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Correio nº 150 - APPOA

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C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

EDITORIAL<br />

Apresente edição do <strong>Correio</strong> novamente volta sua atenção ao sempre<br />

promissor diálogo entre arte e psicanálise. Articulação esta que, a<br />

partir do encontro com diferentes formas de manifestação artística,<br />

acompanha o movimento psicanalítico desde suas primeiras proposições.<br />

Poderíamos até dizer que, seguindo os ensinamentos de Freud e Lacan, não<br />

há como nos furtarmos a essa necessária forma de construção, apoiada nos<br />

dois citados campos.<br />

Trazemos, então, a público, textos que propõem tal discussão, sendo,<br />

desta feita, a sétima arte tomada como dispositivo que, em diálogo com<br />

a psicanálise, pode auxiliar-nos a lançar um olhar privilegiado sobre algumas<br />

formas de sofrimento psíquico no mundo atual. Assim, seremos levados pelas<br />

mãos, pelas linhas, de Ana Costa, Nilson Sibemberg, Francilene Rainone,<br />

Miriam Chnaiderman, e Contardo Calligaris a refletir de distintas maneiras<br />

sobre cinema e loucura.<br />

Ainda nesta edição, tendo em vista que, neste ano, o eixo de trabalho<br />

do ensino da <strong>APPOA</strong> se dirige ao estudo do seminário sobre “Os quatro<br />

conceitos fundamentais da psicanálise” de Jacques Lacan, publicamos na<br />

seção debates a tradução de sua segunda aula, feita por Cláudia Berliner,<br />

baseada no texto estabelecido em francês.<br />

A publicação das aulas desse seminário soma-se a de outros tantos<br />

textos das últimas edições do <strong>Correio</strong>, que também percorrem questões em<br />

torno do mesmo. Através da publicação desses escritos, contribuímos ao<br />

debate que tem ocupado diversos momentos de trabalho da Associação e<br />

que preparam nossa próxima Jornada Clínica, a qual também está aqui noticiada<br />

1 .<br />

1 Editorial escrito por Márcio M. Belloc<br />

1


NOTÍCIAS NOTÍCIAS<br />

JORNADAS CLÍNICAS DA <strong>APPOA</strong><br />

FUNDAMENTOS DA PSICANÁLISE<br />

INCONSCIENTE, REPETIÇÃO, TRANSFERÊNCIA, PULSÃO<br />

Data: 21 e 22 de outubro de 2006<br />

O que constitui fundamento para a psicanálise? O texto freudiano,<br />

herança legada na abertura de um campo e invenção de uma práxis, opera<br />

como matriz originária. “Freud – diz Lacan – não foi apenas o sujeito suposto<br />

saber; ele sabia”. Desse saber o que se transmite é o que permanece como<br />

enigma. Diferentemente das proposições dogmáticas tão na moda e tão afeitas<br />

aos fundamentalismos contemporâneos, doutrinários ou religiosos, científicos<br />

ou, até mesmo, com notas de um ceticismo cínico como se tornou o<br />

tema do saber na política; apontamos para o saber inconsciente que convoca<br />

o sujeito a se fazer cargo da falta que lhe constitui.<br />

O saber na psicanálise se conjuga com o desejo. Desejo de certeza<br />

que Freud sustentou em sua pesquisa, e que Lacan retoma para nele situar<br />

e interrogar o fundamento da práxis analítica. Desejo que ultrapassou o próprio<br />

Freud, instituindo-se como efeito da análise: no exterior do espelho do<br />

amor e da identificação, mas na base da formação dos analistas. Desejo do<br />

analista, sustenta Lacan, é articulador na análise das fundações de seu<br />

exercício. Os fundamentos da psicanálise, como os alicerces de uma construção,<br />

arrimam uma obra, assim como as bases da clínica, na qual o desejo<br />

do analista sustenta a operação analítica no desenrolar da experiência. Os<br />

pilares conceituais formam o princípio a partir do qual a práxis se torna conseqüência,<br />

do mesmo modo que instiga a teorização.<br />

Os conceitos de inconsciente, repetição, pulsão e transferência são<br />

fundamentais à psicanálise desde Freud, assim como o foram para Lacan e<br />

qualquer formulação sobre o fantasma, a direção da cura e a formação do<br />

analista, bem como sobre o que se tem hoje a dizer sobre a ciência, a<br />

religião ou a política; passa necessariamente por eles. Ao retornar aos fundamentos,<br />

