-as no seu<br />

quarto, senta<strong>do</strong> frente a uma mesa<br />

re<strong>do</strong>nda on<strong>de</strong> livros e dicionários<br />

uma das provas da preocupação<br />

<strong>de</strong> Enrique Belard com a<br />

terceira ida<strong>de</strong>.<br />

Sen<strong>do</strong> atribuí<strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1987,<br />

eles distinguem as pessoas<br />

que em Portugal se <strong>de</strong>staquem<br />

no “cuida<strong>do</strong> e carinho<br />

presta<strong>do</strong> aos velhos <strong>de</strong>sprotegi<strong>do</strong>s”,<br />

no “progresso da<br />

medici<strong>na</strong> <strong>na</strong> sua aplicação às<br />

pessoas i<strong>do</strong>sas” e que tenham<br />

contribuí<strong>do</strong> para o “progresso<br />

no tratamento <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças <strong>do</strong><br />

coração” (tanto Enrique Belard<br />

como a esposa morreram<br />

<strong>de</strong> <strong>do</strong>ença cardíaca).<br />

têm um grau <strong>de</strong> cultura eleva<strong>do</strong>,<br />

vivências muito diferentes, uns<br />

ainda estão mais ou menos no<br />

activo, outros já são pura e simplesmente<br />

resi<strong>de</strong>ntes e isso gera<br />

algumas intrigas entre eles.”,<br />

conta a D. Leonor, uma das au-<br />

xiliares da Faria Mantero.<br />

Barata Moura, que se recusa a<br />

dar entrevistas por a última <strong>de</strong>las<br />

ter leva<strong>do</strong> até si uma falsa filha,<br />

diz que as discussões sobre<br />

pintura com Maria Keil fazem<br />

parte <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. “Conversase<br />

pouco, as conversas não dão<br />

muitos frutos, porque são visões<br />

muito diferentes da pintura”, explica<br />

a ilustra<strong>do</strong>ra, que com Falcão<br />

Sincer protagoniza outra das<br />

discussões da casa: o ex jor<strong>na</strong>lista<br />

admira-lhe a arquitectura e<br />

fala sobre todas as suas influências,<br />

Maria Keil <strong>de</strong>spreza-a.<br />

Adília Sentieiro, directora da<br />

Faria Mantero, é a maior <strong>de</strong>positária<br />

<strong>do</strong>s segre<strong>do</strong>s encerra<strong>do</strong>s<br />

<strong>na</strong>quelas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cultura.<br />

Tem uma paciência infinita e é<br />

com um sorriso nos lábios que<br />

conta o episódio <strong>do</strong> resi<strong>de</strong>nte<br />

que se dirige a ela para se queixar<br />

da utente <strong>do</strong> centro <strong>de</strong> dia<br />

que se sentou no seu sofá ou o<br />

da senhora que durante a refeição<br />

insere o <strong>de</strong><strong>do</strong> no pudim <strong>de</strong><br />

outro resi<strong>de</strong>nte ou que se distrai<br />

a enrolar bolinhas <strong>de</strong> pão que<br />

faz voar até ao prato da sopa <strong>de</strong><br />

alguém próximo. A directora<br />

acredita que as rivalida<strong>de</strong>s que<br />

existem entre alguns <strong>de</strong>stes resi<strong>de</strong>ntes-prodígio<br />

<strong>po<strong>de</strong>r</strong>iam ser<br />

diminuídas se a casa pu<strong>de</strong>sse<br />

acolher mais gente. Não po<strong>de</strong> e<br />

por isso são já <strong>do</strong>ze os currículos<br />

e as candidaturas para entrada<br />

<strong>na</strong> casa que tem para avaliar.<br />

Rivalida<strong>de</strong>s à parte, esta casa<br />

não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser a personificação<br />

<strong>de</strong> uma história <strong>de</strong> amor<br />

que continuou para além da<br />

morte. Foi habitada por Enrique<br />

Mantero Belard, homem<br />

<strong>de</strong> negócios, rígi<strong>do</strong>, sem gran<strong>de</strong><br />

talento para as relações huma<strong>na</strong>s,<br />

mas que se cruzou com<br />

Gertru<strong>de</strong>s Verda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Faria,<br />

mulher sensível, ligada às artes<br />

e aos artistas. Casaram e por<br />

influência da esposa Enrique<br />

Belard <strong>de</strong>pressa compreen<strong>de</strong>u<br />

o valor da arte. Quan<strong>do</strong> Gertru<strong>de</strong>s<br />

morre, o mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> Enrique<br />

<strong>de</strong>sfaz-se, mas <strong>do</strong>is anos <strong>de</strong>pois<br />

começa a recompor-se e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />

realizar-lhe todas as vonta<strong>de</strong>s.<br />

No seu testamento está expresso<br />

um <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sejos da<br />

mulher: a residência <strong>do</strong> casal<br />

no Restelo serviria <strong>de</strong> casa a artistas<br />

i<strong>do</strong>sos e <strong>de</strong>sprotegi<strong>do</strong>s.<br />

Manuela Margari<strong>do</strong>, ex-embaixa<strong>do</strong>ra<br />

<strong>de</strong> Moçambique, é uma<br />

<strong>de</strong>ssas i<strong>do</strong>sas. Regressa a casa<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> duas sema<strong>na</strong>s<br />

<strong>de</strong> ausência. Volta <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois<br />

da hora <strong>do</strong> lanche, com a<br />

casa tão sossegada como <strong>de</strong> costume.<br />

Avança calmamente pela<br />

gran<strong>de</strong> galeria com vista para<br />

um <strong>do</strong>s jardins. Abre a porta da<br />

sala <strong>de</strong> jogos, on<strong>de</strong> se encontram<br />

Falcão Sincer e Maria Keil. Assim<br />

que a vê, o ex-jor<strong>na</strong>lista esquece<br />

a bengala que nunca <strong>de</strong>ixa<br />

<strong>de</strong> o acompanhar e corre até<br />

à amiga. Maria Keil segue-lhe<br />

os passos e os três abraçam-se,<br />

sorriem, dão pulos <strong>de</strong> alegria. D.<br />

Leonor assiste, <strong>de</strong> lágrimas nos<br />

olhos. A história da casa é uma<br />

história <strong>de</strong> amor.<br />

<br />

TOPONÍMIA<br />

Rua da Betesga<br />

Limitada por duas praças – Praça da Figueira e Praça D. Pedro IV -,<br />

a rua da Betesga faz parte das freguesia <strong>de</strong> São Nicolau e <strong>de</strong> Santa<br />

Justa. É também esta a rua que <strong>de</strong>limita a Baixa Pombali<strong>na</strong>, a norte.<br />

A rua da Betesga é um <strong>do</strong>s sítios <strong>de</strong> Lisboa com a mais antiga <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>ção<br />

<strong>de</strong> que há notícia. O local é referi<strong>do</strong> em <strong>do</strong>cumentos anteriores<br />

ao ano <strong>de</strong> 1551.<br />

A rua é assim <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>da por ser muito estreita, mas o facto <strong>de</strong> Betesga<br />

significar “rua estreita” constitui uma redundância: traduzi<strong>do</strong> à<br />

letra, o nome <strong>de</strong>ste lugar é “rua da rua estreita”. Como tal, há quem<br />

admita que, antes <strong>do</strong> terramoto <strong>de</strong> 1755, houvesse, no local, uma outra<br />

rua <strong>de</strong>ntro da rua principal chamada simplesmente <strong>de</strong> Betesga.<br />

Em 1902 o jor<strong>na</strong>l “O Popular” fez referência ao facto <strong>de</strong> ter si<strong>do</strong><br />

restituída à rua a sua <strong>de</strong>nomi<strong>na</strong>ção origi<strong>na</strong>l. Até esse momento,<br />

foi chamada <strong>de</strong> Bitesga. •<br />

•<br />

•<br />

SABIA Q<strong>UE</strong>...<br />

TÂNIA REIS ALVES<br />

A expressão “meter o Rossio <strong>na</strong> Betesga” advém da diferença entre<br />

a extensão da Praça <strong>do</strong> Rossio e a estreiteza da Rua da Betesga?<br />

O primeiro teatro <strong>de</strong> Lisboa era um pátio que existia entre a<br />

Rua da Betesga e a Rua <strong>do</strong>s Fanqueiros, on<strong>de</strong> as pessoas assistiam<br />

às peças das janelas <strong>de</strong> suas casas?<br />

Sílvia Dias<br />

NAZARET NASCIMENTO


6 SOCIEDADE<br />

RED SKINS<br />

“Sou um<br />

refugia<strong>do</strong><br />

político”<br />

<br />

<br />

TEVE PISTOLAS DENTRO DA BOCA. É COORDENADOR DA RASH UNIDA GALIZA-PORTU-<br />

<br />

<br />

É PERSEGUIDO PELOS NEO-NAZIS.<br />

SUSANA SANTOS<br />

Paulitus caminha sem pressa pelas<br />

ruas da cida<strong>de</strong> tranquila. Traja<br />

um blusão e umas botas à militar,<br />

apesar <strong>do</strong> calor. O pescoço distendi<strong>do</strong>,<br />

o sorriso suspenso, toda a linha<br />

firme <strong>do</strong> seu corpo, espadaú<strong>do</strong>,<br />

possante. Arrasta os pés, mas sem<br />

<strong>de</strong>sânimo. Pesa-lhe nos olhos o<br />

<strong>de</strong>nso rescal<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma noite liberti<strong>na</strong><br />

e vaga.<br />

Ao virar <strong>de</strong> cada esqui<strong>na</strong>, o sorriso<br />

alarga-se, a mão esten<strong>de</strong>-se para<br />

cumprimentar quem passa, numa<br />

troca <strong>de</strong> palavras sere<strong>na</strong> e prazenteira.<br />

Combi<strong>na</strong>m-se “uns copos”<br />

e uma ida ao futebol. Quem o vê<br />

assim, passean<strong>do</strong> tranquilamente<br />

pela cida<strong>de</strong>, não imagi<strong>na</strong> que Paulitus,<br />

35 anos, segurança numa fábrica,<br />

é persegui<strong>do</strong> por boneheads<br />

(skinheads neo-<strong>na</strong>zis) há anos.<br />

À primeira vista, <strong>na</strong>da o distingue<br />

daqueles a quem chama “o inimigo”:<br />

a mesma cor <strong>de</strong> pele, a mesma<br />

ausência <strong>de</strong> cabelo, o mesmo estilo<br />

<strong>de</strong> calça arregaçada, o mesmo ar<br />

rebel<strong>de</strong>. Mas um olhar atento facilmente<br />

<strong>de</strong>scobre indícios <strong>de</strong> outra<br />

i<strong>de</strong>ologia: as botas <strong>de</strong> cano alto têm<br />

ataca<strong>do</strong>res vermelhos e o blusão<br />

escon<strong>de</strong> a foice e o martelo estam-<br />

pa<strong>do</strong>s <strong>na</strong> t-shirt que traz vestida.<br />

Num crachá preso ao peito, letras<br />

amarelas sobre fun<strong>do</strong> vermelho<br />

formam a palavra “redskin” (‘careca’<br />

vermelho). De gran<strong>de</strong>s olhos<br />

castanhos, com longas patilhas cobrin<strong>do</strong>-lhe<br />

parte das faces, Paulitus<br />

acumula a condição <strong>de</strong> militante<br />

<strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista Português<br />

(PCP) com a <strong>de</strong> coor<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong>r da<br />

RASH (Red & A<strong>na</strong>rchist SkinHeads)<br />

Unida Galiza-Portugal, secção<br />

luso-galega <strong>de</strong> uma organização<br />

inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> skinheads a<strong>na</strong>rquistas<br />

e <strong>de</strong> esquerda. É skinhead<br />

e é comunista. Gosta <strong>de</strong> futebol e<br />

<strong>de</strong> música ska. Usa suspensórios e<br />

“A RASH-São Paulo tem<br />

cerca <strong>de</strong> 150 pessoas,<br />

das quais 85% são<br />

mulheres”<br />

t-shirts <strong>de</strong> Lenine. Rapa o cabelo e<br />

chorou a morte <strong>de</strong> Álvaro Cunhal.<br />

A crescente i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong>s ‘cabeças<br />

rapadas’ com a extrema-direita<br />

levou outros a<strong>de</strong>ptos da cultura<br />

skinhead a organizarem-se para <strong>de</strong>monstrar<br />

que po<strong>de</strong> ser-se skin sem<br />

se ser racista ou partidário <strong>do</strong> <strong>na</strong>zismo.<br />

Na realida<strong>de</strong>, “os verda<strong>de</strong>iros<br />

skinheads não têm preconceitos<br />

raciais, até porque o movimento<br />

<strong>na</strong>sceu <strong>de</strong> uma fusão <strong>de</strong> culturas entre<br />

imigrantes negros jamaicanos e<br />

operários brancos <strong>do</strong>s subúrbios <strong>de</strong><br />

Londres”.<br />

Fundada em 1993, em Nova Iorque,<br />

a RASH é hoje constituída<br />

por 126 secções, dispersas por 66<br />

países da América, Europa e Ásia.<br />

Contra o fascismo, o capitalismo,<br />

o Esta<strong>do</strong>, a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classes,<br />

a exploração <strong>do</strong> homem pelo homem<br />

e o preconceito em todas as<br />

suas formas, propõem-se “repor a<br />

verda<strong>de</strong> acerca da cultura skin”,<br />

retoman<strong>do</strong> a sua “origem proletária<br />

e multi-étnica”. O anti-racismo<br />

vem por arrasto. “Obviamente,<br />

não po<strong>de</strong>mos aceitar que pessoas<br />

maltratem outras ape<strong>na</strong>s pela cor<br />

da pele. Combateremos sempre<br />

to<strong>do</strong> e qualquer indivíduo, grupo<br />

ou instituição que perfilhe, explicitamente<br />

ou não, essa atitu<strong>de</strong>”.<br />

Uns franceses<br />

“muito estranhos”<br />

Paulitus não esquece o dia em que<br />

se tornou redskin. “Foi há 20 anos.<br />

Eu era punk e conheci um grupo<br />

<strong>de</strong> franceses muito estranho, que<br />

apareceu num Fiat Punto rouba<strong>do</strong>.<br />

Eram quatro ou cinco tipos, muito<br />

limpos, <strong>de</strong> botas impecáveis e tshirts<br />

com gran<strong>de</strong>s foices e martelos”.<br />

Um prodígio <strong>de</strong> imagem e <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ias. Curioso, não pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

meter conversa. Não fumava, mas<br />

foi-lhes pedir um cigarro.<br />

“Eu já era músico, era baterista em<br />

bandas <strong>de</strong> metal e punk, mas andava<br />

sempre sozinho”. Não tinha ninguém<br />

com quem se i<strong>de</strong>ntificasse,<br />

ele próprio um a<strong>do</strong>lescente em luta<br />

aberta contra o mun<strong>do</strong>. Andava vesti<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> uma forma estranha e veio a<br />

<strong>de</strong>scobrir que se vestia exactamente<br />

como eles: a t-shirt com a foice e<br />

“Telefo<strong>na</strong>vam para a<br />

minha mãe às seis da<br />

manhã e chamavam-lhe<br />

puta bolchevique”<br />

o martelo, os blusões <strong>de</strong> ganga a que<br />

se rasgavam as mangas e em que se<br />

cosiam emblemas <strong>na</strong>s costas. “Eu<br />

metia símbolos ‘red’ sem saber o<br />

que era. Na altura, ainda não havia<br />

Internet. Nunca tinha sequer ouvi<strong>do</strong><br />

falar em redskins”.<br />

Em pouco tempo, ficou a saber que<br />

um <strong>de</strong>les tocava <strong>na</strong> banda Mano Negra,<br />

um grupo <strong>de</strong> culto <strong>do</strong>s redskins<br />

franceses <strong>de</strong> on<strong>de</strong> veio a sair o músico<br />

Manu Chau. Emprestaram-lhe<br />

“uns sons” e ficou “completamente<br />

fasci<strong>na</strong><strong>do</strong>”. “Um colega meu, que<br />

era baixista da minha banda, tinha<br />

uma garagem on<strong>de</strong> costumávamos<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

ensaiar, mesmo ao la<strong>do</strong> da garagem<br />

<strong>do</strong> Kalú, <strong>do</strong>s Xutos e Pontapés, on<strong>de</strong><br />

também ensaiávamos <strong>de</strong> vez em<br />

quan<strong>do</strong>. Fizémos uma jam session<br />

e, pela música, fomos fican<strong>do</strong> amigos”.<br />

No Verão seguinte, o estranho<br />

grupo <strong>de</strong> franceses regressou a Portugal<br />

e trouxe, para oferecer a Paulitus,<br />

o simbólico crachá que traz<br />

preso ao blusão e que ainda hoje<br />

guarda “religiosamente”.<br />

Durante <strong>de</strong>z anos esteve sozinho<br />

em Portugal. “Não havia mais ninguém<br />

como eu, cheguei a pensar<br />

que era anormal!” Mas era possível<br />

que mais alguém fosse diferente. Foi<br />

durante um concerto, numa passagem<br />

<strong>de</strong> ano em Linda-a-Velha, que<br />

o vocalista <strong>do</strong>s Crise Total lhe veio<br />

dizer: “Paulitus, há mais um red!<br />

Um tipo <strong>do</strong> Porto!” Conheceram-se<br />

nesse dia e tor<strong>na</strong>ram-se inseparáveis.<br />

Des<strong>de</strong> logo <strong>de</strong>cidiram criar<br />

uma organização dividida em duas<br />

secções - secção Norte e secção Sul<br />

- e, em 1996, fundaram a RASH-Portugal.<br />

Em breve começariam, numa<br />

espantosa e improvável <strong>de</strong>scoberta,<br />

a amar furiosamente a Galiza.<br />

“Numa passagem <strong>de</strong> ano fomos a<br />

Vigo, assistir a um concerto, e ficámos<br />

completamente apaixo<strong>na</strong><strong>do</strong>s.<br />

Eram cente<strong>na</strong>s <strong>de</strong> redskins! Iniciámos<br />

logo relações com os galegos<br />

porque eles é que tinham força numérica<br />

e organizacio<strong>na</strong>l”.<br />

Em pouco tempo a RASH Unida Galiza-Portugal<br />

tornou-se “a mais forte”<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, com mais membros e<br />

mais bem organizada. “Agora é <strong>na</strong><br />

América Lati<strong>na</strong> - Chile, Colombia,<br />

México, Venezuela - que se concentram<br />

os núcleos mais <strong>po<strong>de</strong>r</strong>osos. A<br />

VERA MOUTINHO


VERA MOUTINHO<br />

8ª COLINA I JUNHO 2006 SOCIEDADE 7<br />

secção que abrimos recentemente<br />

em Pequim também está com muita<br />

força. São cerca <strong>de</strong> 180 reds e têm<br />

duas bandas”. Na Europa, há algumas<br />

secções mais orientadas para a<br />

a<strong>na</strong>rquia ou o a<strong>na</strong>rco-sindicalismo,<br />

como é o caso da RASH-Paris. “À<br />

frente das manifestações estudantis<br />

que <strong>de</strong>correram em França, estiveram<br />

sempre membros da RASH. Se<br />

eu olhasse bem para as imagens, facilmente<br />

os i<strong>de</strong>ntificava”.<br />

Em fuga<br />

Paulitus faz parte <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista<br />

Português <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os três anos<br />

<strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. “Depois <strong>do</strong> 25 <strong>de</strong> Abril, o<br />

meu pai pôs-me logo nos pioneiros”.<br />

Cresceu <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> PCP. “O Parti<strong>do</strong><br />

é a minha casa”. Ainda a<strong>do</strong>lescente,<br />

alistou-se <strong>na</strong> Marinha, on<strong>de</strong> foi militar<br />

durante cinco anos e meio. Mal<br />

esperava vir a criar o ‘Linha Dura’,<br />

um grupo - entretanto extinto - <strong>de</strong><br />

seguranças especiliza<strong>do</strong> em eventos<br />

culturais. “No primeiro festival<br />

<strong>do</strong> Su<strong>do</strong>este fui eu quem lá meteu<br />

seguranças. Era pessoal liga<strong>do</strong> à<br />

RASH. Temos a particularida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

toda a gente nos convidar para fazer<br />

segurança, até o próprio Parti<strong>do</strong>”.<br />

Foi ma<strong>na</strong>ger <strong>de</strong> várias bandas un<strong>de</strong>rground.<br />

Foi ele quem lançou os<br />

Black Company; foi com ele que Jay<br />

Jay Neige, <strong>do</strong>s Da Weasel, começou<br />

a tocar, numa banda chamada Matavelha.<br />

“O Carlitos [Pacman] era<br />

muito novo e ajudava a transportar<br />

o amplifica<strong>do</strong>r <strong>do</strong> irmão”. Organiza<strong>do</strong>r<br />

<strong>de</strong> espectáculos encarta<strong>do</strong>,<br />

soma 280 concertos realiza<strong>do</strong>s sob<br />

a sua coor<strong>de</strong><strong>na</strong>ção, <strong>do</strong>s quais 180<br />

em torno <strong>do</strong> movimento RASH.<br />

Aju<strong>do</strong>u a trazer “gran<strong>de</strong>s bandas”<br />

à Festa <strong>do</strong> Avante, como Betagarri,<br />

Banda Bassoti, I<strong>na</strong>daptats, Skarnio<br />

e Peste&Sida. Sempre funcionou <strong>de</strong><br />

uma forma militante, “ou era pago<br />

em cervejas ou não era pago”.<br />

Para escapar ao ódio corrosivo <strong>do</strong>s<br />

boneheads, teve <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r a casa<br />

on<strong>de</strong> viveu durante anos em Almada.<br />

“Como esses meninos sempre<br />

foram uns imensos cobar<strong>de</strong>s, vin-<br />

gavam-se com pinturas <strong>na</strong> minha<br />

porta. E a minha mãe, que até era<br />

católica, não achava muita piada<br />

aos telefonemas às seis da manhã a<br />

chamarem-lhe puta bolchevique”.<br />

Foi 28 vezes vítima <strong>de</strong> agressão.<br />

“Posso dizer que sou um refugia<strong>do</strong><br />

político. Chego a mudar <strong>de</strong> casa <strong>de</strong><br />

seis em seis meses porque a polícia<br />

diz que não po<strong>de</strong> ter um homem à<br />

minha porta to<strong>do</strong>s os dias. Já fui várias<br />

vezes a<strong>na</strong>valha<strong>do</strong>, já tive pistolas<br />

<strong>de</strong>ntro da minha boca”. Quan<strong>do</strong><br />

po<strong>de</strong>, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se; quan<strong>do</strong> não po<strong>de</strong>,<br />

encolhe-se “no chão” e espera “que<br />

passe”. Mas não se queixa. “Há<br />

camaradas que já sofreram muito<br />

mais <strong>do</strong> que eu. Des<strong>de</strong> que a<strong>de</strong>ri ao<br />

movimento, já morreram seis camaradas<br />

meus, que se saiba, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong><br />

a agressões diárias <strong>do</strong>s fascistas”.<br />

Força<strong>do</strong> a aban<strong>do</strong><strong>na</strong>r Almada,<br />

essa “magnífica cida<strong>de</strong>” on<strong>de</strong> já<br />

foi “agradável viver”, partiu enfim<br />

para a Galiza. Não duvidava<br />

<strong>de</strong> que havia quem o amparasse<br />

em Vigo, on<strong>de</strong> acabou por ficar ao<br />

fim <strong>de</strong> vários meses a <strong>de</strong>ambular<br />

pelo País Basco. “Era segurança<br />

no estádio <strong>de</strong> Balaí<strong>do</strong>s e, como<br />

também fazia parte da claque, era<br />

um trabalho que me dava imenso<br />

jeito: ninguém me chateava!” De<br />

volta a Portugal, ficou encarregue<br />

<strong>de</strong> coor<strong>de</strong><strong>na</strong>r as secções portuguesas<br />

e galegas da RASH. Ia à Galiza<br />

<strong>de</strong> quinze em quinze dias, to<strong>do</strong>s os<br />

meses. Agora, com os horários a<br />

que tem <strong>de</strong> submeter-se, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />

ter tempo para essas andanças.<br />

“Os camaradas <strong>do</strong> Porto, como<br />

estão geograficamente mais próximos,<br />

vão lá mais amiú<strong>de</strong>. Mas vou<br />

manten<strong>do</strong> o contacto através da<br />

Internet e <strong>do</strong> telefone, não só com<br />

os galegos mas com redskins <strong>de</strong><br />

outros países. Com os <strong>de</strong> Pequim e<br />

<strong>do</strong>s países <strong>de</strong> Leste - Rússia, Sérvia-<br />

MonteNegro, etc. - tor<strong>na</strong>-se mais<br />

complica<strong>do</strong> porque o inglês <strong>de</strong>les é<br />

muito pobre”.<br />

Paulitus ocupa-se sobretu<strong>do</strong> da ligação<br />

com a América Lati<strong>na</strong>. Está<br />

a coor<strong>de</strong><strong>na</strong>r a criação da RASH<br />

<br />

<br />

no Brasil, que congrega já <strong>de</strong>zoito<br />

secções. “A RASH-São Paulo tem<br />

cerca <strong>de</strong> 150 pessoas, das quais 85%<br />

são mulheres”. Mas está longe <strong>de</strong><br />

se sentir satisfeito com a sua prestação.<br />

“É raro organizarmos um<br />

evento, por exemplo, um congresso.<br />

Em termos operativos, geralmente<br />

só nos reunimos quan<strong>do</strong> há<br />

uma manifestação <strong>na</strong>zi, para fazer<br />

a contra-manifestação. Movimentamo-nos<br />

sobretu<strong>do</strong> por resposta”.<br />

Já ao movimento redskin, a sua entrega<br />

é “<strong>de</strong> alma e coração”. “Tu<strong>do</strong><br />

o que faço, tu<strong>do</strong> o que bebo, tu<strong>do</strong> o<br />

que como, tu<strong>do</strong> o que visto, o que<br />

componho, on<strong>de</strong> trabalho - tu<strong>do</strong><br />

tem a ver com o movimento”. Se<br />

fosse diferente, não era ele.<br />

Cida<strong>de</strong> livre <strong>de</strong> <strong>na</strong>zis<br />

Na cida<strong>de</strong> que escolheu para viver,<br />

conta com o apoio <strong>de</strong> 30 redskins.<br />

“O pessoal mais ‘entra<strong>do</strong>te’ começa<br />

a reparar em nós, a conviver<br />

connosco, e mais ce<strong>do</strong> ou mais tar<strong>de</strong><br />

começamos a vê-los com umas<br />

botas, com as calças arregaçadas, o<br />

cabelo vai <strong>de</strong>saparecen<strong>do</strong>... Temos<br />

ti<strong>do</strong> algumas surpresas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res<br />

negros da construção<br />

civil a estudantes universitários”.<br />

E há muitos jovens que ainda não<br />

se atreveram a aproximar-se. “Têm<br />

vergonha porque nós tor<strong>na</strong>mo-nos<br />

uma espécie <strong>de</strong> mito. Dizem que já<br />

matei para aí 10 <strong>na</strong>zis! E polícias<br />

também!”<br />

A RASH Unida Galiza-Portugal<br />

está directamente ligada a movimentos<br />

<strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> com os<br />

povos em luta, como o povo basco e<br />

o irlandês. “É a nossa função inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista”.<br />

Quan<strong>do</strong>, em Novembro<br />

<strong>de</strong> 2002, o petroleiro Prestige<br />

<strong>na</strong>ufragou nos mares da Galiza,<br />

não hesitaram. “Organizámos uma<br />

brigada para ir ajudar os camara-<br />

“O pior é ser confundi<strong>do</strong><br />

com o inimigo. Cheguei<br />

a pensar que seria<br />

morto por engano”<br />

das galegos a limpar a praia. Ficámos<br />

a <strong>do</strong>rmir em casa <strong>de</strong> pesca<strong>do</strong>res.<br />

Puseram <strong>de</strong> la<strong>do</strong> as diferenças<br />

estéticas e aceitaram-nos como irmãos”.<br />

Em Portugal, já há claques<br />

<strong>de</strong> futebol <strong>de</strong> on<strong>de</strong> os boneheads foram<br />

excluí<strong>do</strong>s e que hoje são <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>das<br />

pelos redskins. “Estamos a<br />

tentar <strong>de</strong>struir a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que to<strong>do</strong><br />

o hooligan é <strong>de</strong> direita. Nas claques<br />

em que estamos inseri<strong>do</strong>s, fizemos<br />

<strong>de</strong>saparecer os fascistas”.<br />

Há essa ira <strong>do</strong>lorosa, essa i<strong>de</strong>ia<br />

fixa, ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> execução. “Limpámos<br />

a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>na</strong>zis”. Quer isso<br />

dizer que os expulsaram? “Não.<br />

Digamos que ou são ‘betinhos’ ou<br />

não saem <strong>de</strong> casa”. Só em último<br />

caso usam a violência. “Primeiro,<br />

dirigimo-nos às pessoas civilizadamente,<br />

convidamo-las para beber<br />

uma cervejinha e dizemos ‘Olhem<br />

que isso é capaz <strong>de</strong> vos fazer mal à<br />

saú<strong>de</strong>’. Quan<strong>do</strong> não resulta, aí sim<br />

parte-se para a acção. Mas é raro”.<br />

Aconteceu pela última vez há três<br />

meses. Um grupo organiza<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

neo-<strong>na</strong>zis tentou infiltrar-se numa<br />

das claques <strong>do</strong> clube local. Correu<br />

mal. “E foram os nossos mais no-<br />

VERA MOUTINHO<br />

vos que trataram <strong>do</strong> assunto. Um<br />

tinha <strong>de</strong>zasseis, o outro <strong>de</strong>zoito e<br />

o outro vinte anos e <strong>de</strong>ram conta<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>z tipos. Estou muito orgulhoso<br />

<strong>de</strong>sses putos. Ficaram os heróis<br />

da claque em que estão e a semente<br />

<strong>de</strong> fascismo que os <strong>na</strong>zis queriam<br />

plantar foi extraída <strong>de</strong> raiz”.<br />

Paulitus sabe-se soberbo, intimidante.<br />

“Costumamos ter uma postura<br />

agressiva, que é uma forma<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa. Mesmo que estejamos<br />

sossega<strong>do</strong>s, há-<strong>de</strong> haver sempre<br />

alguém arma<strong>do</strong> em mau que pensa<br />

‘Eu sou mais forte <strong>do</strong> que aquele<br />

tipo. Ele pensa que é duro mas eu<br />

<strong>do</strong>u conta <strong>de</strong>le’”. Já se acostumou<br />

ao choque inicial, inevitável, que<br />

não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> provocar nos outros.<br />

Mas não precisa <strong>de</strong> muito tempo<br />

para vencer os preconceitos. “As<br />

pessoas começam a ver-me com algum<br />

senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> humor. Começam<br />

a reparar nos símbolos, <strong>na</strong>s t-shirts<br />

com a foice e o martelo, e há sempre<br />

alguém que se aproxima. Sou<br />

um tipo muito expansivo, muito<br />

sociável. Vivo sozinho, trabalho,<br />

tenho <strong>de</strong> fazer compras, tenho <strong>de</strong><br />

ter vida social”.<br />

O pior, crê, é ser confundi<strong>do</strong> com o<br />

inimigo. “Em Almada, havia gangs<br />

<strong>de</strong> negros e era muito complica<strong>do</strong>.<br />

Porque eu não podia dizer ‘Eu não<br />

sou <strong>de</strong>sses, sou <strong>do</strong>s outros!’ Quais<br />

outros? Cheguei a pensar que seria<br />

morto por engano. É fácil saber que<br />

o inimigo é aquele indivíduo específico,<br />

muito concreto, que é o fascista.<br />

No nosso caso, po<strong>de</strong>mos ter<br />

o azar <strong>de</strong> ser mortos por engano. O<br />

que, acontecen<strong>do</strong>, seria ridículo”.<br />

Paulitus caminha sem pressa pelas<br />

ruas da cida<strong>de</strong> tranquila. De<br />

um la<strong>do</strong> e <strong>do</strong> outro, algum comércio<br />

antigo resiste heroicamente à<br />

competição com os centros comerciais.<br />

Uns metros adiante, a praça<br />

ampla e translúcida oferece-lhe a<br />

imagem da sua própria liberda<strong>de</strong>.<br />

Habita o início, o silêncio <strong>de</strong> si<br />

próprio. A cida<strong>de</strong> está “limpa” <strong>de</strong><br />

<strong>na</strong>zis. É inevitável pensar que tu<strong>do</strong><br />

quanto existe <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le acaba <strong>de</strong><br />

entrar numa nova estação. “Está<br />

<strong>na</strong> altura <strong>de</strong> me mudar para uma<br />

localida<strong>de</strong> mais peque<strong>na</strong>. Tenho <strong>de</strong><br />

ir pregar para outras freguesias.<br />

Literalmente”.


8 POLÍTICA<br />

JUVENTUDES PARTIDÁRIAS<br />

Gente com J<br />

CATARINA SANTANA<br />

INÊS HENRIQ<strong>UE</strong>S<br />

A jota reúne-se e o hábito manda<br />

que já passe da hora marcada.<br />

Na cave da secção <strong>de</strong> Algés, uma<br />

fatia <strong>de</strong> pizza e um cigarro antece<strong>de</strong>m<br />

a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> trabalhos que<br />

a Juventu<strong>de</strong> <strong>Social</strong> Democrata<br />

(JSD) tem para cumprir. É preciso<br />

pensar <strong>na</strong>s acções <strong>de</strong> convívio <strong>do</strong><br />

Verão e <strong>na</strong> reentré em Setembro.<br />

Só <strong>de</strong>pois vêm as activida<strong>de</strong>s mais<br />

“sérias”: uma acção <strong>de</strong> formação<br />

para o emprego, um <strong>de</strong>bate i<strong>de</strong>ológico<br />

entre as várias juventu<strong>de</strong>s<br />

partidárias… As i<strong>de</strong>ias são muitas<br />

e os consensos os necessários<br />

para prosseguir. Aos poucos, o<br />

palanque laranja vai-se compon<strong>do</strong><br />

e entre os que vêm pela primeira<br />

vez, os mais <strong>de</strong>spacha<strong>do</strong>s, os mais<br />

cala<strong>do</strong>s, há sempre quem aproveite<br />

para alongar a acta ou a noite.<br />

O sério esta<strong>do</strong> da política motiva<br />

mais um cigarro e uma <strong>de</strong>longa,<br />

sob o olhar circunspecto das figuras<br />

<strong>de</strong> fun<strong>do</strong>: prega<strong>do</strong>s <strong>na</strong> pare<strong>de</strong>,<br />

Cavaco Silva e Sá Carneiro são o<br />

passa<strong>do</strong> que alguns nem viveram,<br />

mas que to<strong>do</strong>s querem lembrar.<br />

“A minha secção funcio<strong>na</strong> <strong>na</strong><br />

base <strong>do</strong> mérito”<br />

João Annes, 22 anos, está em Estu<strong>do</strong>s<br />

Inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is no ISCSP e é<br />

presi<strong>de</strong>nte da Comissão Política <strong>de</strong><br />

Secção da JSD <strong>de</strong> Algés. A 5ª maior<br />

secção <strong>do</strong> país, <strong>de</strong> que fazem parte<br />

cinco freguesias <strong>do</strong> concelho <strong>de</strong><br />

Oeiras. Um dia leu um livro <strong>de</strong> Sá<br />

Carneiro que <strong>de</strong>finia a social-<strong>de</strong>mocracia<br />

e hoje consi<strong>de</strong>ra-se um<br />

<strong>do</strong>s poucos que leva a sério a i<strong>de</strong>ologia.<br />

Por isso está <strong>na</strong> JSD e porque<br />

-<br />

-<br />

<br />

ENTRE OS JOVENS. PODEM SER UM TRAMPOLIM PARA<br />

<br />

JOVENS ÀS CHAMADAS “JOTAS”?<br />

acredita que po<strong>de</strong> ajudar a resolver<br />

“a situação <strong>do</strong> país, a cultura <strong>do</strong><br />

Portugal <strong>do</strong>s pequeninos”.<br />

Na sua opinião há quatro tipos <strong>de</strong><br />

militantes <strong>na</strong>s chamadas “jotas”:<br />

“os que conhecem a i<strong>de</strong>ologia e<br />

têm vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se pôr ao serviço<br />

das comunida<strong>de</strong>s”; os que estão<br />

“para ajudar os amigos, que acreditam<br />

neles, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />

<strong>de</strong> serem <strong>do</strong> PSD”; “aqueles cuja<br />

formação académica os leva a<br />

integrar as juventu<strong>de</strong>s, como os<br />

estudantes <strong>de</strong> Direito ou Ciência<br />

Política” e “a malta <strong>do</strong> tacho”, que<br />

procura “uma forma <strong>de</strong> se realizar,<br />

<strong>de</strong> melhorar a vida”. João afirma<br />

fazer parte <strong>do</strong> primeiro grupo,<br />

mas consi<strong>de</strong>ra to<strong>do</strong>s os militantes<br />

legítimos. Garante que a sua secção<br />

funcio<strong>na</strong> “<strong>na</strong> base <strong>do</strong> mérito”<br />

e que só quem se <strong>de</strong>dica é que tem<br />

recompensas: “abrem-se janelas<br />

<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s, mas primeiro<br />

temos que mostrar o que sabemos,<br />

<strong>de</strong>pois vêm outros voos”.<br />

Confessa que a política não é a sua<br />

vida, o que o move é ape<strong>na</strong>s o apego<br />

ao parti<strong>do</strong> e não sabe o que o futuro<br />

lhe reserva: “Já provei a mim<br />

mesmo que posso ganhar eleições.<br />

<br />

Não sei o que vou fazer. Se a minha<br />

li<strong>de</strong>rança for boa é porque tenho<br />

futuro <strong>na</strong> política, senão para<br />

que é que vou subir?”.<br />

“Sou <strong>de</strong> direita, direita”<br />

Pedro Morais tem 23 anos e estuda<br />

<strong>Comunicação</strong> <strong>Social</strong> <strong>na</strong> Universida<strong>de</strong><br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Quer seguir<br />

jor<strong>na</strong>lismo político, para “criticar<br />

os que lá estão [<strong>na</strong> política]”. É<br />

secretário-geral da Comissão Política<br />

<strong>de</strong> Algés e militante da JSD<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 16 anos. Sempre se sentiu<br />

liga<strong>do</strong> à direita, quanto mais não<br />

fosse pela admiração que sente<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> ce<strong>do</strong> por figuras como Marcelo<br />

Rebelo <strong>de</strong> Sousa ou Durão<br />

Barroso. Em casa, tu<strong>do</strong> o puxava<br />

nesse senti<strong>do</strong>. Filho <strong>de</strong> Isaltino<br />

Morais, presi<strong>de</strong>nte da Câmara Municipal<br />

<strong>de</strong> Oeiras, diz que o cargo<br />

<strong>do</strong> pai lhe está “às costas”, embora<br />

não se sinta próximo <strong>do</strong> círculo <strong>de</strong><br />

pessoas que o ro<strong>de</strong>ia, nem apoie todas<br />

as <strong>de</strong>cisões <strong>do</strong> PSD. Já encabeçou<br />

listas candidatas <strong>na</strong> JSD e uma<br />

das coisas que lhe dá mais “gozo”<br />

é dizer às pessoas que insistem em<br />

tratá-lo como ‘o filho <strong>do</strong> Isaltino’<br />

“aqui está a lista <strong>do</strong> Pedro!”.<br />

Confessa que é <strong>de</strong> “direita, direita”,<br />

mas acha que os jovens hoje<br />

em dia estão mais liga<strong>do</strong>s à esquerda,<br />

“porque é moda aceitar<br />

a legalização das drogas leves, o<br />

aborto”. No entanto, não tem objectivos<br />

<strong>na</strong> política, até porque<br />

não há nenhum parti<strong>do</strong> no panorama<br />

político actual que lhe encha<br />

as medidas. Não é <strong>do</strong> PP, porque<br />

não se sente liga<strong>do</strong> “à família,<br />

nem à Igreja”. Não é <strong>do</strong> PNR, pois<br />

lamenta a conotação com os skinheads.<br />

Falta-lhe um “bloco <strong>de</strong> direita”.<br />

Na JSD encontrou um espaço<br />

para exercer o gosto que tem<br />

pela política local, por isso “marca<br />

diferença”. Mas é no convívio das<br />

festas e <strong>do</strong>s congressos que vive o<br />

que <strong>de</strong> melhor há <strong>na</strong> jota.<br />

Para Pedro, as pessoas estão <strong>na</strong>s<br />

juventu<strong>de</strong>s políticas não “pela<br />

consciência cívica, nem partidária”,<br />

mas para “tentar arranjar<br />

um trabalhinho”. As jotas, os parti<strong>do</strong>s,<br />

“estão contami<strong>na</strong><strong>do</strong>s pelos<br />

interesses pessoais”, constata: “Na<br />

JSD há muitos militantes compra<strong>do</strong>s,<br />

outros que vêm para ajudar o<br />

amigo e que sabem que no caso <strong>de</strong><br />

esse amigo chegar mais longe também<br />

vão tirar parti<strong>do</strong> e há pessoas<br />

cujo trabalho é tirar gente das outras<br />

jotas, cacicagem”.<br />

“Empregos <strong>na</strong> política significam<br />

<strong>de</strong>semprego <strong>de</strong> 4 em 4<br />

anos”<br />

Na noite em que Guterres se <strong>de</strong>mitiu<br />

<strong>do</strong> Governo, António Dias,<br />

22 anos, entrou <strong>na</strong> Juventu<strong>de</strong> <strong>Social</strong>ista<br />

(JS). Diz que sempre foi,<br />

“Tanto quanto um miú<strong>do</strong> po<strong>de</strong><br />

ser”, <strong>de</strong> centro esquerda, “assim<br />

a arranhar o centro direita em<br />

questões <strong>de</strong> política económica”,<br />

um “traquejo” <strong>de</strong> família. Nos seus<br />

“momentos mais fervorosos <strong>de</strong> ímpeto<br />

político-juvenil”, andava com<br />

fichas <strong>de</strong> filiação no carro. Hoje,<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

SANDRO ARCANJO<br />

comissário político <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, uma<br />

função <strong>de</strong> “aconselhamento ao secretaria<strong>do</strong><br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l”, sente que o<br />

ânimo já arrefeceu: “São quatro<br />

anos <strong>de</strong> lutas inter<strong>na</strong>s, já não tenho<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> entrar em alguns car<strong>na</strong>vais”.<br />

Um <strong>de</strong>scrédito que é partilha<strong>do</strong><br />

com algumas pessoas da jota:<br />

“Dentro da JS há uma corrente que<br />

se pergunta se não seria melhor pegar<br />

numa vassoura e meter isto no<br />

caixote <strong>do</strong> lixo”.<br />

Uma das principais críticas que<br />

António faz é em relação à falta<br />

<strong>de</strong> discussão i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong>ntro da<br />

juventu<strong>de</strong>, que foi substituída pela<br />

caça ao voto. Sabe-se <strong>de</strong> militantes<br />

que filiam 50 pessoas numa sema<strong>na</strong>.<br />

António chama--lhes “máqui<strong>na</strong>s<br />

<strong>de</strong> filiação partidária”, mas<br />

esta engre<strong>na</strong>gem já não é surpresa<br />

para ninguém <strong>de</strong>ntro da jota. O estudante<br />

<strong>de</strong> Direito <strong>de</strong>fine-a como<br />

costume: “prática reiterada com<br />

convicção <strong>de</strong> obrigatorieda<strong>de</strong>”.<br />

[As jotas] “são uma<br />

escola <strong>de</strong> preparação e<br />

formação política, uma<br />

forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação ao<br />

parti<strong>do</strong>” – Pedro Moura<br />

Ferreira.<br />

“Sabemos perfeitamente que é<br />

muito difícil que essas 50 pessoas<br />

saibam o que estão a fazer e que<br />

possam contribuir activamente.<br />

Estamos a falar <strong>de</strong> votos”. E é com<br />

votos que se sobe <strong>na</strong> hierarquia.<br />

António aponta o <strong>de</strong><strong>do</strong> à excessiva<br />

preocupação <strong>de</strong> alguns militantes<br />

com o seu percurso pessoal <strong>na</strong> política:<br />

“Humm, se quero ser <strong>de</strong>puta<strong>do</strong><br />

daqui por uns anos, se quero<br />

ser assessor… não se iludam! É a<br />

JS, a JSD, a JP o melhor caminho.<br />

Nas jotas <strong>de</strong>senvolve-se uma re<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> contactos que, no mínimo, dará<br />

jeito”. Mas para “quem quer ter<br />

uma vida política activa haverá caminhos<br />

melhores <strong>do</strong> que as jotas”,<br />

nomeadamente, a filiação directa<br />

no parti<strong>do</strong>. “Nas juventu<strong>de</strong>s acabamos<br />

por nos focar mais em lutas inter<strong>na</strong>s”,<br />

afirma, lamentan<strong>do</strong> a falta<br />

da “componente <strong>de</strong> formação”.<br />

Por vezes, a se<strong>de</strong> pelo <strong>po<strong>de</strong>r</strong> po<strong>de</strong><br />

mesmo traduzir-se em situações<br />

irregulares. “No momento em que<br />

começamos a roçar, a aguçar ou<br />

a a<strong>do</strong>cicar o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> ambição<br />

<strong>de</strong> certas pessoas, alguns valores<br />

morais são <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>s para trás”.<br />

E António consegue lembrar-se<br />

<strong>de</strong> algumas situações “no mínimo<br />

alegais e não ilegais”. Ouvem-se<br />

histórias <strong>de</strong> casos “<strong>de</strong> coação pela<br />

força, <strong>de</strong> imprimir algum temor<br />

não só pela integrida<strong>de</strong> física <strong>do</strong><br />

alvo, mas também pela sua potencial<br />

carreira.” Ou <strong>de</strong> casos <strong>de</strong><br />

pessoas que “votaram 40 vezes”<br />

ou falsificaram assi<strong>na</strong>turas “com<br />

o consentimento <strong>de</strong> quem supostamente<br />

<strong>de</strong>veria assi<strong>na</strong>r. Infelizmente,<br />

<strong>de</strong>ntro da jota, estas coisas<br />

chocantes tor<strong>na</strong>m-se terça-feira”.<br />

Apesar <strong>de</strong> reconhecer que o curso<br />

<strong>de</strong> Direito é o “caminho <strong>na</strong>tural”<br />

para a política, António Dias não<br />

tem intenções <strong>de</strong> seguir carreira<br />

<strong>na</strong> área: “Empregos <strong>na</strong> política


8ª COLINA I JUNHO 2006 POLÍTICA 9<br />

<br />

significam <strong>de</strong>semprego, ou, pelo<br />

menos, instabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 4 em 4<br />

anos. E era preciso dar muito mais<br />

<strong>de</strong> mim à JS <strong>do</strong> que <strong>do</strong>u agora, era<br />

preciso ver e ser visto muito mais<br />

<strong>do</strong> que o que sou agora”.<br />

“O carreirismo político <strong>de</strong>svirtua<br />

a <strong>de</strong>mocracia”<br />

Em 2004, o então euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> PSD, Pacheco Pereira, veio a<br />

público criticar o carreirismo político<br />

promovi<strong>do</strong> pelas juventu<strong>de</strong>s<br />

partidárias. Hoje, a opinião mantém-se.<br />

Consi<strong>de</strong>ra que as jotas não<br />

só rejuvenescem os parti<strong>do</strong>s como<br />

são elas próprias instrumentos<br />

políticos com “efeitos muito perversos”.<br />

Para o historia<strong>do</strong>r e comenta<strong>do</strong>r,<br />

“o carreirismo político<br />

<strong>de</strong>svirtua a <strong>de</strong>mocracia, porque<br />

as pessoas têm <strong>de</strong> ter a liberda<strong>de</strong>,<br />

num parti<strong>do</strong>, <strong>de</strong> dizer que sim ou<br />

que não. Se esse parti<strong>do</strong> for o emprego<br />

das pessoas, raras vezes elas<br />

têm liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> dizer que não.”<br />

Mas o ataque não é cego. Pacheco<br />

Pereira reconhece que cada pessoa<br />

é um caso e aponta o <strong>de</strong><strong>do</strong> ape<strong>na</strong>s<br />

àqueles que “nunca tiveram<br />

uma profissão, nem dificulda<strong>de</strong>s<br />

em a arranjar, ou em ter dinheiro,<br />

ou uma casa, porque viveram<br />

sempre da política”. São jovens<br />

privilegia<strong>do</strong>s forma<strong>do</strong>s num “casulo<br />

partidário, que acabam por<br />

não conhecer o país e a realida<strong>de</strong>.<br />

Habituam-se a andar <strong>de</strong> carro com<br />

motorista, a ter um gabinete, secretárias<br />

e to<strong>do</strong>s os seus esforços<br />

acabam por ser para manter esta<br />

situação e não para exercer uma<br />

função útil para o país”.<br />

“A política utilitária é fruto<br />

<strong>do</strong>s nossos tempos”<br />

O carreirismo <strong>na</strong>s juventu<strong>de</strong>s partidárias<br />

é para o sociólogo Pedro<br />

Moura Ferreira um espelho <strong>do</strong> que<br />

acontece nos parti<strong>do</strong>s e cuja legi-<br />

“Se o parti<strong>do</strong> for o<br />

emprego das pessoas,<br />

raras vezes elas têm<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> dizer que<br />

não” – Pacheco Pereira<br />

timida<strong>de</strong> “é uma discussão que as<br />

<strong>de</strong>mocracias têm <strong>de</strong> ter”.<br />

Na sua opinião, “as jotas são uma<br />

antecâmara <strong>de</strong> voos mais altos, <strong>de</strong><br />

formação <strong>de</strong> quadros, <strong>de</strong> projecção”.<br />

Por essa razão, consi<strong>de</strong>ra que<br />

os parti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> governo motivam<br />

mais os jovens a entrar <strong>na</strong> política.<br />

“A política utilitária é fruto<br />

<strong>do</strong>s nossos tempos”, consi<strong>de</strong>ra.<br />

No entanto, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> referir<br />

que, numa altura em que “há um<br />

gran<strong>de</strong> distanciamento da política<br />

por parte <strong>do</strong>s jovens”, as jotas “são<br />

uma escola <strong>de</strong> preparação e formação<br />

política, uma forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação<br />

ao parti<strong>do</strong> e isso é positivo”.<br />

“Para quem vem para o tacho,<br />

escolher a JP é um caminho<br />

muito mais difícil”.<br />

Nuno van U<strong>de</strong>n, 23 anos, estuda Ciência<br />

Política <strong>na</strong> Universida<strong>de</strong> Lusíada.<br />

Filiou-se <strong>na</strong> Juventu<strong>de</strong> Popular<br />

(JP) aos 18 anos, “quan<strong>do</strong> já<br />

tinha uma base para <strong>de</strong>cidir”. Pelos<br />

valores, pelo discurso e pela maneira<br />

<strong>de</strong> fazer política: “Normalmente<br />

i<strong>de</strong>ntificam-se as jotas com aquilo<br />

que a JCP [Juventu<strong>de</strong> Comunista<br />

Portuguesa] faz… é a mais infiltrada<br />

no meio universitário, com cartazes<br />

em tu<strong>do</strong> o que é universida<strong>de</strong>.<br />

Nós não achamos que os jovens e<br />

as associações académicas <strong>de</strong>vam<br />

servir <strong>de</strong> mar-keting para as juven-<br />

tu<strong>de</strong>s partidárias. Devemos apoiar<br />

mas nunca exigir a nossa marca”.<br />

Para Nuno, os jovens hoje em dia<br />

estão mais <strong>de</strong>sinteressa<strong>do</strong>s, sobretu<strong>do</strong><br />

pela política e, por isso, são<br />

“facilmente agarra<strong>do</strong>s por jotas ou<br />

por parti<strong>do</strong>s que têm slogans e uma<br />

campanha mais… sexy”.<br />

Sabe que existem os militantes activos,<br />

“com espírito crítico”, e os<br />

que não o são, mas afirma que to<strong>do</strong>s<br />

têm o seu papel <strong>na</strong> jota. Estes<br />

últimos são quem faz “o trabalho<br />

chato que é preciso fazer”, como o<br />

das campanhas eleitorais.<br />

Diz que quer ser a<strong>na</strong>lista político<br />

e não fecha a porta a uma oportunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> exercer política para ver<br />

aquilo que está “a a<strong>na</strong>lisar”, mas<br />

assegura que a JP não é o melhor<br />

caminho para “o tacho”: “porque<br />

somos uma juventu<strong>de</strong> partidária<br />

peque<strong>na</strong>, um parti<strong>do</strong> pequeno. Escolher<br />

a JP é um caminho muito<br />

mais difícil <strong>do</strong> que uma JSD ou JS.<br />

Para o bem e para o mal.”<br />

“Nos parti<strong>do</strong>s mais pequenos<br />

não há <strong>na</strong>da para ganhar”<br />

João Calviño tem 21 anos e estuda<br />

Audiovisual e Multimédia <strong>na</strong><br />

<strong>Escola</strong> <strong>Superior</strong> <strong>de</strong> <strong>Comunicação</strong><br />

<strong>Social</strong>. Começou por acompanhar<br />

os pais a reuniões e à Festa <strong>do</strong><br />

Avante! e foi meio caminho anda<strong>do</strong><br />

para entrar <strong>na</strong> JCP. Desempenhou<br />

um papel activo durante seis anos.<br />

Agora “funcio<strong>na</strong> um boca<strong>do</strong> por<br />

responsabilida<strong>de</strong>s”, mas o próximo<br />

“passo lógico” é filiar-se no parti<strong>do</strong>,<br />

“por uma questão <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong>”.<br />

O que mais o atrai é a discussão <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ias, a política em si, que, <strong>na</strong> sua<br />

opinião, po<strong>de</strong> ir <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a conversa<br />

com o vizinho porque o eleva<strong>do</strong>r<br />

funcio<strong>na</strong> mal, até à queixa ao presi<strong>de</strong>nte<br />

da Junta <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à falta <strong>de</strong><br />

lugares para estacio<strong>na</strong>mento. E <strong>na</strong><br />

SARA MATOS<br />

JCP, garante, discute-se muita política:<br />

“há cursos i<strong>de</strong>ológicos on<strong>de</strong><br />

existe um <strong>de</strong>bate, há o trabalho<br />

<strong>de</strong> preparação <strong>do</strong>s congressos, e,<br />

sempre que sai uma política nova,<br />

tentamos fazer uma análise e perceber<br />

os prós e contras e como é<br />

que vamos marcar a nossa posição<br />

em relação aos contras”.<br />

Para João, quem está <strong>na</strong>s jotas<br />

“<strong>de</strong>stes parti<strong>do</strong>s mais pequenos,<br />

à esquerda” está por convicção.<br />

“Não po<strong>de</strong> ser um tacho porque<br />

não há sítio para on<strong>de</strong> ir. Não há<br />

<strong>na</strong>da para ganhar!”.<br />

No PCP, afirma não haver políticos<br />

profissio<strong>na</strong>is, “<strong>na</strong> óptica <strong>de</strong> ‘eu<br />

vou fazer carreira <strong>na</strong> política’. Não<br />

são pessoas que aos 23 anos, mal<br />

acabam o curso, começam a ser<br />

pagos profissio<strong>na</strong>lmente <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong><br />

parti<strong>do</strong> e fazem to<strong>do</strong> o seu percurso<br />

como seus funcionários. Há os que<br />

trabalham activamente <strong>na</strong> política,<br />

mas quase que garanto que o fazem<br />

por gosto, acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>”.<br />

“As jotas não servem para<br />

<strong>na</strong>da”<br />

Re<strong>na</strong>to Ribeiro, 27 anos, começou<br />

por estudar Gestão e agora está em<br />

História. Quan<strong>do</strong> entrou <strong>na</strong> faculda<strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificou-se com o projecto<br />

“Há pessoas cujo<br />

trabalho é tirar gente<br />

das outras jotas,<br />

cacicagem” – Pedro<br />

Morais<br />

da JS, on<strong>de</strong> esteve três anos, apesar<br />

<strong>de</strong> nunca ter si<strong>do</strong> militante <strong>do</strong> PS.<br />

Acabou por se <strong>de</strong>siludir com a falta<br />

<strong>de</strong> uma oposição crítica: “só se era<br />

contra as i<strong>de</strong>ias <strong>do</strong>s outros por serem<br />

<strong>do</strong>s outros”. Hoje faz parte <strong>do</strong><br />

grupo <strong>de</strong> jovens <strong>do</strong> BE, que não tem<br />

uma juventu<strong>de</strong> partidária organizada<br />

como nos outros parti<strong>do</strong>s.<br />

Para Re<strong>na</strong>to isto é positivo, porque<br />

consi<strong>de</strong>ra que as jotas “não servem<br />

para <strong>na</strong>da”, senão para ganhar<br />

“certos vícios que, vistos <strong>de</strong> fora,<br />

só prejudicam”. No futuro, não tem<br />

ambição <strong>de</strong> chegar a um “lugar específico”,<br />

mas “gostava <strong>de</strong> ser reconheci<strong>do</strong>,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que fosse por mérito<br />

próprio.” Afi<strong>na</strong>l, “toda a gente<br />

gostava <strong>de</strong> ser reconhecida”.<br />

<br />

SANDRO ARCANJO


10 POLÍTICA<br />

EDITORIAL<br />

por Paulo Moura<br />

Um jor<strong>na</strong>l é<br />

mais <strong>do</strong> que<br />

um jor<strong>na</strong>l<br />

Um jor<strong>na</strong>l <strong>de</strong>ve ser um laboratório.<br />

Um think-tank, uma agência <strong>de</strong> <strong>de</strong>tectives,<br />

uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> explora<strong>do</strong>res,<br />

um grupo <strong>de</strong> guerrilha, uma<br />

seita <strong>de</strong> visionários, um coman<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> operações especiais, um gabinete<br />

<strong>de</strong> investigação, um centro <strong>de</strong><br />

escutas, um posto <strong>de</strong> observação,<br />

uma câmara <strong>de</strong> interrogatórios, um<br />

serviço <strong>de</strong> urgências, uma sala <strong>de</strong><br />

cirurgia, um divã <strong>de</strong> psicanálise, um<br />

clube <strong>de</strong> meditação.<br />

Um jor<strong>na</strong>l não po<strong>de</strong> ser ape<strong>na</strong>s<br />

um jor<strong>na</strong>l. Ou acabará a embrulhar<br />

castanhas, a forrar gavetas. Já<br />

poucos precisam <strong>de</strong>le. Uns lêem-no<br />

por hábito ou con<strong>de</strong>scendência, outros<br />

folheiam-no sem o ler, outros<br />

diminuem-se, para <strong>po<strong>de</strong>r</strong>em continuar<br />

a ler. Privam-se, <strong>de</strong>sistem,<br />

por comodismo. Conformam-se ao<br />

seu jor<strong>na</strong>l, que circunscreve o seu<br />

mun<strong>do</strong>. Limita o seu mun<strong>do</strong>. Ora<br />

acontece que é preciso agir. Um<br />

jor<strong>na</strong>l tem <strong>de</strong> partir à aventura.<br />

É preciso pôr tu<strong>do</strong> em questão.<br />

Não aceitar a realida<strong>de</strong> como nos é<br />

apresentada, mas interrogá-la nos<br />

seus fundamentos. Olhá-la como<br />

se fosse a primeira vez. Com toda<br />

a estranheza.<br />

O 8ª Coli<strong>na</strong> procura esse caminho.<br />

Olhar a política não pelos enre<strong>do</strong>s<br />

construi<strong>do</strong>s pelos próprios políticos,<br />

mas para além <strong>de</strong>les. Tentámos<br />

perceber <strong>de</strong> que massa é feita a<br />

política e os políticos. Investigámos<br />

as juventu<strong>de</strong>s partidárias: são escolas<br />

<strong>de</strong> formação para a vida pública?<br />

São fóruns <strong>de</strong> participação social<br />

para os jovens? São trampolins para<br />

carreiras <strong>de</strong> oportunismo? Os nossos<br />

repórteres interrogaram, confrontaram,<br />

problematizaram.<br />

Radiografámos também o mun<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong>s <strong>lóbi</strong>s em Bruxelas. Como actuam<br />

os grupos <strong>de</strong> pressão <strong>na</strong> capital<br />

europeia? Quem tem <strong>po<strong>de</strong>r</strong> real e<br />

influencia as <strong>de</strong>cisões comunitárias,<br />

para além <strong>do</strong>s comissários e<br />

<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s eleitos? Os nossos “correspon<strong>de</strong>ntes<br />

inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is” no local<br />

foram tentar perceber como se<br />

organiza to<strong>do</strong> este sistema.<br />

Averiguámos ainda o fenómeno<br />

<strong>do</strong>s “skinheads” vermelhos e a sua<br />

relação com a consciência política<br />

e <strong>de</strong> classe, com a exclusão, a pertença<br />

e as tribos urba<strong>na</strong>s. Estudámos<br />

os mecanismos sociais e psicológicos<br />

<strong>do</strong> êxito no caso <strong>de</strong> um<br />

campeão <strong>de</strong> kickboxing oriun<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

um bairro pobre.<br />

Fizémos experiências. Um estudante<br />

<strong>de</strong> jor<strong>na</strong>lismo tem hoje essa<br />

obrigação. Não basta apren<strong>de</strong>r os<br />

saberes feitos. Porque um jor<strong>na</strong>l<br />

tem <strong>de</strong> ser mais <strong>do</strong> que um jor<strong>na</strong>l e<br />

é preciso estar à altura <strong>do</strong> <strong>de</strong>safio.<br />

Os leitores exigem-no: on<strong>de</strong> estão<br />

os jor<strong>na</strong>listas quan<strong>do</strong> precisamos<br />

<strong>de</strong>les? •<br />

PERFIL • HUGO XAMBRE PEREIRA<br />

“Não dispenso as<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

minhas saídas à noite”<br />

<br />

<br />

SÍLVIA CARVALHO<br />

VERA ESTEVES<br />

Quem o vê <strong>na</strong> rua não imagi<strong>na</strong> o cargo que <strong>de</strong>sempenha.<br />

Com um ar informal <strong>de</strong> quem dispensa<br />

um nó <strong>de</strong> gravata ao pescoço, recebe todas<br />

as quintas-feiras os eleitores que queiram<br />

esclarecer alguma dúvida ou expor um problema<br />

<strong>do</strong> bairro. Acessível e hospitaleiro, tenta<br />

ajudar no que for preciso. Com ar <strong>de</strong> “menino<br />

bem comporta<strong>do</strong>”, Hugo Xambre Pereira não<br />

faz as coisas <strong>de</strong> forma linear. Revelou-se um<br />

homem que segue caminhos inversos.<br />

Ao contrário. Hugo Xambre parece não seguir<br />

o rumo normal das pessoas da sua ida<strong>de</strong>.<br />

Os jovens não se interessam por política. Ele<br />

sempre se interessou porque as pessoas à sua<br />

volta a discutiam. E fez parte das Associações<br />

<strong>de</strong> Estudantes das escolas on<strong>de</strong> an<strong>do</strong>u.<br />

Ao contrário. Hugo Xambre não quer fazer<br />

carreira <strong>na</strong> política. Nem <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> quem o<br />

faça. Aliás, tem uma visão bem <strong>de</strong>finida daquilo<br />

que quer: “sempre achei que a política<br />

não <strong>de</strong>via ser uma coisa contínua. Não<br />

sei se me vou recandidatar daqui a quatro<br />

anos. Essa não é a minha priorida<strong>de</strong>. A minha<br />

priorida<strong>de</strong> é resolver os problemas <strong>do</strong><br />

bairro”. Assim, consi<strong>de</strong>ra os estu<strong>do</strong>s uma<br />

segurança para a sua vida futura.<br />

Ao contrário. Os amigos <strong>de</strong> Hugo vêem<br />

como única vantagem da presidência da<br />

Junta o facto <strong>de</strong> ter o telemóvel pago. No<br />

entanto, este presi<strong>de</strong>nte não consi<strong>de</strong>ra isso<br />

uma coisa positiva, já que “se esquecem<br />

que esse mesmo telemóvel está sempre a<br />

tocar”, esclarece sorri<strong>de</strong>nte.<br />

Ao contrário. Quem se interessa por questões<br />

políticas e se i<strong>de</strong>ntifica com uma <strong>do</strong>utri<strong>na</strong>,<br />

inscreve-se <strong>na</strong> juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um parti<strong>do</strong>.<br />

Xambre optou pelo caminho oposto: alistou-<br />

se primeiro no Parti<strong>do</strong> <strong>Social</strong>ista <strong>na</strong> secção<br />

<strong>do</strong> Alto Pi<strong>na</strong>, em 2002. Só mais tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>cidiu<br />

juntar-se à Juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta força política.<br />

Ao contrário. Até a nível <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia não<br />

se <strong>de</strong>ixou influenciar. O actual Presi<strong>de</strong>nte<br />

da Junta <strong>do</strong> Beato i<strong>de</strong>ntificou-se com os valores<br />

socialistas, mas o facto <strong>de</strong> os pais “não<br />

serem propriamente <strong>do</strong> PS” não o impediu<br />

<strong>de</strong> seguir as suas próprias convicções.<br />

Uma <strong>de</strong>stas convicções recai sobre a influência<br />

da política <strong>na</strong>s causas sociais: fez voluntaria<strong>do</strong><br />

no Banco Alimentar Contra a Fome<br />

e <strong>de</strong>u explicações gratuitas a quem não tinha<br />

recursos. Esta experiência fez com que criasse<br />

agora no Beato salas <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> acompanha<strong>do</strong><br />

em troca <strong>de</strong> quantias simbólicas.<br />

Mora<strong>do</strong>r há oito anos no Beato, Hugo Xambre<br />

Pereira associa a sua vitória ao facto <strong>de</strong> ter<br />

concorri<strong>do</strong> pelo PS e acredita que “se tives-<br />

Deu explicações gratuitas<br />

a quem não tinha recursos.<br />

Isto fê-lo criar no Beato salas<br />

<strong>de</strong> estu<strong>do</strong> acompanha<strong>do</strong> em<br />

troca <strong>de</strong> quantias simbólicas.<br />

se si<strong>do</strong> candidato <strong>de</strong> outro parti<strong>do</strong> não teria<br />

ganho. As pessoas votam em marcas [parti<strong>do</strong>s]<br />

e não em caras”. As pessoas queriam<br />

mudança. Ele não acredita que a sua ida<strong>de</strong> o<br />

tenha prejudica<strong>do</strong>. Mas tinha consciência <strong>de</strong><br />

que podia estar a “abrir um flanco para que a<br />

campanha adversária dissesse ‘é um puto’”.<br />

Mas este “puto” também gosta da área cientí-<br />

<br />

“Já não consigo ter conversas<br />

<strong>de</strong> café. Tenho conhecimento<br />

das coisas mais por <strong>de</strong>ntro<br />

e consigo explicar as<br />

especulações <strong>do</strong>s meus<br />

amigos” - Hugo Xambre<br />

Pereira<br />

fica e está quase a termi<strong>na</strong>r o curso <strong>de</strong> Engenharia<br />

Química, no Instituto <strong>Superior</strong> Técnico.<br />

Apesar <strong>de</strong> faltarem algumas ca<strong>de</strong>iras,<br />

o curso <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser priorida<strong>de</strong>. A política<br />

académica também ficou a per<strong>de</strong>r: não lhe<br />

resta tempo para este género <strong>de</strong> activida<strong>de</strong>s.<br />

Sobre os tempos livres, Hugo Xambre foi<br />

firme <strong>na</strong> resposta: “não dispenso das minhas<br />

saídas à noite. Já avisei os meus colegas<br />

da assembleia que à sexta-feira temos<br />

<strong>de</strong> acabar mais ce<strong>do</strong>, para aproveitarmos<br />

a noite”. Lê livros sobre direito, gestão e<br />

urbanismo, áreas que lhe interessam e que<br />

lhe são úteis no seu dia-a-dia.<br />

Até nos seus tempos livres está associa<strong>do</strong><br />

a questões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m política: intervém a<br />

nível interno no PS e em Comissões <strong>de</strong> Mora<strong>do</strong>res.<br />

“Já não consigo ter conversas <strong>de</strong><br />

café. Tenho conhecimento das coisas mais<br />

por <strong>de</strong>ntro e consigo explicar as especulações<br />

<strong>do</strong>s meus amigos que me procuram<br />

para saber a minha opinião sobre algo”.<br />

Hugo Xambre Pereira tem a política a correr-lhe<br />

<strong>na</strong>s veias. Em nenhum tópico sugeri<strong>do</strong><br />

pelo 8ª coli<strong>na</strong>, este jovem autarca<br />

conseguiu esquecer-se <strong>de</strong>la.<br />

SÍLVIA ALEXANDRE


8ª COLINA I JUNHO 2006 ENSINO 11<br />

ENSINAR A ARTE DE MISTURAR SOM<br />

DJ’ing<br />

<br />

<br />

PEDRO ORGANIZA PEQ<strong>UE</strong>NOS CURSOS DE COMO SER UM<br />

<br />

VÂNIA SANTOS uma profissão, compreen<strong>de</strong>, en-<br />

Está vermelho! É agora, a seguir<br />

aos si<strong>na</strong>is. Sobe-se a rampa. Na<br />

Nacio<strong>na</strong>l 10, ao chegar à Póvoa<br />

<strong>de</strong> Santa Iria, os carros já se<br />

amontoam, <strong>na</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> chegar<br />

<strong>de</strong>pressa a casa. O parque<br />

<strong>de</strong> estacio<strong>na</strong>mento já começa a<br />

estar cheio. É um mal comum<br />

nesta zo<strong>na</strong>. Ao entrar, é-se invadi<strong>do</strong><br />

por uma sensação <strong>de</strong> vazio.<br />

Permanecem os vestígios da<br />

festa tardia, <strong>na</strong> noite anterior,<br />

como algumas ca<strong>de</strong>iras fora <strong>do</strong><br />

lugar, beatas no lixo, garrafas <strong>de</strong><br />

cerveja vazias <strong>na</strong> gra<strong>de</strong> por trás<br />

<strong>do</strong> balcão. Mas os copos já estão<br />

lava<strong>do</strong>s. Já são sete da tar<strong>de</strong>, e<br />

há que arrumar as coisas para<br />

receber os clientes. É aqui, no<br />

Beat bar, que o DJ Pedro Diaz,<br />

Dias para os amigos, fala sobre<br />

as aulas que dá, há cerca <strong>de</strong> sete<br />

meses, a alguns jovens, geralmente<br />

entre os 16 e os 23 anos,<br />

mas abertas a to<strong>do</strong>s aqueles<br />

que queiram conhecer a arte <strong>de</strong><br />

DJ’ing. Esta arte, para muitos<br />

INÊS CHARRUA<br />

A sala é peque<strong>na</strong> e tem um quadro<br />

preto ao fun<strong>do</strong>. Senta<strong>do</strong> numa<br />

ca<strong>de</strong>ira, está o Lourenço. Faz um<br />

<strong>de</strong>senho. Sozinho. É o único menino<br />

<strong>na</strong> sala. Na secretária ao fun<strong>do</strong>,<br />

está a professora, Leonor. Mas Leonor<br />

não é uma professora qualquer,<br />

é também sua tia. O Lourenço é<br />

ape<strong>na</strong>s uma das muitas crianças<br />

que ela já ensinou ao longo <strong>de</strong> mais<br />

<strong>de</strong> vinte anos <strong>de</strong> profissão, entre os<br />

quais os seus <strong>do</strong>is filhos.<br />

Na folha <strong>de</strong> papel branca os rabiscos<br />

mal se percebem. A professora<br />

segura a mão <strong>do</strong> pequeno e tenta<br />

ensiná-lo a fazer os <strong>de</strong>senhos.<br />

“Lourenço, tens <strong>de</strong> agarrar assim<br />

no lápis”, diz. Lourenço frequenta<br />

o Ensino Particular Doméstico,<br />

que consiste em ensi<strong>na</strong>r crianças<br />

em casa, em vez <strong>de</strong> estas frequentarem<br />

uma escola convencio<strong>na</strong>l.<br />

No caso <strong>de</strong> Leonor, as aulas só são<br />

dadas até ao 4º ano <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong>.<br />

“É um ensino como tantos outros,<br />

apren<strong>de</strong>-se exactamente o mesmo,<br />

a única diferença é que quan<strong>do</strong> chegam<br />

ao fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> 4º ano as crianças<br />

são submetidas a um exame numa<br />

escola pertencente à área escolar<br />

que frequentam. Quem <strong>de</strong>termi<strong>na</strong><br />

é a <strong>de</strong>legação escolar”, explica.<br />

Apesar <strong>de</strong> ser uma prática pouco<br />

comum, a professora confessa<br />

não ter ti<strong>do</strong> entraves <strong>na</strong> opção<br />

que escolheu e que várias vezes<br />

a procuraram pais dispostos a pagarem-lhe<br />

pelo ensino <strong>do</strong>s filhos.<br />

tre outras coisas, o conhecer as<br />

velocida<strong>de</strong>s das músicas (BPM,<br />

ou, batidas por minuto) para<br />

<strong>po<strong>de</strong>r</strong> misturá-las, a mixagem,<br />

usan<strong>do</strong> o vinil, cd’s ou arquivos<br />

digitais sonoros. Um<br />

Disco Jockey (DJ)<br />

<strong>de</strong>ve, para isso, conhecer<br />

diferentes<br />

estilos <strong>de</strong> música e<br />

todas as técnicas e<br />

materiais relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s<br />

com o som.<br />

Em suma, o gran<strong>de</strong><br />

objectivo, como testemunha<br />

o Pedro “é<br />

fazer as pessoas dançarem,divertiremse,<br />

libertarem-se e<br />

gostarem”.<br />

Apesar <strong>de</strong> acreditar<br />

em to<strong>do</strong> o valor <strong>de</strong><br />

uma formação, o Pedro<br />

tornou-se DJ <strong>de</strong><br />

forma auto-didacta,<br />

trei<strong>na</strong>n<strong>do</strong> em casa<br />

com um amplifica<strong>do</strong>r,<br />

Quan<strong>do</strong> a escola é em casa<br />

HÁ CRIANÇAS Q<strong>UE</strong> NÃO VÃO À ESCOLA: APRENDEM EM CASA. OS PAIS SENTEM-SE MAIS<br />

<br />

Os alunos não eram muitos, mas<br />

foram os suficientes para <strong>de</strong>ixar<br />

boas recordações. Dos que teve,<br />

mantém contacto com muitos:<br />

“Ainda hoje alguns, que já são<br />

adultos, me vêm visitar. Até vou<br />

aos casamentos <strong>de</strong>les”, conta com<br />

um sorriso. Diz que to<strong>do</strong>s a marcaram<br />

por razões especiais, no<br />

entanto, os filhos são os alunos<br />

que nunca esquecerá, e uma das<br />

razões <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ntes para começar<br />

a dar aulas em casa: “Eu<br />

já dava aulas e explicações antes<br />

<strong>de</strong> casar, só que <strong>de</strong>pois fiquei grávida,<br />

e optei por ficar em casa a<br />

tempo inteiro para não ter <strong>de</strong> me<br />

separar <strong>do</strong>s meus filhos. Não queria<br />

per<strong>de</strong>r o crescimento <strong>de</strong>les”.<br />

A experiência foi magnífica, embora<br />

muitos a criticassem. “Algumas<br />

pessoas dizem que eu protegi <strong>de</strong>mais<br />

os meus filhos e que isso não<br />

estava correcto. Diziam que eu tinha<br />

<strong>de</strong> os <strong>de</strong>ixar viver como as outras<br />

crianças. É verda<strong>de</strong> que eu os<br />

protegia, mas isso também não foi<br />

assim tão mau para eles”. Não ligan<strong>do</strong><br />

às críticas, a professora conseguiu<br />

assim conjugar aquilo a que<br />

gira-discos e uma mesa <strong>de</strong> mistura,<br />

que ele próprio comprou, começan<strong>do</strong><br />

a tocar em peque<strong>na</strong>s festas,<br />

para os amigos. O curso <strong>de</strong> mistura<br />

e sequenciação <strong>na</strong> <strong>Escola</strong> Técnica<br />

<strong>de</strong> Imagem e <strong>Comunicação</strong> (ETIC)<br />

veio mais tar<strong>de</strong>, ao sentir a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> progredir enquanto DJ<br />

e mesmo para <strong>de</strong>senvolver outros<br />

projectos, como uma editora musical,<br />

a Loop 128 Records, on<strong>de</strong> é<br />

necessário avaliar o trabalho daqueles<br />

que sonham com o mun<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> DJ’ing.<br />

Com as suas ma<strong>de</strong>ixas louras,<br />

alguns piercings, roupa casual,<br />

ar <strong>de</strong>scontraí<strong>do</strong> e bem disposto,<br />

o papel <strong>de</strong> um professor rígi<strong>do</strong><br />

fica só para as aulas, que se prolongam<br />

por <strong>do</strong>is meses, e que<br />

chama “<strong>do</strong>is em um”: ganhar o suficiente<br />

para a família e estar perto<br />

<strong>do</strong>s filhos. O trabalho era muito,<br />

mas a própria garante que valeu a<br />

pe<strong>na</strong>: “Trabalhei muito, mas posso-me<br />

orgulhar <strong>de</strong> ter ensi<strong>na</strong><strong>do</strong> os<br />

meus filhos e <strong>de</strong> ter presencia<strong>do</strong> os<br />

melhores anos da vida <strong>de</strong>les”. O fi-<br />

Apesar <strong>de</strong> ser uma<br />

prática pouco comum,<br />

a professora confessa<br />

não ter ti<strong>do</strong> entraves <strong>na</strong><br />

opção que escolheu.<br />

lho, Ber<strong>na</strong>r<strong>do</strong>, agora com 18 anos,<br />

recorda com sauda<strong>de</strong>s o tempo em<br />

que aprendia a ler e escrever no<br />

“conforto <strong>do</strong> lar”: “Às vezes tenho<br />

sauda<strong>de</strong>s, era tu<strong>do</strong> muito diferente<br />

e não havia a malda<strong>de</strong> que há entre<br />

as crianças <strong>na</strong>s outras escolas.”<br />

Quan<strong>do</strong> questio<strong>na</strong><strong>do</strong> sobre uma<br />

possível distinção entre a irmã,<br />

ele e os colegas, a resposta é directa:<br />

“A minha mãe nunca fez distinção<br />

nem me facilitava mais a mim<br />

ou à minha irmã. Éramos to<strong>do</strong>s<br />

possibilitam os primeiros passos<br />

acompanha<strong>do</strong>s no mun<strong>do</strong> nocturno<br />

da música. Os estilos que<br />

apren<strong>de</strong>m são varia<strong>do</strong>s: house,<br />

techno ou trance. Nas aulas, os<br />

aspirantes a DJ’s vêem filmes e<br />

<strong>do</strong>cumentários sobre mixagem<br />

ou actuações em palco <strong>de</strong> DJ’s <strong>de</strong><br />

renome, experimentam a mistura<br />

<strong>de</strong> temas, <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong> lenta,<br />

para se iniciarem nesta arte e<br />

paixão. A avaliação, por agora,<br />

é feita com testes teóricos, mas<br />

mais tar<strong>de</strong> será feita pelo público,<br />

pelos <strong>do</strong>nos das discotecas e<br />

por to<strong>do</strong>s os gran<strong>de</strong>s profissio<strong>na</strong>is<br />

<strong>do</strong> DJ’ing. Ainda assim, e<br />

como as aulas <strong>de</strong>correm num<br />

bar, os aprendizes experimentam<br />

a reacção <strong>do</strong> público ao seu<br />

<br />

VÂNIA SANTOS<br />

iguais”, diz. A professora concorda:<br />

“Da porta <strong>de</strong> casa para fora era<br />

a mãe, da porta da sala para <strong>de</strong>ntro<br />

era a professora”. Quan<strong>do</strong> chegou<br />

a altura <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> escola, a integração<br />

foi difícil: “Eu não estava<br />

acostuma<strong>do</strong> a dizer as asneiras<br />

que os outros diziam, nem sabia<br />

certas coisas que eles sabiam”,<br />

comenta. Para Leonor a dificulda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> adaptação não se <strong>de</strong>ve só ao<br />

facto <strong>de</strong> se ter esta<strong>do</strong> numa escola<br />

diferente. “É frequente em casos<br />

<strong>de</strong>ste tipo a integração ser difícil,<br />

no entanto, isso varia <strong>de</strong> criança<br />

para criança. É um ambiente<br />

novo, com outras crianças, e como<br />

se sabe, os miú<strong>do</strong>s são muito cruéis<br />

uns com os outros”, diz.<br />

Para os pais, as mais valias são<br />

“mais que muitas”. Estão dispostos<br />

a pagar a alguém que possa per<strong>de</strong>r<br />

tempo e atenção com os filhos. O<br />

apoio emocio<strong>na</strong>l e atenção <strong>de</strong>dicada<br />

às crianças são pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntes<br />

<strong>na</strong> escolha, assim como a fraca qualida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ensino <strong>na</strong>s escolas. “Muitos<br />

(pais) vêm ter comigo porque<br />

os filhos não apren<strong>de</strong>m <strong>na</strong>da <strong>na</strong>s<br />

escolas, e por isso querem alguém<br />

trabalho, pon<strong>do</strong> música às sextas<br />

e sába<strong>do</strong>s à noite. “Eles são tími<strong>do</strong>s,<br />

têm me<strong>do</strong>, estão aqui no<br />

bar com umas cem pessoas e as<br />

mãos tremem, como me aconteceu<br />

a primeira vez que toquei a<br />

sério, em que nem olhava para<br />

a pista… estava extremamente<br />

nervoso, tinha seiscentas pessoas<br />

à minha frente, numa festa a<br />

sério, com o Luís Leite, e outros,<br />

pessoas que eu olhava como fã”,<br />

lembra o Pedro, com um sorriso<br />

rasga<strong>do</strong> e olhos perdi<strong>do</strong>s no<br />

tempo. No meio das lembranças,<br />

vai contan<strong>do</strong> que é importante<br />

experimentar outras realida<strong>de</strong>s,<br />

como lhe aconteceu, durante os<br />

quatro anos que viveu <strong>na</strong> Suécia,<br />

em que contactou com outros estilos<br />

musicais, como o eurotrance.<br />

Pedro promete que estas aulas<br />

não ficam por aqui: “Quan<strong>do</strong> tiver<br />

uma verda<strong>de</strong>ira escola, sei<br />

que vou ter mais alunos e posso<br />

apresentar um projecto <strong>na</strong> câmara<br />

municipal para tirar os miú<strong>do</strong>s<br />

das drogas, já que po<strong>de</strong>m vir<br />

aqui tirar cursos… aí farei preços<br />

mais reduzi<strong>do</strong>s e posso fazer outros<br />

projectos neste meio”.<br />

Olhan<strong>do</strong> para o relógio, que<br />

aponta agora para as oito, o Pedro<br />

apercebe-se que está <strong>na</strong> hora<br />

<strong>de</strong> pôr as cervejas no frigorífico<br />

para logo. Fecha-se a porta. Mais<br />

uma hora e o bar está aberto,<br />

para os clientes que vêm jogar<br />

matraquilhos, beber um copo,<br />

falar com os amigos. As aulas ficam<br />

para amanhã.<br />

que possa per<strong>de</strong>r tempo com eles”,<br />

diz Leonor. A falta <strong>de</strong> segurança<br />

nos estabelecimentos <strong>de</strong> ensino<br />

é outro motivo que leva os pais a<br />

preferirem o ensino particular <strong>do</strong>méstico,<br />

principalmente quan<strong>do</strong><br />

as crianças têm dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> integração<br />

e <strong>de</strong> concentração.<br />

Actualmente, Rute frequenta o 7º<br />

ano, mas antes passou os primeiros<br />

anos <strong>de</strong> infância com Leonor, até ir<br />

para o 5º ano. Rute sabe que a sua<br />

“eter<strong>na</strong>” professora é alguém com<br />

quem po<strong>de</strong> sempre contar. “Ainda<br />

a venho visitar, costumamos falar<br />

pela Internet. A minha professora<br />

conhece-me melhor <strong>do</strong> que a minha<br />

mãe”, diz com um sorriso.<br />

Actualmente, Leonor <strong>de</strong>dica-se inteiramente<br />

ao sobrinho <strong>de</strong> ape<strong>na</strong>s<br />

4 anos e a algumas explicações. Se<br />

<strong>po<strong>de</strong>r</strong>á vir a ensiná-lo tal como o fez<br />

com outras crianças, a resposta é<br />

clara: “Prefiro que ele esteja aqui e<br />

aprenda realmente bem. Fico mais<br />

<strong>de</strong>scansada e segura”. Não se sabe<br />

como será o futuro <strong>de</strong> Lourenço,<br />

nem como será a sua integração<br />

numa outra escola, mas certamente<br />

se sabe que irá guardar <strong>na</strong> memória<br />

as recordações da tia – professora.<br />

Longe vão os tempos em que<br />

Ber<strong>na</strong>r<strong>do</strong> e Rute ali se sentaram. As<br />

recordações são boas: os amigos, os<br />

passeios pelo parque e pelo campo,<br />

até mesmo os “raspanetes” da professora.<br />

Recordações <strong>de</strong> uma escola<br />

que como Ber<strong>na</strong>r<strong>do</strong> diz é uma “escola<br />

como tantas outras”.