portanto, afirma-se a psicanálise, ao mesmo tempo em que se<br />

indaga seus pressupostos. Seguindo a trilha deixada por Lacan, propomos<br />

nestas Jornadas Clínicas da <strong>APPOA</strong> a revisão conceitual enquanto retorno e<br />

inovação.<br />

PROGRAMA<br />

Sábado 21 de outubro<br />

Manhã<br />

9h15min – Abertura – Lúcia Mees<br />

9h30min<br />

Mesa 1 : O Inconsciente<br />

1. Conceitos em psicanálise e fundação de um campo – Ana Costa<br />

2. O ato tradutório – Cláudia Berliner<br />

3. Eneaotil – Otávio Augusto Winck Nunes<br />

11h<br />

Mesa 2: O Inconsciente<br />

4. A Esperteza do inconsciente – Sílvia C. Teixeira<br />

5. A construção do conceito de recalcamento em Freud – Elaine S. Foguel<br />

6. Inconsciente e desejo do analista – Robson de Freitas Pereira<br />

7. O tempo e o inconsciente – Osvaldo Arribas (Argentina)<br />

Tarde<br />

15h<br />

Mesa 3: A pulsão<br />

8. Afânise – Ligia Gomes Víctora<br />

9. A agressividade nos limites da linguagem – Luis Fernando Lofrano<br />

10. O trabalho da pulsão na condição de morbidade – Denise Mairesse<br />

16h30min<br />

Mesa 4: A Pulsão<br />

11. Notas sobre a pulsão – Heloísa Marcon<br />

12. Estranha vagância na língua – Marta Pedó<br />

2 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

3


NOTÍCIAS NOTÍCIAS<br />

13. O texto que não cabe na página – Fernanda Pereira Breda<br />

14. A pulsão escópica na contemporaneidade – Jaime Betts<br />

Domingo 22 de outubro<br />

Manhã<br />

9h<br />

Mesa 5: A transferência<br />

15. A transferência e o desejo de professor – Rosana Coelho<br />

16. “A(s) transferência(s) nas Políticas Públicas de Saúde”. Emilia Broide<br />

17. Clínica na Instituição (título a confirmar) – Marianne Stolzman M. Ribeiro<br />

18. O infantil na transferência – Gerson Pinho<br />

11h<br />

Mesa 6: A transferência<br />

19. Transferência, verbo intransitivo – Maria Cristina Poli<br />

20. Impasses na transferência – Rosane Ramalho<br />

21. A liberdade – Ricardo Goldenberg<br />

Tarde<br />

15h30min<br />

Mesa 7: A Repetição<br />

22. Repetição: conceito e clínica – Lúcia A. Mees<br />

23. Sobre determinação – Maria Ângela Bulhões<br />

24. Monocromos psíquicos: litoral, literal, lutoral – Edson L.A. de Sousa<br />

25. Quanto mais sujeito, menos automatismos. Quanto mais automatismos,<br />

menos sujeito – Alfredo Jerusalinsky<br />

Encerramento – Lucia Serrano Pereira<br />

Local: Centro de eventos Plaza São Rafael, Av. Alberto Bins, 514 – Porto<br />

Alegre – RS.<br />

INSCRIÇÕES:<br />

Categorias Antecipadas até 06/10/2006 Após o dia 06/10/2006<br />

Associados R$80,00 R$110,00<br />

Estudantes R$90,00 R$120,00<br />

Profissional R$110,00 R$140,00<br />

SEMINÁRIO “O DIVÃ E A TELA”<br />

EDIFÍCIO MASTER, DE EDUARDO COUTINHO<br />

Um dos ápices da careira deste diretor que renovou o documentário<br />

brasileiro, Edifício Master(2002, Kikito em Gramado) é o filme que o seminário<br />

traz para discussão neste mês de setembro. O olhar e a câmera que já<br />

havia descortinado o nordeste em “Cabra marcado para morrer”, o sincretismo<br />

religioso e a mitologia em “Santo forte” e “Babilônia 2000”, agora abre-se<br />

para a alteridade no campo da subjetividade urbana através das portas, janelas<br />

e vozes de um edifício localizado num dos bairros mais representativos<br />

do Brasil: Copacabana. Lugar que um dia foi a “princesinha do mar”, sonho e<br />