12 MUNDO<br />

LÓBIS<br />

Bruxelas, capital<br />

europeia <strong>do</strong> <strong>lóbi</strong><br />

<br />

<br />

<br />

<br />

OS LÓBIS NA CAPITAL DA EUROPA.<br />

TERESA MOURÃO FERREIRA<br />

ANTÓNIO VIEIRA<br />

CORRESPONDENTES EM BRUXELAS<br />

Bruxelas, uma tar<strong>de</strong> como tantas<br />

outras. Sob um céu cinzento e<br />

triste per<strong>de</strong>-se a conta <strong>do</strong>s vultos<br />

que pelas ruas <strong>de</strong>ambulam. Estamos<br />

em pleno Bairro Europeu.<br />

Este foi outrora conheci<strong>do</strong> por<br />

Quartier Leopold, uma elegante<br />

zo<strong>na</strong> resi<strong>de</strong>ncial da cida<strong>de</strong>, planeada<br />

à semelhança <strong>do</strong> Bloomsbury<br />

londrino, com diversos<br />

edifícios Arte Nova, que praticamente<br />

<strong>de</strong>sapareceram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

Bruxelas se tornou a capital da<br />

vida europeia. Hoje, encontramse<br />

aqui, entre a Avenue <strong>de</strong>s Arts<br />

e o Parc du Cinquente<strong>na</strong>ire, não<br />

só gran<strong>de</strong>s centros mundiais <strong>de</strong><br />

<strong>po<strong>de</strong>r</strong> como também as se<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

milhares <strong>de</strong> instituições que os<br />

procuram influenciar. O fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong><br />

dia é aproveita<strong>do</strong> ao máximo por<br />

estas estruturas para dar a conhecer<br />

aos órgãos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão os<br />

seus pontos <strong>de</strong> vista.<br />

Do Parlamento saem em romaria<br />

alguns <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s. Dirigem-se ao<br />

Hotel Resi<strong>de</strong>nce, on<strong>de</strong> em poucos<br />

minutos entrarão num outro<br />

mun<strong>do</strong>, numa realida<strong>de</strong> que não<br />

é a sua… por enquanto. Com um<br />

cocktail generoso, num ambiente<br />

<strong>de</strong>scontraí<strong>do</strong> e informal, a European<br />

Internet Foundation (EIF)<br />

apresenta aos que vão chegan<strong>do</strong><br />

as últimas invenções tecnológicas<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da comunicação.<br />

Televisores ambulantes ultra-leves,<br />

ecrãs com imagens a três dimensões,<br />

máqui<strong>na</strong>s fotográficas<br />

com Bluetooth, controlo <strong>de</strong> segurança<br />

habitacio<strong>na</strong>l à distância,<br />

entre outras, parecem surpreen<strong>de</strong>r<br />

os convida<strong>do</strong>s. Esta fundação,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, sem fins lucrativos<br />

e anti-partidária, procura <strong>do</strong>tar<br />

os <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s conhecimentos<br />

fundamentais da Socieda<strong>de</strong> em<br />

Re<strong>de</strong>. Só assim a <strong>po<strong>de</strong>r</strong>ão regulamentar<br />

com eficácia, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m as<br />

associações <strong>do</strong> <strong>lóbi</strong> audiovisual<br />

que compõem a EIF.<br />

Apesar <strong>de</strong> <strong>na</strong> maior parte <strong>do</strong>s<br />

países mediterrânicos ser ainda<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um assunto tabu, a<br />

verda<strong>de</strong> é que este fenómeno está<br />

bem presente <strong>na</strong>s <strong>de</strong>mocracias<br />

mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong>s. “Em todas as socieda<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>senvolvidas os <strong>lóbi</strong>s têm<br />

si<strong>do</strong> fundamentais para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />

os interesses <strong>do</strong>s grupos mais<br />

pequenos e garantir o equilíbrio<br />

<strong>de</strong> to<strong>do</strong> o sistema <strong>de</strong>mocrático”,<br />

nota Joaquim Martins Lampreia<br />

<strong>na</strong> última obra que publicou,<br />

Lóbi – Ética, Técnica e Aplicação.<br />

Este perito em gestão <strong>de</strong> crise é o<br />

único lobista português acredita<strong>do</strong><br />

pelo Parlamento Europeu.<br />

Existem cerca <strong>de</strong> 15.000 lobistas<br />

em Bruxelas. A maioria, mais <strong>de</strong><br />

70%, pertence a gran<strong>de</strong>s empre-<br />

Embora muitos evitem<br />

assumi-lo, como<br />

acontece no nosso<br />

país, ser lobista é uma<br />

profissão como outra<br />

qualquer<br />

sas ou corporações, 20% <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />

os interesses das regiões, cida<strong>de</strong>s<br />

e instituições inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is, e<br />

ape<strong>na</strong>s 10% representa as organizações<br />

não gover<strong>na</strong>mentais (e<br />

entre elas, sindicatos e grupos <strong>de</strong><br />

protecção <strong>do</strong> ambiente). Ninguém<br />

po<strong>de</strong> ignorar a força que o <strong>lóbi</strong><br />

tem vin<strong>do</strong> a adquirir no panorama<br />

europeu. Qualquer empresa<br />

ou sector tem os seus interesses<br />

representa<strong>do</strong>s, principalmente<br />

perante instituições como a Co-<br />

missão Europeia, o Conselho da<br />

União Europeia e o Parlamento<br />

Europeu.<br />

Gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s lobistas tem<br />

formação em advocacia. Po<strong>de</strong>m<br />

pertencer a associações <strong>de</strong> classe<br />

e confe<strong>de</strong>rações, empresas e<br />

grupos empresariais, especialistas<br />

em comunicação, ONGs,<br />

entre outros. Embora muitos<br />

evitem assumi-lo, como acontece<br />

no nosso país, ser lobista<br />

é uma profissão como outra<br />

qualquer. Exige bases sólidas<br />

em direito e política, boas capacida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> comunicação e<br />

constante actualização. O seu<br />

trabalho não se resume à busca<br />

<strong>de</strong> argumentos que <strong>de</strong>fendam<br />

<strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong>s interesses perante<br />

o legisla<strong>do</strong>r. É uma activida<strong>de</strong><br />

cada vez mais complexa, que<br />

reúne também competências <strong>de</strong><br />

estratégia. Talvez seja por isso<br />

que muitos lobistas profissio<strong>na</strong>is<br />

tenham pertenci<strong>do</strong> a governos,<br />

se<strong>na</strong><strong>do</strong>s ou instituições<br />

comunitárias. Note-se o caso <strong>de</strong><br />

Henry Kissinger, ex-Secretário<br />

<strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> norte-americano.<br />

A sua experiência e prestígio,<br />

alia<strong>do</strong>s a um conhecimento profun<strong>do</strong><br />

das instâncias políticas e<br />

<strong>do</strong> seu funcio<strong>na</strong>mento, levaramno<br />

a tor<strong>na</strong>r-se num <strong>do</strong>s mais influentes<br />

lobistas <strong>do</strong>s EUA.<br />

<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

O Q<strong>UE</strong> É O LÓBI?<br />

Deriva <strong>do</strong> anglo-americano “Lobby”, palavra que começou por<br />

<strong>de</strong>sig<strong>na</strong>r os corre<strong>do</strong>res da Câmara <strong>do</strong>s Comuns em Inglaterra,<br />

on<strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> pressão procuravam influenciar os parlamentares.<br />

Em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX adquire a sua concepção<br />

mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong>. Define qualquer grupo <strong>de</strong> interesses forma<strong>do</strong> com o<br />

objectivo <strong>de</strong> influenciar a <strong>de</strong>cisão política, a lei, ou o rumo <strong>de</strong><br />

outras situações. Não se trata <strong>de</strong> corrupção mas <strong>de</strong> pressão,<br />

tu<strong>do</strong> nos limites da legalida<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong> ser feito, por exemplo,<br />

através <strong>de</strong> organizações, associações <strong>de</strong> consumi<strong>do</strong>res, or<strong>de</strong>ns<br />

profissio<strong>na</strong>is e sindicatos. Pelo <strong>lóbi</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m-se não só<br />

interesses económicos e estatais mas também os da socieda<strong>de</strong><br />

civil em geral.<br />

A IGREJA CATÓLICA TAMBÉM FAZ LÓBI. Ainda há pouco tempo<br />

o Vaticano procurou influenciar o Parlamento Europeu para que<br />

este incluísse uma referência ao Cristianismo no novo Trata<strong>do</strong><br />

Constitucio<strong>na</strong>l. O Padre Firmino Cachada, representante em<br />

Bruxelas da ONG Sol Sem Fronteiras, teve diversos contactos<br />

com membros das Instituições. Com Ribeiro e Castro, actual lí<strong>de</strong>r<br />

<strong>do</strong> CDS-PP, trabalhou <strong>na</strong> luta pelos direitos humanos: em<br />

Moçambique, no combate ao tráfico <strong>de</strong> órgãos, e nos países <strong>de</strong><br />

África, América e Pacífico <strong>na</strong> reabilitação <strong>do</strong>s povos recém-saí<strong>do</strong>s<br />

<strong>de</strong> guerras civis.<br />

Da sua experiência como lobista <strong>na</strong> União Europeia, o sacer<strong>do</strong>te<br />

realça: os <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s e funcionários europeus são mais acessíveis<br />

<strong>do</strong> que se pensa. Por vezes até agra<strong>de</strong>cem os contactos e<br />

normalmente respon<strong>de</strong>m sempre; a Comissão Europeia também<br />

o faz, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o assunto aborda<strong>do</strong> seja sério. Como existem<br />

muitas solicitações, os <strong>do</strong>ssiês <strong>de</strong>vem ser bem prepara<strong>do</strong>s, para<br />

terem credibilida<strong>de</strong>. Não é forçoso ter um gabinete em Bruxelas<br />

para se fazer <strong>lóbi</strong> junto das instituições europeias. Mas uma visita<br />

ou um encontro pessoal (se possível) tem sempre outro peso.<br />

PORTUGAL E O LÓBI. Portugal faz <strong>lóbi</strong>, como acontece com a<br />

maioria <strong>do</strong>s governos <strong>de</strong>mocráticos. Uma parte <strong>do</strong> orçamento<br />

<strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong>s Negócios Estrangeiros é <strong>de</strong>sti<strong>na</strong>da a subsidiar<br />

(<strong>de</strong> forma confi<strong>de</strong>ncial) esta activida<strong>de</strong>. Do turismo à política,<br />

passan<strong>do</strong> pela cultura, comércio ou indústria, os interesses <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is<br />

são <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>s pelo mun<strong>do</strong> fora sem que muitos portugueses<br />

o saibam. No fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong>s anos noventa, por exemplo, Bruce<br />

Cameron, lobista americano regista<strong>do</strong>, procurou chamar a atenção<br />

<strong>do</strong> Governo <strong>do</strong> seu país para o que se passava em Timor-Leste. Contrata<strong>do</strong><br />

pelo Esta<strong>do</strong> Português, que como antigo coloniza<strong>do</strong>r <strong>de</strong>fendia<br />

a auto<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong> povo timorense, conseguiu o apoio <strong>do</strong>s<br />

EUA para que se negociasse um acor<strong>do</strong> com a In<strong>do</strong>nésia.<br />

Na Europa é igualmente comum<br />

que antigos funcionários políticos<br />

se juntem a grupos <strong>de</strong> interesses<br />

no fi<strong>na</strong>l da sua carreira.<br />

A este fenómeno dá-se o nome <strong>de</strong><br />

revolving <strong>do</strong>ors. Em Bruxelas, o<br />

<strong>lóbi</strong> tem-se vin<strong>do</strong> a mostrar cada<br />

vez mais abrangente. Note-se que<br />

aos 300 lobistas regista<strong>do</strong>s no<br />

Parlamento Europeu <strong>na</strong> década<br />

TERESA MOURÃO FERREIRA / ANTÓNIO VIEIRA<br />

<strong>de</strong> 90 suce<strong>de</strong>m agora 5000, ou seja,<br />

uma média <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 7 lobistas<br />

para cada euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>. Mesmo<br />

assim, falta uma legislação comunitária<br />

neste <strong>do</strong>mínio.<br />

Olivier Hoe<strong>de</strong>man, <strong>do</strong> Corporate<br />

Europe Observatory, uma entida<strong>de</strong><br />

que estuda os impactos negativos<br />

<strong>do</strong> exercício das corporações<br />

e respectivos <strong>lóbi</strong>s nos direitos<br />

<strong>do</strong>s cidadãos europeus, consi<strong>de</strong>ra<br />

fundamental que se estabeleçam<br />

regras <strong>de</strong> transparência: “A luz<br />

<strong>do</strong> sol é o melhor <strong>de</strong>sinfectante e é<br />

mais difícil haver práticas irresponsáveis<br />

<strong>de</strong> <strong>lóbi</strong> quan<strong>do</strong> estas<br />

são visíveis e escruti<strong>na</strong>das pelo<br />

público. O secretismo em que está<br />

envolto o <strong>lóbi</strong> da <strong>UE</strong> é símbolo <strong>de</strong><br />

um défice <strong>de</strong>mocrático a que se<br />

<strong>de</strong>verá pôr fim”. Hoe<strong>de</strong>man sublinha<br />

a força que os <strong>lóbi</strong>s têm vin<strong>do</strong><br />

a adquirir em Bruxelas, lembran<strong>do</strong><br />

as palavras <strong>do</strong> lobista veterano<br />

Daniel Guéguen: “no futuro, vamos<br />

ten<strong>de</strong>r a a<strong>do</strong>ptar estratégias<br />

<strong>de</strong> <strong>lóbi</strong> ainda mais duras, que<br />

<strong>po<strong>de</strong>r</strong>ão incluir práticas como a<br />

manipulação, <strong>de</strong>stabilização ou<br />

<strong>de</strong>sinformação”.<br />

Até nos EUA, on<strong>de</strong> a legislação é<br />

rigorosa, se notam alguns abusos.<br />

Lembre-se o recente escândalo Jack<br />

Abramoff, um <strong>po<strong>de</strong>r</strong>oso lobista <strong>de</strong><br />

Washington, que prejudicou os seus<br />

clientes em 82,5 milhões <strong>de</strong> dólares,


TERESA MOURÃO FERREIRA / ANTÓNIO VIEIRA<br />

8ª COLINA I JUNHO 2006<br />

representam, qual a sua missão<br />

e como são fi<strong>na</strong>ncia<strong>do</strong>s”, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />

Kallas. Também para José Manuel<br />

Barroso este é um <strong>do</strong>s assuntos a<br />

ter em conta <strong>na</strong> discussão <strong>do</strong> futuro<br />

da Europa ao longo <strong>do</strong> mês <strong>de</strong><br />

Junho: “Precisamos <strong>de</strong> uma maior<br />

transparência perante o público, se<br />

queremos manter a legitimida<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão europeu”.<br />

Tanto os comissários como gran<strong>de</strong><br />

parte <strong>do</strong>s grupos <strong>de</strong> pressão se têm<br />

mostra<strong>do</strong> empenha<strong>do</strong>s em preparar<br />

leis que evitem fenómenos<br />

como as campanhas <strong>de</strong> “mass comunication”,<br />

conflitos <strong>de</strong> interesse<br />

<strong>de</strong> parti<strong>do</strong>s fi<strong>na</strong>ncia<strong>do</strong>s pela <strong>UE</strong>,<br />

força excessiva <strong>do</strong>s <strong>lóbi</strong>s <strong>de</strong> corporações<br />

com acesso privilegia<strong>do</strong>,<br />

falta <strong>de</strong> transparência em relação<br />

aos fun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> cada grupo, casos <strong>de</strong><br />

“revolving <strong>do</strong>ors”, alianças entre<br />

<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s e Indústria ou <strong>lóbi</strong> intensivo<br />

no Parlamento. A par da regulamentação,<br />

prevê-se ainda que se<br />

estabeleçam códigos <strong>de</strong> conduta e<br />

sanções para quem não os aplicar.<br />

Não se po<strong>de</strong> portanto dizer que haja<br />

<strong>na</strong> Europa um sistema <strong>de</strong> <strong>lóbi</strong>s idêntico<br />

ao americano, nem tão pouco<br />

um controle estrito como acontece<br />

“Sejam bem-vin<strong>do</strong>s!” - exclama alegremente<br />

Frances Moore, chefe <strong>do</strong> escritório<br />

regio<strong>na</strong>l da IFPI, Inter<strong>na</strong>tio<strong>na</strong>l Fe<strong>de</strong>ration<br />

of the Phonograph Industry, em Bruxelas.<br />

Por corre<strong>do</strong>res <strong>de</strong>cora<strong>do</strong>s com fotografias<br />

<strong>de</strong> concertos e artistas, leva-nos a conhecer<br />

os restantes elementos da equipa. Recebem-nos<br />

com sorrisos e com gran<strong>de</strong> orgulho<br />

em mostrar o que fazem. Aqui, cada<br />

um tem uma função específica, mas to<strong>do</strong>s<br />

agem para o mesmo objectivo: <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a<br />

<strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> Atlântico.<br />

Os EUA e o Ca<strong>na</strong>dá<br />

têm legislação para assegurar<br />

a integrida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s<br />

<strong>lóbi</strong>s, tal como a Polónia,<br />

a Lituânia e a Hungria.<br />

“Mais <strong>do</strong> que copiar os<br />

mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> transparência<br />

que se têm <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong><br />

nesses países, a União Europeia<br />

<strong>de</strong>ve criar um sistema<br />

mo<strong>de</strong>rno próprio”,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Hoe<strong>de</strong>man, acrescentan<strong>do</strong><br />

que “o registo<br />

online <strong>do</strong>s lobistas e seus<br />

objectivos, das fontes <strong>de</strong><br />

fi<strong>na</strong>nciamento e <strong>do</strong>s interesses<br />

representa<strong>do</strong>s po<strong>de</strong><br />

ser feito a baixo custo e<br />

sem burocracia usan<strong>do</strong><br />

tecnologias avançadas”.<br />

Do seu ponto <strong>de</strong> vista,<br />

esta informação <strong>de</strong>veria<br />

estar acessível ao público<br />

europeu e não ape<strong>na</strong>s às<br />

instituições da <strong>UE</strong>.<br />

Enquanto isso não<br />

acontece, o bom-senso<br />

continua a ser o único orienta<strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong> lobista europeu. Uns<br />

aproveitar-se-ão disso para ope-<br />

Que tal pôr a Europa<br />

a ouvir música?<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> subor<strong>na</strong>r pessoas <strong>do</strong> Congresso,<br />

<strong>de</strong>mocratas e republicanos,<br />

com férias <strong>de</strong> sonho nos mais diversos<br />

<strong>de</strong>stinos. O <strong>lóbi</strong> americano é<br />

profundamente marca<strong>do</strong> pelo <strong>po<strong>de</strong>r</strong><br />

<strong>do</strong> capital, não existe nenhuma lei<br />

que proíba a oferta <strong>de</strong> viagens. Em<br />

Bruxelas, mesmo com um ambiente<br />

adverso à influência <strong>do</strong> dinheiro,<br />

<strong>na</strong>da garante que esta não exista.<br />

A 3 <strong>de</strong> Maio <strong>de</strong>ste ano, Siim Kallas,<br />

Vice-Presi<strong>de</strong>nte da Comissão, apresentou<br />

a Iniciativa Europeia <strong>de</strong><br />

Transparência, propon<strong>do</strong> um sistema<br />

voluntário <strong>de</strong> registo <strong>de</strong> <strong>lóbi</strong>s.<br />

“O <strong>lóbi</strong> é perfeitamente legítimo,<br />

mas à medida que o fenómeno cresce,<br />

<br />

<strong>de</strong>vemos assegurar que há clare-<br />

<br />

música <strong>na</strong> União Europeia.<br />

Frances frisa que “o <strong>lóbi</strong> implica um<br />

trabalho colectivo, sen<strong>do</strong> essencial que<br />

haja bom espírito <strong>de</strong> equipa”. A <strong>de</strong>scontracção<br />

<strong>do</strong> ambiente comprova-o, mas a<br />

responsabilida<strong>de</strong> é elevada. A legislação<br />

europeia tem um gran<strong>de</strong> impacto <strong>na</strong> indústria<br />

fonográfica e cabe à IFPI exercer<br />

pressão <strong>de</strong> forma a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os interesses<br />

<strong>do</strong>s artistas e editoras.<br />

A tarefa não tem si<strong>do</strong> fácil. Lutar pelos di-<br />

rar <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> ilícito, sem olhar a<br />

meios para atingir os seus objectivos.<br />

Outros terão em conta os<br />

limites morais e procurarão influenciar<br />

sem entrar em excessos.<br />

No fun<strong>do</strong>, é como em qual-<br />

reitos <strong>de</strong> autor ou combater a pirataria, por<br />

exemplo, acaba por ir contra os interesses<br />

<strong>de</strong> outras entida<strong>de</strong>s. Note-se o caso das empresas<br />

<strong>de</strong> telecomunicações. No ano 2000,<br />

quan<strong>do</strong> a Comissão Europeia começou a<br />

trabalhar <strong>na</strong> directiva para os copyright<br />

<strong>na</strong> Internet, “as companhias <strong>de</strong> telecomunicações<br />

começaram a enviar cente<strong>na</strong>s <strong>de</strong><br />

cartas para a Comissão, o que a preocupou.<br />

Os comissários não percebiam que<br />

se tratava <strong>de</strong> uma técnica <strong>de</strong> <strong>lóbi</strong>: mandar<br />

um eleva<strong>do</strong> número <strong>de</strong> cartas <strong>de</strong> forma a<br />

criar a ilusão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sequilíbrio”, recorda<br />

Frances. A IFPI respon<strong>de</strong>u, optan<strong>do</strong> por<br />

continuar a apostar <strong>na</strong> qualida<strong>de</strong> e não <strong>na</strong><br />

quantida<strong>de</strong>. E acabou por ganhar o <strong>de</strong>bate.<br />

“Há muitas técnicas <strong>de</strong> <strong>lóbi</strong>”, diz Frances,<br />

“o segre<strong>do</strong> está em saber a<strong>na</strong>lisar a situação<br />

e compreen<strong>de</strong>r qual a mais indicada”.<br />

MUNDO 13<br />

quer outra activida<strong>de</strong>: tu<strong>do</strong> se<br />

resume a uma questão <strong>de</strong> ética e<br />

profissio<strong>na</strong>lismo.<br />

Tu<strong>do</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong>s objectivos a alcançar e<br />

<strong>do</strong> contexto da actuação.<br />

Meetings, concertos ou almoços, entre outros,<br />

são realiza<strong>do</strong>s com frequência para<br />

divulgar o trabalho da indústria fonográfica.<br />

Práticas que procuram criar uma empatia<br />

com os <strong>po<strong>de</strong>r</strong>es políticos e que po<strong>de</strong>m<br />

vir a ser fulcrais aquan<strong>do</strong> da legislação.<br />

Neste processo, <strong>na</strong>da é <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> ao acaso.<br />

Até a possível utilização <strong>do</strong>s media é alvo<br />

<strong>de</strong> reflexão pon<strong>de</strong>rada. “Sabemos que a<br />

imprensa, como o Fi<strong>na</strong>ncial Times ou o Le<br />

Mon<strong>de</strong>, <strong>po<strong>de</strong>r</strong>á chamar a atenção <strong>do</strong>s <strong>de</strong>cisores”,<br />

lembra a jor<strong>na</strong>lista Francine Cunningham,<br />

responsável pelo <strong>de</strong>partamento<br />

<strong>de</strong> comunicação. No entanto, o recurso<br />

aos meios <strong>de</strong> comunicação social não é suficiente.<br />

“Uma campanha não se faz pelos<br />

media”, adverte Frances, “po<strong>de</strong>mos utilizálos<br />

se nos ajudarem, mas se fizermos uma<br />

campanha só a pensar neles, per<strong>de</strong>mo-la”.<br />

Nunca <strong>de</strong>ixam a arte <strong>de</strong> persuadir em mãos<br />

alheias. Na hora <strong>de</strong> abordar as instituições<br />

europeias, são os próprios elementos <strong>do</strong><br />

IFPI que entram em acção. “É uma questão<br />

<strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong>. Há muitas consultoras<br />

aqui em Bruxelas, o problema é que um<br />

dia abordam um euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong> por causa<br />

<strong>de</strong> uma coisa, e no dia seguinte já é outra<br />

qualquer”, critica Ágatha Pavia, advogada<br />

responsável pelas relações com o Parlamento<br />

Europeu e acrescenta: “Eu represento a<br />

IFPI há <strong>do</strong>is anos e sei como a indústria funcio<strong>na</strong>,<br />

o que me permite ser muito mais credível<br />

quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>fen<strong>do</strong> os seus interesses.”<br />

Ágatha encontra-se várias vezes por dia com<br />

os euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s. Tenta fazê-los compreen<strong>de</strong>r<br />

a posição da indústria fonográfica, esclarecen<strong>do</strong>-os<br />

quan<strong>do</strong> precisam <strong>de</strong> informações.<br />

“No fun<strong>do</strong>, é como uma relação social,<br />

em que nos ajudamos mutuamente”, conclui.<br />

Mas para se ser bem sucedi<strong>do</strong> aponta<br />

um factor fundamental: o da honestida<strong>de</strong>.<br />

Aí, to<strong>do</strong>s os elementos da IFPI mostram estar<br />

<strong>de</strong> acor<strong>do</strong>. Defen<strong>de</strong>m a rectidão da prática,<br />

sem recorrer a bluff ou exageros. Numa<br />

frase, Frances resume os seus pensamentos:<br />

“Quan<strong>do</strong> os argumentos são bons e se luta<br />

por boas causas, não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ultrapassar<br />

os limites”.


14 MUNDO<br />

O euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong> português, membro<br />

da Comissão da Cultura e da Educação,<br />

consi<strong>de</strong>ra o <strong>lóbi</strong> necessário no panorama<br />

comunitário, <strong>na</strong> medida em que<br />

este po<strong>de</strong> <strong>do</strong>tar os representantes <strong>de</strong><br />

informação válida. Reconhece porém<br />

a urgência <strong>de</strong> se criar em torno <strong>do</strong> sistema<br />

uma legislação que o torne mais<br />

perceptível e claro.<br />

De que forma po<strong>de</strong> o <strong>lóbi</strong> contribuir<br />

para o trabalho <strong>de</strong> um Euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>?<br />

Enquanto fornecer elementos <strong>de</strong> informação,<br />

é extremamente útil. Ninguém<br />

é abrangente num senti<strong>do</strong> enciclopédico<br />

em relação à realida<strong>de</strong> e<br />

portanto há entida<strong>de</strong>s e instâncias que<br />

preparam projectos <strong>de</strong> legislação. Há<br />

sempre interesses sacrifica<strong>do</strong>s e interesses<br />

<strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>s. O <strong>lóbi</strong> visa, por<br />

conta <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>sses interesses,<br />

dar-lhes expressão e conseguir que<br />

isso se repercuta num <strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong><br />

texto legal. É perfeitamente admissível<br />

que seja feito em termos lícitos,<br />

que permitam que uma opinião seja<br />

conhecida e fundamentada.<br />

Mas há casos mais complica<strong>do</strong>s, com<br />

questões éticas envolvidas, em que o<br />

<strong>lóbi</strong> não é assim tão evi<strong>de</strong>nte…<br />

Neste momento discute-se o apoio<br />

ao fi<strong>na</strong>nciamento da investigação <strong>na</strong>s<br />

células estami<strong>na</strong>is embrionárias. Não<br />

po<strong>de</strong>mos falar propriamente em <strong>lóbi</strong>,<br />

mas a verda<strong>de</strong> é que vão começar a<br />

chegar aos <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s mails a dizer<br />

“<strong>de</strong>fenda a vida, não se transforme<br />

num apoio ao assassínio”. Os milhares<br />

<strong>de</strong> pessoas que se manifestam pró ou<br />

contra, funcio<strong>na</strong>m também como uma<br />

espécie <strong>de</strong> <strong>lóbi</strong>. A sua actuação traduz-se<br />

<strong>na</strong> pressão sobre um <strong>de</strong>cisor<br />

político.<br />

VASCO GRAÇA MOURA<br />

“É importante que haja transparência”<br />

Como é o <strong>lóbi</strong> <strong>do</strong> nosso país?<br />

Em Portugal existe <strong>lóbi</strong>, mas é <strong>de</strong> uma<br />

forma inorgânica, informal. Há vários<br />

níveis. Num contexto europeu, se vier<br />

uma associação <strong>de</strong> empresários <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />

os seus pontos <strong>de</strong> vista, o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong><br />

tem interesse em conhecer a posição <strong>do</strong><br />

seu país <strong>na</strong>quele sector. Por exemplo, a<br />

Socieda<strong>de</strong> Portuguesa <strong>de</strong> Reumatologia<br />

contactou os <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s para conseguir<br />

que a investigação em torno <strong>de</strong>sta <strong>do</strong>ença,<br />

que afecta milhões <strong>de</strong> pessoas,<br />

seja subsidiada e incluída no próximo<br />

Programa Comunitário <strong>de</strong> Apoio. Isto<br />

parece-me bem justifica<strong>do</strong>, mas se não<br />

nos tivessem chama<strong>do</strong> a atenção, se<br />

calhar passava-nos completamente.<br />

Mantém-se algum tipo <strong>de</strong> relação en-<br />

O que elas têm a dizer<br />

Tu<strong>do</strong> começou há 16 anos,<br />

quan<strong>do</strong> vários grupos feministas<br />

europeus se uniram no<br />

esforço <strong>de</strong> criar uma representação<br />

sua em Bruxelas capaz<br />

<strong>de</strong> influenciar as <strong>de</strong>cisões<br />

comunitárias. Nascia assim o<br />

Lóbi Europeu das Mulheres<br />

(LEM). O organismo, o maior<br />

<strong>do</strong> género <strong>na</strong> <strong>UE</strong>, foi crescen<strong>do</strong><br />

e hoje conta já com filiações<br />

em 25 países.<br />

Lutam por ser ouvidas, mas<br />

sabem que há um longo caminho<br />

a percorrer. “A <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong><br />

ainda está bem presente”,<br />

lamenta Cécile Greboval,<br />

coor<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong>ra das activida<strong>de</strong>s<br />

<strong>do</strong> LEM, “a diferença salarial<br />

média entre sexos atinge os<br />

20% <strong>na</strong> União Europeia, além<br />

disso continua a haver poucas<br />

mulheres nos lugares <strong>de</strong> chefia,<br />

note-se por exemplo que<br />

70% <strong>do</strong> Parlamento Europeu<br />

é composto por homens”.<br />

O objectivo <strong>de</strong>sta instituição<br />

é fundamentalmente<br />

político: promover a<br />

TERESA MOURÃO FERREIRA / ANTÓNIO VIEIRA<br />

<br />

igualda<strong>de</strong> entre homens e<br />

mulheres e, em termos laborais,<br />

implementar medidas<br />

que facilitem o acesso<br />

<strong>de</strong>stas últimas aos órgãos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão. As instituições<br />

europeias têm-se mostra<strong>do</strong><br />

receptivas, no entanto, é<br />

comum que os seus esforços<br />

falhem. Para Cécile é<br />

fundamental que haja uma<br />

acção integrada, o que não<br />

tem vin<strong>do</strong> a acontecer: “Os<br />

Governos <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m que as<br />

mulheres <strong>de</strong>vem trabalhar,<br />

mas <strong>de</strong>pois há cortes<br />

nos serviços encarrega<strong>do</strong>s<br />

da guarda <strong>de</strong> crianças e a<br />

participação <strong>do</strong>s homens<br />

no trabalho <strong>do</strong>méstico<br />

continua quase inexistente.<br />

Para nós é preciso uma<br />

reflexão mais global: não<br />

po<strong>de</strong> haver igualda<strong>de</strong> <strong>na</strong><br />

socieda<strong>de</strong>, se esta não existir<br />

em casa.”<br />

Para Cécile, a sua formação<br />

em Ciências Políticas tem<br />

si<strong>do</strong> útil. “Num <strong>lóbi</strong> eficaz<br />

TERESA MOURÃO FERREIRA / ANTÓNIO VIEIRA<br />

não é suficiente <strong>de</strong>nunciar. É<br />

preciso apresentar alter<strong>na</strong>tivas.<br />

Trata-se <strong>de</strong> um trabalho<br />

muito técnico em que temos<br />

<strong>de</strong> saber propor emendas a<br />

directivas e outros textos”.<br />

Quanto à reacção <strong>do</strong>s euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s,<br />

esta nem sempre<br />

é consensual. No problema<br />

das quotas <strong>de</strong> representação<br />

femini<strong>na</strong>, por exemplo. Céci-<br />

tre <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s e <strong>lóbi</strong>s?<br />

No meu caso não, é tu<strong>do</strong> meramente<br />

esporádico.<br />

É possível misturar-se <strong>lóbi</strong> com propaganda?<br />

Às vezes acontece. Por exemplo, quan<strong>do</strong><br />

se <strong>de</strong>bateu a <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>ção <strong>de</strong> chocolate<br />

puro, houve um <strong>lóbi</strong> que teve não<br />

só contactos com muitos <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s,<br />

como manifestações exter<strong>na</strong>s à entrada<br />

<strong>do</strong> Parlamento com umas meni<strong>na</strong>s<br />

com ban<strong>de</strong>iras a darem chocolates.<br />

A Philips, no Natal <strong>do</strong> ano passa<strong>do</strong>,<br />

também tinha em Estrasburgo muitas<br />

caixas e isso era meramente promocio<strong>na</strong>l,<br />

para chamar a atenção. Ofereciam<br />

umas velas eléctricas aos <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s,<br />

foi uma promoção magnífica,<br />

le admite que existem muitos<br />

tabus, mas lembra que “to<strong>do</strong><br />

o sistema político <strong>de</strong>mocrático<br />

é organiza<strong>do</strong> com regras”,<br />

e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que “a parida<strong>de</strong> e as<br />

quotas são medidas para chegar<br />

a recursos que <strong>de</strong> outra<br />

forma seriam i<strong>na</strong>cessíveis.”<br />

As técnicas <strong>de</strong> <strong>lóbi</strong> utilizadas<br />

variam conforme a situação.<br />

“Po<strong>de</strong>m ser um encontro<br />

com um político, uma tomada<br />

pública <strong>de</strong> posição, petições<br />

ou comunica<strong>do</strong>s <strong>de</strong> imprensa”,<br />

enumera. A acção<br />

<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

sem gran<strong>de</strong>s custos.<br />

Mesmo sem legislação, há já limites<br />

para as ofertas?<br />

O bom senso é que regulamenta essas<br />

coisas. Já viu se me viessem entregar<br />

uma salva <strong>de</strong> ouro? Era um problema<br />

<strong>de</strong> bom senso e <strong>de</strong> serieda<strong>de</strong>. Num<br />

<strong>lóbi</strong> sem regras, selvagem, é possível<br />

que isso aconteça. Aqui não me apercebi<br />

disso. O <strong>lóbi</strong> é uma profissão que<br />

po<strong>de</strong> ser legítima, mas <strong>de</strong>ve ser regulamentada.<br />

Não correspon<strong>de</strong> necessariamente<br />

a batota. É uma expressão<br />

<strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s com uma<br />

<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da intervenção <strong>de</strong>cisória <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong> conjunto <strong>de</strong> interesses.<br />

Po<strong>de</strong>mos encontrar <strong>na</strong> Europa casos<br />

<strong>de</strong> chantagem?<br />

Não tenho conhecimento, mas é possível<br />

que sim, principalmente ao nível<br />

<strong>do</strong>s países. A regulamentação <strong>do</strong><br />

funcio<strong>na</strong>mento <strong>de</strong>ssas estruturas organizadas<br />

<strong>de</strong>ve ser colocada em termos<br />

<strong>de</strong> transparência e permitir que<br />

se perceba quem são, que interesses<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m e como funcio<strong>na</strong>m, para não<br />

haver manobras obscuras, para não<br />

haver “compras”….<br />

Existem também consultoras que<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m os interesses das mais<br />

variadas empresas, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> chegar<br />

a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r valores opostos em momentos<br />

diferentes…<br />

É importante que haja transparência e<br />

regulamentação, porque eles po<strong>de</strong>m<br />

mudar <strong>de</strong> poleiro. Até se diz que há ex<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s<br />

e ex-funcionários, pessoas<br />

que passaram a conhecer muito bem o<br />

mecanismo, a fazer <strong>lóbi</strong> hoje em dia…<br />

Já pensou nisso?<br />

Não, <strong>de</strong> maneira nenhuma. Eu nem pelos<br />

meus filhos faço <strong>lóbi</strong>! •<br />

<strong>do</strong> LEM centra-se sobretu<strong>do</strong><br />

<strong>na</strong>s instituições europeias,<br />

mas apoia também cada organização<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l para que<br />

esta exerça <strong>lóbi</strong> no seu país.<br />

Por vezes a abordagem parte<br />

<strong>do</strong>s próprios euro<strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s<br />

e comissários. “Contactamos<br />

com muita gente para<br />

passar a nossa mensagem,<br />

mas também é comum serem<br />

as instituições a pedir-nos<br />

<strong>do</strong>cumentos ou a opinião”.<br />

Cria-se assim uma relação<br />

<strong>de</strong> confiança entre o <strong>po<strong>de</strong>r</strong> e<br />

o grupo <strong>de</strong> interesse.<br />

Lóbi e Feminismo, <strong>do</strong>is termos<br />

incómo<strong>do</strong>s a muita gente.<br />

Causam celeuma ainda<br />

maior quan<strong>do</strong> se apresentam<br />

juntos. Para a coor<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong>ra<br />

das activida<strong>de</strong>s <strong>do</strong><br />

LEM é tu<strong>do</strong> muito simples:<br />

“Para mim o feminismo não<br />

é mais <strong>do</strong> que trabalhar pelos<br />

direitos das mulheres.<br />

Se nós queremos a igualda<strong>de</strong>,<br />

menos violência e um<br />

respeito pelos direitos <strong>do</strong><br />

Homem, então muitos são<br />

um pouco feministas. Mas<br />

é verda<strong>de</strong> que poucos o vão<br />

admitir”.


VERA MOUTINHO<br />

8ª COLINA<br />

DOSSIÊ<br />

<br />

<strong>do</strong> meu avô<br />

<br />

PERDIDAS. AINDA HÁ ADOLESCENTES Q<strong>UE</strong> Q<strong>UE</strong>REM SER AGRICULTORES<br />

-<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

MAIS Q<strong>UE</strong> TELEVISÃO E INTERNET NA NOVA GERAÇÃO.


ANA RITA HENRIQ<strong>UE</strong>S<br />

16 DOSSIÊ<br />

ESCOLA PROFISSIONAL AGRÍCOLA D. DINIS DA PAIÃ<br />

ANA RITA HENRIQ<strong>UE</strong>S<br />

MARTA PAIS LOPES<br />

O dia é <strong>de</strong> festa <strong>na</strong> <strong>Escola</strong> Profissio<strong>na</strong>l<br />

D. Dinis <strong>na</strong> Paiã: o palco<br />

monta<strong>do</strong>, grupos <strong>de</strong> alunos prepara<strong>do</strong>s<br />

para dançar folclore,<br />

professores sua<strong>do</strong>s <strong>do</strong> jogo <strong>de</strong><br />

futebol contra os funcionários,<br />

mas em to<strong>do</strong>s se nota o cuida<strong>do</strong><br />

da roupa escolhida para aquele<br />

dia. Só o peditório para a<br />

garraiada daquele dia, que um<br />

aluno <strong>do</strong> terceiro ano estava a<br />

fazer <strong>de</strong> lata <strong>na</strong> mão, <strong>de</strong>ixava<br />

adivinhar que estávamos numa<br />

escola agrícola.<br />

Mas não era para a diversão<br />

que vínhamos. A parte formal<br />

<strong>do</strong> dia da escola estava a acontecer<br />

longe, nos campos mais<br />

abaixo, com uma visita guiada<br />

pelas instalações e os cinquenta<br />

e cinco hectares <strong>de</strong> exploração<br />

agrícola. Valeu-nos a boleia <strong>do</strong><br />

engenheiro Toni, responsável<br />

por toda a área agrícola, no seu<br />

Re<strong>na</strong>ult 4, que supúnhamos ser<br />

bege <strong>de</strong>baixo <strong>do</strong> cinzento da poeira.<br />

“Deixe-me só limpar aqui<br />

o banco. Sente-se em cima <strong>de</strong>ste<br />

saco <strong>de</strong> plástico.” Mesmo assim,<br />

a roupa saiu <strong>de</strong> lá amarela. Fi<strong>na</strong>lmente<br />

juntámo-nos ao grupo<br />

<strong>de</strong> professores, pais e convida<strong>do</strong>s,<br />

que ainda se <strong>de</strong>leitavam<br />

com a mesa <strong>de</strong> boas-vindas, <strong>de</strong><br />

croquetes e sumo <strong>de</strong> laranja.<br />

As gravatas e os saltos altos<br />

não nos pareceram apropria<strong>do</strong>s<br />

para o que se ia seguir.<br />

O Sr. Custódio, motorista da<br />

escola, hoje trocou os tractores<br />

pelo autocarro que conduz os<br />

visitantes. “À vossa esquerda,<br />

temos trigo. Temos ainda um<br />

pomar <strong>de</strong> macieiras e um pomar<br />

pedagógico, com as espécies<br />

mais representativas <strong>do</strong> país. À<br />

direita, três hectares <strong>de</strong> vinha.”<br />

- o engenheiro Aires, presi<strong>de</strong>nte<br />

<strong>do</strong> Conselho Directivo, é o<br />

On<strong>de</strong> estudar<br />

é or<strong>de</strong>nhar<br />

NO NONO ANO TOMA-SE A PRIMEIRA GRANDE DECISÃO. O Q<strong>UE</strong> LEVA ADOLESCENTES DE<br />

15 ANOS A ESCOLHER ESTUDAR AGRICULTURA? A VISITA A UMA ESCOLA Q<strong>UE</strong> É UM PEDA-<br />

CINHO DE CAMPO NO MEIO DE LISBOA.<br />

<br />

Sofia não sabe andar<br />

bem a cavalo, mas<br />

to<strong>do</strong>s os sába<strong>do</strong>s<br />

vai à escola ajudar a<br />

tratar <strong>do</strong> seu animal<br />

preferi<strong>do</strong>.<br />

cicerone da visita. De toda a escola,<br />

esta é a parte preferida <strong>de</strong><br />

Francisco. O miú<strong>do</strong> que vem <strong>de</strong><br />

Cascais, loiro, <strong>de</strong> olhos azuis,<br />

está no segun<strong>do</strong> ano <strong>do</strong> curso <strong>de</strong><br />

<br />

Produção Agrária e, tal como os<br />

seus colegas, para o ano terá <strong>de</strong><br />

escolher entre produção animal<br />

e produção vegetal. Francisco<br />

não tem dúvidas: “É vegetal, não<br />

estou muito vira<strong>do</strong> para os animais.<br />

Os suínos é horrível, tu<strong>do</strong><br />

menos suínos, é um cheiro… é<br />

nojento, é péssimo!”<br />

Depois das estufas e já <strong>de</strong> volta<br />

ao autocarro, sentimos os cheiros<br />

a mudar. A primeira paragem<br />

<strong>na</strong> parte da pecuária é o<br />

pica<strong>de</strong>iro. A receber-nos estão<br />

os alunos da escola <strong>de</strong> equitação<br />

da Paiã, que funcio<strong>na</strong> <strong>na</strong>s<br />

instalações da escola agrícola.<br />

Durante uns breves minutos os<br />

cavalos mostram toda a sua graça,<br />

em movimentos trei<strong>na</strong><strong>do</strong>s.<br />

Sofia não sabe andar bem a cavalo,<br />

mas to<strong>do</strong>s os sába<strong>do</strong>s vai à<br />

escola ajudar a tratar <strong>do</strong> seu animal<br />

preferi<strong>do</strong>. Tal como muitas<br />

raparigas da sua ida<strong>de</strong>, Sofia,<br />

18 anos, usa tops justos e calças<br />

<strong>de</strong>scaídas, ouve Black Eyed Peas<br />

e gosta <strong>do</strong>s Morangos com Açúcar.<br />

Como o Francisco, é loira,<br />

<strong>de</strong> olhos azuis. Mas, ao contrário<br />

<strong>do</strong> seu colega <strong>de</strong> turma, ela não<br />

tem nojo das vacas e <strong>do</strong>s porcos<br />

e, para o ano que vem, vai escolher<br />

produção animal.<br />

Sumário: Extracção <strong>do</strong> leite<br />

Foi junto a animais que encontrámos<br />

Sofia uns dias mais tar<strong>de</strong>,<br />

<strong>na</strong> aula <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nha, com o<br />

cós das calças <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> por causa<br />

da tatuagem ainda fresca no<br />

fun<strong>do</strong> das costas. Apesar <strong>de</strong> gostar<br />

<strong>de</strong> tratar das vacas, quan<strong>do</strong><br />

chega a altura <strong>de</strong> tirar o leite,<br />

Ir e vir <strong>de</strong> Be<strong>na</strong>vente to<strong>do</strong>s os<br />

dias seria um encargo muito<br />

gran<strong>de</strong> para Carlos, 19 anos. Por<br />

isso, <strong>de</strong>cidiu ficar a viver <strong>na</strong> escola,<br />

com mais 20 alunos. O inter<strong>na</strong>to<br />

da <strong>Escola</strong> Agrícola funcio<strong>na</strong><br />

durante a sema<strong>na</strong> e custa<br />

a cada aluno 200 Euros por mês.<br />

Rapazes e raparigas estão separa<strong>do</strong>s<br />

e os horários são muitos<br />

rígi<strong>do</strong>s. Têm até, to<strong>do</strong>s os dias,<br />

duas hora <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, que nem<br />

sempre são usadas para esse<br />

fim: “nós somos obriga<strong>do</strong>s a estar<br />

<strong>na</strong> sala <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, não somos<br />

obriga<strong>do</strong>s a estudar. Po<strong>de</strong>mos<br />

jogar às cartas, monopólio...”,<br />

confessa Carlos. Os rapazes po<strong>de</strong>m<br />

ir estudar para a sala das<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

ANA RITA HENRIQ<strong>UE</strong>S<br />

O INTERNATO<br />

não se sente muito segura: “Já<br />

não faço isto há muito tempo.<br />

Nós o ano passa<strong>do</strong> era todas as<br />

sema<strong>na</strong>s, mas este ano foi mesmo<br />

a primeira e última vez.” A<br />

professora Rosário vai dan<strong>do</strong><br />

indicações aos alunos <strong>do</strong> 2ºA.<br />

Primeiro limpa-se as tetas da<br />

vaca; <strong>de</strong>pois com as mãos tirase<br />

o primeiro leite e testa-se a<br />

sua qualida<strong>de</strong>; só então se coloca<br />

a máqui<strong>na</strong> para a extracção<br />

<strong>do</strong> leite e, no fi<strong>na</strong>l, <strong>de</strong>sinfecta-se<br />

as tetas. Sofia chama o Sr. Telmo,<br />

responsável pela vacaria,<br />

mas a professora não o <strong>de</strong>ixa<br />

ajudá-la. “Ela é insegura, mas<br />

As vacas estão <strong>na</strong> rua<br />

à espera da sua vez <strong>de</strong><br />

entrar.<br />

<strong>de</strong>pois faz sempre bem”, explica.<br />

Já Francisco, fazen<strong>do</strong> jus<br />

à hiperactivida<strong>de</strong> que lhe foi<br />

diagnosticada, não parece <strong>na</strong>da<br />

atrapalha<strong>do</strong> e até vai dan<strong>do</strong> uns<br />

palpites aos outros. “O que uma<br />

tem <strong>de</strong> auto-estima a menos, o<br />

outro tem a mais…”, critica,<br />

risonha, a professora Rosário.<br />

As vacas estão <strong>na</strong> rua à espera.<br />

Entram aos pares e, por isso, só<br />

<strong>do</strong>is alunos <strong>de</strong> cada vez po<strong>de</strong>m<br />

fazer a or<strong>de</strong>nha. Enquanto uns<br />

observam os colegas, outros vão<br />

preparar a alimentação <strong>do</strong>s vitelos,<br />

que só mamam <strong>do</strong> leite da<br />

mãe durante sete dias. A professora<br />

explica que, para ser misturada<br />

com o leite em pó, a água<br />

não po<strong>de</strong> estar nem muito fria,<br />

raparigas, mas o contrário não<br />

é permiti<strong>do</strong>. Apesar da rigi<strong>de</strong>z<br />

aparente, os alunos <strong>do</strong> inter<strong>na</strong>to<br />

não têm <strong>de</strong> cumprir as regras à<br />

risca. “Eu e os meus colegas <strong>do</strong><br />

terceiro ano, se quisermos sair<br />

to<strong>do</strong>s os dias, to<strong>do</strong>s os dias temos<br />

dispensa <strong>do</strong> engenheiro Aires<br />

até à meia-noite.” O quartos<br />

têm <strong>de</strong> estar sempre arruma<strong>do</strong>s<br />

e os alunos não po<strong>de</strong>m levar<br />

para lá <strong>na</strong>da além <strong>do</strong> básico.<br />

Mas as noites são animadas pela<br />

televisão, DVD e Playstation, que<br />

durante o dia não existem à vista<br />

<strong>de</strong> ninguém. Apesar <strong>de</strong> a vida<br />

no inter<strong>na</strong>to não ser <strong>de</strong>masia<strong>do</strong><br />

controlada, Carlos preferia ir<br />

para casa todas as noites.


8ª COLINA I JUNHO 2006 DOSSIÊ 17<br />

nem muito quente: “É como se<br />

fossem beber à temperatura <strong>do</strong><br />

leite da mãe”. A resposta <strong>de</strong> um<br />

aluno foi pronta: “Ó stôra, mas<br />

eu não me lembro…”.<br />

Quan<strong>do</strong> eu for gran<strong>de</strong><br />

A <strong>Escola</strong> Agrícola da Paiã é um<br />

oásis no meio <strong>de</strong> um <strong>de</strong>serto <strong>de</strong><br />

poluição. Em cima, a Pontinha,<br />

um conjunto <strong>de</strong> casas <strong>de</strong>gradadas<br />

com habitantes envelheci<strong>do</strong>s.<br />

Em baixo, estradas cheias<br />

<strong>de</strong> carros que voam em direcção<br />

aos prédios suburbanos.<br />

Ali mesmo ao la<strong>do</strong>, o Odivelas<br />

Parque. Foi este pedaço <strong>de</strong> ruralida<strong>de</strong><br />

que estes rapazes e<br />

raparigas <strong>de</strong> 16 e 17 anos escolheram<br />

para estudar. A Sofia<br />

esteve numa escola secundária<br />

normal, mas não se <strong>de</strong>u bem.<br />

“Depois fui para uma psicóloga<br />

e ela disse-me que havia<br />

esta escola. Nunca pensei que<br />

houvesse uma escola aqui tão<br />

perto que tivesse animais.” Ao<br />

contrário da maior parte <strong>do</strong>s<br />

alunos da Paiã, a Universida<strong>de</strong><br />

está nos planos <strong>de</strong> Sofia, que<br />

quer ser veterinária.<br />

A ambição <strong>de</strong> tirar um curso<br />

superior, nesta escola, não é<br />

regra. O professor Miguel, <strong>do</strong>cente<br />

<strong>de</strong> Área <strong>de</strong> Integração,<br />

afirma que “há uma <strong>de</strong>smotivação<br />

muito gran<strong>de</strong>, uma crise no<br />

ensino, que também se reflecte<br />

aqui.” Diz ainda que <strong>na</strong> escola<br />

já houve alunos melhores <strong>do</strong><br />

que agora. A engenheira Margarida,<br />

vice-presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> Con-<br />

A maior parte <strong>do</strong>s<br />

alunos quer acabar<br />

o 12º ano e seguir os<br />

negócios da família.<br />

selho Directivo, admite que os<br />

alunos da <strong>Escola</strong> Agrícola não<br />

são os que têm notas brilhantes.<br />

A maior parte quer acabar<br />

o 12º ano e seguir os negócios da<br />

família.<br />

Nos alunos da escola da Paiã, a<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s pais tor<strong>na</strong>-se muitas<br />

vezes <strong>na</strong> sua própria vonta<strong>de</strong>.<br />

A família <strong>de</strong> Francisco, 17<br />

anos, tem produção <strong>de</strong> ga<strong>do</strong> no<br />

Brasil, eucaliptos e pereiras.<br />

“Eu fui sempre muito pressio<strong>na</strong><strong>do</strong><br />

porque tenho quatro primos<br />

e uma irmã e foram to<strong>do</strong>s<br />

para coisas completamente diferentes.<br />

Eu sou o mais novo,<br />

alguém teve <strong>de</strong> seguir as coisas<br />

da família.” Esta não era a sua<br />

i<strong>de</strong>ia inicial: “Eu sempre gostei<br />

muito <strong>de</strong> arquitectura, era para<br />

ir para artes, mas… teve <strong>de</strong> ser.”<br />

A voz <strong>de</strong> Francisco não <strong>de</strong>nota<br />

qualquer tristeza ou embaraço<br />

quan<strong>do</strong> nos fala da escolha que<br />

fizeram por ele. “O meu avô é director<br />

da Caixa Agrícola, vai ao<br />

Brasil, vai às empresas. Mas tem<br />

85 anos e ele, o meu pai, a minha<br />

mãe dizem-me que ele precisa <strong>de</strong><br />

ajuda, começa a ficar velho.” A<br />

i<strong>de</strong>ia é o Francisco tomar o lugar<br />

<strong>do</strong> avô e toda a gente faz por<br />

isso. Como o Francisco, há outros<br />

exemplos. Conta-nos Sofia:<br />

“Há um rapaz que mora no Monsanto,<br />

o pai é guarda-florestal e<br />

ele vai para o pé <strong>do</strong> pai. Há outro<br />

que gosta tanto <strong>de</strong> tractores, que<br />

mal acabe isto, fica cá como tractorista.<br />

Como o Ricar<strong>do</strong>.”<br />

Ao Ricar<strong>do</strong> fomos encontrá-lo<br />

em cima <strong>do</strong> seu tractor. Parou<br />

para nos cumprimentar com o<br />

seu cativante sorriso tími<strong>do</strong> e<br />

simpático. As calças empoeiradas,<br />

a camisa aos quadra<strong>do</strong>s, <strong>de</strong><br />

mangas arregaçadas, e <strong>na</strong> cabeça<br />

uma boi<strong>na</strong> como usam os<br />

avós. Ricar<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>u <strong>na</strong> Casa<br />

Pia até ao nono ano, mesmo ali<br />

<strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da estrada, e acabou<br />

o ano passa<strong>do</strong> o curso <strong>de</strong><br />

Produção Agrária <strong>na</strong> <strong>Escola</strong> da<br />

Paiã. Depois <strong>de</strong> uma má experiência<br />

<strong>de</strong> trabalho em Castelo<br />

Branco, voltou às origens e hoje<br />

trabalha <strong>na</strong> escola como auxiliar<br />

agrícola. Mas o que Ricar<strong>do</strong><br />

quer mesmo é ser motorista,<br />

como o pai Custódio.<br />

Gosto mais <strong>de</strong> prática<br />

As ligações familiares não se<br />

ficam pelos laços <strong>de</strong> sangue entre<br />

o Ricar<strong>do</strong> e o Sr. Custódio.<br />

“A<strong>do</strong>ro os meus professores.<br />

Isto é como se fosse uma família.<br />

Toda a gente fala abertamente.”,<br />

diz Sofia. Para Francisco, no entanto,<br />

as coisas não correm assim<br />

tão bem. “Sempre me portei<br />

um boca<strong>do</strong> mal, fui expulso <strong>de</strong> 3<br />

escolas. Acho que aqui assentei<br />

um bocadinho, principalmente<br />

no segun<strong>do</strong> ano. No primeiro<br />

ano tivemos muitos problemas,<br />

mas não fui só eu, foi a turma inteira,<br />

dava-se tu<strong>do</strong> mal. Este ano<br />

correu bem.”<br />

O bom ambiente <strong>na</strong> escola é talvez<br />

facilita<strong>do</strong> pela partilha das activida<strong>de</strong>s<br />

ao ar livre. Sen<strong>do</strong> uma escola<br />

profissio<strong>na</strong>l, a escola da Paiã<br />

tem uma componente prática<br />

muito gran<strong>de</strong>, mas não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />

ser uma escola <strong>do</strong> ensino secundário.<br />

Sofia não se sente diminuída<br />

perante os amigos <strong>de</strong> fora: “Eu<br />

tenho amigos que querem seguir<br />

Medici<strong>na</strong> e é isso que eu quero<br />

<br />

também, Medici<strong>na</strong> Veterinária.<br />

An<strong>do</strong> numa escola agrícola porque<br />

gosto mais <strong>de</strong> prática.”<br />

Os alunos <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> ano têm<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estagiar num<br />

sítio à sua escolha, durante três<br />

sema<strong>na</strong>s. Tanto para Francisco,<br />

como para Sofia, o estágio serviu<br />

para confirmar os seus gostos.<br />

O rapaz não foi trabalhar com<br />

A <strong>Escola</strong> D. Dinis da Paiã é uma<br />

entre as 18 escolas profissio<strong>na</strong>is<br />

agrícolas <strong>do</strong> país e tem<br />

quatro cursos à escolha. Qualquer<br />

um <strong>do</strong>s cursos dá equivalência<br />

ao 12º ano e permite o<br />

ingresso tanto no ensino superior<br />

como no merca<strong>do</strong> trabalho,<br />

com uma qualificação <strong>de</strong> técnico<br />

profissio<strong>na</strong>l. Os cursos que<br />

trabalham com a terra são o <strong>de</strong><br />

Produção Agrária e o <strong>de</strong> Jardi-<br />

OS CURSOS<br />

<br />

o avô <strong>na</strong> Serra <strong>de</strong> Montejunto<br />

porque não se queria privar da<br />

companhia <strong>do</strong>s amigos e das tar<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> surf em Cascais. A minha<br />

mãe é veterinária e directora da<br />

divisão oeste <strong>do</strong> Ministério da<br />

Agricultura, e eu, para ver se<br />

era mesmo para vegetal que ia,<br />

fui fazer com ela a parte animal,<br />

em Loures.” Já Sofia só <strong>po<strong>de</strong>r</strong>ia<br />

<strong>na</strong>gem e Espaços Ver<strong>de</strong>s. Com<br />

um cariz mais mo<strong>de</strong>rno, existe<br />

o <strong>de</strong> Gestão <strong>de</strong> Ambiente e o <strong>de</strong><br />

Processamento e Controlo Alimentar.<br />

Os alunos <strong>de</strong>ste último<br />

curso encarregam-se da a<strong>de</strong>ga<br />

e da zo<strong>na</strong> <strong>de</strong> transformação alimentar<br />

– são eles que fabricam<br />

os queijos, vinhos, licores, compotas,<br />

enchi<strong>do</strong>s, que a escola<br />

ven<strong>de</strong> para fora e aos próprios<br />

alunos e funcionários.<br />

VERA MOUTINHO<br />

VERA MOUTINHO<br />

ter i<strong>do</strong> para ao pé <strong>do</strong>s cavalos.<br />

Estagiou <strong>na</strong> GNR, o que a fez<br />

repensar o futuro. “Têm muitos<br />

cavalos, comecei a gostar <strong>de</strong> lá<br />

estar e a pensar se queria mesmo<br />

ser veterinária.” Costuma<br />

dizer-se que, em Portugal, os<br />

pais querem to<strong>do</strong>s que os filhos<br />

sejam <strong>do</strong>utores, mas trabalhar<br />

<strong>na</strong> GNR era a maior alegria que<br />

Sofia podia dar ao pai. “Quan<strong>do</strong><br />

Costuma dizer-se que,<br />

em Portugal, os pais<br />

querem to<strong>do</strong>s que os<br />

filhos sejam <strong>do</strong>utores,<br />

mas trabalhar <strong>na</strong> GNR<br />

era a maior alegria que<br />

Sofia podia dar ao pai.<br />

acabar o terceiro ano, inscrevome<br />

no curso <strong>de</strong> nove meses da<br />

GNR. Quan<strong>do</strong> acabar, inscrevome<br />

nos exames <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. Se<br />

conseguir entrar <strong>na</strong> Universida<strong>de</strong><br />

vou para Veterinária, senão<br />

fico <strong>na</strong> GNR.” Sofia sabe que<br />

para fazer os exames vai ter <strong>de</strong><br />

ficar um ano a ter explicações <strong>de</strong><br />

Matemática e Biologia. Aliás, to<strong>do</strong>s<br />

os alunos da <strong>Escola</strong> da Paiã<br />

que querem ir para o Ensino<br />

<strong>Superior</strong> o sabem, uma vez que<br />

a bagagem teórica que levam é<br />

muito reduzida quan<strong>do</strong> comparada<br />

com a <strong>do</strong> ensino regular.<br />

Em dia <strong>de</strong> festa, estágios, futuro,<br />

cursos tor<strong>na</strong>m-se realida<strong>de</strong>s<br />

difusas. No fim da visita guiada,<br />

voltamos ao la<strong>do</strong> informal, à zo<strong>na</strong><br />

barulhenta e confusa. As únicas<br />

preocupações <strong>do</strong>s alunos, neste<br />

momento, são os passos <strong>de</strong> folclore<br />

ensaia<strong>do</strong>s nos últimos dias, a<br />

corrida às sardinhas assadas, a<br />

guerreada <strong>do</strong> fim da tar<strong>de</strong>. A Sofia,<br />

o Francisco, o Carlos são a<strong>do</strong>lescentes<br />

iguais aos outros. Têm<br />

ape<strong>na</strong>s uma particularida<strong>de</strong>:<br />

escolheram não <strong>de</strong>ixar morrer a<br />

profissão <strong>do</strong>s nossos avós.


18 DOSSIÊ<br />

CENTRO DE FORMAÇÃO PROFISSINAL FORPESCAS<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

Pesca<strong>do</strong>res <strong>de</strong> água <strong>do</strong>ce<br />

<br />

HÁ OUTROS Q<strong>UE</strong> DECIDEM DEDICAR-SE À PESCA. EM COMUM TÊM O GOSTO<br />

PELA BIOLOGIA MARINHA E O SONHO DE INGRESSAR NO ENSINO SUPERIOR.<br />

TELMA BARONA<br />

Faltam 10 minutos para as duas da tar<strong>de</strong>.O<br />

tempo convida a um mergulho, ainda mais<br />

para quem está perto da praia. No ar corre<br />

uma brisa agradável e um cheiro a mar e a<br />

Verão.Numa das ruas que contor<strong>na</strong>m a coli<strong>na</strong><br />

encontramos o Forpescas <strong>de</strong> Sesimbra.<br />

No átrio os alunos aproveitam a pausa <strong>do</strong><br />

almoço para conversar. E Vitor Martins,<br />

21 anos, não é excepção. Com uma entoação<br />

forte <strong>de</strong>clara: “se chumbar, bazo”.<br />

O calão faz parte <strong>do</strong> seu vocabulário. Vítor<br />

esforça-se por animar o ambiente. As piadas<br />

e as brinca<strong>de</strong>iras ajudam a <strong>de</strong>scontrair e esquecer<br />

que se encontra longe <strong>de</strong> casa, <strong>do</strong>s<br />

pais e <strong>do</strong>s amigos. Proveniente da Guarda,<br />

é por intermédio da prima que tem conhecimento<br />

<strong>do</strong> Forpescas e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> inscrever-se<br />

no curso <strong>de</strong> Técnico <strong>de</strong> Aquacultura. “Eu<br />

estava no 12º ano, em científico-<strong>na</strong>tural,<br />

mas como não fiz Física e para não estar lá<br />

mais uns anos <strong>de</strong>cidi vir para cá”, explica.<br />

Para o Vítor, o que mais o atraiu <strong>na</strong> escola<br />

foi a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficar com a equivalência<br />

<strong>de</strong> 12º ano e uma bolsa <strong>de</strong> alimentação<br />

e <strong>de</strong> alojamento. “A minha mãe apoiou-me<br />

muito - conta -, mas o meu pai não gostou<br />

por ser muito longe <strong>de</strong> casa”.<br />

O início das aulas foi para Vitor o início<br />

<strong>de</strong> uma vida nova. Aluno <strong>do</strong> primeiro ano,<br />

Vítor já tem planos para o futuro: “Em acaban<strong>do</strong><br />

o curso estou a pensar ficar por aqui<br />

e tentar o acesso à universida<strong>de</strong> <strong>na</strong> área <strong>de</strong><br />

Biologia Marinha”.<br />

Uma perspectiva <strong>de</strong> futuro<br />

O Forpescas é um Centro <strong>de</strong> Formação<br />

Profissio<strong>na</strong>l para o Sector das Pescas, com<br />

várias filiais espalhadas por to<strong>do</strong> o país:<br />

Via<strong>na</strong> <strong>do</strong> Castelo, Póvoa <strong>do</strong> Varzim, Matosinhos,<br />

Ílhavo, Figueira da Foz, Peniche,<br />

Sesimbra e Olhão. Os alunos que procuram<br />

a escola têm <strong>na</strong> sua maioria o 9º ano<br />

e procuram a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obter a equivalência<br />

ao 12º ano.<br />

Maria<strong>na</strong> Ca<strong>na</strong>leira, Técnica <strong>Superior</strong> <strong>de</strong><br />

Coor<strong>de</strong><strong>na</strong>ção <strong>do</strong>s Cursos, explica que, no<br />

início, os alunos, quase sempre homens,<br />

queriam frequentar o curso <strong>de</strong> pesca<strong>do</strong>r,<br />

porque tinham pais pesca<strong>do</strong>res e queriam<br />

aprofundar conhecimentos. “Actualmente,<br />

a maior parte <strong>de</strong>les não vem com o objectivo<br />

<strong>de</strong> continuar. De há 5 ou 6 anos para cá,<br />

inscrevem-se no curso <strong>de</strong> Técnico <strong>de</strong> Aquacultura<br />

com o objectivo <strong>de</strong> termi<strong>na</strong>r o 12º<br />

ano”, explicita. Mas mesmo assim o número<br />

<strong>de</strong> alunos inscritos tem vin<strong>do</strong> a diminuir.<br />

“Chegámos a ter duas e três turmas a<br />

funcio<strong>na</strong>r em cada ano. Agora só conseguimos<br />

constituir uma”, completa.<br />

A escola, para além da componente técnica,<br />

procura dar uma formação <strong>na</strong> área das<br />

Humanida<strong>de</strong>s, daí que discipli<strong>na</strong>s como<br />

Mun<strong>do</strong> Actual ou Desenvolvimento Pessoal<br />

e <strong>Social</strong> façam parte <strong>do</strong> plano curricular.<br />

Maria<strong>na</strong> reconhece a importância <strong>de</strong>ste<br />

tipo <strong>de</strong> matérias para estimular a cidadania<br />

e ainda fala <strong>na</strong> importância <strong>de</strong> a escola<br />

fazer o acompanhamento psicológico <strong>do</strong>s<br />

alunos. “Era importante ter uma psicóloga,<br />

porque vêm aqui parar muitos jovens com<br />

um ambiente familiar <strong>de</strong>sestrutura<strong>do</strong>”.<br />

Há uma preocupação da escola com a integração<br />

<strong>de</strong>stes alunos no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho.<br />

Mas o sector da Aquacultura absorve<br />

muito pouca mão-<strong>de</strong>-obra: “Não é que não<br />

haja empresas <strong>de</strong> aquacultura, mas são<br />

familiares, on<strong>de</strong> trabalham os primos, os<br />

tios, os pais e os filhos. E só durante um<br />

ou <strong>do</strong>is meses <strong>na</strong> época da pesca é que procuram<br />

pessoas, mas querem pessoas com<br />

mais força e que ganhem pouco. É por isso<br />

que procuram os emigrantes <strong>do</strong> Leste”.<br />

A importância da literatura<br />

Já são duas horas da tar<strong>de</strong>. É tempo <strong>de</strong> começarem<br />

as aulas. Vítor vai ter Português.<br />

Cantigas <strong>de</strong> amigo, cantigas <strong>de</strong> amor e cantigas<br />

<strong>de</strong> escárnio e maldizer já soam familiares<br />

a Vítor e aos seus colegas <strong>do</strong> 1º ano.<br />

Os cinco minutos iniciais servem para a forma<strong>do</strong>ra<br />

perguntar pelos trabalhos <strong>de</strong> casa e<br />

confirmar se os alunos os fizeram. Desta vez<br />

foi pedi<strong>do</strong> que, em grupos <strong>de</strong> <strong>do</strong>is, recolhessem<br />

letras <strong>de</strong> músicas galaico-portuguesas<br />

que exemplificassem o tipo <strong>de</strong> música no<br />

século XII. Ninguém trouxe a música, só a<br />

letra em papel. Vítor é o primeiro que, num<br />

tom <strong>de</strong> brinca<strong>de</strong>ira, se tenta <strong>de</strong>sculpar.<br />

Na sala, as poucas mesas que existem estão<br />

organizadas em U. Por trás <strong>de</strong> Vítor, uma<br />

janela gran<strong>de</strong> dá para a praia. Ainda assim<br />

Vítor acompanha a aula com atenção e vai<br />

explican<strong>do</strong> ao Marco, o seu colega <strong>do</strong> la<strong>do</strong>,<br />

o que este não enten<strong>de</strong>. Hoje estão to<strong>do</strong>s<br />

com uma atenção re<strong>do</strong>brada, a forma<strong>do</strong>ra<br />

está a falar <strong>do</strong> teste e da matéria que vão<br />

ter <strong>de</strong> estudar. Vítor, que não pára <strong>de</strong> dizer<br />

gracinhas, comenta: “a //setôra hoje parece<br />

a Wei Min <strong>do</strong>s Morangos com Açúcar”.<br />

A criação e comercialização <strong>de</strong> peixe<br />

A frequentar o mesmo curso que Vitor<br />

está Djamico Neto, 22 anos, <strong>de</strong> Massamá.<br />

Faz parte <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong> fi<strong>na</strong>listas. Partilha<br />

o sonho <strong>do</strong> Vítor <strong>de</strong> ir para a universida<strong>de</strong>.<br />

“Eu escolhi este curso porque o<br />

meu objectivo era fazer Biologia Marinha.<br />

Tentei fazer por via geral, mas era<br />

dificil. Foi então que encontrei este cur-<br />

so, que era mais fácil e estava perto <strong>de</strong><br />

casa”. Djamico não se arrepen<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter<br />

aban<strong>do</strong><strong>na</strong><strong>do</strong> a escola a meio <strong>do</strong> 10º ano,<br />

porque no Forpesca ficou a saber mais<br />

sobre aquacultura, uma área que o interessa<br />

e que o leva a encarar com ânimo<br />

o estágio <strong>de</strong> fi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> curso numa empresa<br />

<strong>do</strong> ramo. Djamico está numa sala no<br />

corre<strong>do</strong>r transversal à sala <strong>de</strong> Vítor . A<br />

aula é <strong>de</strong> Área Tecnológica. Hoje é dia <strong>de</strong><br />

apresentação <strong>de</strong> trabalhos, mas <strong>de</strong>vi<strong>do</strong><br />

a um problema nos computa<strong>do</strong>res só o<br />

grupo <strong>de</strong> Djamico é que consegue fazer a<br />

apresentação.<br />

Esta sala <strong>de</strong> aulas tem uma organização diferente.<br />

As mesas estão junto à pare<strong>de</strong> e formam<br />

um quadra<strong>do</strong>. Agora o projector está liga<strong>do</strong><br />

porque a apresentação está a <strong>de</strong>correr.<br />

Os alunos conversam uns com os outros. Viram-se<br />

para trás, riem-se, brincam, gozam.<br />

Até que chega a vez <strong>de</strong> Djamico ser a vítima<br />

das brinca<strong>de</strong>iras. Mas ele, concentra<strong>do</strong>, começa<br />

a apresentação <strong>do</strong> seu trabalho sobre a<br />

visita <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> à Abadia, on<strong>de</strong> viram aquaculturas<br />

<strong>de</strong> truta, prega<strong>do</strong>, lingua<strong>do</strong>, ro<strong>do</strong>valho<br />

e ainda uma empresa <strong>de</strong> rações.<br />

A<strong>na</strong> Marques, forma<strong>do</strong>ra da Área Tecnológica,<br />

explica que “os alunos estão <strong>de</strong>smotiva<strong>do</strong>s<br />

para o ensino oficial e muitos nem<br />

sabem o que querem. A primeira turma que<br />

tive era mesmo isto que queria”, completa.<br />

“O problema é que, com a remo<strong>de</strong>lação,<br />

estes cursos não preparam os alunos para<br />

ingressar <strong>na</strong> universida<strong>de</strong>. Se em tempos<br />

LUÍS FRANCO<br />

houve alunos que fizeram os exames <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is<br />

e entraram, agora isso não é possível<br />

porque foram retiradas muitas discipli<strong>na</strong>s<br />

fundamentais”. Perante uma turma <strong>de</strong> alunos<br />

sem muita motivação, A<strong>na</strong> tem <strong>de</strong> encontrar<br />

um méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> ensino que os motive:<br />

“Eles não conseguem estar muito tempo<br />

a ouvir a teoria e para<strong>do</strong>s, por isso temos <strong>de</strong><br />

dar muitos exemplos práticos”. Leccio<strong>na</strong> <strong>na</strong><br />

escola <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1996, o que diz ter-lhe da<strong>do</strong> muita<br />

experiência <strong>de</strong> vida porque já ensinou até<br />

os pesca<strong>do</strong>res mais velhos que procuravam<br />

aprofundar o seu saber.<br />

As mulheres <strong>na</strong> Aquacultura<br />

Na turma <strong>de</strong> Djamico as mulheres representam<br />

meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> número <strong>de</strong> alunos. Há alguns<br />

anos, as mulheres da família entravam no<br />

mun<strong>do</strong> da pesca para ajudarem os mari<strong>do</strong>s.<br />

Actualmente, a realida<strong>de</strong> é diferente. Estas<br />

jovens escolhem a área da pesca por vonta<strong>de</strong><br />

própria. É uma área <strong>de</strong> que gostam, até<br />

porque o trabalho numa Aquacultura é menos<br />

rigoroso <strong>do</strong> que num barco <strong>de</strong> pesca.<br />

A<strong>na</strong> Filipa Capitão, 19 anos, é a alu<strong>na</strong><br />

mais nova <strong>de</strong>sta turma <strong>de</strong> 3º ano. Como os<br />

outros alunos, preferiu a escola profissio<strong>na</strong>l<br />

ao ensino oficial. “Na escola normal<br />

não tinha ânimo <strong>de</strong> estudar e vim para<br />

aqui para tirar o 12º ano. Estou a pensar<br />

ir para a faculda<strong>de</strong> para tirar Biologia<br />

Marinha ou Fiscalização <strong>do</strong> Pesca<strong>do</strong>”. A<br />

escolha <strong>de</strong> A<strong>na</strong> era ir para anima<strong>do</strong>ra sócio-cultural<br />

em Setúbal, mas neste curso<br />

<strong>po<strong>de</strong>r</strong>á seguir as pegadas da família, que<br />

trabalha no ramo da pesca. “Uns comercializam,<br />

outros fazem o transporte – e,<br />

com ar preocupa<strong>do</strong>, confessa - tenho muito<br />

me<strong>do</strong> <strong>do</strong> futuro, mas como o meu tio<br />

está nesta área po<strong>de</strong> ser que consiga alguma<br />

coisa para mim. Ou então vou para o<br />

Intermaché ven<strong>de</strong>r peixe”, ri.<br />

É uma pessoa comunicativa e por isso fala<br />

<strong>do</strong> estágio no aquário Vasco da Gama com<br />

alegria: “A<strong>do</strong>rei a experiência, porque podia<br />

conviver com as pessoas”. Mas o seu<br />

<strong>de</strong>sejo é sair <strong>de</strong> Sesimbra: “Eu tenho muita<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir para outro meio, porque<br />

Sesimbra é um meio muito fecha<strong>do</strong>”.<br />

A aula terminou. Vítor é <strong>do</strong>s primeiros a<br />

sair. A A<strong>na</strong> Filipa hoje tem a companhia<br />

da mãe. Vão as duas às compras para o<br />

casamento, que está a planear para breve.<br />

Só Djamico é que ainda permanece senta<strong>do</strong>,<br />

em frente à professora, a tirar algumas<br />

dúvidas que ficaram sobre Aquacultura.<br />

LUÍS FRANCO


8ª COLINA I JUNHO 2006 DESPORTO 19<br />

O MUNDO DOS GINÁSIOS DE LUXO<br />

INÊS HENRIQ<strong>UE</strong>S<br />

E MARTA MESQUITA<br />

Boa tar<strong>de</strong>. Cartão <strong>de</strong> sócio. Toalha<br />

e chaves em troca. Balneários<br />

da pisci<strong>na</strong> ou <strong>do</strong> ginásio? Senha<br />

para Body Combat. Po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar a<br />

criança no Kids Place. Próximo.<br />

Cartão <strong>de</strong> sócio. Renovar atesta<strong>do</strong><br />

médico, muito importante.<br />

Mensalida<strong>de</strong> em dia. Duas toalhas<br />

em vez <strong>de</strong> roupão. Pisci<strong>na</strong> e<br />

solário. Já conhece o nosso programa<br />

<strong>de</strong> perda <strong>de</strong> peso? Próximo.<br />

Informações sobre os preços<br />

das activida<strong>de</strong>s? Ali em frente,<br />

no atendimento. A seguir, se faz<br />

favor, atrapalham-se as meni<strong>na</strong>s<br />

da recepção. A seguir, uma fila<br />

interminável <strong>de</strong> executivos ainda<br />

engravata<strong>do</strong>s, mulheres bem<br />

parecidas e miú<strong>do</strong>s pela mão,<br />

raparigas e rapazes novos, irrequietos.<br />

Ou não fosse terça-feira<br />

fim <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>. Hora <strong>de</strong> enchente e<br />

<strong>do</strong> “livre-trânsito”. Fim <strong>de</strong> mais<br />

um dia <strong>de</strong> trabalho, altura i<strong>de</strong>al<br />

para o <strong>de</strong>sporto, dizem, quan<strong>do</strong><br />

o corpo atinge a sua temperatura<br />

máxima.<br />

O luxo que se procura<br />

Ali ajudam a preparar a fórmula<br />

<strong>do</strong> corpo perfeito, a melhorar a performance,<br />

a auto-estima, a saú<strong>de</strong>, a<br />

qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, o gosto pelo <strong>de</strong>sporto,<br />

quem sabe as relações interpessoais.<br />

É só escolher um horário<br />

fixo ou <strong>de</strong> livre circulação, adquirir<br />

o cartão mágico, que é como o<br />

ADN <strong>do</strong> sócio e optar diariamente<br />

pelas activida<strong>de</strong>s: <strong>na</strong>tação, ginástica<br />

localizada, cardiofitness, musculação,<br />

Body Pump, Body Combat,<br />

RPM, ténis. Talvez ce<strong>de</strong>r aos<br />

apelos <strong>do</strong>s programas especiais,<br />

anuncia<strong>do</strong>s nos placards, mesmo<br />

por cima das nossas cabeças: danças<br />

africa<strong>na</strong>s e brasileiras, express<br />

yourself, pilates, hidro<strong>de</strong>ep, perda<br />

<strong>de</strong> peso. Usufruir <strong>de</strong> um person<strong>na</strong>l<br />

trainer, para não ce<strong>de</strong>r aos <strong>de</strong>scui<strong>do</strong>s<br />

perniciosos da vaida<strong>de</strong> e seguir<br />

um treino a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> ao esta<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong> e às motivações <strong>de</strong> cada um.<br />