desventura do desejo daqueles que um dia ousaram habita-la e povoar de<br />

humanidade o concreto e o asfalto.<br />

Filme: Edifício Master<br />

Data: 13 de setembro, quarta-feira<br />

Hora: 19h30min<br />

Coordenação: Enéas de Souza e Robson Pereira<br />

Local: sede da <strong>APPOA</strong> ( Faria Santos,258, POA/RS)<br />

4 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS<br />

OFICINA DE TOPOLOGIA – O NÓ BORROMEANO DE LACAN<br />

No sábado, dia 19 de agosto, realizou-se mais uma Oficina de Topologia<br />

na <strong>APPOA</strong>.<br />

Desta vez, avançamos na discussão sobre os nós. O roteiro da oficina<br />

foi o seguinte:<br />

1. Para compreender os nós: os movimentos de Reidermeister.<br />

2. A cadeia borromeana de três nós. Confecção (modo simplificado, costurado,<br />

e a partir da trança).<br />

3. O “nó borromeu generalizado” de Lacan.<br />

4. Cadeias feitas com retas infinitas.<br />

5. Cadeias de 4 nós.<br />

6. O “nó de Joyce”, segundo Lacan.<br />

Há 3 tipos básicos de movimentos de Reidermeister. Todos são usados<br />

para confecção de nós. Podem ser redutíveis (desatar sozinhos, continuar<br />

livres) ou não-redutíveis (ficam presos, enlaçam a si mesmos ou aos<br />

outros).<br />

.<br />

(Cada grupo destes é isotópico)<br />

A cadeia (link) feita com três nós livres, chamada por Lacan de “nó<br />

borromeu”, pode ser construída se “costurando” dois elos fechados soltos,<br />

com um terceiro, aberto, que deverá passar sucessivamente por cima de<br />

um, e por baixo do outro, e se fechará em seguida. Também pode ser feita a<br />

partir de uma trança.<br />

Quando chegar a seis cruzamentos, os fios terão voltado a suas posições<br />

iniciais. Então, basta religar os fios na mesma ordem para se obter a<br />

cadeia borromeana.<br />

Eles estarão aparentemente presos, mas estão soltos, de fato.<br />

Na cadeia borromeana “clássica” (a três), todos os elos estão em<br />

igualdade de posição: em se desamarrando um deles, todos se soltam. Lacan<br />

conseguia enfim uma forma de apresentar as três instâncias do sujeito da<br />

linguagem: Real, Simbólico, Imaginário, sem uma “hierarquia” entre si. No<br />

centro seria o lugar de seu objeto a – o objeto causador de desejo – lugar<br />

vago, e ao mesmo tempo tão cobiçado.<br />

Para distinguir os nós entre si, Lacan deu-lhes nomes, orientou-os<br />

(com setas) e coloriu-os. Mas isso não bastava, pois, mesmo assim, eles<br />

continuavam sendo todos iguais e podiam intercambiar-se.<br />

6 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

7


NOTÍCIAS NOTÍCIAS<br />

Lacan deve ter errado um bocado (assim como nós), nessas experiências<br />

de amarração. Percebeu que às vezes fazia um cruzamento a mais,<br />

e ficava um elo bem torcido no meio. Porém, ele ainda era borromeu. Chamou<br />

este de “nó borromeu generalizado”. Michel Thomé demonstrou em um<br />

seminário de Lacan, que não havia nenhuma diferença entre as diversas<br />

apresentações da cadeia borromeana. 1<br />

Por que Lacan precisava distinguí-los? Talvez procurasse uma diferença<br />

para o nó feminino e o masculino? Talvez quisesse um conjunto de nós<br />

que se desfizessem sozinhos, por homotopias?<br />

Para poder fazer a diferença, acrescentou um quarto elo à cadeia.<br />

Seria o nó da realidade psíquica, ou do sintoma, ou do complexo de Édipo,<br />

ou do Nome-do-pai...Este foi o gancho para a questão da nominação. 2<br />

1 V. artigo no <strong>Correio</strong> da <strong>APPOA</strong>: RSI – setembro 2004.<br />

2 Lacan. Seminário RSI, 1974/75.<br />

Com quatro elos, há uma resistência natural<br />

dos nós à homogeneização. Três<br />

deles obedecem, mas há um que resiste<br />

– que fica emaranhado no meio da cadeia.<br />

É o nó “da banana”, como o apelidou<br />

Lacan, que insiste em escorregar...<br />