Levar os miú<strong>do</strong>s e inscrevê-los no<br />

mini-mergulho, no futebol, <strong>de</strong>ixálos<br />

a brincar no Kids Place ou no<br />

castelo insuflável. Levar a família<br />

para as aulas em grupo e os mais<br />

velhos para a hidroginástica. Desfrutar<br />

<strong>do</strong> jardim com solário <strong>na</strong>tural,<br />

relaxar <strong>na</strong> sau<strong>na</strong> e no banho<br />

turco e termi<strong>na</strong>r <strong>na</strong> espla<strong>na</strong>da a<br />

apreciar as vistas sobre a mata <strong>do</strong><br />

Jamor. Só não vale arranjar <strong>de</strong>sculpas<br />

para ficar em casa ou limitar-se<br />

a passear o cão.<br />

Nos últimos anos muitos ginásios<br />

brotaram à sombra <strong>do</strong> culto<br />

da boa forma física. Para além<br />

<strong>do</strong>s ginásios <strong>de</strong> bairro, que ainda<br />

subsistem, foram sobretu<strong>do</strong><br />

as ca<strong>de</strong>ias inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e os<br />

chama<strong>do</strong>s Health Clubs, Fitness<br />

Centers ou SPA que cresceram.<br />

Nomes pomposos e mais atraentes,<br />

que aliam as activida<strong>de</strong>s da<br />

moda e os mais mo<strong>de</strong>rnos equi-<br />

Complexo <strong>de</strong> Adónis<br />

<br />

-<br />

<br />

E CONVIDAM A TRABALHAR O CORPO PARA O VERÃO.<br />

NÚMEROS SOBRE O FITNESS<br />

Em Portugal há cerca <strong>de</strong><br />

1500 ginásios, estiman<strong>do</strong>se<br />

que sejam frequenta<strong>do</strong>s<br />

diariamente por meio milhão<br />

<strong>de</strong> portugueses.<br />

Um estu<strong>do</strong> da Marktest diz<br />

que cerca <strong>de</strong> 58% <strong>do</strong>s indivíduos<br />

que frequentam os ginásios<br />

são mulheres, 39,5%<br />

resi<strong>de</strong>m em Lisboa e Porto,<br />

63,3% pertencem às classes<br />

sociais alta e média e 41,1%<br />

são quadros médios e superiores<br />

ou estudantes.<br />

pamentos <strong>de</strong> treino físico ao conforto<br />

e bem-estar e a uma certa<br />

projecção social.<br />

António Macias, presi<strong>de</strong>nte da ca<strong>de</strong>ia<br />

Active Life, afirma que o conceito<br />

<strong>de</strong> ginásio “está a <strong>de</strong>saparecer”.<br />

As pessoas procuram agora<br />

o “clube”, para ocupar o tempo e<br />

“fazer novas amiza<strong>de</strong>s” e ali “experienciam<br />

mais <strong>do</strong> que um treino”,<br />

têm “emoções e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

vida” entre as várias activida<strong>de</strong>s e<br />

serviços <strong>de</strong> que dispõem.<br />

João Ribeiro, 24 anos, person<strong>na</strong>l<br />

trainer e instrutor <strong>de</strong> RPM no<br />

Holmes Place das Amoreiras,<br />

adianta que os frequenta<strong>do</strong>res <strong>de</strong><br />

“ginásios <strong>de</strong> luxo” são pessoas “da<br />

classe média e média alta”. Neste<br />

clube, a mensalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 90 euros<br />

é um luxo acessível a poucos, mas<br />

que tem como contrapartida “um<br />

serviço físico que, alia<strong>do</strong> a tu<strong>do</strong><br />

o que o ginásio oferece, se tor<strong>na</strong><br />

também mental”, uma espécie <strong>de</strong><br />

incentivo. Mas há outros e João<br />

ressalva o factor <strong>do</strong> status social:<br />

“Algumas pessoas inscrevem-se<br />

só para dizer que andam nos Holmes<br />

Place, on<strong>de</strong> há famosos, mas<br />

<strong>de</strong>pois não aparecem”.<br />

Trabalhar o corpo po<strong>de</strong> representar<br />

uma gran<strong>de</strong> quebra no<br />

orçamento familiar e no tempo<br />

disponível, por isso há quem só<br />

procure os ginásios como preparação<br />

para a época balnear. Em<br />

Setembro po<strong>de</strong>m respirar <strong>de</strong> alívio<br />

e sucumbir ao <strong>do</strong>lce far niente.<br />

As infinitas possibilida<strong>de</strong>s que<br />

as mo<strong>de</strong>r<strong>na</strong>s ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> ginásios<br />

oferecem, procuram assim contrariar<br />

a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o exercício<br />

físico é uma prática sazo<strong>na</strong>l e provar<br />

que toda a activida<strong>de</strong> espontânea<br />

durante o ano é preferível<br />

a sujeitarmos o organismo a um<br />

stress força<strong>do</strong>, <strong>de</strong> alguns meses.<br />

Mas se os dias mais compri<strong>do</strong>s e a<br />

menor quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> roupa fazem<br />

aumentar a disposição para o <strong>de</strong>sporto,<br />

é também nesta altura que os<br />

clubes se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bram em manobras<br />

<strong>de</strong> charme que lhes permitam equilibrar<br />

as contas durante o resto <strong>do</strong><br />

Os frequenta<strong>do</strong>res <strong>de</strong><br />

“ginásios <strong>de</strong> luxo” são<br />

pessoas “da classe<br />

média e média alta”.<br />

- João Ribeiro<br />

ano. Reforçam a publicida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong><br />

as mulheres surgem em <strong>de</strong>staque,<br />

pois são as que mais se preocupam<br />

com a imagem, sobem ligeiramente<br />

os preços ou apostam em pacotes<br />

especiais, como o caso <strong>do</strong> Holmes<br />

Place, que durante o Verão oferece<br />

uma inscrição a quem trouxer um<br />

amigo para se fazer sócio. Mas <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> se ganhar o gosto pelas activida<strong>de</strong>s<br />

e mimos que estes clubes<br />

oferecem, muitos são os que não<br />

querem abdicar <strong>de</strong>stes serviços e<br />

que renovam as inscrições, seja<br />

Verão ou Inverno, porque afi<strong>na</strong>l o<br />

que interessa é o bem-estar que se<br />

sente por fazer parte <strong>de</strong>stas comunida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> “luxo”.<br />

Clubes para to<strong>do</strong>s<br />

Raquel Nunes, 20 anos, confessa<br />

que entrou para o Solplay com o<br />

objectivo <strong>de</strong> emagrecer milagrosamente:<br />

“Chegava às 7h da manhã<br />

e só saía às 21h. Corria entre<br />

a escola e o ginásio, porque tenho<br />

livre passe e quase não comia”. O<br />

resulta<strong>do</strong> foi uma anorexia e uma<br />

<strong>de</strong>pressão, que a obrigaram a <strong>de</strong>sistir<br />

<strong>do</strong> <strong>de</strong>sporto. Hoje em dia regressou<br />

ao clube, on<strong>de</strong> frequenta<br />

um curso <strong>de</strong> instrutora <strong>de</strong> fitness<br />

inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Já consegue estabelecer<br />

a diferença entre o exercício<br />

saudável e obsessivo, mas<br />

reconhece que não fica um dia<br />

sem se “mexer” e que ainda passa<br />

uma hora a correr <strong>na</strong> passa<strong>de</strong>ira,<br />

“que é o limite da máqui<strong>na</strong>”. Ganhou<br />

o gosto pela sensação “<strong>de</strong><br />

trabalhar o corpo” e até o ambiente<br />

<strong>do</strong> ginásio melhorou aos seus<br />

olhos: “agora é como se estivesse<br />

em casa, já não estou aqui com o<br />

mesmo objectivo e nem me incomoda<br />

a competitivida<strong>de</strong> pela boa<br />

aparência física que aqui existe,<br />

sobretu<strong>do</strong> entre as mulheres”.<br />

Aos 77 anos “quase perdi<strong>do</strong>s”, Lívia<br />

<strong>de</strong> Melo é um exemplo <strong>de</strong> jovialida<strong>de</strong><br />

e boa forma e a prova <strong>de</strong><br />

que o exercício físico não é necessariamente<br />

um sacrifício. Peque-<br />

CLARA DINIS<br />

<strong>na</strong>, <strong>de</strong>sinquieta e <strong>de</strong> ar janota, é a<br />

mascote <strong>do</strong> Solplay, porque trata<br />

to<strong>do</strong>s por “amor” e faz “uma festa<br />

<strong>de</strong> qualquer activida<strong>de</strong>”, mas a<br />

prática <strong>de</strong>sportiva vai muito além<br />

<strong>do</strong> ginásio. Participa em provas<br />

<strong>de</strong> corrida sempre que po<strong>de</strong>, que<br />

já lhe valeram “bonitas taças” e<br />

o hábito vem-lhe <strong>de</strong> longe: “<strong>de</strong>scobri<br />

o bichinho da corrida <strong>na</strong>s<br />

praias <strong>do</strong> Brasil, mas já quan<strong>do</strong><br />

era mecânica e ajudava o meu<br />

mari<strong>do</strong>, tu<strong>do</strong> o que ele me pedia<br />

era assim: vai buscar a chave <strong>de</strong><br />

fendas, corre, corre!”. Viúva há<br />

15 anos, sem filhos, o <strong>de</strong>sporto é<br />

um escape a uma vida <strong>de</strong> solidão,<br />

mas também o seu maior prazer,<br />

porque lhe dá uma sensação <strong>de</strong><br />

liberda<strong>de</strong> e “já bastava quan<strong>do</strong><br />

era controlada pelo mari<strong>do</strong>”. Enquanto<br />

“houver sol”, diz que não<br />

consegue “estar quieta” e que só<br />

é feliz <strong>na</strong> rua, pois “a vida é bela<br />

<strong>de</strong> mais para ficar sentada em<br />

casa”. Faz jus ao mote estampa<strong>do</strong><br />

<strong>na</strong> t-shirt ver<strong>de</strong>-vivo, “toca a mexer”<br />

e não passa um dia sem vir<br />

ao ginásio, sobretu<strong>do</strong> às aulas <strong>de</strong><br />

<strong>na</strong>tação. Até já tentou convencer<br />

as amigas a vir, mas “elas já só falam<br />

em <strong>do</strong>enças”. Cuida<strong>do</strong>sa com<br />

a alimentação, sobretu<strong>do</strong> “com as<br />

gorduras”, Lívia não tem “uma<br />

<strong>do</strong>r <strong>de</strong> ossos” e assegura que o coração<br />

“está uma rocha”.<br />

O dia no ginásio termi<strong>na</strong> ao som<br />

da aula <strong>de</strong> Combat. Experimentam-se<br />

as técnicas <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa pessoal,<br />

saboreia-se a sensação <strong>de</strong><br />

auto-<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> corpo. Os fatos<br />

sisu<strong>do</strong>s <strong>de</strong>spiram-se para os tops<br />

justos, para os calções curtos que<br />

realçam os contornos <strong>do</strong>s músculos.<br />

Agarra-se o ritmo <strong>do</strong>s movimentos<br />

projecta<strong>do</strong>s nos espelhos,<br />

alguns mais <strong>de</strong>scoor<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong>s, aceleram-se<br />

as repetições das séries<br />

<strong>de</strong> passos e o compasso <strong>de</strong>mora<strong>do</strong><br />

pelo esforço. Soltam-se os gritos<br />

combi<strong>na</strong><strong>do</strong>s com o trejeito das<br />

per<strong>na</strong>s, o balançar <strong>do</strong>s braços, o<br />

incentivo <strong>do</strong> professor. Esconjura-se<br />

o stress <strong>de</strong> mais um dia, para<br />

além das quatro pare<strong>de</strong>s <strong>do</strong> amplo<br />

estúdio e, no fi<strong>na</strong>l, aplau<strong>de</strong>-se o<br />

empenho <strong>de</strong> uns e <strong>de</strong> outros.<br />

<br />

<br />

CLARA DINIS


20 DESPORTO<br />

RICARDO FERNANDES, CAMPEÃO EUROPEU DE KICKBOXING<br />

O herói da<br />

Cova da Moura<br />

<br />

RICARDO<br />

-<br />

<br />

O MAIS JOVEM CAMPEÃO EUROPEU DA HISTÓRIA DO <br />

JOANA DALILA SANTOS<br />

“Para o canto vermelho, sem<br />

mais <strong>de</strong>mora, vamos chamar o<br />

atleta que veio <strong>de</strong> França: Alli<br />

Haddad! E para o canto azul, 21<br />

anos, 1,78, 71 kg, o atleta Ricar<strong>do</strong><br />

Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s!”. O público entra em<br />

alvoroço e grita pelo <strong>de</strong>sportista<br />

português. Este é mais um <strong>do</strong>s<br />

muitos torneios em que Ricar<strong>do</strong><br />

participa, o K-1 Gala <strong>do</strong>s Campeões,<br />

no pavilhão Paz e Amiza<strong>de</strong><br />

em Loures. O K-1 é uma junção<br />

<strong>de</strong> várias técnicas provenientes<br />

<strong>do</strong> kickboxing e nele só lutam os<br />

melhores <strong>de</strong> entre os melhores,<br />

num único sistema <strong>de</strong> regras:<br />

<strong>do</strong>is combates e uma fi<strong>na</strong>l on<strong>de</strong> o<br />

KO <strong>de</strong>fine o vence<strong>do</strong>r.<br />

Um ringue vazio à espera <strong>de</strong> acção,<br />

música, luzes e um calor humano<br />

sufocante. Assim começa<br />

a competição. O cheiro activo a<br />

mentol a<strong>po<strong>de</strong>r</strong>a-se <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o pavilhão<br />

e faz ar<strong>de</strong>r os olhos, mas ninguém<br />

liga. O gel diminui as <strong>do</strong>res<br />

<strong>do</strong>s joga<strong>do</strong>res e o público, <strong>na</strong> sua<br />

maioria constituí<strong>do</strong> por homens,<br />

quer é ver gran<strong>de</strong>s combates.<br />

As luzes apagam-se e os olhares<br />

viram-se para o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> corre<strong>do</strong>r<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> saem, como feras, os<br />

atletas. Caminhar para o ringue é<br />

uma estranha forma <strong>de</strong> <strong>na</strong>rcisismo,<br />

um estranho gosto pelo sofrimento.<br />

Para<strong>do</strong>, com as mãos <strong>na</strong><br />

cintura e a sua crista vermelha,<br />

Ricar<strong>do</strong> Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s observa, com<br />

um ar <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio, toda a plateia,<br />

e só <strong>de</strong>pois avança para o ringue,<br />

no meio <strong>do</strong> fumo e ao som <strong>do</strong> rap<br />

<strong>de</strong> Redman. Ele conhece a acção.<br />

Sempre a conheceu. A única diferença<br />

é que no primeiro ringue<br />

on<strong>de</strong> entrou não havia árbitro<br />

nem regras. Lutava-se pela sobrevivência<br />

no meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>alers<br />

e gangsters. A norma era cada<br />

um por si <strong>na</strong>s ruas <strong>de</strong> um bairro<br />

on<strong>de</strong> <strong>na</strong>da é facilita<strong>do</strong> e ninguém<br />

facilita. O objectivo? Não per<strong>de</strong>r<br />

esta guerra obrigatória. O Ricar-<br />

JOANA SANTOS<br />

<strong>do</strong> conseguiu e tornou-se uma<br />

das melhores notícias da Cova da<br />

Moura.<br />

“Foi a loucura total”<br />

A mesma entrada em palco aconteceu<br />

num <strong>do</strong>s momentos mais<br />

marcantes da sua, tão curta mas<br />

talentosa, carreira: a luta pelo<br />

Título Europeu. “Foi em Novembro<br />

<strong>do</strong> ano passa<strong>do</strong>, em Milão. A<br />

lotação estava esgotada e ter 5000<br />

pessoas a olhar para ti… aí sim,<br />

quan<strong>do</strong> entras tens <strong>de</strong> te fazer <strong>de</strong><br />

forte à brava! Entrei, olhei à volta<br />

e avancei, mas quan<strong>do</strong> chegou a<br />

vez <strong>do</strong> outro foi a loucura total”,<br />

recorda o Ricar<strong>do</strong>. O italiano Michele<br />

Valleri era, obviamente, o<br />

preferi<strong>do</strong>. Afi<strong>na</strong>l era ele o campeão<br />

da Europa até então. “Não<br />

me <strong>de</strong>ixei intimidar, apesar <strong>de</strong><br />

ele vir <strong>de</strong> quarenta combates e <strong>de</strong><br />

ter ganho to<strong>do</strong>s por KO. Quan<strong>do</strong><br />

ele vinha em força para me bater<br />

eu <strong>de</strong>sviava-me e acertava-lhe<br />

<strong>na</strong> per<strong>na</strong> <strong>de</strong> apoio até ele cair”,<br />

“Eram 5000 pessoas a<br />

torcer pelo italiano. E<br />

foi um silêncio tão bom<br />

quan<strong>do</strong> eu ganhei!”<br />

acrescenta o atleta português.<br />

A ce<strong>na</strong> repete-se esta noite em<br />

Loures. Logo no primeiro combate,<br />

o Ricar<strong>do</strong> parece estar possuí<strong>do</strong><br />

e ataca sem parar, como se não<br />

existisse mais <strong>na</strong>da <strong>na</strong>quele momento.<br />

“Calma”, grita o trei<strong>na</strong><strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong> canto <strong>do</strong> ringue, mas Ricar<strong>do</strong><br />

não faz caso e ape<strong>na</strong>s a campainha<br />

obe<strong>de</strong>ce à or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> mestre,<br />

assi<strong>na</strong>lan<strong>do</strong> o fim <strong>do</strong> primeiro assalto.<br />

Só há tempo para ouvir uns<br />

conselhos tácticos, o trei<strong>na</strong><strong>do</strong>r e a<br />

ve<strong>de</strong>ta batem as mãos e o combate<br />

recomeça.<br />

À primeira vista parece uma relação<br />

meramente profissio<strong>na</strong>l entre<br />

um trei<strong>na</strong><strong>do</strong>r exalta<strong>do</strong> e um atleta<br />

sua<strong>do</strong>. Na verda<strong>de</strong>, são pai e filho:<br />

“Damo-nos bem”, diz o Ricar<strong>do</strong>,<br />

timidamente. “Se eu for trei<strong>na</strong>r<br />

está tu<strong>do</strong> muito bem, se eu não<br />

for ele fica <strong>do</strong>ente!”, acrescenta.<br />

Mário Fuzeta é o nome <strong>de</strong>ste pai<br />

trei<strong>na</strong><strong>do</strong>r e os olhos <strong>do</strong> atleta revelam<br />

a relação não muito pacífica<br />

entre os <strong>do</strong>is: “O kickboxing<br />

aproximou-nos. Antes<br />

mal o via porque sempre<br />

vivi só com a minha<br />

mãe no bairro”, explica.<br />

“P`ra cima <strong>de</strong>le, Ricar<strong>do</strong>!”,<br />

gritam os especta<strong>do</strong>res<br />

que apoiam o<br />

jovem português. Há<br />

até quem vista t-shirts<br />

que dizem: “Senta-te<br />

em cima <strong>de</strong>les!”. Ricar<strong>do</strong><br />

a<strong>do</strong>rou a surpresa.<br />

“Esses meus amigos são<br />

um espectáculo, fizeram<br />

isso sem eu saber para<br />

me virem dar apoio. Dizem<br />

que eu uso muitas<br />

vezes essa expressão e<br />

então aproveitaram”,<br />

conta o kickboxer. De<br />

facto, são muitos os amigos<br />

que vieram a Loures<br />

ver o Ricar<strong>do</strong>. Senta<strong>do</strong>s<br />

o mais próximo possível<br />

<strong>do</strong> ringue estão a Rita, o<br />

António, a Vera, o Amorim<br />

e, no fun<strong>do</strong> da fila,<br />

com um ar ansioso, está<br />

o Russo. “Nós conhecemo-nos<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre, crescemos<br />

juntos”, diz, cheio <strong>de</strong> orgulho. É<br />

fácil verificar que o Luís, como<br />

<strong>na</strong> realida<strong>de</strong> se chama, foi assim<br />

baptiza<strong>do</strong> no bairro <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à sua<br />

aparência. Muito louro e com uns<br />

gran<strong>de</strong>s olhos azuis, o Russo rói<br />

as unhas ao ver o amigo <strong>de</strong> infância<br />

lutar <strong>na</strong> are<strong>na</strong> e só respira<br />

<strong>de</strong> alívio quan<strong>do</strong> o árbitro dá as<br />

mãos aos <strong>do</strong>is atletas e se ouve:<br />

“E a vitória vai para… Ricar<strong>do</strong><br />

Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s”. O português tor<strong>na</strong>se<br />

assim no terceiro semifi<strong>na</strong>lista<br />

<strong>de</strong>sta noite e o seu próximo<br />

<strong>de</strong>safio é contra Ozeas Correia,<br />

que, em ape<strong>na</strong>s alguns segun<strong>do</strong>s,<br />

venceu o seu anterior adversário<br />

por KO.<br />

Ricar<strong>do</strong> não correspon<strong>de</strong> à imagem<br />

estereotipada <strong>de</strong> um praticante<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sportos <strong>de</strong> combate.<br />

Não seria o candidato com mais<br />

hipóteses num recrutamento<br />

para segurança <strong>de</strong> discoteca. No<br />

entanto, quan<strong>do</strong> pisa o tapete,<br />

transforma-se, e isso vê-se aqui,<br />

esta noite em Loures, quan<strong>do</strong> o<br />

Ricar<strong>do</strong> quase bateu Ozeas por<br />

KO. Quase.<br />

Neste segun<strong>do</strong> duelo nota-se que<br />

os atletas estão cansa<strong>do</strong>s. É um<br />

ver quem aguenta mais, apesar<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

<br />

da <strong>do</strong>rmência nos braços e <strong>do</strong><br />

aperto no estômago por já “cheirar<br />

a fi<strong>na</strong>l”. É um lutar com toda<br />

a força para que a fi<strong>na</strong>l não seja<br />

já ali. Mas Ricar<strong>do</strong> já aguentou<br />

muito mais <strong>do</strong> que isso. Crescer<br />

<strong>na</strong> Cova da Moura é ter essa<br />

força a <strong>do</strong>brar: “Vi coisas muito<br />

más para uma criança, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> toxico<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />

a traficantes,<br />

ali via <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>. No bairro somos<br />

habitua<strong>do</strong>s a viver com a agressivida<strong>de</strong>,<br />

tem <strong>de</strong> ser assim para<br />

nos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rmos e sermos respeita<strong>do</strong>s.<br />

Essa raiva tem <strong>de</strong> ser<br />

incutida aos putos que começam<br />

a fazer kickboxing e que não são<br />

<strong>do</strong> bairro. Isso em mim já não foi<br />

preciso. Ter vivi<strong>do</strong> <strong>na</strong> Cova tem<br />

muito a ver com o meu <strong>de</strong>sempenho<br />

no kick e graças a isso nunca<br />

bebi, nem fumei, nem <strong>na</strong>da”.<br />

Foi um longo combate, este que<br />

levou o jovem <strong>do</strong> bairro à fi<strong>na</strong>l.<br />

Mais uma das muitas fi<strong>na</strong>is em<br />

que Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s já participou:<br />

“Comecei a trei<strong>na</strong>r Light Contact<br />

com 14 anos. Depois inicieime<br />

no KO ama<strong>do</strong>r, que são discipli<strong>na</strong>s<br />

<strong>de</strong> contacto total. Com<br />

16 anos fui campeão da Taça <strong>de</strong><br />

Lisboa <strong>de</strong> Kickboxing e da Taça<br />

<strong>de</strong> Lisboa <strong>de</strong> May-Taai”, expli-


8ª COLINA I JUNHO 2006 DESPORTO 21<br />

<br />

ca o atleta. Era praticamente<br />

uma criança quan<strong>do</strong> começou<br />

a ganhar troféus, e vê-se <strong>na</strong> sua<br />

expressão que nem ele percebe<br />

muito bem como tal aconteceu:<br />

“Eu era ama<strong>do</strong>r, portanto, teoricamente,<br />

não podia lutar nestes<br />

torneios on<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s eram<br />

muitos mais velhos <strong>do</strong> que eu.<br />

Mas ia e ganhava. Aos 17 anos<br />

fui ao campeo<strong>na</strong>to regio<strong>na</strong>l e,<br />

mais tar<strong>de</strong>, ao <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> Full<br />

Contact e também ganhei”,<br />

acrescenta em tom <strong>de</strong> gozo. A<br />

verda<strong>de</strong> é que ainda com 17<br />

anos já o Ricar<strong>do</strong> Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s<br />

tinha i<strong>do</strong> a Espanha e se tinha<br />

tor<strong>na</strong><strong>do</strong> campeão ibérico.<br />

A gran<strong>de</strong> fi<strong>na</strong>l<br />

Mas nem tu<strong>do</strong> são vitórias <strong>na</strong><br />

história <strong>de</strong>ste jovem. Voltemos a<br />

Loures. Os atletas mais aplaudi<strong>do</strong>s<br />

da noite, Luís Reis e Ricar<strong>do</strong><br />

Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, vão <strong>de</strong>frontar-se <strong>na</strong><br />

fi<strong>na</strong>l, que se prevê muito renhida.<br />

Neste terceiro confronto os<br />

gladia<strong>do</strong>res ultrapassam os seus<br />

próprios limites <strong>de</strong> força e a <strong>do</strong>r<br />

tor<strong>na</strong>-se inexistente. É o momento<br />

em que uma lágrima se confun<strong>de</strong><br />

com as gotas <strong>de</strong> suor que saltam<br />

da are<strong>na</strong>.<br />

Mas as lágrimas <strong>de</strong> Ricar<strong>do</strong> são<br />

reais. E o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> glória que<br />

estava prestes a explodir <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>do</strong> “miú<strong>do</strong>” <strong>de</strong>saparece. Luís<br />

Reis acabou por vencer o combate<br />

logo no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> primeiro<br />

round por <strong>de</strong>sistência <strong>do</strong> adversário<br />

lesio<strong>na</strong><strong>do</strong>.<br />

É nestas alturas que os amigos<br />

actuam. E foi nesta altura que<br />

mais barulho fizeram. Russo<br />

correu para o ringue, acompanha<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os outros, e receberam<br />

o campeão <strong>do</strong> bairro<br />

com um sorriso como quem diz:<br />

“<strong>de</strong>ixa, amanhã ganhas, agora<br />

vamos para casa”.<br />

“As <strong>de</strong>rrotas cá em Portugal <strong>de</strong>ixam-me<br />

frustra<strong>do</strong>, no estrangeiro<br />

isso não acontece, sempre que<br />

perdi lá fora foi porque mereci”,<br />

<strong>de</strong>sabafa o atleta.<br />

De facto, existem alguns episódios<br />

menos felizes <strong>na</strong> vida <strong>do</strong> Ricar<strong>do</strong>.<br />

Um campeão não se faz sem tocar<br />

no tapete: “Lembro-me <strong>de</strong> uma<br />

<strong>de</strong>rrota com o Eugénio Monteiro.<br />

Ele era profissio<strong>na</strong>l, tinha muitos<br />

combates e 32 anos, eu era ama<strong>do</strong>r,<br />

era o meu décimo combate e<br />

tinha 16 anos. Fui, literalmente,<br />

atropela<strong>do</strong>!”, recorda o Ricar<strong>do</strong>,<br />

acrescentan<strong>do</strong>: “No dia seguinte<br />

cheguei à escola to<strong>do</strong> incha<strong>do</strong>…<br />

o caminho <strong>de</strong> casa à escola que<br />

costumava fazer em 5 minutos <strong>de</strong>morou<br />

para aí 45!”.<br />

De volta às origens<br />

Apesar da sua casa já não ser<br />

no bairro, a visita às origens é<br />

constante e, quan<strong>do</strong> <strong>na</strong> Cova da<br />

Moura se pronuncia o seu nome,<br />

No caminho para o<br />

“palco” há um ponto em<br />

que se <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> pensar,<br />

em que as emoções<br />

se misturam e em que<br />

os sentimentos <strong>de</strong><br />

prazer e <strong>de</strong> terror se<br />

sobrepõem.<br />

ouvem-se <strong>de</strong> imediato muitos<br />

elogios. A Tininha é uma <strong>de</strong>ssas<br />

vozes. Vizinha <strong>de</strong> Ricar<strong>do</strong> no<br />

bairro, esta senhora tem o olhar<br />

cansa<strong>do</strong> <strong>de</strong> quem sabe bem o que<br />

é a vida <strong>na</strong> Cova da Moura. “É<br />

um menino muito bom e não é<br />

agressivo fora <strong>do</strong> ringue. Quan<strong>do</strong><br />

era pequeno tinha muitas<br />

queixas <strong>do</strong>s professores, qualquer<br />

coisa que acontecesse era<br />

sempre ele. É o estigma <strong>de</strong> ser<br />

daqui”, recorda Tininha. “Eu<br />

achava muita piada ao Ricar<strong>do</strong>,<br />

punha-se à janela a gritar que<br />

ninguém lhe podia fazer mal ou<br />

ele chamava o pai que era GNR.<br />

Agora já não é <strong>de</strong> cá, mas sempre<br />

que volta traz a mesma simpatia”.<br />

O Ricar<strong>do</strong> não consegue<br />

largar o sítio que fez <strong>de</strong>le aquilo<br />

que é hoje, o local on<strong>de</strong> encontrou<br />

a força, a coragem e a sua<br />

perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>: “Eu lembro-me<br />

muito <strong>de</strong>ssa vizinha, sempre lhe<br />

chamei Tangeri<strong>na</strong>, porque não<br />

conseguia dizer o nome”. Mas<br />

admite que não foi uma criança<br />

fácil: “O meu corpo chamava<br />

problemas e sempre que havia<br />

confusões com amigos meus<br />

eu tinha <strong>de</strong> estar lá! Fiz coisas<br />

<strong>de</strong> que não me orgulho muito.”<br />

Acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, o campeão não<br />

consegue largar os seus amigos:<br />

“Eu e o Russo estávamos mesmo<br />

sempre juntos, só íamos para<br />

casa quan<strong>do</strong> nos vinham buscar<br />

pelas orelhas”. O Russo acrescenta:<br />

“Ele sempre foi um puto<br />

traqui<strong>na</strong> e acho que ter cresci<strong>do</strong><br />

com os pais separa<strong>do</strong>s influen-<br />

JOANA SANTOS<br />

ciava o seu comportamento. Depois,<br />

quan<strong>do</strong> entrou para o kick,<br />

acalmou bastante, por um la<strong>do</strong><br />

porque o pai era o trei<strong>na</strong><strong>do</strong>r, por<br />

outro porque se trata <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sporto<br />

com muita discipli<strong>na</strong> ”.<br />

To<strong>do</strong>s os campeões têm alguns<br />

<strong>de</strong>sgostos e Ricar<strong>do</strong> não é excepção.<br />

As suas <strong>de</strong>rrotas mais marcantes<br />

coinci<strong>de</strong>m com o maior<br />

objectivo <strong>de</strong> qualquer <strong>de</strong>sportista:<br />

a luta pelo Título <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>.<br />

“Primeiro foi em Dublin… a primeira<br />

vez que fui para fora, estava<br />

lá sozinho e amedrontei-me<br />

um boca<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> comecei a<br />

jogar a sério já era tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais”,<br />

confessa o Ricar<strong>do</strong>, e acrescenta<br />

a sorrir: “Depois, quan<strong>do</strong> tinha 19<br />

“No bairro somos<br />

habitua<strong>do</strong>s a viver com<br />

a agressivida<strong>de</strong>, tem<br />

<strong>de</strong> ser assim para nos<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rmos e sermos<br />

respeita<strong>do</strong>s.”<br />

anos, an<strong>de</strong>i a trei<strong>na</strong>r <strong>do</strong>is meses<br />

<strong>de</strong> manhã à noite para ir à Rússia<br />

e, <strong>do</strong>is dias antes da viagem,<br />

lesionei-me… uma melga que me<br />

picou e uma per<strong>na</strong> que ficou <strong>do</strong><br />

tamanho <strong>de</strong> quatro.”<br />

Mas o azar não ficou por aqui e o<br />

Ricar<strong>do</strong> explica a sua última tentativa:<br />

“Fui a Paris lutar com o<br />

campeão <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> e perdi injustamente.<br />

Ele próprio o afirmou!<br />

Mas essa <strong>de</strong>rrota fez com que<br />

eu subisse no ranking e, graças<br />

a isso, fui convida<strong>do</strong> para lutar<br />

pelo Título Europeu”.<br />

Eis o auge <strong>de</strong> duas décadas <strong>de</strong><br />

vida, o lançamento <strong>de</strong> apresentação<br />

ao Mun<strong>do</strong>, em Milão,<br />

Itália. O nervosismo da estreia<br />

a<strong>po<strong>de</strong>r</strong>a-se <strong>do</strong> kickboxer, a ansieda<strong>de</strong><br />

é visível no corpo unta<strong>do</strong><br />

e <strong>na</strong> expressão ausente <strong>do</strong><br />

rosto: “Eu vou ganhar”, pensa<br />

Ricar<strong>do</strong>. No caminho para o<br />

“palco” há um ponto em que se<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> pensar, em que as emoções<br />

se misturam e em que os<br />

sentimentos <strong>de</strong> prazer e <strong>de</strong> terror<br />

se sobrepõem.<br />

Bastaram três assaltos e muito<br />

estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> jogo para que se sagrasse<br />

o mais jovem campeão europeu<br />

<strong>de</strong> kickboxing. “Também<br />

tive falhas que me iam custan<strong>do</strong><br />

um KO”, recorda o vence<strong>do</strong>r,<br />

explican<strong>do</strong> o segre<strong>do</strong> da vitória:<br />

“Ele enervou-se comigo e foi a<br />

morte <strong>do</strong> artista. Para lutar tem<br />

<strong>de</strong> se ter raiva, mas não se po<strong>de</strong><br />

per<strong>de</strong>r o controlo.”<br />

Com agressivida<strong>de</strong> e vonta<strong>de</strong>,<br />

Ricar<strong>do</strong> consegue o KO técnico<br />

e, por instantes, sente-se o <strong>do</strong>no<br />

<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. E é o Mun<strong>do</strong> o próximo<br />

objectivo <strong>de</strong>ste luta<strong>do</strong>r,<br />

sempre apoia<strong>do</strong> pelos amigos:<br />

“É essa raiva, essa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ganhar e esse talento que o faz<br />

ser campeão. E ainda há muita<br />

margem <strong>de</strong> progressão, tem 21<br />

anos”, afirma o Russo. Num quadra<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> três metros por três, foi<br />

o rei daquele espaço. “Eram 5000<br />

pessoas a torcer pelo italiano. E<br />

foi um silêncio tão bom quan<strong>do</strong><br />

eu ganhei!”.


22 MEDIA<br />

BELEZA E TELEVISÃO<br />

TODOS OS ANOS SURGEM NOS VÁRIOS CANAIS DE TELEVISÃO CARAS NOVAS. Q<strong>UE</strong>REM SER “A GRANDE<br />

DESCOBERTA” NUM MUNDO COMPETITIVO Q<strong>UE</strong> POUCAS VEZES SE ABRE. SEMPRE Q<strong>UE</strong> HÁ CASTINGS<br />

CORREM AOS MILHARES. MAS POUCOS SÃO AQ<strong>UE</strong>LES Q<strong>UE</strong> PODEM UM DIA VIR A SER APRESENTADORES.<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

<br />

apresenta<strong>do</strong>res vistosos <strong>de</strong>mais”<br />

MARTA MESQUITA<br />

Luís <strong>de</strong> Matos, antigo consultor<br />

<strong>de</strong> imagem da RTP, SIC e<br />

TVI, foi o responsável pela<br />

imagem <strong>de</strong> muitos <strong>do</strong>s apresenta<strong>do</strong>res<br />

e pivots <strong>de</strong> informação<br />

da televisão portuguesa.<br />

Começou pelas Belas-Artes<br />

e mais tar<strong>de</strong> envere<strong>do</strong>u pela<br />

cenografia. Descobriu a BBC,<br />

on<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>u Imagem, Postura<br />

e <strong>Comunicação</strong>. Voltou<br />

para Portugal e em 1972 tornou-se<br />

o gestor <strong>de</strong> imagem da<br />

estação pública. Actualmente,<br />

Luís <strong>de</strong> Matos é consultor <strong>de</strong><br />

imagem em multi<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is.<br />

Continua atento à televisão<br />

e acredita que o talento para<br />

comunicar ainda é mais valoriza<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> que a beleza.<br />

A beleza é o que mais conta<br />

para se ser uma cara da televisão?<br />

Não, <strong>de</strong> forma alguma. O que<br />

mais conta em televisão é a<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicar. Não<br />

vale <strong>de</strong> <strong>na</strong>da a pessoa ser bonita<br />

se não sabe comunicar com<br />

O que mais conta em<br />

televisão é a capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> comunicar.<br />

a câmara. Mas o que vemos <strong>na</strong><br />

televisão muitas vezes são pessoas<br />

vistosas, o que é muito diferente<br />

<strong>de</strong> pessoas bonitas. As<br />

pessoas bonitas têm uma imagem<br />

agradável no seu conjunto,<br />

uma cara com traços bonitos,<br />

gestos suaves, voz, dicção, sabem<br />

passar uma mensagem,<br />

comunicam com o corpo.... E<br />

o público <strong>de</strong>sconfia sempre <strong>de</strong><br />

apresenta<strong>do</strong>res vistosos <strong>de</strong>mais.<br />

Mas o que muitas vezes se vê<br />

<strong>na</strong> televisão são apresenta<strong>do</strong>res<br />

muito vistosos...<br />

Pois é, mas <strong>na</strong> maior parte <strong>do</strong>s<br />

casos não sabem comunicar. E<br />

posso dar um exemplo. A Isabel<br />

Figueiras é uma excelente<br />

mo<strong>de</strong>lo, uma topmo<strong>de</strong>l, mas já<br />

não tem o mesmo talento para a<br />

apresentação. Lá no programa<br />

que apresenta diz meia dúzia<br />

<strong>de</strong> linhas e mais <strong>na</strong>da. Se lhe<br />

tirassem o teleponto não sabia<br />

como o fazer. E isso não é o que<br />

se procura num comunica<strong>do</strong>r.<br />

Os castings têm leva<strong>do</strong> mui-<br />

tas pessoas a fazer testes<br />

para serem apresenta<strong>do</strong>res.<br />

É uma boa forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir<br />

novos talentos?<br />

Esses castings não servem<br />

para <strong>na</strong>da. Eu já <strong>de</strong>i formação<br />

a pessoas que foram seleccio<strong>na</strong>das<br />

em castings e em<br />

muitos casos só uma ou duas<br />

é que ficaram a trabalhar em<br />

televisão. E quan<strong>do</strong> se aposta<br />

em dar formação a estas pessoas,<br />

os ca<strong>na</strong>is gastam muito dinheiro<br />

com elas e <strong>de</strong>pois o que<br />

acontece é que não é rentabiliza<strong>do</strong>,<br />

porque <strong>de</strong> facto não têm<br />

perfil para serem apresenta<strong>do</strong>res<br />

ou pivots. Po<strong>de</strong>m ser bonitos<br />

mas falta o resto. E muitas<br />

vezes o que esses castings fazem<br />

é só ver quem é que é bonito<br />

ou quem é que está mais<br />

à vonta<strong>de</strong> perante as câmaras.<br />

Não dá para ver mais <strong>na</strong>da e<br />

<strong>de</strong>pois acontecem situações <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>silusão.<br />

Os castings tal como são feitos<br />

não funcio<strong>na</strong>m porque<br />

não conseguem revelar todas<br />

as potencialida<strong>de</strong>s das<br />

pessoas ou têm ainda mais<br />

falhas?<br />

Os castings não mostram as<br />

potencialida<strong>de</strong>s das pessoas<br />

mas muitas vezes também são<br />

mal conduzi<strong>do</strong>s ou feitos por<br />

pessoas que percebem pouco<br />

<strong>do</strong> assunto. Mas o mesmo<br />

acontece com os cursos <strong>de</strong><br />

formação. Eu acho um <strong>de</strong>sperdício<br />

em alguns cursos aceitarem-se<br />

pessoas que não têm<br />

a mínima hipótese <strong>de</strong> virem<br />

a trabalhar em televisão mas<br />

como têm 800 contos para pagar<br />

é-lhes dada formação. E<br />

isso é uma malda<strong>de</strong> para quem<br />

alimenta um sonho que lhe vai<br />

ser impossível realizar!<br />

Eu acho que <strong>de</strong>via haver <strong>na</strong>s<br />

escolas <strong>de</strong> comunicação uma<br />

selecção. Ver quem é que po<strong>de</strong><br />

pensar em trabalhar <strong>na</strong> televisão.<br />

E existir parcerias entre<br />

as escolas e os ca<strong>na</strong>is televisivos<br />

<strong>de</strong> forma a que a formação<br />

profissio<strong>na</strong>l fosse dada a pessoas<br />

que têm realmente hipóteses<br />

<strong>de</strong> realizar um bom tra-<br />

Os castings não<br />

mostram as<br />

potencialida<strong>de</strong>s das<br />

pessoas<br />

<br />

Hugo Andra<strong>de</strong>, subdirector <strong>de</strong> programas da<br />

RTP, é quem vai escolher as <strong>de</strong>z novas caras<br />

para o entretenimento da estação pública. Responsável<br />

pela organização <strong>do</strong> casting que levou<br />

à Avenida Marechal Gomes da Costa milhares<br />

<strong>de</strong> pessoas que procuram a oportunida<strong>de</strong> para<br />

entrar <strong>na</strong> televisão, Hugo Andra<strong>de</strong> acredita que<br />

se po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>scobrir novos talentos através <strong>de</strong>sta<br />

forma <strong>de</strong> selecção.<br />

A este casting foram pessoas <strong>de</strong> todas as ida<strong>de</strong>s<br />

e com to<strong>do</strong> o tipo <strong>de</strong> ambições. Pessoas<br />

conhecidas, licencia<strong>do</strong>s em comunicação, actores<br />

ou curiosos que só queriam ver o que é um<br />

casting foram alguns <strong>do</strong>s perfis que passaram<br />

pelos estúdios da RTP. Hugo Andra<strong>de</strong> diz que<br />

esta diversida<strong>de</strong> não o surpreen<strong>de</strong>u, porque há<br />

ambições que levam as pessoas a tentarem o<br />

tu<strong>do</strong> por tu<strong>do</strong>. “Algumas pessoas vieram ao casting,<br />

porque querem ser famosas. Está <strong>na</strong> moda<br />

ser-se famoso. Mas muitas pessoas que por<br />

aqui passaram querem é trabalhar nesta área,<br />

porque até têm formação e vêem este processo<br />

O HOMEM Q<strong>UE</strong> DECIDE...<br />

como uma janela, uma oportunida<strong>de</strong> para conseguirem<br />

um trabalho”, afirma o subdirector <strong>de</strong><br />

programas da RTP.<br />

Para Hugo Andra<strong>de</strong>, o mito da beleza como uma<br />

mais valia para se apresentar programas já caiu<br />

por terra. “Toda a gente tem espaço para apresentar<br />

programas. A beleza é algo <strong>de</strong> secundário. E as<br />

pessoas começam a ter noção disso, o que faz com<br />

que o panorama da apresentação esteja a mudar”,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o director <strong>do</strong> casting da estação pública.<br />

Mas se há quem queira ser famoso ou simplesmente<br />

<strong>de</strong>seje trabalhar <strong>na</strong> área em que tem formação,<br />

há quem vá a castings por mero divertimento<br />

ou por hábito. “Há pessoas que sabem<br />

que não têm perfil para apresenta<strong>do</strong>res, porque<br />

não sabem comunicar, mas que vêm, umas para<br />

não ficarem sozinhas em casa e outras porque<br />

já é um hábito - não per<strong>de</strong>m um casting. Estes<br />

profissio<strong>na</strong>is <strong>do</strong>s castings querem é conhecer<br />

pessoas e trocam telefones e e-mails. Já formam<br />

uma verda<strong>de</strong>ira comunida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> já se<br />

conhecem to<strong>do</strong>s”, explica Hugo Andra<strong>de</strong>.