Quando Lacan introduziu o nó borromeu “tradicional” (a três) como<br />

estrutura do sujeito neurótico, muitas questões se seguiram. Como seria no<br />

caso da psicose? A hipótese de que um – ou mais de um – elo estaria solto<br />

(como uma reta infinita, talvez?) não respondia suficientemente.<br />

Se com três elos o objeto a estava no centro, onde seria o “buraco” da<br />

cadeia a quatro? O que segura o “nó” do sujeito, seria um “falso buraco”,<br />

composto pela “nominação simbólica”: o nó do Simbólico, juntamente com o<br />

Sintoma. Como no caso de Joyce (Lacan, seminário O Sinthoma): Joyce<br />

seria um artista. Sua arte, seu « sinthoma ».<br />

Seria o nó de Joyce suficiente para dar conta das psicoses? Não, pois<br />

no final de seu ensino Lacan voltou-se para as superfícies uniláteras (de Boy,<br />

de Seifert).<br />

Seria a cadeia borromeana a “escritura que sustenta o Real” do sujeito,<br />

com queria Lacan? Durante certo tempo ele afirmou que sim. Mais tarde,<br />

no Seminário A topologia e o tempo, ele diria que o nó era “um abuso de<br />

metáfora”…<br />

GRANDES HISTÓRIAS NA CULTURA<br />

PSICANÁLISE E LITERATURA<br />

HAMLET - WILIAM SHAKESPEARE<br />

Ligia Gomes Victora<br />

Dia: 28/09, quinta-feira<br />

Horário: 20h<br />

Local: Anfiteatro da Livraria Cultura - Bourbon Country, Av. Túlio de Rose, 80,<br />

loja 302.<br />

8 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

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SEÇÃO TEMÁTICA<br />

UM TIPO ESPECIAL DE LOUCURA DE OBJETO<br />

Ana Costa<br />

Quem não sabe bem a importância das “preliminares”, até mesmo<br />

para o cinema, precisa assistir ao filme Betty Blue (“37,2 Le matin”) 1 .<br />

Nele, a cena de entrada – uma transa “quente” do casal principal –<br />

deixa o expectador de “fora”, ainda se ajeitando na cadeira para assistir ao<br />

filme e sem apoio identificatório para poder “entrar” na cena. Fica ali plasmada<br />

uma cena antecipada, fora do tempo. Talvez possamos reconhecer aí a<br />

experiência, muitas vezes relatada em análises, de quando o sexo pode<br />

parecer violento, fazendo-se representar por uma entrada intrusiva. O intruso<br />

é o que fica de fora da erótica, sem poder usufruir da condição de voyeur.<br />

Esse “fora” vai nos orientar na abordagem de um ponto específico que o filme<br />

nos traz, na relação à questão da passagem a ato. Não pretendemos, portanto,<br />

fazer um entendimento do filme, mas tomar elementos que nos ajudarão<br />

a pensar nessa construção.<br />

Betty Blue fez época. Em meados dos anos 80, quando estreou no<br />

cinema, marcou uma geração a identificar e glorificar um amor louco, extremado,<br />

de conseqüências bizarras e trágicas. Conta a história de um encontro<br />

amoroso que busca constituir um lugar. Por caminhos que não deixam de<br />

ter seu charme, o filme nos mostra a fundamental diferença entre “lugar” e<br />

“cena”. Betty entra na vida de Zorg sem pedir licença. No mesmo dia da cena<br />

de abertura – a da relação sexual – ela surge na porta da casa dele com<br />

suas malas, convidando-se para morar ali. Nesse momento ficamos sabendo<br />

que antes daquela transa não tinham nada em comum, nada que justificasse<br />

esse “morar juntos”. Depois da surpresa, Zorg aceita isso que lhe é<br />

1 O filme é do diretor Jean-Jacques Beineix. Estreou em 1987 e foi indicado ao César de<br />

melhor direção. Foi recentemente lançado em DVD com uma “versão completa”, sem os<br />

cortes da edição, o que aumenta o tempo para 3 horas e também reduz o impacto.<br />

COSTA, A. Um tipo especial...<br />

apresentado como desafio: silenciosamente levanta-se e carrega as malas<br />

de Betty para dentro da casa.<br />

Zorg era uma espécie de zelador “faz-tudo”, encarregado de bungalows<br />

numa praia, parecendo viver muito pacificamente, e que nas horas livres escrevia.<br />