SUSANA TEODORO<br />

8ª COLINA I JUNHO 2006 MEDIA 23<br />

SUSANA TEODORO<br />

balho. Mas isso não acontece,<br />

porque em muitos casos seria<br />

lucro fácil que muitas entida<strong>de</strong>s<br />

não receberiam.<br />

Como é que percebe se uma<br />

pessoa tem ou não imagem<br />

para ser um pivot ou um<br />

apresenta<strong>do</strong>r?<br />

Uma boa imagem para televisão,<br />

que é diferente <strong>de</strong> uma<br />

boa imagem para comunicar<br />

fora da televisão, está praticamente<br />

centrada <strong>na</strong> elipse<br />

que vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o queixo até aos<br />

olhos. É aqui que se centra a<br />

comunicação. Por isso é fundamental<br />

ter uns bons <strong>de</strong>ntes,<br />

um olhar expressivo, um<br />

sorriso bonito.... As pessoas<br />

preocupam-se muito com os<br />

cabelos e com as roupas...isso<br />

não vale <strong>de</strong> <strong>na</strong>da <strong>na</strong> imagem,<br />

porque isso compõe-se <strong>de</strong>pois.<br />

Agora este triângulo, olhos e<br />

boca, é que é fundamental. Se<br />

estamos a falar <strong>de</strong> apresenta<strong>do</strong>res<br />

<strong>de</strong> entretenimento, convém<br />

ter um corpo agradável.<br />

Mas isto não é o fundamental<br />

para um apresenta<strong>do</strong>r.<br />

Procura-se a <strong>na</strong>turalida<strong>de</strong><br />

para comunicar mas <strong>de</strong>pois<br />

o apresenta<strong>do</strong>r sofre uma<br />

gran<strong>de</strong> transformação. No fi<strong>na</strong>l<br />

o resulta<strong>do</strong> é algo <strong>de</strong> muito<br />

produzi<strong>do</strong>…<br />

É verda<strong>de</strong>. Por isso é que eu<br />

acho que os castings nos mol<strong>de</strong>s<br />

em que são feitos não valem<br />

<strong>de</strong> muito. Claro que uma<br />

pessoa para dar a cara em televisão<br />

e para fazer um bom<br />

trabalho tem <strong>de</strong> ter um à vonta<strong>de</strong><br />

<strong>na</strong>tural para lidar com as<br />

câmaras e, sobretu<strong>do</strong>, tem <strong>de</strong><br />

se sentir confortável <strong>na</strong> forma<br />

como passa uma mensagem. E<br />

este à vonta<strong>de</strong> para comunicar<br />

não é algo que se aprenda,<br />

porque é i<strong>na</strong>to. Ou a pessoa<br />

sabe comunicar ou não sabe.<br />

Mas claro que <strong>de</strong>pois há muito<br />

para ser trabalha<strong>do</strong> e há<br />

sempre coisas que se po<strong>de</strong>m<br />

e <strong>de</strong>vem melhorar. Os cursos<br />

<strong>de</strong> formação são bons, porque<br />

ajudam as pessoas a serem<br />

melhores, a saberem estar pe-<br />

rante as câmaras, a lidar com<br />

imprevistos, a terem a postura<br />

correcta. E perante esta formação<br />

é claro que o resulta<strong>do</strong><br />

fi<strong>na</strong>l é produzi<strong>do</strong>.<br />

Exige-se mais, em termos <strong>de</strong><br />

beleza, <strong>de</strong> um apresenta<strong>do</strong>r<br />

<strong>de</strong> entretenimento <strong>do</strong> que <strong>de</strong><br />

um pivot <strong>de</strong> informação?<br />

É diferente. Um pivot <strong>de</strong> informação<br />

está senta<strong>do</strong> e um<br />

apresenta<strong>do</strong>r em pé. Um pivot<br />

tem <strong>de</strong> saber sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

jor<strong>na</strong>lismo. Tem <strong>de</strong> ter uma<br />

gran<strong>de</strong> cultura geral, tem <strong>de</strong><br />

saber como passar uma mensagem<br />

credível. Um apresenta<strong>do</strong>r<br />

tem <strong>de</strong> ter charme e<br />

saber conduzir um programa.<br />

E há <strong>de</strong> facto uma procura <strong>de</strong><br />

outra beleza, que não há num<br />

pivot ou num repórter, que<br />

também são pessoas importantes<br />

quan<strong>do</strong> estamos a falar<br />

<strong>de</strong> comunicação em formatos<br />

informativos.<br />

Como é que as pessoas com<br />

quem trabalha reagem normalmente<br />

às mudanças que<br />

propõe?<br />

Reagem bem… To<strong>do</strong>s gostamos<br />

<strong>de</strong> ficar melhora<strong>do</strong>s.<br />

Já houve alguém a quem não<br />

Este à-vonta<strong>de</strong> para<br />

comunicar não é<br />

algo que se aprenda,<br />

porque é i<strong>na</strong>to.<br />

teve <strong>de</strong> sugerir absolutamente<br />

nenhuma mudança?<br />

Já. Lembro-me agora da Soraia<br />

Chaves. Ela esteve comigo<br />

numa formação e <strong>de</strong> facto<br />

ela é muito bonita. Mas era<br />

muito tímida, não falava quase<br />

<strong>na</strong>da. E <strong>de</strong>pois conseguiu,<br />

sem per<strong>de</strong>r a humilda<strong>de</strong>, libertar-se<br />

e melhorar a sua capacida<strong>de</strong><br />

comunicativa. E a Soraia<br />

tem algo muito bom e que já é<br />

raro nos dias <strong>de</strong> hoje: ela sabe<br />

ouvir. Lembro-me que estava<br />

sempre com muita atenção e<br />

que gostava <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com<br />

os outros.<br />

<br />

UMA COLUNA NA COLINA<br />

por Oscar Mascarenhas<br />

Anda por aí um canibal<br />

autoriza<strong>do</strong><br />

Joaquim Pi<strong>na</strong> Moura foi ministro<br />

das Fi<strong>na</strong>nças e da Economia<br />

– um super-super-ministro,<br />

portanto – <strong>do</strong> segun<strong>do</strong><br />

Governo <strong>de</strong> António Guterres.<br />

Nessa qualida<strong>de</strong>, tomou <strong>de</strong>cisões<br />

importantes relativas a<br />

empresas inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is com<br />

interesses em Portugal. Hoje<br />

já não é ministro, mas continua<br />

<strong>de</strong>puta<strong>do</strong> <strong>do</strong> parti<strong>do</strong> <strong>do</strong> Governo<br />

– e é administra<strong>do</strong>r-presi<strong>de</strong>nte<br />

da maior empresa investi<strong>do</strong>ra<br />

espanhola em Portugal. Dele<br />

terá dito o antecessor <strong>na</strong> pasta<br />

das Fi<strong>na</strong>nças, Sousa Franco,<br />

<strong>na</strong>quele célebre episódio da<br />

conversa <strong>de</strong> restaurante relatada<br />

pelo In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte: «É o<br />

homem <strong>do</strong>s espanhóis.» Até<br />

morrer, Sousa Franco nunca<br />

<strong>de</strong>smentiu especificamente<br />

esta afirmação.<br />

Temos, pois, um homem que,<br />

quan<strong>do</strong> membro <strong>do</strong> Governo,<br />

era visto pelo seu ex-colega<br />

como «o homem <strong>do</strong>s espanhóis».<br />

E vemo-lo, hoje, fora<br />

<strong>do</strong> Governo mas ainda no Parlamento,<br />

como «o homem <strong>do</strong>s<br />

espanhóis». Países há em que<br />

um gover<strong>na</strong>nte que tenha da<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>spacho seja ao que for relacio<strong>na</strong><strong>do</strong><br />

com uma empresa, não<br />

po<strong>de</strong> trabalhar para ela até oito<br />

ou mais anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong><br />

as funções gover<strong>na</strong>mentais,<br />

sob pe<strong>na</strong> <strong>de</strong> ter <strong>de</strong> <strong>de</strong>volver<br />

to<strong>do</strong>s os vencimentos que<br />

recebeu enquanto membro da<br />

administração pública. Em Portugal<br />

não existe essa norma.<br />

Jor<strong>na</strong>listas perguntaram a<br />

Pi<strong>na</strong> Moura se não sentia <strong>de</strong>sconforto<br />

ético em ter si<strong>do</strong> ministro<br />

<strong>de</strong> pastas económicas<br />

relacio<strong>na</strong>das com investimento<br />

estrangeiro e ser hoje administra<strong>do</strong>r<br />

<strong>de</strong> uma empresa<br />

estrangeira <strong>de</strong> investimento.<br />

Respon<strong>de</strong>u o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r<br />

que o seu cre<strong>do</strong> é a<br />

«ética republica<strong>na</strong>». Pois, por<br />

isso mesmo, contrapuseram<br />

os jor<strong>na</strong>listas, a «ética republica<strong>na</strong>»<br />

<strong>de</strong>le não lhe dava uma<br />

gui<strong>na</strong>da <strong>na</strong> alma ao ter si<strong>do</strong><br />

ministro e agora administra<strong>do</strong>r<br />

<strong>de</strong> empresa sobre a qual<br />

tomou <strong>de</strong>cisões como gover<strong>na</strong>nte?<br />

Não, respon<strong>de</strong>u placidamente,<br />

Pi<strong>na</strong> Moura. É que,<br />

segun<strong>do</strong> ele, a «ética republica<strong>na</strong>»<br />

é «a ética da lei!»<br />

Homem perigoso, este Pi<strong>na</strong><br />

Moura! Explico porquê: aqui<br />

há poucos anos, <strong>do</strong>is alemães<br />

combi<strong>na</strong>ram uma orgia sórdida<br />

que terminou com um<br />

<strong>de</strong>les a comer o outro (comer<br />

no senti<strong>do</strong> literal, alimentar,<br />

<strong>do</strong> termo, não se faça confusão).<br />

Pois o alemão sobrevivo<br />

foi con<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>do</strong> a uns oito anos<br />

<strong>de</strong> prisão, por uma série <strong>de</strong><br />

crimes – menos por canibalismo.<br />

Porquê? Porque ninguém<br />

se tinha lembra<strong>do</strong>, <strong>na</strong> Alemanha,<br />

<strong>de</strong> elaborar uma lei que<br />

proibisse o canibalismo. Não<br />

sen<strong>do</strong> proibi<strong>do</strong> – é permiti<strong>do</strong>.<br />

Eis como Pi<strong>na</strong> Moura encontra<br />

uma alma gémea no seu<br />

bunker da «ética republica<strong>na</strong>»:<br />

um canibal alemão.<br />

O pior é que ele não está <strong>de</strong>sacompanha<strong>do</strong>:<br />

tem o Parlamento<br />

português <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong>.<br />

Há dias, assisti a um <strong>de</strong>bate<br />

sobre a ética política <strong>do</strong>s <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s.<br />

Não ouvi falar <strong>de</strong><br />

escrúpulo – que é a essência<br />

da ética. Não os ouvi dizer que<br />

a ética política <strong>do</strong>s eleitos é<br />

tão-somente a lealda<strong>de</strong> ao<br />

compromisso e o compromisso<br />

<strong>de</strong> lealda<strong>de</strong>. Não. Só discutiram<br />

as leis que <strong>de</strong>veriam<br />

ser feitas para impor ética aos<br />

representantes <strong>do</strong> povo. Ou<br />

seja, tratam-se a si próprios<br />

como malandros a quem <strong>de</strong>ve<br />

ser imposto o escrúpulo mínimo<br />

obrigatório que é a lei e a<br />

repressão que acarreta o seu<br />

não cumprimento.<br />

O insólito – e hipócrita – <strong>de</strong> tu<strong>do</strong><br />

isto é ver os dirigentes partidários<br />

reclamar mais normas<br />

legais para impor comportamentos<br />

éticos aos <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s.<br />

É que o sistema eleitoral português<br />

dá, <strong>de</strong> facto, uma supremacia<br />

enorme ao parti<strong>do</strong><br />

sobre o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>: o parti<strong>do</strong><br />

controla o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> e <strong>na</strong>da o<br />

Eis como Pi<strong>na</strong> Moura<br />

encontra uma alma<br />

gémea no seu bunker<br />

da «ética republica<strong>na</strong>»:<br />

um canibal alemão.<br />

impe<strong>de</strong> até <strong>de</strong> obrigar o candidato<br />

a assi<strong>na</strong>r uma <strong>de</strong>claração<br />

<strong>de</strong> renúncia, sem data, para o<br />

manter <strong>na</strong> linha. Mas, em lugar<br />

<strong>de</strong> ser o parti<strong>do</strong> a comprometer-se<br />

com a ética <strong>do</strong>s seus,<br />

quer que to<strong>do</strong>s entrem em<br />

consenso para <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>r leis<br />

<strong>de</strong> comportamento. Nenhum<br />

parti<strong>do</strong> se orgulha da sua própria<br />

ética como diferencia<strong>do</strong>ra<br />

da <strong>do</strong>s restantes. Nem um só<br />

parti<strong>do</strong> tem um código <strong>de</strong> ética<br />

próprio para apresentar aos<br />

eleitores como compromisso<br />

<strong>do</strong>s seus candidatos.<br />

A «ética <strong>do</strong> canibal», também<br />

dita «ética republica<strong>na</strong>», faz<br />

gran<strong>de</strong> escola no Parlamento.<br />

Proponho mesmo que <strong>na</strong><br />

solene sala <strong>do</strong> plenário, bem<br />

acima da cabeça <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte<br />

da Assembleia, fique grava<strong>do</strong><br />

no mármore este lema: «Pi<strong>na</strong><br />

Moura forever – olé». •


24 LETRAS<br />

MARIA TERESA HORTA, A MULHER Q<strong>UE</strong> (AINDA) OUSA OUSAR<br />

“A literatura erótica<br />

excita o leitor”<br />

<br />

<br />

-<br />

RAM-LHE. NÃO SE INTIMIDOU. E CONTINUOU A SUA LUTA POR UMA LITERATURA TANTAS VEZES MARGINALIZADA E PELA<br />

<br />

<br />

IRINA MELO<br />

Sempre que escreve um poema<br />

erótico, Maria Teresa Horta lê-o<br />

várias vezes para se convencer<br />

<strong>de</strong> que não <strong>po<strong>de</strong>r</strong>ia ter si<strong>do</strong> escrito<br />

por um homem, tal como fez<br />

A<strong>na</strong>ïs Nin com “Delta <strong>de</strong> Vénus”.<br />

“Tu<strong>do</strong> o que há <strong>de</strong> referência <strong>na</strong> literatura<br />

erótica é feito em função<br />

<strong>do</strong> imaginário masculino, e é esse<br />

o meu receio. Há que <strong>de</strong>scobrir a<br />

escrita erótica no feminino!”<br />

Com voz <strong>do</strong>ce, a escritora faz-nos<br />

entrar <strong>na</strong> sombria sala <strong>de</strong> trabalho,<br />

emoldurada por livros, on<strong>de</strong><br />

escreveu (e escreve) a poesia sensual<br />

que outrora tanto perturbou o<br />

regime e a socieda<strong>de</strong> bem pensante<br />

e bem ciente <strong>do</strong> papel <strong>de</strong> <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ção<br />

<strong>do</strong> homem perante a mulher.<br />

A sua figura frágil, ainda que sólida,<br />

não condiz com a mulher que<br />

foi tida durante anos como implacável<br />

feminista, inimiga <strong>de</strong> qualquer<br />

espécime <strong>do</strong> sexo masculino.<br />

Pelo contrário, Teresa Horta mostra-se<br />

sempre pronta a aten<strong>de</strong>r os<br />

telefonemas <strong>do</strong>s amigos e <strong>do</strong> filho,<br />

a quem ainda fala <strong>de</strong> forma ternurenta,<br />

apesar <strong>de</strong> estar há dias<br />

fechada em casa com um braço ao<br />

peito. Uma sema<strong>na</strong> antes, durante<br />

um encontro <strong>de</strong> poetas em Cracóvia<br />

(Polónia), sofreu uma queda<br />

que lhe podia ter custa<strong>do</strong> a vida ou<br />

tor<strong>na</strong><strong>do</strong> paraplégica – “os médicos<br />

dizem que foi um milagre”.<br />

Com a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem tem muito<br />

para dizer em pouco tempo, a escritora<br />

vai <strong>de</strong>bitan<strong>do</strong> o que pensa,<br />

como as más recordações que tem<br />

<strong>do</strong> erotismo no masculino. “A única<br />

poesia erótica vinda <strong>de</strong> homens<br />

que não me ofen<strong>de</strong>u foi a <strong>do</strong> David<br />

Mourão-Ferreira”, diz, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong><br />

que nomes como Henry Miller<br />

ou Alberto Moravia confun<strong>de</strong>m<br />

sensualida<strong>de</strong> com pornografia.<br />

Mas a sua principal preocupação é<br />

balizar a escrita erótica da amorosa.<br />

“A literatura <strong>do</strong> amor disten<strong>de</strong>,<br />

a pessoa fica ter<strong>na</strong>; a erótica mexe<br />

com o <strong>de</strong>sejo, exulta, o corpo respon<strong>de</strong><br />

ao que está a ler!”<br />

E em Portugal não há literatura<br />

erótica, afirma Maria Teresa<br />

Horta: “Há uma escrita em que<br />

o corpo está presente mas não é<br />

erótica, são intimida<strong>de</strong>s. A poesia<br />

da Florbela Espanca, que foi<br />

Para além <strong>do</strong>s livros, muitas<br />

bruxas (bonecas, entenda-se)<br />

povoam a sala <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong><br />

Maria Teresa Horta. O encantamento<br />

por estes seres vem<br />

da família pater<strong>na</strong>, dada a misticismos,<br />

mas também da própria<br />

luta pela emancipação das<br />

mulheres. Para a escritora as<br />

feiticeiras foram as primeiras<br />

feministas: “Não tenho dúvidas,<br />

porque eram elas que cuidavam<br />

das pessoas, que tinham<br />

as ervas que curavam, eram<br />

“BRUXAS, AS PRIMEIRAS FEMINISTAS”<br />

mulheres in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e com<br />

<strong>po<strong>de</strong>r</strong>, o que assustava os <strong>po<strong>de</strong>r</strong>es<br />

instituí<strong>do</strong>s”, diz, referin<strong>do</strong>-se<br />

à perseguição feita pela<br />

Inquisição da Igreja Católica.<br />

E o tributo às “Feiticeiras” escreveu-o<br />

o ano passa<strong>do</strong>, num<br />

longo poema lírico que <strong>de</strong>u origem<br />

a uma cantata em quatro<br />

actos musicada para trompa,<br />

trombone, harpa e percussão<br />

pelo compositor António Chagas<br />

Rosa. “É o meu primeiro<br />

texto feminista concreto, que<br />

também é erótico. Foi sempre<br />

um gran<strong>de</strong> sonho <strong>na</strong> minha<br />

vida tratar este tema e acho<br />

que é uma gran<strong>de</strong> home<strong>na</strong>gem<br />

às feiticeiras”.<br />

A estreia <strong>de</strong>ste trabalho conjunto<br />

entre a escritora e o pianista<br />

aconteceu no início <strong>do</strong><br />

ano no Théâtre les Ber<strong>na</strong>dines,<br />

em Marselha, a que se seguiu<br />

uma mini-digressão por França.<br />

Em Portugal, “Feiticeiras”<br />

só chega em Março <strong>de</strong> 2007 ao<br />

palco da Culturgest.<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

“SEGREDO”<br />

Não contes <strong>do</strong> meu<br />

vesti<strong>do</strong><br />

que tiro pela cabeça<br />

nem que corro os<br />

corti<strong>na</strong><strong>do</strong>s<br />

para uma sombra mais espessa<br />

<strong>de</strong>ixa que feche o<br />

anel<br />

em re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> teu pescoço<br />

com as minhas longas<br />

per<strong>na</strong>s<br />

e a sombra <strong>do</strong> meu poço<br />

Não contes <strong>do</strong> meu<br />

novelo<br />

nem da roca <strong>de</strong> fiar<br />

nem o que faço<br />

com eles<br />

a fim <strong>de</strong> te ouvir gritar<br />

muito ousada <strong>na</strong> época, é amorosa.<br />

A Natália Correia passa pela<br />

sexualida<strong>de</strong>, mas não é específica<br />

<strong>de</strong> uma literatura erótica.”<br />

O processo das três Marias<br />

Nascida em Lisboa no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong>s<br />

anos trinta, estudante <strong>na</strong> Faculda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Letras <strong>de</strong> Lisboa, que viria<br />

a aban<strong>do</strong><strong>na</strong>r para enveredar pelo<br />

jor<strong>na</strong>lismo, Teresa Horta publica<br />

em 1960 Espelho Inicial, o seu primeiro<br />

livro <strong>de</strong> poesia. Mas seria<br />

preciso esperar onze anos pelo lan-<br />

“Tu<strong>do</strong> o que há <strong>de</strong><br />

referência <strong>na</strong> literatura<br />

erótica é feito em<br />

função <strong>do</strong> imaginário<br />

masculino. Há que<br />

<strong>de</strong>scobrir a escrita<br />

erótica no feminino!”<br />

çamento daquele que será talvez o<br />

mais controverso livro da literatura<br />

portuguesa contemporânea<br />

– “Novas Cartas Portuguesas”.<br />

Escrito em co-autoria com Maria<br />

Isabel Barreno e Maria Velho da<br />

Costa, a obra reúne cartas fictícias<br />

<strong>de</strong> várias mulheres, fazen<strong>do</strong><br />

um retrato sociológico da condição<br />

femini<strong>na</strong> em Portugal, mas<br />

também <strong>do</strong> conturba<strong>do</strong> momento<br />

político, através das chamadas<br />

“Cartas d’África” (enviadas a solda<strong>do</strong>s<br />

<strong>na</strong> guerra colonial).<br />

Imediatamente após a edição, o livro<br />

é censura<strong>do</strong> pelo regime e dá<br />

origem àquele que ficou conheci<strong>do</strong><br />

por “processo das três Marias”,<br />

com as escritoras a serem acusadas<br />

<strong>de</strong> “pornografia, obscenida<strong>de</strong><br />

e abuso <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imprensa”<br />

pela polícia <strong>de</strong> costumes. Até ao 25<br />

<strong>de</strong> Abril, as três mulheres estiveram<br />

proibidas <strong>de</strong> sair <strong>do</strong> país e <strong>de</strong><br />

ser referidas <strong>na</strong> imprensa.<br />

Apesar <strong>de</strong> ter passa<strong>do</strong> <strong>de</strong>spercebi<strong>do</strong><br />

<strong>na</strong> opinião pública portuguesa,<br />

“Novas Cartas Portuguesas” teve<br />

uma gran<strong>de</strong> repercussão no estrangeiro,<br />

com o movimento feminista<br />

inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l a organizar marchas<br />

e manifestações <strong>de</strong> protesto <strong>na</strong>s<br />

principais capitais europeias. Na<br />

Holanda, um grupo feminista ocupou<br />

a embaixada portuguesa em


8ª COLINA I JUNHO 2006 LETRAS 25<br />

O Q<strong>UE</strong> PENSAM OS CRÍTICOS<br />

A poesia erótica em português está morta?<br />

“Depois <strong>de</strong> Maria Teresa Horta,<br />

Eros Frenético <strong>de</strong> A<strong>na</strong> Hatherly<br />

é o mais importante livro <strong>de</strong> poesia<br />

erótica em Portugal”, diz<br />

Pedro Se<strong>na</strong>-Lino, referin<strong>do</strong>-se<br />

a uma obra datada <strong>de</strong> 1968.<br />

A afirmação <strong>de</strong>ste critico <strong>de</strong><br />

poesia, que colabora com o suplemento<br />

“Mil Folhas” <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l<br />

Público, vem <strong>de</strong>monstrar que o<br />

erotismo não é um campo propriamente<br />

caro da literatura<br />

portuguesa contemporânea.<br />

Mas o que po<strong>de</strong> sugerir uma<br />

perda é ape<strong>na</strong>s o reflexo <strong>do</strong>s<br />

tempos.<br />

Após um perío<strong>do</strong> em que este<br />

género literário foi essencial<br />

para a <strong>de</strong>finição das socieda<strong>de</strong>s<br />

contemporâneas, pela sua<br />

componente <strong>de</strong> subversão aos<br />

preconceituosos <strong>po<strong>de</strong>r</strong>es instituí<strong>do</strong>s,<br />

começou a entrar em<br />

<strong>de</strong>clínio. Com <strong>na</strong>turalida<strong>de</strong>,<br />

como explica Se<strong>na</strong>-Lino: “A<br />

poesia é a primeira arma em<br />

to<strong>do</strong>s os campos para abrir caminho,<br />

como aconteceu com<br />

“GOZO III”<br />

Põe meu amor<br />

teu preceito<br />

teu pénis<br />

meu pão tão ce<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> vestir e <strong>de</strong> enfeitar<br />

espasmos toma<strong>do</strong>s<br />

por <strong>de</strong>ntro<br />

e guarnecer o <strong>de</strong>itar<br />

daquilo que vou gemen<strong>do</strong><br />

Meu amor<br />

por me habitares<br />

com jeito <strong>de</strong> teu<br />

invento<br />

ou com raiva<br />

<strong>de</strong> gritares<br />

quan<strong>do</strong> te monto<br />

e me fen<strong>do</strong><br />

Amesterdão e, em França, as escritoras<br />

Simone Beauvoir, Marguerite<br />

Duras e Christiane Rochefort<br />

promoveram uma procissão <strong>de</strong> velas<br />

com milhares <strong>de</strong> mulheres que<br />

atravessou Paris.<br />

A publicação em 1971 <strong>de</strong> “Novas<br />

Cartas Portuguesas” só foi possível<br />

<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à edição um ano antes<br />

<strong>de</strong> “Minha Senhora <strong>de</strong> Mim”, <strong>de</strong><br />

Maria Teresa Horta. Um livro feito<br />

<strong>de</strong> versos que misturam amor<br />

com erotismo numa clara afronta<br />

a uma or<strong>de</strong>m social e religiosa<br />

castra<strong>do</strong>ra das mulheres.<br />

“[Minha Senhora <strong>de</strong> Mim] tem<br />

muito a ver com a poesia medieval,<br />

as cantigas <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> amigo. A<br />

partir daí há uma evolução clara no<br />

senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> projectar uma mulher<br />

que se diz senhora <strong>de</strong> si própria,<br />

Minha Senhora <strong>de</strong> Mim. O livro foi<br />

tão escandaloso que foi apreendi<strong>do</strong><br />

e apanhei uma tareia <strong>na</strong> rua. Já há<br />

muito que tínhamos a i<strong>de</strong>ia das Novas<br />

Cartas e a Maria Velho da Costa<br />

disse: “Se uma mulher sozinha<br />

faz este barulho, imagi<strong>na</strong> três…””,<br />

conta a escritora.<br />

a poesia erótica e satírica <strong>do</strong>s<br />

cancioneiros medievais. Actualmente<br />

não se cultiva este<br />

género, ninguém faz um livro<br />

ape<strong>na</strong>s <strong>de</strong> poesia erótica. É um<br />

pouco a<strong>na</strong>crónico”.<br />

Também para Pedro Mexia,<br />

critico literário com crónicas<br />

regulares no Diário <strong>de</strong> Notícias,<br />

o tempo marcou este género.<br />

Se não há quem se<br />

<strong>de</strong>dique em exclusivo<br />

ao erotismo, gran<strong>de</strong><br />

parte <strong>do</strong>s autores<br />

incorporam-no nos<br />

seus escritos<br />

“Em Portugal, a literatura erótica<br />

foi mais importante quan<strong>do</strong><br />

era transgressora, nos tempos<br />

em que o catolicismo era forte<br />

e para o Esta<strong>do</strong> Novo era tão<br />

mal vista e censurada quanto<br />

Consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> por alguns como<br />

o seu livro mais ousa<strong>do</strong>, Teresa<br />

Horta prefere atribuir esse título<br />

a Educação Sentimental, escrito<br />

durante o ‘processo das três Marias’<br />

como resposta ao clássico,<br />

com o mesmo nome, <strong>de</strong> Flaubert:<br />

“Educação Sentimental é muito<br />

mais <strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong> para ser insubordi<strong>na</strong><strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> que Minha Senhora<br />

<strong>de</strong> Mim. Há um projecto didáctico<br />

em que explico aos homens o que<br />

as mulheres sentem, e que socialmente<br />

e moralmente não convém<br />

dizer. E claro que vou cantar o corpo<br />

<strong>do</strong>s homens porque eles sempre<br />

cantaram o das mulheres! Porque<br />

é que isto é escandaloso?!”<br />

“Sou feminista.” E <strong>de</strong>pois?<br />

Em toda a obra <strong>de</strong> Maria Teresa<br />

Horta, que já conta com mais <strong>de</strong><br />

20 livros <strong>de</strong> poesia e muitos outros<br />

<strong>de</strong> ficção e contos, está presente a<br />

sua faceta feminista. Recusan<strong>do</strong><br />

ser panfletária, a autora parte <strong>de</strong><br />

uma escrita intimista para uma<br />

mensagem social global <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa<br />

<strong>do</strong>s direitos da mulher.<br />

Assumidamente feminista <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

o início da década <strong>de</strong> 70, e funda<strong>do</strong>ra<br />

<strong>do</strong> Movimento <strong>de</strong> Libertação<br />

das Mulheres, Teresa Horta afirma<br />

“A literatura amorosa<br />

amor disten<strong>de</strong>, a<br />

pessoa fica ter<strong>na</strong>; <strong>na</strong><br />

literatura erótica o<br />

corpo respon<strong>de</strong> ao que<br />

está a ler!”<br />

não saber <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> se sentiu<br />

atraída pelo feminismo. “Não sei<br />

quan<strong>do</strong> comecei, provavelmente<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeni<strong>na</strong>, porque as injustiças<br />

sempre me fizeram confusão.<br />

Acho que todas as pessoas merecem<br />

a intervenção política. É difícil<br />

encontrar poemas eróticos em<br />

escritores com menos <strong>de</strong> 50<br />

anos”.<br />

Mas se actualmente não há<br />

quem se <strong>de</strong>dique em exclusivo<br />

ao erotismo, gran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong>s<br />

autores incorporam-no nos<br />

seus escritos. “Nos anos 80 e<br />

90, existem várias linguagens<br />

poéticas on<strong>de</strong> o discurso erótico<br />

está integra<strong>do</strong>. Encontramolo<br />

principalmente <strong>na</strong> poesia <strong>de</strong><br />

Al Berto e Luís Miguel Nava,<br />

mas também em Joaquim<br />

Manuel Magalhães, Eduar<strong>do</strong><br />

Pitta, Ama<strong>de</strong>u Baptista, entre<br />

outros. Autores como Daniel<br />

Faria ou “valter hugo mãe”<br />

(sic) fazem a integração <strong>do</strong><br />

erotismo <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista<br />

místico”, diz Se<strong>na</strong>-Lino. Pedro<br />

Mexia refere ainda a presença<br />

<strong>de</strong> um erotismo excêntrico <strong>na</strong><br />

obra <strong>de</strong> Adília Lopes.<br />

Na prosa, também são muitos<br />

os romances e contos a que não<br />

falta a <strong>do</strong>se certa <strong>de</strong> <strong>de</strong>scri-<br />

ser felizes e parece-me uma gran<strong>de</strong><br />

injustiça que a maior parte da humanida<strong>de</strong>,<br />

porque é mulher, não tenha<br />

esse direito. Ainda me lembro<br />

daquele provérbio português “Mãe,<br />

o que é casar? Filha, é amar, parir e<br />

chorar. Acho isto horrível!”<br />

A infância terá si<strong>do</strong>, sem dúvida,<br />

a sementeira <strong>do</strong> seu feminismo,<br />

quan<strong>do</strong> a avó pater<strong>na</strong> (que foi a<br />

primeira mulher a frequentar o<br />

liceu em Portugal) a levava às reuniões<br />

da Casa-Jardim. Aí, enquanto<br />

Teresa Horta lia livros infantis<br />

da ‘Colecção Manecas’, senhoras<br />

da burguesia, entre elas Maria Lamas,<br />

bebiam chá e comiam bolos<br />

éclair enquanto discutiam a emancipação<br />

das mulheres, como o acesso<br />

à educação e o direito ao voto.<br />

Mais tar<strong>de</strong> outras mulheres seriam<br />

marcantes <strong>na</strong> sua a<strong>de</strong>são ao movimento<br />

feminista, sobretu<strong>do</strong> Simone<br />

Beauvoir, <strong>de</strong> quem leu O Segun<strong>do</strong><br />

Sexo aos quinze anos. “Eu fui educada<br />

por mulheres: a minha mãe,<br />

a minha avó, as tias, as primas… E<br />

os gran<strong>de</strong>s marcos da minha vida,<br />

quer literários quer <strong>de</strong> pensamento,<br />

são mulheres: Simone, Duras, Virgínia<br />

Woolf, A<strong>na</strong>ïs Nin… A minha<br />

vida foi sempre modificada pelas<br />

mulheres e a minha escrita passa<br />

necessariamente pela minha vida”,<br />

diz Maria Teresa Horta.<br />

Apesar <strong>de</strong> a sua poesia assentar <strong>na</strong><br />

partilha e complementarida<strong>de</strong> entre<br />

os <strong>do</strong>is sexos, a espontaneida<strong>de</strong><br />

com que assumiu a sexualida<strong>de</strong> da<br />

mulher e a sua militância feminista<br />

criaram um cocktail explosivo que<br />

lhe trouxe muitos dissabores, entre<br />

os académicos (por quem, admite,<br />

“ser levada menos a sério”) mas<br />

também entre o gran<strong>de</strong> público.<br />

Durante muito tempo chegavamlhe<br />

frequentemente telefonemas<br />

<strong>de</strong> homens anónimos que ora a<br />

insultavam ora a convidavam<br />

para encontros amorosos, mas<br />

ções eróticas. Pedro Se<strong>na</strong>-Lino<br />

exemplifica com o último livro<br />

<strong>de</strong> Dulce Maria Car<strong>do</strong>so, Meus<br />

sentimentos, lança<strong>do</strong> em 2005.<br />

“Ao longo <strong>de</strong> 15 pági<strong>na</strong>s é relatada<br />

uma ce<strong>na</strong> <strong>de</strong> sexo numa<br />

estação <strong>de</strong> serviço”.<br />

De Gil Vicente a<br />

Natália Correia<br />

As origens <strong>do</strong> erotismo <strong>na</strong> poesia<br />

em Portugal po<strong>de</strong>m ser<br />

encontradas <strong>na</strong>s “Cantigas <strong>de</strong><br />

Escárnio e Mal-dizer” <strong>do</strong> Cancioneiro<br />

Geral <strong>de</strong> Garcia <strong>de</strong><br />

Resen<strong>de</strong> (1516), on<strong>de</strong> já estão<br />

representa<strong>do</strong>s poetas como<br />

Gil Vicente. No mesmo século,<br />

surge o célebre Canto IX (A Ilha<br />

<strong>do</strong>s Amores) <strong>do</strong>s “Lusíadas”,<br />

em que Luís <strong>de</strong> Camões relata<br />

os prazeres da carne com que<br />

os <strong>de</strong>uses <strong>de</strong>cidiram premiar<br />

os heróis portugueses. Mais<br />

tar<strong>de</strong>, no século XVIII, Bocage<br />

mistura em extensos poemas<br />

o erótico com o satírico, numa<br />

‘ofensa à moral e bons costu-<br />

também eram muitas as mulheres<br />

que a procuravam, em busca<br />

<strong>de</strong> alguém que as ajudasse a fugir<br />

<strong>de</strong> uma vida <strong>de</strong> me<strong>do</strong> e violência<br />

conjugal. “Um dia uma senhora<br />

ligou-me <strong>do</strong> hospital a dizer que<br />

já não aguentava mais e que se ia<br />

suicidar. Quan<strong>do</strong> soube que o fez,<br />

fiquei muito chocada e tive mesmo<br />

<strong>de</strong> tirar o meu nome da lista<br />

telefónica”, lembra Teresa Horta.<br />

Algumas décadas <strong>de</strong>pois da escri-<br />

mes’ que o leva à prisão.<br />

No século XX, os rituais <strong>de</strong><br />

Eros (<strong>de</strong>us grego <strong>do</strong> amor e<br />

<strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo) são celebra<strong>do</strong>s por<br />

poetas como Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Pessoa<br />

(English Poems), Mário <strong>de</strong> Sá-<br />

Carneiro, Guerra Junqueiro,<br />

António Botto, Jorge <strong>de</strong> Se<strong>na</strong><br />

ou Melo e Castro. Nas mulheres,<br />

para além <strong>de</strong> Teresa Horta,<br />

as referências vão para Judite<br />

Teixeira e Natália Correia,<br />

que em 1966 publica Antologia<br />

da Poesia Portuguesa Erótica<br />

e Satírica. Com autores mais<br />

e menos conheci<strong>do</strong>s, esta colectânea<br />

revela também como<br />

a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão se<br />

foi alteran<strong>do</strong> com o tempo,<br />

<strong>de</strong>masiadas vezes no senti<strong>do</strong><br />

contrário ao que seria <strong>de</strong> pensar.<br />

Pela feitura da Antologia,<br />

Natália Correia foi con<strong>de</strong><strong>na</strong>da<br />

a três anos <strong>de</strong> prisão com pe<strong>na</strong><br />

suspensa. •<br />

SUGESTÕES DE LEITURA<br />

Iri<strong>na</strong> Melo<br />

Um jogo <strong>de</strong> espelhos. A<strong>na</strong> Paula<br />

Costa silencia a sua voz <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> ao<br />

leitor a <strong>de</strong>scoberta da açoria<strong>na</strong> <strong>de</strong><br />

“carácter vulcânico” que foi poeta,<br />

romancista, dramaturga, ensaísta,<br />

tradutora, conferencista, editora e<br />

<strong>de</strong>putada.<br />

Correspondência <strong>de</strong> Sophia <strong>de</strong> Mello Breyner e<br />

Jorge <strong>de</strong> Se<strong>na</strong> (1959-1978)<br />

Autores: Sophia <strong>de</strong> Mello Breyner<br />

Andresen e Jorge <strong>de</strong> Se<strong>na</strong><br />

Editora: Guerra e Paz<br />

Nas décadas <strong>de</strong> 60 e 70, <strong>do</strong>is amigos,<br />

separa<strong>do</strong>s por um oceano e um<br />

velho dita<strong>do</strong>r, trocam cartas como<br />

quem troca segre<strong>do</strong>s. Com intimida<strong>de</strong>.<br />

Sobre cida<strong>de</strong>s, política e, claro,<br />

literatura. Não fossem eles Sophia<br />

<strong>de</strong> Mello Breyner e Jorge <strong>de</strong> Se<strong>na</strong>.<br />

ta <strong>de</strong> Novas Cartas Portuguesas<br />

e <strong>do</strong>s versos eróticos que se atreveu<br />

a publicar, o país evoluiu e<br />

já não há quem se indigne (pelo<br />

menos publicamente) com a sua<br />

ousadia <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> feita escrita.<br />

Mesmo assim, “Em Portugal, não<br />

é fácil ser mari<strong>do</strong> ou filho da Teresa<br />

Horta”, diz a escritora, com<br />

a mesma expressão matreira,<br />

mas ter<strong>na</strong>, com que sempre fintou<br />

quem a tentava amordaçar.<br />

Fotobiografia <strong>de</strong><br />

Natália Correia<br />

Autora: A<strong>na</strong> Paula Costa<br />

Editora: Publicações D. Quixote


26 LETRAS CONTO<br />

SÍLVIA CANECO<br />

Olho-a pelo canto <strong>do</strong><br />

olho, to<strong>do</strong>s os dias ela<br />

<strong>na</strong>quela ca<strong>de</strong>ira encostada<br />

ao vidro, to<strong>do</strong>s os<br />

dias por instantes os seus <strong>de</strong><strong>do</strong>s<br />

a massajarem-lhe as rugas, por<br />

instantes as suas rugas a <strong>na</strong>ufragarem<br />

<strong>na</strong> ari<strong>de</strong>z <strong>do</strong>s seus <strong>de</strong><strong>do</strong>s. A<br />

sua pali<strong>de</strong>z esboçada no bule pousa<strong>do</strong><br />

<strong>na</strong> mesa, a sua boca inquieta<br />

a soprar o chá com assobios <strong>de</strong> cuspo<br />

rente à boca da cháve<strong>na</strong>, rente<br />

à boca da cháve<strong>na</strong>. To<strong>do</strong>s os dias<br />

saber que os meus olhos a fitam e<br />

muitos outros a <strong>de</strong>voram, saber<br />

que ao meu la<strong>do</strong> muitos comentam<br />

a sua figura, olha-me só para<br />

aquela que já <strong>de</strong>via ter ida<strong>de</strong> para<br />

ter juízo, olha lá que já podia ser<br />

nossa avó, saber que ela o sente e o<br />

sabe e a incomoda e saber quan<strong>do</strong><br />

me olha nos olhos o seu <strong>de</strong>sejo e o<br />

sangue <strong>de</strong> uma ferida que vai crescen<strong>do</strong>,<br />

crescen<strong>do</strong>, crescen<strong>do</strong>.<br />

Olho-a pelo canto <strong>do</strong> olho, to<strong>do</strong>s<br />

os dias ela e o seu rosto <strong>de</strong> pólvora<br />

no precipício <strong>do</strong> vidro, to<strong>do</strong>s os<br />

dias o seu olhar baço a olhar fixamente<br />

para o vidro <strong>do</strong> bule, para o<br />

vidro da cháve<strong>na</strong>, para o vidro <strong>do</strong><br />

vidro. To<strong>do</strong>s os dias o seu rosto a<br />

disfarçar-se <strong>de</strong> garboso pela blusa<br />

<strong>de</strong> renda guardada há anos <strong>na</strong><br />

gaveta, to<strong>do</strong>s os dias o perfume<br />

compra<strong>do</strong> <strong>na</strong> mercearia da esqui<strong>na</strong><br />

para disfarçar o cheiro a mofo,<br />

os cabelos brancos meticulosamente<br />

enrola<strong>do</strong>s numa <strong>de</strong>ze<strong>na</strong> <strong>de</strong><br />

ganchos, olhar-se ao espelho nem<br />

que seja por esta vez e repetir-lhe<br />

ajuda-me a querer-me, ajuda-me a<br />

querer-me, ajuda-me a querer-me.<br />

E os seus <strong>de</strong><strong>do</strong>s trémulos como os<br />

<strong>de</strong> uma criança, e os seus <strong>de</strong><strong>do</strong>s trémulos<br />

como os <strong>de</strong> alguém que se dá<br />

a outrem pela primeira vez, porque<br />

está tu<strong>do</strong> a olhar para mim? e os<br />

seus <strong>de</strong><strong>do</strong>s <strong>de</strong>sajeita<strong>do</strong>s, e o cigarro<br />

rente aos lábios, e os travos <strong>de</strong>sajeita<strong>do</strong>s,<br />

o rosto contorci<strong>do</strong> a olhar<br />

timidamente para o la<strong>do</strong> para ver<br />

se alguém repara, o conter a tosse<br />

e o fumo a sair compulsivo e <strong>de</strong>sajeita<strong>do</strong><br />

rente ao seu rosto, pu<strong>de</strong>sse<br />

Artigo1º<br />

(Âmbito e aplicação)<br />

1. Po<strong>de</strong>m participar no concurso literário<br />

to<strong>do</strong>s os jovens até aos 30 anos<br />

resi<strong>de</strong>ntes em Portugal e <strong>na</strong>s Regiões<br />

Autónomas que não possuam qualquer<br />

obra publicada. Estão excluí<strong>do</strong>s à partida<br />

to<strong>do</strong>s os colabora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l.<br />

2. O concurso terá duas categorias distintas:<br />

prosa e poesia.<br />

3. Serão admiti<strong>do</strong>s a concurso textos<br />

inéditos escritos em português.<br />

Artigo 2º<br />

(Apresentação <strong>do</strong>s Trabalhos)<br />

1. Cada concorrente <strong>po<strong>de</strong>r</strong>á ape<strong>na</strong>s apresentar<br />

uma obra para cada categoria.<br />

2. Os trabalhos entregues terão <strong>de</strong> ser<br />

assi<strong>na</strong><strong>do</strong>s com o verda<strong>de</strong>iro nome <strong>do</strong><br />

concorrente, anexan<strong>do</strong>-lhe uma ficha<br />

com os da<strong>do</strong>s pessoais (nome comple-<br />

A única coincidência<br />

que os une<br />

eu morrer hoje como me morreste<br />

<strong>na</strong>quela noite, e to<strong>do</strong>s os números,<br />

todas as imagens, todas as datas,<br />

toda uma vida num só traço <strong>de</strong> nevoeiro<br />

e carvão.<br />

A caminho <strong>de</strong> casa sempre o mesmo<br />

pensamento <strong>de</strong> não conseguir <strong>de</strong>ixar<br />

<strong>de</strong> pensar nela. E não conseguir<br />

<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pensar nele. E sempre a<br />

mesma questão: o cigarro mata?<br />

E ele <strong>de</strong> que nem me lembro, ele<br />

<strong>de</strong> quem nunca vi o rosto, ele cuja<br />

to, morada, telefone e e-mail). É ainda<br />

obrigatória a entrega <strong>de</strong> uma cópia <strong>do</strong><br />

Bilhete <strong>de</strong> I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />

3. Os trabalhos terão <strong>de</strong> ser elabora<strong>do</strong>s<br />

com o tipo <strong>de</strong> letra Arial 10, duplo espaçamento<br />

entre as linhas e pági<strong>na</strong>s enumeradas<br />

sequencialmente. A dimensão<br />

máxima é <strong>de</strong> 10.000 caracteres.<br />

Artigo 3º<br />

(Entrega <strong>do</strong>s Trabalhos)<br />

1. Os trabalhos <strong>de</strong>vem ser envia<strong>do</strong>s para<br />

o en<strong>de</strong>reço electrónico oitavacoli<strong>na</strong>@<br />

gmail.com ou para a seguinte morada:<br />

Concurso Literário ‘Oitava Coli<strong>na</strong>’, Jor<strong>na</strong>l<br />

Oitava Coli<strong>na</strong>, <strong>Escola</strong> <strong>Superior</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Comunicação</strong> <strong>Social</strong> <strong>de</strong> Lisboa, Campus<br />

<strong>de</strong> Benfica <strong>do</strong> IPL, 1549-014 Lisboa.<br />

3. A data limite <strong>de</strong> entrega <strong>do</strong>s textos é<br />

31 <strong>de</strong> Agosto.<br />

inocência quase podia jurar. Ele<br />

que nem posso olhar to<strong>do</strong>s os dias<br />

pelo canto <strong>do</strong> olho. Tão jovem.<br />

Ouvir a história e pensar a maior<br />

das ba<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s: como era jovem.<br />

To<strong>do</strong>s os dias, não olhá-lo sequer<br />

pelo canto <strong>do</strong> olho. Coita<strong>do</strong>, como<br />

era jovem. E ele que era pobre, 17<br />

anos e a chegada a um lugar novo,<br />

sem <strong>de</strong>moras arranjar dinheiro<br />

para a família e o Sr. Ernesto a<br />

arranjar-lhe um trabalhinho <strong>na</strong><br />

única mercearia da terra. E a<br />

inocência a pedir para durar. A<br />

inocência no seu corpo franzino a<br />

implorar Não me aban<strong>do</strong>nes, não<br />

me aban<strong>do</strong>nes, não me aban<strong>do</strong>nes…<br />

E logo um grupo <strong>de</strong> rapazes<br />

mais velhos a convencê-lo a roubar<br />

um maço para fumarem às<br />

escondidas, não, não posso fazer<br />

isso, sou <strong>de</strong>spedi<strong>do</strong>, não tenho dinheiro<br />

para o comprar, não posso,<br />

não posso, não posso, os outros a<br />

Artigo 4º<br />

(Júri <strong>do</strong> Concurso)<br />

1. O júri será composto por um elemento<br />

da redacção <strong>do</strong> 8º Coli<strong>na</strong> e <strong>do</strong>is reconheci<strong>do</strong>s<br />

especialistas <strong>na</strong> área <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s<br />

literários.<br />

2. Caberá ao júri <strong>de</strong>finir os critérios a<br />

a<strong>do</strong>ptar <strong>na</strong> avaliação <strong>do</strong>s trabalhos.<br />

Artigo 5º<br />

(Textos a premiar)<br />

1. De entre os trabalhos apresenta<strong>do</strong>s<br />

será premia<strong>do</strong> o melhor texto <strong>na</strong> categoria<br />

<strong>de</strong> prosa e o melhor texto <strong>na</strong> categoria<br />

<strong>de</strong> poesia.<br />

2. A <strong>de</strong>cisão <strong>do</strong> júri é sobera<strong>na</strong> sen<strong>do</strong><br />

que, da mesma, não haverá recurso.<br />

Artigo 6º<br />

(Prémio e comunicação <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s)<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

dizer-lhe és mesmo um puto e nem<br />

isso és capaz <strong>de</strong> fazer, a vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ser o mais forte a falar mais<br />

alto, a vergonha <strong>de</strong> <strong>po<strong>de</strong>r</strong> ser pisa<strong>do</strong><br />

a falar ainda mais alto, e o<br />

patrão furioso, o patrão que tinha<br />

os maços conta<strong>do</strong>s a perguntar o<br />

que andaste tu a roubar? Quero<br />

que me chames já a tua mãe. E o<br />

seu coração a sangrar, a sangrar, a<br />

sangrar, por favor tu<strong>do</strong> menos a<br />

minha mãe, fazes isso e mato-me.<br />

Prefiro matar-me a que faças a<br />

minha mãe passar por essa vergonha.<br />

Prefiro matar-me. Prefiro<br />

matar-me. Horas <strong>de</strong>pois a mãe a<br />

reclamar-lhe a educação, a mãe a<br />

gritar aos seus ouvi<strong>do</strong>s, que vergonha,<br />

somos novos <strong>na</strong> terra e o<br />

que é que vão pensar, quan<strong>do</strong> o<br />

teu pai souber que cara vai ter ele<br />

para olhar para o Sr. Ernesto que<br />

foi um bom homem e te arranjou<br />

emprego, roubar cigarros? Amanhã<br />

no merca<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s a falarem<br />

<strong>de</strong> nós, a comentarem com os vizinhos,<br />

a comentarem por trás das<br />

nossas costas, que vergonha Custódio<br />

Emanuel, que vergonha. E<br />

<strong>de</strong>le nem um único si<strong>na</strong>l exterior,<br />

nem uma lágrima, nem uma palavra.<br />

E, no dia seguinte, ao primeiro<br />

minuto livre, prefiro matar-me<br />

a ver a minha mãe passar por<br />

essa vergonha, a ameaça surda<br />

<strong>de</strong> um trovão e o coração ainda a<br />

sangrar mais, Coita<strong>do</strong> <strong>do</strong> Custódio,<br />

era um rapaz tão jovem, e a<br />

vergonha a morrer nos olhares <strong>de</strong><br />

quem se sentia cúmplice. A morte<br />

<strong>de</strong>itada no lençol da terra. E a<br />

vergonha a <strong>de</strong>finhar lentamente<br />

com uma corda no pescoço e o<br />

sobreiro a guardar para sempre o<br />

seu grito sur<strong>do</strong> <strong>de</strong> socorro.<br />

Olho-a pelo canto <strong>do</strong> olho e nunca<br />

consigo <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pensar nele. Nele<br />

e nela e em como o cigarro é a única<br />

coincidência que os une. E penso<br />

como um cigarro mata. Como<br />

um cigarro mata a solidão.<br />

Ela é a senhora <strong>de</strong> 70 anos que<br />

encontro regularmente num café<br />

em Benfica. Ele era o irmão mais<br />

novo da minha mãe.<br />

R E G U L A M E N T O<br />

Prémio literário “8ª Coli<strong>na</strong>”<br />

SARA MATOS<br />

1.O trabalho premia<strong>do</strong> será publica<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />

próxima edição <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l Oitava Coli<strong>na</strong>,<br />

sem prejuízo para outros prémios que<br />

venham a existir.<br />

2. O titular <strong>do</strong> prémio será notifica<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

mesmo ainda antes <strong>de</strong> o seu texto ser<br />

publica<strong>do</strong> <strong>na</strong> edição <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l.<br />

3. Os trabalhos não premia<strong>do</strong>s não serão<br />

<strong>de</strong>volvi<strong>do</strong>s aos seus autores.<br />

Artigo 7º<br />

(Não aceitação <strong>do</strong>s Textos)<br />

Os promotores <strong>de</strong>sta iniciativa reservam-se<br />

o direito <strong>de</strong> não aceitar os textos a concurso<br />

que não obe<strong>de</strong>cem às regras estabelecidas<br />

no presente regulamento.<br />

Artigo 8º (Aceitação)<br />

O simples facto <strong>de</strong> participar neste concurso<br />

implica a aceitação <strong>de</strong> todas as regras<br />

<strong>de</strong>finidas no presente regulamento.


Agenda<br />

8ª COLINA I JUNHO 2006 CULTURA 27<br />

EXPOSIÇÃO<br />

Trajes <strong>de</strong> D. Inês<br />

“Estavas, linda Inês, posta em sossego,<br />

De teus anos colhen<strong>do</strong> <strong>do</strong>ce fruito,<br />

Naquele engano da alma, le<strong>do</strong> e cego,<br />

Que a fortu<strong>na</strong> não <strong>de</strong>ixa durar muito”<br />

(CAMÕES)<br />

Em 2006, a morte <strong>de</strong> D. Inês <strong>de</strong> Castro<br />

soma 650 anos. No âmbito <strong>de</strong>sta comemoração,<br />

<strong>na</strong>da melhor que imortalizar<br />

a morte da eter<strong>na</strong> apaixo<strong>na</strong>da <strong>de</strong> D.<br />

Pedro, projectan<strong>do</strong> as vestes <strong>de</strong>sta figura<br />

femini<strong>na</strong> para a realida<strong>de</strong> actual.<br />

Assim, com o intuito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alizar uma<br />

CONCERTO<br />

Bob Gel<strong>do</strong>f & Waterboys<br />

O ex-lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s Boomtown Rats e funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s projectos<br />

Live Aid e Live 8 actua pela primeira vez em Portugal,<br />

com os ingleses Waterboys. Bob Gel<strong>do</strong>f esteve recentemente<br />

em Lisboa, <strong>na</strong> cerimónia <strong>do</strong>s MTV Europe Music<br />

Awards, e <strong>de</strong>sta vez volta ao Pavilhão Atlântico para tocar<br />

alguns <strong>do</strong>s melhores temas da sua antiga banda.<br />

Quatro anos <strong>de</strong>pois da actuação <strong>na</strong> Covilhã, os Waterboys<br />

juntam-se a Gel<strong>do</strong>f num concerto que promete ser<br />

memorável para to<strong>do</strong>s os fãs portugueses. Os concertos<br />

estão inseri<strong>do</strong>s num festival com propósitos <strong>de</strong> carida<strong>de</strong><br />

on<strong>de</strong> parte das receitas irão reverter a favor <strong>de</strong><br />

entida<strong>de</strong>s humanitárias empenhadas em ajudar países<br />

em vias <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. • Pavilhão Atlântico; Sala<br />

Atlântico • 7 <strong>de</strong> Julho, 20:00, 25 a 32 Euros.<br />

FEIRA<br />

Do It Yourself<br />

A i<strong>de</strong>ia é da Crew Hassan: incentivar a produção artística,<br />

com a condição máxima <strong>de</strong> se ter materiais próprios para<br />

(re)criar novos objectos. Nesta feira são bemvin<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s<br />

os artesãos <strong>de</strong> trazer por casa, que têm o especial gosto<br />

pelo reaproveitamento <strong>de</strong> materiais. O objectivo é incentivar<br />

a venda das criações únicas, sen<strong>do</strong> que cada feirante tem<br />

direito a um metro <strong>de</strong> “banca”. As inscrições são gratuitas<br />

em http://www.crewhassan.org/. A não a per<strong>de</strong>r a partir <strong>de</strong><br />

Julho, to<strong>do</strong>s os 1ºs sába<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mês (15h-22h). Crew Hassan |<br />

Rua <strong>de</strong> Portas <strong>de</strong> Sto. Antão, nº159, 1º andar | 213466119<br />

figura que correspon<strong>de</strong>sse à imagem<br />

<strong>de</strong> uma Inês <strong>de</strong> Castro <strong>do</strong>s nossos dias,<br />

foram convida<strong>do</strong>s alguns <strong>do</strong>s principais<br />

representantes da Moda-<strong>de</strong>-Autor em<br />

Portugal. Os cria<strong>do</strong>res convida<strong>do</strong>s são:<br />

A<strong>na</strong> Salazar, Augustus, Fátima Lopes,<br />

José António Tenente, Manuel Alves/<br />

José Manuel Gonçalves, Katty Xiomara,<br />

Luís Buchinho e Miguel Vieira. A exposição<br />

foi i<strong>na</strong>ugurada a 14 <strong>de</strong> Fevereiro<br />

<strong>de</strong>ste ano, e está aberta ao público até<br />

Novembro, no Museu <strong>do</strong> Traje. A não<br />

per<strong>de</strong>r! • Preço: 3 Euros.<br />

África Festival<br />

O África Festival volta a aquecer Lisboa com o som quente <strong>do</strong>s<br />

ritmos africanos. Integra<strong>do</strong> no programa das Festas <strong>de</strong> Lisboa,<br />

o festival irá realizar-se <strong>na</strong> Torre <strong>de</strong> Belém <strong>de</strong> 6 a 9 <strong>de</strong> Julho.<br />

Alguns <strong>do</strong>s principais representantes das músicas africa<strong>na</strong>s<br />

estarão presentes nestes quatro dias <strong>de</strong> concertos, que serão<br />

complementa<strong>do</strong>s com diversos workshops, ateliers e exposições<br />

a <strong>de</strong>correr no relva<strong>do</strong> da Torre. O recinto abre às 11 horas para<br />

as activida<strong>de</strong>s no relva<strong>do</strong> e os concertos terão início às 22 horas.<br />

A entrada é gratuita, bem como a participação nos ateliers<br />

e workshops.<br />

Sauda<strong>de</strong>:<br />

various artists from the Atlantic Coast<br />

As netlabels – editoras online que distribuem música<br />

em formato digital, enfatizan<strong>do</strong> o <strong>do</strong>wnload<br />

gratuito – surgem em Portugal em 2001, com a<br />

Enough Records. A MiMi Records, netlabel se<strong>de</strong>ada<br />

em Coimbra <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2003 – ano da comemoração<br />

<strong>do</strong>s 460 anos <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> entre Portugal e<br />

Japão – <strong>de</strong>dica-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então ao lançamento <strong>de</strong><br />

música portuguesa e japonesa in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, com<br />

exclusivida<strong>de</strong> para a música electrónica. Contan<strong>do</strong><br />

já com cerca <strong>de</strong> 60 lançamentos, comemora<br />

o seu 50º trabalho com o projecto Sauda<strong>de</strong>: Va-<br />

Realiza<strong>do</strong>r: Michael Mann • Estreia<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l: 03/06/06. • Cinemas<br />

Castello Lopes • A série <strong>de</strong><br />

sucesso <strong>do</strong>s anos 80 chega às salas<br />

<strong>de</strong> cinema <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. Michael<br />

Mann é o realiza<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Miami Vice,<br />

Miami Vice<br />

um filme basea<strong>do</strong> num conjunto <strong>de</strong><br />

episódios que contam o dia-a-dia<br />

<strong>de</strong> <strong>do</strong>is policias, que perseguem<br />

criminosos em Miami. De acor<strong>do</strong><br />

com alguns fãs, esta foi a primeira<br />

série realmente nova e diferente<br />

Associação Loucos<br />

& Sonha<strong>do</strong>res<br />

A Associação Loucos e Sonha<strong>do</strong>res<br />

é um lugar especial. O ambiente<br />

escuro e acolhe<strong>do</strong>r proporcio<strong>na</strong><br />

momentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontracção,<br />

on<strong>de</strong> os livros e os copos convivem<br />

harmoniosamente. Esta cave, <strong>de</strong>corada<br />

com os mais varia<strong>do</strong>s objectos<br />

vin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Marrocos e da Índia,<br />

transforma-se num ambiente<br />

familiar que muitas vezes acolhe<br />

tertúlias literárias. Se procura um<br />

bom sitio para relaxar, visite esta<br />

cave <strong>do</strong> Bairro Alto, junto à Livraria<br />

Ler Devagar (actualmente encerrada)<br />

e o Bar Agito.<br />

rious Artists from the Atlantic Coast lança<strong>do</strong> em<br />

Março <strong>de</strong>ste ano. Reúne treze artistas portugueses<br />

<strong>de</strong> maior e menor projecção, que marcam a<br />

electrónica portuguesa actual: várias linhas musicais<br />

e estruturas rítmicas, como o glitch, noise,<br />

I.D.M. (intelligent dance music) ou leftfield beats,<br />

comprovam a frescura da criativida<strong>de</strong> costeira e<br />

asseguram, para os aprecia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> estilo, que<br />

a música das netlabels não peca pela qualida<strong>de</strong>.<br />

• 68’’45’’; MiMi Records • On<strong>de</strong> adquirir: http://<br />

www.clubotaku.org/mimi/pt/album50.php.<br />

CINEMA<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a invenção da televisão a<br />

cores. Colin Farrel, Jamie Foxx e<br />

A<strong>na</strong> Cristi<strong>na</strong> <strong>de</strong> Oliveira compõem<br />

o elenco <strong>de</strong>ste filme que promete<br />

reviver as aventuras <strong>de</strong> Sonny<br />

Crockett e Rico Tubbs.


28 CULTURA<br />

GALERIA DE ARTE<br />

<br />

O futuro da 111<br />

<br />

<br />

<br />

<br />

ESCOLHAS DA GALERIA E SONHA COM NOVA IORQ<strong>UE</strong>.<br />

VERA MOUTINHO ganhar uns dinheiros extra e<br />

Assim, à primeira vista, parece<br />

um pequeno império numa rua <strong>de</strong><br />

Lisboa. Três galerias, um armazém<br />

e um prédio, to<strong>do</strong>s cheios <strong>de</strong><br />

arte e <strong>de</strong> história da Galeria 111.<br />

No Campo Gran<strong>de</strong>, chamam-lhe a<br />

rua “<strong>do</strong>s Soares e <strong>do</strong>s Britos”: Mário<br />

Soares vive mais lá ao fun<strong>do</strong>,<br />

com vista para o Colégio Mo<strong>de</strong>rno,<br />

e a Galeria 111, <strong>do</strong>s Britos, a<br />

mais antiga <strong>do</strong> país, fica <strong>de</strong> frente<br />

para o jardim. Para conhecer a<br />

história da Galeria é preciso percorrer<br />

a rua <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> ao outro,<br />

passan<strong>do</strong> invariavelmente pela livraria<br />

<strong>do</strong> nº 111, on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> começou.<br />

Manuel <strong>de</strong> Brito era livreiro<br />

e foi numa peque<strong>na</strong> sala forrada<br />

<strong>de</strong> livros que fez a primeira exposição,<br />

convenci<strong>do</strong> por amigos.<br />

Hoje, o filho Rui Brito, 28 anos, é<br />

o galerista mais novo à frente da<br />

“mais antiga galeria portuguesa<br />

sem interrupção <strong>de</strong> funcio<strong>na</strong>mento<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua abertura”, lê-se <strong>na</strong><br />

história da instituição.<br />

À frente da galeria<br />

Rui Brito fez o primeiro negócio<br />

aos 16 anos: ven<strong>de</strong>u uma serigrafia<br />

da Vieira da Silva. Começou<br />

a trabalhar <strong>na</strong> galeria <strong>do</strong> pai aos<br />

Sába<strong>do</strong>s à tar<strong>de</strong>: “Precisava <strong>de</strong><br />

faltava um colabora<strong>do</strong>r nessa altura”.<br />

Ainda muito novo, saía <strong>do</strong><br />

Colégio Mo<strong>de</strong>rno e ia para a galeria,<br />

on<strong>de</strong> andava aos pontapés a<br />

artistas e clientes. “Comecei <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

miú<strong>do</strong> a andar nos ateliês, ia<br />

com os meus pais em viagens, visitámos<br />

museus… no fun<strong>do</strong> nunca<br />

se per<strong>de</strong>u esse contacto com a<br />

arte <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>na</strong>sci, até porque a<br />

minha casa estava completamente<br />

forrada <strong>de</strong> trabalhos”.<br />

Ainda assim, a escolha por seguir<br />

o negócio <strong>de</strong> família não foi<br />

“Para ven<strong>de</strong>r arte não<br />

é preciso ter um curso<br />

<strong>de</strong> História <strong>de</strong> Arte”<br />

- Rui Brito<br />

óbvia. Quan<strong>do</strong> começou a sentir<br />

a pressão da “continuida<strong>de</strong>” – os<br />

irmãos mais velhos seguiram outros<br />

percursos – a vonta<strong>de</strong> foi fugir.<br />

Hoje, no seu escritório openspace,<br />

uma espécie <strong>de</strong> varanda<br />

interior para o espaço <strong>de</strong> uma<br />

das galerias, fala <strong>de</strong> um percurso<br />

sinuoso com paragem em quatro<br />

cursos diferentes: “Na altura <strong>de</strong><br />

optar achei que <strong>de</strong>via fazer qualquer<br />

coisa diferente e fui para<br />

Gestão <strong>de</strong> Empresas. Não contente,<br />

mu<strong>de</strong>i <strong>de</strong> curso. Tinha gosta<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> uma ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Direito e então<br />

fui para Direito. Fiz um ano e<br />

achei que não era <strong>na</strong>da daquilo.<br />

Fui para Economia; o curso tinha<br />

si<strong>do</strong> reestrutura<strong>do</strong> e eu gostava<br />

<strong>de</strong> fi<strong>na</strong>nças. Mas <strong>de</strong>pois achei que<br />

não. Entretanto meti-me <strong>na</strong> Associação<br />

Académica, fui dirigente<br />

associativo durante <strong>do</strong>is anos e<br />

tal e an<strong>de</strong>i entreti<strong>do</strong> por outros<br />

la<strong>do</strong>s”, conta com um sorriso<br />

largo, mas tími<strong>do</strong>. “Depois é que<br />

achei que aquilo era tu<strong>do</strong> uma<br />

perda <strong>de</strong> tempo, voltei a fazer as<br />

<br />

específicas, entrei <strong>na</strong> Clássica e<br />

fiz História <strong>de</strong> Arte. Quan<strong>do</strong> não<br />

estava aqui <strong>na</strong> galeria, era só subir<br />

a Cida<strong>de</strong> Universitária”.<br />

Na faculda<strong>de</strong> esforçou-se por<br />

passar <strong>de</strong>spercebi<strong>do</strong>. Conseguiu,<br />

até ao último ano: “ O Rui<br />

Mário Gonçalves, que era daqueles<br />

a quem eu andava ao pontapé<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> miú<strong>do</strong>, era meu professor<br />

e <strong>na</strong>s aulas dizia ‘então Rui, tu<br />

sabes tu<strong>do</strong>, não queres falar sobre<br />

isso?’”. Rui <strong>de</strong>stacava-se <strong>do</strong>s<br />

outros, falava <strong>de</strong> arte com um<br />

à vonta<strong>de</strong> que revelava não só<br />

conhecimento mas experiência,<br />

e reconhecia que era diferente<br />

<strong>do</strong>s colegas. A maior parte não<br />

se interessava por exposições,<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

VERA MOUTINHO<br />

nem aquelas <strong>de</strong> uma galeria ao<br />

fun<strong>do</strong> da rua, a 111. “Depois acabei<br />

por receber currículos <strong>de</strong>les<br />

a candidatarem-se a um cargo<br />

<strong>de</strong> colabora<strong>do</strong>r”, conta Rui, mas<br />

Rui Brito fez o primeiro<br />

negócio aos 16 anos:<br />

ven<strong>de</strong>u uma serigrafia<br />

<strong>de</strong> Vieira da Silva.<br />

não os contratou, por achar que<br />

não tinham perfil para trabalhar<br />

numa galeria. “Para ven<strong>de</strong>r<br />

arte não é preciso ter um curso<br />

<strong>de</strong> História <strong>de</strong> Arte. Aquilo que<br />

VERA MOUTINHO


8ª COLINA I JUNHO 2006 CULTURA 29<br />

ROTEIRO DE ARTES DO ESPECTÁCULO<br />

Pisa-papéis: agarrar o merca<strong>do</strong> da cultura<br />

Um pisa-papéis está sempre ali, em cima<br />

da mesa, pronto a ser usa<strong>do</strong>. Debaixo<br />

<strong>de</strong>le está informação valiosa, a não per<strong>de</strong>r.<br />

Foi <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ia que partiu a equipa<br />

responsável pelo roteiro Pisa-Papéis,<br />

projecto cria<strong>do</strong> em 2005 com o objectivo<br />

<strong>de</strong> sistematizar e divulgar informação<br />

sobre o merca<strong>do</strong> das Artes <strong>do</strong> Espectáculo<br />

em Portugal. “Sem complexos” – lê-se<br />

<strong>na</strong> introdução da primeira edição – “<strong>de</strong><br />

falar em merca<strong>do</strong> sem me<strong>do</strong> que este termo<br />

não rime com Cultura”. Nuno Ricou<br />

Salga<strong>do</strong>, um <strong>do</strong>s responsáveis pelo conceito<br />

e coor<strong>de</strong><strong>na</strong>ção <strong>do</strong> projecto, conta<br />

que o Pisa-Papéis surgiu, <strong>de</strong> facto, <strong>de</strong><br />

uma “necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>”. No seu<br />

trabalho como programa<strong>do</strong>r e produtor<br />

<strong>de</strong> teatro, <strong>na</strong> Companhia Chapitô, percebeu<br />

como fazia falta um instrumento<br />

<strong>de</strong> comunicação que compilasse todas as<br />

artes <strong>do</strong> espectáculo: “A realida<strong>de</strong> cultural<br />

funcio<strong>na</strong> muito em círculos fecha<strong>do</strong>s.<br />

Funcio<strong>na</strong> o circuito <strong>do</strong> Bairro Alto, Porto,<br />

Faro, mas <strong>de</strong>pois há pouca circulação.<br />

São circuitos que funcio<strong>na</strong>m a partir <strong>de</strong><br />

conhecimentos pessoais e on<strong>de</strong> é muito<br />

difícil entrar”. O Pisa-Papéis quis não só<br />

abrir os circuitos <strong>de</strong> espectáculos mas<br />

também aumentar a sua diversida<strong>de</strong>,<br />

representan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o país. Publica<strong>do</strong><br />

em livro – capa dura, <strong>de</strong>sign mo<strong>de</strong>rno<br />

eu aprendi <strong>na</strong> universida<strong>de</strong> se<br />

calhar aprendia sen<strong>do</strong> orienta<strong>do</strong><br />

para ler <strong>de</strong>termi<strong>na</strong><strong>do</strong>s livros<br />

e autores”.<br />

A arte <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r<br />

Rui Brito diz que apren<strong>de</strong>u a ven<strong>de</strong>r<br />

arte “olhan<strong>do</strong>”. Depois <strong>do</strong> curso<br />

seguiu-se uma especialização<br />

<strong>de</strong> três meses em Nova Iorque,<br />

em Gestão e Marketing das Artes.<br />

Apesar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, vê o seu trabalho<br />

como mais que um negócio:<br />

“Gosto <strong>do</strong> que faço e gosto muito<br />

<strong>de</strong> arte”. E por isso, algumas vendas<br />

sabem melhor que outras: “O<br />

que me <strong>de</strong>smotiva são as pessoas<br />

que começam com uma conversa<br />

<strong>de</strong>ste género: ‘quero um trabalho<br />

para dar com os corti<strong>na</strong><strong>do</strong>s’ ou<br />

‘não po<strong>de</strong> ser este’ porque o sofá<br />

é não sei o quê… Ven<strong>do</strong>, mas com<br />

menos sorrisos”. As revistas <strong>de</strong><br />

arte espalhadas em cima da mesa<br />

<strong>do</strong> escritório dizem que continua<br />

a olhar, observa<strong>do</strong>r e atento, sobretu<strong>do</strong><br />

aos merca<strong>do</strong>s que mais<br />

lhe interessam: Berlim, Londres,<br />

Nova Iorque. Está sempre à procura<br />

<strong>do</strong> que é inova<strong>do</strong>r em Arte<br />

Contemporânea, afastan<strong>do</strong> o que<br />

já foi “feito e refeito”. Nos últimos<br />

tempos tem trabalha<strong>do</strong> num sonho:<br />

abrir uma galeria em Nova<br />

Iorque. Hesita em revelar mais,<br />

o receio <strong>de</strong> que ao contar o <strong>de</strong>sejo<br />

ele não se concretize. “Acho que<br />

a América continua a ser uma<br />

terra <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s”. A i<strong>de</strong>ia<br />

seria fazer uma galeria com artistas<br />

que vivessem nos EUA. “Por<br />

acaso an<strong>do</strong> um bocadinho mais à<br />

frente e já an<strong>do</strong> a ver espaços…<br />

Vou com frequência a escolas <strong>de</strong><br />

Arte e tenho acompanha<strong>do</strong> o trabalho<br />

<strong>de</strong> alguns artistas lá. Em<br />

e apelativo - está também disponível<br />

gratuitamente <strong>na</strong> Internet e é através<br />

da re<strong>de</strong> que os artistas ou companhias<br />

se po<strong>de</strong>m inscrever. Dividi<strong>do</strong> em treze<br />

secções, o roteiro inclui Teatro, Dança,<br />

Música, Festivais, entre outros. Os valores<br />

<strong>de</strong> inscrição procuram não <strong>de</strong>ixar<br />

ninguém <strong>de</strong> fora: 50 euros por ¼ <strong>de</strong> pági<strong>na</strong>,<br />

meia pági<strong>na</strong> por 100 euros e 400 euros<br />

por uma pági<strong>na</strong> dupla. “Qualquer pessoa<br />

que queira trabalhar profissio<strong>na</strong>lmente<br />

tem <strong>de</strong> investir e conseguir <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>r 50<br />

euros. É um jantar num restaurante indiano<br />

para duas pessoas!”, explica entre<br />

risos Nuno Ricou.<br />

Merca<strong>do</strong> das artes<br />

A i<strong>de</strong>ia inicial era fazer as pági<strong>na</strong>s<br />

amarelas da Cultura, numa espécie <strong>de</strong><br />

lista telefónica com contactos da área.<br />

<br />

to<strong>do</strong>s os países as pessoas olham<br />

primeiro para os artistas locais e<br />

por isso é importante criar uma<br />

base <strong>de</strong> artistas resi<strong>de</strong>ntes nos<br />

EUA e <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> vez em quan<strong>do</strong>,<br />

introduzir os portugueses”.<br />

A inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lização é o sonho<br />

<strong>do</strong>s que estão <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>: os artistas.<br />

A Galeria 111 tem alguns nomes<br />

que conseguiram atingir essa<br />

meta: Graça Morais, Paula Rego,<br />

Joa<strong>na</strong> Vasconcelos. Agora que está<br />

<strong>de</strong>finitivamente à frente da galeria,<br />

<strong>de</strong>pois da morte <strong>do</strong> pai, no ano passa<strong>do</strong>,<br />

Rui Brito avança que a i<strong>de</strong>ia<br />

é “alargar um pouco mais e expor<br />

fotografia, ví<strong>de</strong>o, instalação. No<br />

fun<strong>do</strong> é criar diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolhas.<br />

“. Mas tem aposta<strong>do</strong> também<br />

no intercâmbio com galerias fora<br />

<strong>de</strong> Portugal. “Nas viagens que eu<br />

faço tento levar a arte portuguesa<br />

para fora <strong>do</strong> país. O mun<strong>do</strong> está<br />

cada vez mais pequeno e os artistas<br />

portugueses têm qualida<strong>de</strong>”.<br />

O número 111<br />

No dia em que conversamos Rui<br />

Brito está <strong>de</strong> fato, mas sem gravata.<br />

Não gosta <strong>de</strong> o usar, mas ainda<br />

o espera a i<strong>na</strong>uguração <strong>de</strong> uma<br />

exposição no Porto, on<strong>de</strong> a Galeria<br />

111 tem uma “filial”. Faz questão<br />

<strong>de</strong> fazer uma visita guiada por<br />

to<strong>do</strong>s os espaços da 111. A sensação<br />

é a <strong>de</strong> que conseguiria fazê-lo<br />

<strong>de</strong> olhos fecha<strong>do</strong>s. Apresentada<br />

uma das galerias, on<strong>de</strong> está exposta,<br />

por exemplo, uma torre <strong>de</strong><br />

cartas, seguimos para o armazém.<br />

O conceito evoluiu para um projecto<br />

que Nuno Ricou <strong>de</strong>fine como não sen<strong>do</strong><br />

“popularucho, ten<strong>do</strong> um tipo <strong>de</strong> abrangência<br />

cultural que nos interessa”. Não<br />

haven<strong>do</strong> uma condição posta à partida<br />

para a entrada no Pisa-Papéis, acaba por<br />

haver uma selecção <strong>na</strong>tural <strong>do</strong> que está<br />

presente. “Temos informação sobre os<br />

amigos e sobre os inimigos. Ao ser uma<br />

coisa ‘supra-partidária’, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

política cultural, somos transversais”,<br />

revela Nuno Ricou. E por isso ao la<strong>do</strong> da<br />

fadista Mariza e <strong>do</strong> Coro da Gulbenkian<br />

po<strong>de</strong> estar o Quim Barreiros. Mas há no<br />

Pisa-Papéis um esforço para revelar o<br />

que por norma não chega ao gran<strong>de</strong> público<br />

nem às mãos <strong>de</strong> quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>: “O<br />

tipo <strong>de</strong> espectáculo que um programa<strong>do</strong>r<br />

<strong>de</strong> uma Câmara Municipal precisa<br />

para o Dia da Criança e para o Ano Novo<br />

Um “cofre” com poucos ca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s<br />

para um espaço on<strong>de</strong> encontramos,<br />

entre muitos quadros, esculturas,<br />

molduras, uma boneca<br />

cosida à mão por Paula Rêgo, nos<br />

anos 60. Rui Brito explica a “falha”<br />

<strong>de</strong> segurança: “Não é preciso,<br />

temos aí o polícia <strong>do</strong> Soares”.<br />

Continuamos para encontrar o<br />

senhor que faz as molduras, e que<br />

às vezes tem a ajuda <strong>do</strong> motorista.<br />

“Doutor, posso então enviar<br />

esta moldura? Ficou bonita…”.<br />

Rui Brito fica envergonha<strong>do</strong>, não<br />

gosta <strong>do</strong> “<strong>do</strong>utor”. Disfarça contan<strong>do</strong><br />

que as molduras são feitas<br />

ali, apontan<strong>do</strong> para as intermináveis<br />

traves <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, imediatamente<br />

antes <strong>de</strong> seguirmos para<br />

a próxima paragem <strong>na</strong> visita. O<br />

é diferente. E é preciso ele ter acesso a<br />

essa informação, para <strong>po<strong>de</strong>r</strong> escolher”.<br />

Nuno Ricou explica ainda que a mais-valia<br />

<strong>de</strong>ste projecto está <strong>na</strong> sua diferença:<br />

“Nós não <strong>de</strong>scobrimos o ouro, existem<br />

outros directórios, em França ou mesmo<br />

em Portugal, mas muitos <strong>de</strong>les são feitos<br />

pelos próprios agentes com espectáculos<br />

produzi<strong>do</strong>s por eles. Nós temos as águas<br />

bem separadas, e o Pisa-Papéis existe<br />

para as pessoas se apresentarem”. E<br />

para isso é preciso investir <strong>na</strong> distribuição:<br />

com o apoio <strong>do</strong> Instituto Português<br />

<strong>do</strong> Livro e das Bibliotecas (IPLB), o Instituto<br />

Camões e o Instituto das Artes, o<br />

Pisa-Papéis consegue distribuir uma boa<br />

parte da sua tiragem <strong>de</strong> 5.000 exemplares.<br />

Pela mão <strong>do</strong> Instituto Camões chegaram<br />

à Galiza, on<strong>de</strong> estarão representa<strong>do</strong>s <strong>na</strong><br />

próxima Feira <strong>de</strong> Teatro. Para a próxima<br />

edição, um problema a resolver: o<br />

Pisa-Papéis está cada vez mais pesa<strong>do</strong>,<br />

e as argolas, ainda que largas, já não suportam<br />

mais pági<strong>na</strong>s. Mas Nuno Ricou<br />

garante que o projecto nunca <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong><br />

ser publica<strong>do</strong> em papel. Tal como continuará<br />

a cumprir a sua função: “é preciso<br />

um pisa-papéis para que as informações<br />

não voem com o vento”.<br />

VERA MOUTINHO<br />

Vera Moutinho<br />

local on<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> começou. O nº<br />

111 <strong>do</strong> Campo Gran<strong>de</strong> foi livraria,<br />

<strong>de</strong>pois galeria, e agora livraria<br />

<strong>de</strong> novo. Hoje, a Galeira 111 mora<br />

<strong>na</strong> verda<strong>de</strong> no nº 113, e por isso a<br />

passagem pela livraria é obrigatória.<br />

Rui Brito pe<strong>de</strong> licença para<br />

entrar, e a senhora sorri, como se<br />

a casa não fosse <strong>de</strong>le. “Foi aqui,<br />

nesta sala pequeni<strong>na</strong>”, explica<br />

Rui, “que o meu pai fez a primeira<br />

exposição”. Ainda há tempo <strong>de</strong><br />

ver a galeria que ocupa um andar<br />

<strong>do</strong> prédio que compraram <strong>na</strong> mesma<br />

rua, e on<strong>de</strong> estão obras para<br />

quem pergunta “não tem mais<br />

<strong>na</strong>da?”. Nesse mesmo prédio está<br />

“Nunca perdi o contacto<br />

com a arte <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

<strong>na</strong>sci”. Rui Brito<br />

o escritório <strong>do</strong> pai. Rui Brito não<br />

o usa. Cada porta abre um novo<br />

mun<strong>do</strong> da arte: livros, obras, arquivos...<br />

“E há mais <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

gavetas”, sussurra Rui Brito. A<br />

maior parte <strong>de</strong>stes bens irão para<br />

a Fundação Manuel <strong>de</strong> Brito, que<br />

abrirá em breve no Palácio Anjos,<br />

em Algés, numa estrutura<br />

museológica. “O meu pai foi um<br />

homem que partiu <strong>do</strong> <strong>na</strong>da e isto<br />

custou-lhe muito a construir”. Se<br />

vai estar, como o seu pai, à frente<br />

da galeria por mais quarenta<br />

anos? A resposta é esta: “Tenho<br />

essa gran<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>. Há<br />

pessoas que entram aqui, vêem a<br />

dimensão da galeria e perguntam<br />

se eu fico assusta<strong>do</strong>. Mas eu vi<br />

tu<strong>do</strong> isto crescer”.


30 CULTURA<br />

SÉRGIO TRÉFAUT<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

O cinema como arma política<br />

<br />

LISBOETAS<br />

-<br />

O SEMANÁRIO. UM APAIXONA-<br />

DO PELA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. DEPOIS DE TER<br />

<br />

<br />

SÃO SOUSA<br />

Da sala da produtora <strong>de</strong> Sérgio<br />

Tréfaut, a Faux, vê-se Lisboa. E<br />

vêem-se os lisboetas. Esses lisboetas<br />

que <strong>de</strong>ram o título ao <strong>do</strong>cumentário<br />

que o realiza<strong>do</strong>r teve<br />

em exibição no cinema Nimas<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> Abril. Mas este <strong>de</strong>svendar<br />

<strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> que também<br />

é feita <strong>de</strong> imigrantes é ainda<br />

uma interrogação sobre i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

que esteve sempre presente <strong>na</strong><br />

vida <strong>de</strong> Tréfaut.<br />

Filho <strong>de</strong> pai português e mãe<br />

francesa, foi <strong>na</strong>scer ao Brasil.<br />

Aí tomou contacto com a acção<br />

politica muito ce<strong>do</strong>, e, apesar <strong>de</strong><br />

nunca ter esta<strong>do</strong> liga<strong>do</strong> a um parti<strong>do</strong>,<br />

diz que o que faz é político.<br />

Passou pela filosofia, pelo jor<strong>na</strong>lismo,<br />

mas ren<strong>de</strong>u-se ao cinema.<br />

“Apaixonei-me por <strong>do</strong>cumentário,<br />

tinha 16 anos, quan<strong>do</strong> vi a<br />

retrospectiva <strong>do</strong> Joris Ivens <strong>na</strong><br />

Cinemateca Portuguesa”.<br />

Dos seus filmes, prefere falar <strong>de</strong><br />

três: Lisboetas (2004), Fleurette<br />

(2002) e Outro País (1999). As três<br />

histórias que mais dizem da sua<br />

própria história: a sua imigração,<br />

a sua família, a sua revolução.<br />

Vai agora saltar <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentário<br />

para a ficção, com o filme Business<br />

Class, ainda a ser roda<strong>do</strong>. Na<br />

base <strong>do</strong> filme continua uma história<br />

verda<strong>de</strong>ira, porque, segun<strong>do</strong><br />

Tréfaut, “o cinema enquanto<br />

reconstituição <strong>de</strong> um romance<br />

aborrece-me muito facilmente”.<br />

O filme Lisboetas ganhou o Indie<br />

Lisboa em 2004 e agora encheu<br />

pági<strong>na</strong>s <strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l. Existe<br />

uma i<strong>de</strong>ntificação entre aquela<br />

série <strong>de</strong> histórias huma<strong>na</strong>s que<br />

são mostradas e uma realida<strong>de</strong><br />

mais geral?<br />

Quan<strong>do</strong> a Pi<strong>na</strong> Bausch faz um retrato<br />

<strong>de</strong> Lisboa, ninguém lhe pe<strong>de</strong><br />

para ser estatisticamente ou sociologicamente<br />

fiel, mas sim para<br />

transmitir emoções. Eu fico mais<br />

próximo <strong>de</strong> alguma sociologia e<br />

traço alguns retratos que po<strong>de</strong>m<br />

ser representativos. Há pessoas<br />

que acham que a realida<strong>de</strong> parece<br />

dura. Eu acho que a realida<strong>de</strong> é<br />

pior <strong>do</strong> que o que ela parece no filme.<br />

As pessoas po<strong>de</strong>m dizer “mas<br />

não há histórias <strong>de</strong> sucesso?” O que<br />

é que é uma história <strong>de</strong> sucesso? É<br />

a senhora da praia que diz “estou<br />

<strong>na</strong> praia, o sol é bom, tenho traba-<br />

lho.” O trabalho <strong>de</strong>la: é empregada<br />

<strong>do</strong>méstica. Isso é uma história <strong>de</strong><br />

sucesso. O que queriam? O médico<br />

que é médico? Então também tinha<br />

<strong>de</strong> pôr a prostituta esquartejada,<br />

não? Também não está lá o operário<br />

que morreu <strong>na</strong> ponte, que era<br />

ilegal e que ficou durante seis meses<br />

num congela<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Instituto<br />

<strong>de</strong> Medici<strong>na</strong> Legal porque o repatriamento<br />

<strong>do</strong> corpo era impossível.<br />

As histórias terríficas não estão<br />

no filme. Tal como a meia dúzia <strong>de</strong><br />

médicos que são médicos.<br />

É filho <strong>de</strong> pai português, mãe<br />

francesa e <strong>na</strong>sceu no Brasil.<br />

Com esta tripla <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>,<br />

também se sente um daqueles<br />

lisboetas <strong>de</strong> que fala?<br />

Tenho uma relação afectiva <strong>de</strong><br />

muita i<strong>de</strong>ntificação. É uma fantasia<br />

minha, porque a minha vida<br />

não passa por uma imigração<br />

económica. Mas tenho problemas<br />

i<strong>de</strong>ntitários que são pareci<strong>do</strong>s<br />

com os <strong>do</strong>s imigrantes. Tive <strong>do</strong>cumentos<br />

portugueses pela primeira<br />

vez com 20 e tal anos, mas<br />

não os tinha porque achava que<br />

não era necessário. Porque por o<br />

meu pai ser português, não havia<br />

a menor dúvida <strong>de</strong> que eu era português.<br />

E, por outro la<strong>do</strong>, era-me<br />

sempre reenviada a imagem, <strong>de</strong><br />

uma maneira simpática, <strong>de</strong> que<br />

não era. Basta eu falar com alguém<br />

que me perguntam logo se<br />

sou <strong>de</strong> São Paulo ou <strong>do</strong> Rio.<br />

Como é que foi <strong>na</strong>scer ao Brasil?<br />

O meu pai [o jor<strong>na</strong>lista Miguel Urbano<br />

Rodrigues] era exila<strong>do</strong> político.<br />

Tinha saí<strong>do</strong> <strong>de</strong> Portugal em<br />

Em 1957, com uma ditadura em Portugal, Miguel<br />

Urbano Rodrigues partiu para o outro la<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> Atlântico. E foi em São Paulo, no Brasil, que,<br />

a 23 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 1965, <strong>na</strong>sceu o seu filho<br />

Sérgio Tréfaut Rodrigues. Numa “casa atafulhada<br />

<strong>de</strong> jor<strong>na</strong>is”, on<strong>de</strong> a luta contra Salazar<br />

não parava.<br />

“O meu pai dirigiu jor<strong>na</strong>is, trabalhou com o [Humberto]<br />

Delga<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> ele esteve no Brasil e fez<br />

as suas campanhas fora. Foi um <strong>do</strong>s comandantes<br />

<strong>do</strong> Santa Maria e os galegos que o comandavam<br />

para além <strong>do</strong> [Henrique] Galvão viviam <strong>na</strong> nossa<br />

casa”, recorda Sérgio. “Eu tinha 5 anos e estava<br />

<strong>na</strong>s manifestações da Frente Popular <strong>do</strong> [Salva<strong>do</strong>r]<br />

Allen<strong>de</strong>, em Santiago”.<br />

Sérgio fala <strong>do</strong> pai com orgulho, <strong>de</strong>moradamente.<br />

<br />

1957 e só voltou <strong>de</strong>pois em 1974.<br />

Consi<strong>de</strong>ra o Lisboetas um <strong>do</strong>cumentário<br />

político. Esta vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> intervenção cívica foi<br />

influência <strong>do</strong> seu pai?<br />

Do meu pai, sim, <strong>de</strong> certeza. Mas<br />

não só. Eu cresci num universo<br />

muito politiza<strong>do</strong>, porque além <strong>de</strong><br />

jor<strong>na</strong>lista, o meu pai era uma pessoa<br />

empenhada <strong>na</strong> oposição ao Salazar<br />

no perío<strong>do</strong> antes <strong>de</strong> 1974 (ver<br />

caixa). E eu acho que o que faço é<br />

político. O Outro País girava em<br />

volta da Revolução, falan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um<br />

país que a um da<strong>do</strong> momento se<br />

tornou apaixo<strong>na</strong>nte para o mun<strong>do</strong><br />

inteiro, por questões i<strong>de</strong>ológicas.<br />

Pouco a pouco, acho que me vou<br />

dirigin<strong>do</strong> e não estou seguro <strong>de</strong><br />

que não tenha uma activida<strong>de</strong> política<br />

mais forte qualquer dia.<br />

Li que é amigo <strong>de</strong> infância da<br />

Maria <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros e da Teresa<br />

Villaver<strong>de</strong>.<br />

No primeiro dia <strong>de</strong> aulas, a Maria<br />

estava sentada <strong>na</strong> carteira à minha<br />

frente. Nós ficámos amigos<br />

logo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 11 anos. Era uma espécie<br />

<strong>de</strong> ilha <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> Liceu Fran-<br />

“NUMA CASA ATAFULHADA DE JORNAIS”<br />

cês, com o qual eu não me i<strong>de</strong>ntificava<br />

<strong>na</strong>da. A Teresa, o Manuel e a<br />

Joa<strong>na</strong> – que são três irmãos para<br />

nós impossíveis <strong>de</strong> separar – eram<br />

filhos <strong>do</strong> Alberto Villaver<strong>de</strong>, colega<br />

<strong>de</strong> jor<strong>na</strong>l <strong>do</strong> meu pai. O Manuel<br />

tornou-se muito amigo da Maria<br />

quan<strong>do</strong> nós tínhamos 15 anos e foi<br />

aí que a coisa se formou.<br />

Eu estou no cinema<br />

mais <strong>do</strong> que sou <strong>do</strong><br />

cinema.<br />

É curioso que tenham segui<strong>do</strong><br />

os três os caminhos <strong>do</strong> cinema.<br />

Na altura já falavam nisso?<br />

A única pessoa que sempre disse<br />

que queria fazer cinema foi a Teresa.<br />

A Maria, no início, queria<br />

fazer pintura. É uma pessoa muito<br />

multifacetada, que escrevia fantasticamente,<br />

que era excelente a<br />

matemática. Ela é actriz, mas tem<br />

capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> realização muito<br />

gran<strong>de</strong>s. Mas eu estou no cinema<br />

mais <strong>do</strong> que sou <strong>do</strong> cinema. Eu<br />

Recusa consi<strong>de</strong>rá-lo um abrasileira<strong>do</strong>. Prefere<br />

referir-se a ele como “um português que abriu<br />

uma série <strong>de</strong> horizontes e que se tornou muito<br />

latino-americano”. Também aqui, tal como <strong>na</strong>s<br />

preocupações cívicas, o jor<strong>na</strong>lista marcou fortemente<br />

o filho. É daí, <strong>de</strong>sse acumular <strong>de</strong> pátrias<br />

<strong>do</strong> pai, que <strong>na</strong>sceram as questões i<strong>de</strong>ntitárias<br />

que ainda hoje existem em Sérgio Tréfaut.<br />

Mas esta infância ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> acção política não<br />

se traduziu, no entanto, num envolvimento partidário.<br />

Sérgio preferiu os filmes como forma<br />

<strong>de</strong> intervenção <strong>na</strong> socieda<strong>de</strong>. Ainda assim, entusiasma-se<br />

a contar um seu momento <strong>de</strong> luta<br />

política: “Em 1986, vim propositadamente a Lisboa,<br />

moran<strong>do</strong> em Paris, raptar os meus amigos<br />

para irem para as manifestações estudantis”. •<br />

amo o <strong>do</strong>cumentário, mas o gesto<br />

político e ético interessam-me<br />

mais <strong>do</strong> que o estético. E nisso nós<br />

somos um pouco diferentes. A Teresa<br />

também tem um la<strong>do</strong> muito<br />

político, mas para ela sempre foi:<br />

“o cinema é o cinema e pronto”.<br />

Eu fiz muitas outras coisas.<br />

Quan<strong>do</strong> é que se começou a interessar<br />

por cinema?<br />

Apaixonei-me por <strong>do</strong>cumentário,<br />

tinha 16 anos, quan<strong>do</strong> vi a retrospectiva<br />

<strong>do</strong> Joris Ivens aqui <strong>na</strong> Cinemateca<br />

Portuguesa. Isso foi um<br />

marco <strong>na</strong> minha vida. Mas, ao mesmo<br />

tempo, fiquei completamente<br />

apaixo<strong>na</strong><strong>do</strong> por René Dumont, um<br />

engenheiro agrónomo que falava<br />

imenso da miséria em África e da<br />

questão da água. Depois, <strong>de</strong> facto,<br />

a Maria começou a fazer filmes, a<br />

Teresa começou a fazer filmes e eu<br />

também me comecei a interessar<br />

por esse <strong>de</strong>safio. E tinha 20 anos<br />

quan<strong>do</strong> apresentei o meu primeiro<br />

projecto ao ICAM: era estudante <strong>de</strong><br />

filosofia e apresentei uma adaptação<br />

<strong>do</strong> Fedro, <strong>do</strong> Platão, que tentei<br />

durante muito tempo fazer passar<br />

<strong>na</strong>s portas <strong>do</strong> ICAM e nunca consegui.<br />

Pouco a pouco fui trabalhan<strong>do</strong>.<br />

Depois mu<strong>de</strong>i, porque achei<br />

que não conseguia ter um mínimo<br />

<strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>, e fui jor<strong>na</strong>lista durante<br />

algum tempo, por razões <strong>de</strong><br />

sobrevivência. Foi durante o perío<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> jor<strong>na</strong>lismo que fiz a minha<br />

primeira curta-metragem.<br />

Na verda<strong>de</strong>, antes <strong>de</strong> chegar<br />

ao cinema, fez outras coisas.<br />

Que tal foi estudar filosofia<br />

<strong>na</strong> Sorbonne?<br />

Foi <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> prazer. Primeiro, era<br />

a in<strong>de</strong>pendência, era viver sozinho,<br />

lutar pela vida. A bolsa que tinha<br />

era absolutamente insuficiente e<br />

tinha <strong>de</strong> trabalhar. Trabalhava em<br />

tu<strong>do</strong>: era porteiro, pintava pare<strong>de</strong>s,<br />

cuidava <strong>de</strong> bebés. Inscrevi-me <strong>na</strong><br />

SÃO SOUSA


8ª COLINA I JUNHO 2006 CULTURA 31<br />

faculda<strong>de</strong> como aluno trabalha<strong>do</strong>r<br />

e isso funcionou dan<strong>do</strong>-me muito<br />

tempo para ir ao cinema – foi o<br />

perío<strong>do</strong> da minha vida em que eu<br />

ia mais vezes ao cinema: duas, três<br />

vezes por dia, muito facilmente. E<br />

foi muito bom, mas nunca quis ser<br />

professor.<br />

E enquanto jor<strong>na</strong>lista?<br />

Eu mergulhei no universo <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lismo<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> pequeno. Portanto,<br />

era uma espécie <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio. Eu procurava<br />

estabilida<strong>de</strong> e fui durante<br />

<strong>do</strong>is anos jor<strong>na</strong>lista d’ O Semanário.<br />

Era um jor<strong>na</strong>l aparentemente<br />

<strong>de</strong> direita, mas o Vítor da Cunha<br />

Rego, que o dirigia, era completamente<br />

inespera<strong>do</strong> e a verda<strong>de</strong> é<br />

que foi nessa altura que se escreveram<br />

os artigos mais assassinos<br />

relativamente ao Santa<strong>na</strong> Lopes.<br />

Eu lembro-me <strong>de</strong> ir para a faculda<strong>de</strong><br />

e ter o artigo que eu tinha escrito<br />

<strong>na</strong> pare<strong>de</strong>, com o Santa<strong>na</strong> Lopes<br />

<strong>do</strong>ente (risos). Não era um jor<strong>na</strong>l<br />

on<strong>de</strong> eu tive a experiência <strong>de</strong> trabalhar<br />

para o inimigo. Quan<strong>do</strong> a<br />

coisa mu<strong>do</strong>u <strong>de</strong> rumo, eu saí.<br />

Gosta <strong>de</strong> cinema <strong>de</strong> ficção?<br />

Sou mais sensível ao <strong>do</strong>cumentário.<br />

Quer dizer, uma das pessoas<br />

mais importantes da minha vida é<br />

o Luís Buñuel, portanto, gosto <strong>de</strong> cinema.<br />

A<strong>do</strong>ro o Chaplin, o Pasolini,<br />

ALEXANDRE FARTO<br />

Arte interdita<br />

Alexandre já foi um margi<strong>na</strong>l.<br />

Com ape<strong>na</strong>s 13 anos, iniciouse<br />

<strong>na</strong> prática <strong>do</strong> graffiti. “Eu<br />

e mais uns amigos da escola<br />

comprámos umas latas numa<br />

drogaria e fomos pintar para<br />

a rua”. Pintava em pare<strong>de</strong>s e<br />

comboios com latas <strong>de</strong> spray,<br />

à margem da arte, à margem<br />

da lei. Chegou a ter problemas<br />

com a Polícia. “Uma vez<br />

fui apanha<strong>do</strong>. Levaram-me<br />

para a esquadra e tentaram<br />

meter-me me<strong>do</strong>: ‘Olha que<br />

vais ficar aqui o dia inteiro’”.<br />

Não podia sequer imagi<strong>na</strong>r<br />

que um dia viria a expor numa<br />

galeria. Menos ainda que viria<br />

a <strong>de</strong>corar as montras da loja<br />

da Hermes, no Chia<strong>do</strong>. Paladino<br />

da arte interdita. Alexandre<br />

Farto é um artista. Artista urbano,<br />

artista plástico. Ilustra<strong>do</strong>r<br />

<strong>de</strong> montras, <strong>de</strong>cora<strong>do</strong>r <strong>de</strong><br />

ruas. Ultimamente, tem feito<br />

vários trabalhos para marcas<br />

<strong>de</strong> street wear. “Fiz várias estampas<br />

e aju<strong>de</strong>i a criar um logotipo”.<br />

O trabalho para a Hermes<br />

surgiu através da Who,<br />

agência <strong>de</strong> talentos criativos<br />

que Alexandre integra <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

Março e on<strong>de</strong> faz, sobretu<strong>do</strong>,<br />

o Apocalipse Now. Gosto <strong>do</strong> <strong>po<strong>de</strong>r</strong><br />

mágico <strong>do</strong> cinema. Mas o cinema<br />

enquanto reconstituição <strong>de</strong> um<br />

romance aborrece-me muito facilmente.<br />

Acho mesmo, às vezes, péssimo.<br />

Por exemplo, acho o Capote<br />

quase criminoso, porque o Truman<br />

Capote foi um gran<strong>de</strong> autor da lite-<br />

ratura america<strong>na</strong> e por uma história<br />

que não tem gran<strong>de</strong> interesse<br />

fazem uma <strong>de</strong>smistificação que<br />

não ultrapassa um la<strong>do</strong> completamente<br />

caricatural. Mas eu não tive<br />

uma formação cinematográfica. A<br />

minha formação é muito mais musical,<br />

<strong>de</strong> música popular brasileira:<br />

Caetano Veloso, Chico Buarque.<br />

De que forma é que essa formação<br />

musical foi importante<br />

para o seu trabalho?<br />

O Caetano Veloso ensinou-me a<br />

amar o mun<strong>do</strong> e o Chico Buarque<br />

ensinou-me a amar as pessoas.<br />

Foram eles que me forma-<br />

<br />

<br />

ESTUDAR PARA BERLIM.<br />

Apaixonei-me por<br />

<strong>do</strong>cumentário, tinha<br />

16 anos, quan<strong>do</strong> vi a<br />

retrospectiva <strong>do</strong> Joris<br />

Ivens <strong>na</strong> Cinemateca<br />

trabalhos <strong>de</strong> ilustração. “O tema<br />

<strong>do</strong> briefing era ‘L’Air <strong>de</strong> Paris’,<br />

ou seja, o ar, o vento, o espaço<br />

cultural <strong>de</strong> Paris. Trabalhei em<br />

conjunto com o Filipe Faísca, que<br />

me <strong>de</strong>u bastante liberda<strong>de</strong>. Foi<br />

um projecto que correu bem”.<br />

Alexandre tem 19 anos e é estudante<br />

<strong>de</strong> Design Gráfico no Arco<br />

(Centro <strong>de</strong> Arte e <strong>Comunicação</strong><br />

Visual), em Lisboa. A partir das<br />

suas raízes <strong>de</strong> graffiti, tem vin<strong>do</strong><br />

a explorar novos campos, misturan<strong>do</strong><br />

o estilo vectorial com o<br />

<strong>de</strong>senho à mão livre. “Costumo<br />

fotografar partes da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ram huma<strong>na</strong>mente. A mim e a<br />

milhões <strong>de</strong> pessoas.<br />

Pensa sempre os filmes a nível<br />

inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l?<br />

Des<strong>de</strong> o princípio. Não se consegue<br />

sobreviver fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentário<br />

com os fi<strong>na</strong>nciamentos portugueses.<br />

Não há uma política <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentário.<br />

A televisão em Portugal<br />

é criminosa. Mas a esse respeito<br />

tenho posições muito fortes. Acho<br />

que pessoas como o director <strong>de</strong><br />

programas da TVI <strong>de</strong>viam ser julgadas<br />

em tribu<strong>na</strong>l. Acho que é crime<br />

o que eles fazem há anos. E não<br />

só essas pessoas mas também os<br />

gover<strong>na</strong>ntes que perpetuam isso.<br />

Faz parte <strong>de</strong> crime contra a <strong>na</strong>ção,<br />

contra a cabeça das pessoas, contra<br />

a educação <strong>do</strong>s portugueses.<br />

Falou <strong>do</strong> Lisboetas, <strong>do</strong> Outro<br />

País. E o Fleurette, o que pretendia<br />

passar com esse filme?<br />

O filme diz uma coisa que po<strong>de</strong> ser<br />

universal: será que conhecemos<br />

as pessoas que nos são próximas?<br />

Será que as queremos conhecer?<br />

Será que elas querem que as conheçamos?<br />

Eu não quis que a minha<br />

mãe <strong>de</strong> repente <strong>de</strong>saparecesse<br />

e que aquela criatura tão estranha,<br />

contraditória e rica não tivesse um<br />

pouquinho da sua história contada.<br />

E transpor a história <strong>de</strong>la para<br />

Portuguesa <br />

REVELAÇÃO<br />

que gosto e usar as fotografias<br />

para fazer os meus trabalhos”.<br />

A arte <strong>do</strong> Alexandre já não cabe<br />

<strong>na</strong>s pare<strong>de</strong>s. Estoirou sem pedir<br />

licença. Brutal, incontrolável.<br />

Necessária.<br />

“O ano passa<strong>do</strong>, conheci <strong>do</strong>is<br />

artistas franceses, o Stak e o<br />

Honet, que foram <strong>do</strong>s primeiros<br />

a aplicar novos materiais <strong>na</strong>s<br />

ruas, em 98. Há quem chame a<br />

isso pós-graffiti ou street art. Eu<br />

aprovo essa evolução e faço tanto<br />

uma coisa como outra. Já não<br />

é aquela i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> vândalo que<br />

gosta <strong>de</strong> fugir à Polícia. Agora,<br />

é a concepção <strong>do</strong> artista plástico<br />

que vai trabalhar para a rua”.<br />

Alexandre é daquelas pessoas<br />

que gostam <strong>de</strong> saber sempre<br />

mais e mais. Estuda, investiga,<br />

experimenta, testa. Acaba <strong>de</strong> arranjar<br />

um novo <strong>de</strong>safio: “passar<br />

<strong>do</strong> estático para o anima<strong>do</strong>”. Na<br />

Restart, <strong>Escola</strong> <strong>de</strong> Criativida<strong>de</strong> e<br />

Novas Tecnologias, on<strong>de</strong> estuda<br />

Animação, pô<strong>de</strong> produzir a curtametragem<br />

com que concorreu ao<br />

“Off Loop Festival”, um festival<br />

<strong>de</strong> Ví<strong>de</strong>o Arte que, to<strong>do</strong>s os anos,<br />

atrai cente<strong>na</strong>s <strong>de</strong> artistas <strong>de</strong> to<strong>do</strong><br />

<br />

<br />

VERA MOUTINHO<br />

SÃO SOUSA<br />

uma história mais universal era<br />

um <strong>de</strong>safio. O Outro País é um filme<br />

que funcio<strong>na</strong> muito em Portugal,<br />

em países <strong>de</strong> língua lati<strong>na</strong>, mas<br />

tem um universo mais fecha<strong>do</strong>. O<br />

Fleurette é um filme que há quem<br />

ache completamente <strong>na</strong>rcísico e<br />

vagabun<strong>do</strong>, mas que fez explosões<br />

em cabeças <strong>de</strong> pessoas que não tinham<br />

<strong>na</strong>da a ver.<br />

Porque <strong>de</strong>cidiu fazer agora um<br />

filme <strong>de</strong> ficção?<br />

Eu sempre quis fazer ficção,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio, mas era uma<br />

ficção mais lírica. Ainda não<br />

sei o que vai sair <strong>de</strong>ste filme.<br />

o mun<strong>do</strong> a Barcelo<strong>na</strong>. “Foi um<br />

trabalho que fiz com coisas minhas,<br />

pintadas mas animadas”.<br />

Foi um <strong>do</strong>s seleccio<strong>na</strong><strong>do</strong>s <strong>de</strong><br />

entre <strong>do</strong>ze filmes estrangeiros.<br />

Em Portugal, Alexandre <strong>de</strong>u o<br />

passo que faltava. Nos últimos<br />

seis meses, tem exposto no espaço<br />

Vera Cortês, agência e galeria<br />

<strong>de</strong> arte contemporânea, em<br />

Santos. Já tinha participa<strong>do</strong> em<br />

várias exposições colectivas, entre<br />

as quais a anual “Visual Street<br />

Performance”, com alguns<br />

<strong>do</strong>s mais conceitua<strong>do</strong>s writers<br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. “Juntávamo-nos ao<br />

fim-<strong>de</strong>-sema<strong>na</strong> e íamos pintar,<br />

to<strong>do</strong>s juntos, em sítios que eram<br />

legais e on<strong>de</strong> podíamos trabalhar<br />

à vonta<strong>de</strong>”. Mas <strong>de</strong>sta vez<br />

tem si<strong>do</strong> diferente. “Foi bom ter<br />

ouvi<strong>do</strong> opiniões <strong>de</strong> pessoas que<br />

percebem <strong>de</strong> arte. Apareceram<br />

muitos coleccio<strong>na</strong><strong>do</strong>res, pessoas<br />

que frequentam galerias <strong>de</strong> arte,<br />

e as apreciações foram bastante<br />

positivas”. Para o Alexandre, a<br />

exposição em galerias <strong>de</strong> arte é<br />

uma forma <strong>de</strong> se sustentar a si<br />

próprio. “No graffiti, é difícil conseguir-se<br />

isso sem que se perca<br />

a essência. Há aquelas pessoas<br />

que têm bares e que nos pe<strong>de</strong>m<br />

para fazer golfinhos e coisas assim.<br />

A um artista contemporâneo<br />

nunca pediriam para fazer uns<br />

golfinhos no quarto, mas a uma<br />

pessoa que faça graffiti já pe<strong>de</strong>m,<br />

porque consi<strong>de</strong>ram que o<br />

graffiti está abaixo. Na Vera [Cortês],<br />

isso já não acontece. São<br />

pessoas que nos dão valor pelo<br />

trabalho que fazemos e não pelo<br />

trabalho que nos pe<strong>de</strong>m para<br />

fazer”. Alexandre está a sonhar<br />

em gran<strong>de</strong>: quer ir estudar para<br />

Berlim. Porque “em Berlim é<br />

que as coisas estão a acontecer”.<br />

Eu tenho ple<strong>na</strong> noção <strong>de</strong> que<br />

aquilo parte <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentário:<br />

contar uma história<br />

<strong>de</strong> uma pessoa que existiu.<br />

Mas saber escrever os diálogos<br />

e contar o que aquilo tem <strong>de</strong><br />

mais forte remete muito mais<br />

para as capacida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> teatro.<br />

Eu, aliás, escolhi aquela que é<br />

a maior actriz portuguesa para<br />

mim, que é a Isabel Ruth. Ela<br />

não tem aquela dimensão <strong>de</strong> representar.<br />

Ela é. Como é o Marlon<br />

Bran<strong>do</strong>, como são os gran<strong>de</strong>s<br />

actores. Agora é fazer que o<br />

filme seja bom.<br />

“Fui lá há um mês e meio e vi<br />

três exposições <strong>de</strong> street art<br />

durante as duas sema<strong>na</strong>s em<br />

que lá estive. Em Portugal, fazse<br />

uma ou duas exposições por<br />

ano. Vi posters a cinco metros<br />

<strong>do</strong> chão; vi tipos a fazerem fachadas<br />

com rolos”. Fala e gesticula,<br />

<strong>de</strong>sembaraçadamente,<br />

entre um entusiasmo infantil e<br />

a adulta luci<strong>de</strong>z <strong>de</strong> quem sabe<br />

bem o que quer: “Conhecer<br />

mais e apren<strong>de</strong>r. Trazer algo<br />

<strong>de</strong> novo para Portugal e pôr as<br />

coisas a mexer cá”. Não per<strong>de</strong><br />

uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ir para<br />

fora. Ter on<strong>de</strong> ficar nunca é<br />

problema. “Há sempre alguém<br />

que já fez um inter-rail. Antes<br />

<strong>de</strong> viajar, telefono aos meus<br />

amigos para saber se têm<br />

contactos lá fora. Quan<strong>do</strong> fui a<br />

Barcelo<strong>na</strong>, levei os contactos<br />

<strong>de</strong> um amigo meu que já tinha<br />

pinta<strong>do</strong> lá e fiquei a <strong>do</strong>rmir<br />

em casa <strong>de</strong>sse pessoal. Tenho<br />

viaja<strong>do</strong> pela Europa e tenho<br />

ti<strong>do</strong> sempre para on<strong>de</strong> ir”. A<br />

arte <strong>do</strong> Alexandre estoirou,<br />

tornou-se incontrolável. Invadiu<br />

as galerias, permanece<br />

<strong>na</strong>s ruas. “Foi daí que vim, foi<br />

aí que comecei a ter interesse<br />

pelas Artes”. Tem ar <strong>de</strong> bom<br />

rapaz, não o imagi<strong>na</strong>mos à<br />

noite, <strong>de</strong> latas <strong>na</strong> mão, a pintar<br />

pare<strong>de</strong>s à pressa antes<br />

que a Polícia apareça. Ele,<br />

que ilustra montras e enche<br />

exposições. Que representa<br />

Portugal em festivais inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is.<br />

Que quer ir estudar<br />

para Berlim. Alexandre Farto,<br />

artista urbano, artista plástico.<br />

Ilustra<strong>do</strong>r <strong>de</strong> montras, <strong>de</strong>cora<strong>do</strong>r<br />

<strong>de</strong> ruas. •<br />

Susa<strong>na</strong> Santos


a última da coli<strong>na</strong><br />

CRISTIANO RONALDO DIZ TRÊS VEZES:<br />

“Estou com comichão<br />

no pé esquer<strong>do</strong>.”<br />

Ojor<strong>na</strong>l 24 horas noticiou <strong>na</strong> sua<br />

edição <strong>de</strong> hoje que o <strong>na</strong>moradinho<br />

<strong>de</strong> Portugal afirmou pelo<br />

menos três vezes estar com comichão<br />

no pé esquer<strong>do</strong>. O Correio<br />

da Manhã também referiu o aconteci<strong>do</strong>,<br />

embora tenha dito que foram ape<strong>na</strong>s duas<br />

vezes e que a terceira é pura especulação<br />

jor<strong>na</strong>lística da concorrência. O Crime mostrou<br />

uma peça antiga em que uma famosa<br />

taróloga <strong>de</strong> Chelas previa que Cristiano Ro<strong>na</strong>l<strong>do</strong><br />

iria proferir três vezes que tinha a tal<br />

perturbação micótica no pé esquer<strong>do</strong>. Os<br />

médicos da selecção <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l já negaram o<br />

ocorri<strong>do</strong>, afirman<strong>do</strong> que foi ape<strong>na</strong>s uma vez<br />

e não necessariamente no pé esquer<strong>do</strong>, que<br />

foi tu<strong>do</strong> uma cabala montada pelos tablói<strong>de</strong>s<br />

ingleses e fi<strong>na</strong>lmente que não prestavam<br />

<strong>de</strong>clarações. Miguel Sousa Tavares, <strong>na</strong><br />

sua crónica sema<strong>na</strong>l no Público, comentou<br />

o caso dizen<strong>do</strong> que o Porto é o maior e que<br />

Bush é um palhaço. •<br />

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ª<br />

8COLINA<br />

O CORVO ARDINA<br />

JUNHO 2006 I 8ª COLINA<br />

A noite <strong>do</strong>s<br />

que esperam<br />

Ele passa a noite senta<strong>do</strong> <strong>na</strong> paragem<br />

<strong>do</strong> autocarro. Passam autocarros,<br />

passam táxis, mas ele não entra<br />

em nenhum, não quer ir a la<strong>do</strong> nenhum.<br />

Mas, se a noite correr bem,<br />

há-<strong>de</strong> sair dali. Não está sozinho,<br />

alguns metros abaixo e <strong>na</strong> rua perpendicular<br />

há outros iguais a ele.<br />

As noites agora já são menos frias<br />

e, por isso, quem espera já se tapa<br />

menos. Em toda a rua há mini-saias<br />

muito justas e muito curtas, tops<br />

muito pequenos e muito transparentes,<br />

saltos altos, muito batom e<br />

muita maquilhagem. Só a voz grossa<br />

e alguns gestos mais exagera<strong>do</strong>s<br />

traem o figurino – estamos no<br />

Con<strong>de</strong> Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, a rua que, à noite,<br />

é <strong>do</strong>s travestis.<br />

Todas as noites chegam e ocupam<br />

exemplarmente sempre o mesmo<br />

sítio: aos <strong>do</strong>is mais velhos pertence a<br />

rua perpendicular, a Gonçalves Crespo,<br />

mais escura e mais recolhida <strong>do</strong><br />

que a rua principal; os mais novos,<br />

<strong>de</strong> corpos <strong>de</strong>lga<strong>do</strong>s e per<strong>na</strong>s altas,<br />

partilham a <strong>de</strong>scida <strong>do</strong> Con<strong>de</strong> Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>;<br />

e <strong>de</strong>pois há o <strong>do</strong> carro vermelho<br />

<strong>de</strong>sportivo, <strong>na</strong> rua <strong>de</strong> trás, que espera<br />

senta<strong>do</strong> no lugar <strong>do</strong> condutor, com um<br />

eterno cigarro entre os lábios.<br />

A noite está agitada: passam muitos<br />

carros <strong>na</strong> rua <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> único, alguns<br />

abrandam, mas nenhum pára.<br />

Quem passa protegi<strong>do</strong> pela chapa<br />

não consegue evitar o olhar <strong>de</strong> gozo<br />

e o riso mal conti<strong>do</strong>, mas quem passa<br />

a pé finge que nem vê. Fi<strong>na</strong>lmente<br />

há um carro que encosta. Pela cara<br />

<strong>do</strong>s quatro ocupantes e pelo alari<strong>do</strong><br />

que fazem vê-se que não vêm com<br />

intenção <strong>de</strong> levar ninguém. Metemse<br />

com um <strong>do</strong>s travestis mais velhos,<br />

fazem perguntas, mandam piropos.<br />

Riem muito. Depois da diversão metem<br />

a primeira e arrancam. E ele<br />

fica no mesmo sítio, equilibra<strong>do</strong> nos<br />

saltos altos, à espera.<br />

Já passa da 1h da manhã quan<strong>do</strong> um<br />

carro encosta muito perto da paragem,<br />

sem <strong>de</strong>sligar o motor. No interior,<br />

<strong>do</strong>is militares efectuam a troca<br />

que parecia já combi<strong>na</strong>da: <strong>do</strong> banco<br />

<strong>de</strong> trás sai um travesti, que é agora<br />

<strong>de</strong>volvi<strong>do</strong> ao seu lugar <strong>na</strong> rua, para<br />

rapidamente entrar o outro. Não trocam<br />

palavras, nem sequer cruzam<br />

os olhares. Após a operação, que <strong>de</strong>mora<br />

poucos segun<strong>do</strong>s, o carro <strong>do</strong>s<br />

militares arranca sem hesitação.<br />

Esta noite acabou ce<strong>do</strong>. Durante o<br />

dia, o Con<strong>de</strong> Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong> é outro. Ninguém<br />

fica, ninguém pára. Ninguém<br />

sabe que, à noite, a pressa dá lugar<br />

à paciência da espera.<br />

A<strong>na</strong> Rita Henriques<br />

Proprieda<strong>de</strong>: <strong>Escola</strong> <strong>Superior</strong> <strong>de</strong> <strong>Comunicação</strong> <strong>Social</strong> • Funda<strong>do</strong>ra: A<strong>na</strong>bela <strong>de</strong> Sousa Lopes • Projecto: Telmo Gonçalves • Director: Paulo Moura • Editora:<br />

Vera Moutinho • Política: João Godinho, Lilia<strong>na</strong> Batista e Vera Esteves • Socieda<strong>de</strong>: Sílvia Dias e Tânia Reis Alves • Ensino: Iri<strong>na</strong> Melo • Mun<strong>do</strong>: Pedro Gonçalves<br />

• Dossiê: A<strong>na</strong> Quieteres, Joa<strong>na</strong> Santos e Teresa Abecasis • Cultura: São Sousa e Vera Moutinho • Letras: A<strong>na</strong> Brasil e Andreia Gonçalves • Desporto:<br />

Dilpesh Laxmidas e Sílvia Carvalho • Media: Marta Mesquita • Agenda: Lilia<strong>na</strong> Batista e Rita Afonso • Humor: Marta Pais Lopes e A<strong>na</strong> Rita Henriques • Colunista:<br />

Oscar Mascarenhas • Grafismo: Jadir Martins e João Abreu • Pagi<strong>na</strong>ção: Jadir Martins, Teresa Abecasis, A<strong>na</strong> Quiteres e Joa<strong>na</strong> Santos • Fotografia:<br />

Nazaret Nascimento e Vera Moutinho • Ilustração: Filipe Teixeira • Impressão: Lisgráfica; Rua Consiglieri Pedroso, N90 • Tiragem: 18 000 exemplares •<br />

Periodicida<strong>de</strong>: Trimestral • Redacção: Campus <strong>de</strong> Benfica <strong>do</strong> Instituto Politécnico <strong>de</strong> Lisboa • NIF: 503535141 • Tel: 217119000 • oitavacoli<strong>na</strong>@gmail.com

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