Betty era agitação, furacão, instabilidade... A cada segundo ela vai<br />

rompendo a bucólica vida de Zorg. O que acalma Zorg enfurece Betty, que<br />

não faz concessões às saídas sintomáticas. Ela busca o impossível, sempre<br />

batendo de frente com o furo da estrutura. A diferença das duas posições<br />

logo se apresenta: enfurecida com a exploração que o chefe de Zorg os<br />

submete – eles precisariam pintar os 500 bungalows para que Betty pudesse<br />

ficar morando ali – ela joga os apetrechos e mobiliários da casa pela<br />

janela. Como ato final, coloca as malas dos dois do lado de fora e ateia fogo<br />

na casa.<br />

O desdobramento dessas passagens é muito interessante: tanto a<br />

passividade de Zorg, que assiste a tudo impotente, quanto a frieza apaixonada<br />

com que Betty realiza sua passagem a ato. Poderia pensar-se que o que<br />

está em causa nesse momento é uma ruptura com o que diferencia os objetos,<br />

diferença que os interditaria e que os faria designar o valor do lugar que<br />

ocupam. Os utensílios e móveis compõem “a casa” e esta tanto pode ser um<br />

lugar, que amarra simbólico e real, quanto uma “cena”. Quando Betty traz<br />

sua mala “a casa” é o valor de um lugar do qual Zorg se faz representante<br />

para ela. Quando o chefe dele o destitui, ela somente continua com ele por<br />

ter deslocado o valor para os cadernos nos quais descobrira o que Zorg<br />

escrevera. A partir daí Zorg não era um simples zelador, era um escritor e ela<br />

mostraria isso ao mundo. “A casa”, então, perdera o abrigo de lugar e se<br />

tornara uma “cena”.<br />

Pode parecer curiosa a designação de “frieza apaixonada”. Uma nos<br />

parece o oposto da outra: onde há paixão não há frieza. No entanto, essa<br />

expressão serve para situar uma determinada relação da paixão com o ato,<br />

que adquire importância no tema que nos ocupa. São momentos em que se<br />

produz uma clivagem entre ato e objeto, em que o ato é o próprio objeto em<br />

si mesmo. Ou seja, são expressões ligadas à produção de uma falta no<br />

10 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

11


SEÇÃO TEMÁTICA<br />

Outro que a passagem a ato coloca em causa. Aqui, a compulsão ao ato<br />

responde a uma interpelação do superego.<br />

Freud já analisou o ato de jogar objetos da casa pela janela, ligado a<br />

momentos na infância em que um irmão vem deslocar o outro. “Tirar o lugar”,<br />

aqui, o propomos num sentido o mais radical possível, não como a<br />

colocação corriqueira de rivalidade. No texto de 1917, denominado “Uma<br />

lembrança infantil de Goethe” em “Poesia e verdade”, Freud retoma um episódio<br />

relatado por Goethe, no qual – com a idade de quatro anos – jogou<br />

todos os pratos da casa pela janela e se regozijava com o barulho feito.<br />

Vinha-lhe na memória a voz dos vizinhos que lhe diziam “mais, mais...”.<br />

Para além das significações posteriores que porventura se acrescentem à<br />

cena (Freud propõe interpretações a partir de sentidos imaginários), é de<br />

grande interesse a proposta de análise freudiana a respeito do irmão como<br />

intruso. Como o mencionado anteriormente, isso não se refere a toda vinda<br />

de irmãozinho e sim quando essa vinda situa algo a mais. Não por nada<br />

Freud associa esse elemento de memória de Goethe aos vários irmãos do<br />

escritor, mortos precocemente. “Intruso”, “intrusão” retoma essa báscula<br />

entre lugar e cena na qual estamos nos detendo. Uma intrusão pode conter<br />

a violência de ser ejetado para fora da cena se esta não se sustenta na<br />

referência simbólica de um lugar. Essa violência implica, como interpelação<br />

superegóica posterior, um “fazer ativo”, isso que se coloca como princípio<br />

de passagens a ato. A passagem a ato busca a produção da falta: essa<br />

produção é o a priori necessário a toda constituição de lugar.<br />

Retomando o filme, a casa como “cena” interpela a passagem a ato,<br />

na reconstituição dos orifícios da janela, no extravasamento de seus interiores,<br />

precipitados “para fora”. Queda do valor do objeto a dejeto, condição<br />

de uma nova busca de lugar: o lugar do escritor. Betty e Zorg rumam a<br />

Paris, onde encontram a amizade de outro casal, num suporte especular<br />

que permite uma convivência amistosa e amena. Mas isso não é suficiente<br />

para Betty, que se empenha na busca de publicar o que Zorg escrevera.<br />

Este é absolutamente cético sobre isso e esconde dela as respostas<br />

negativas que recebem. Até que – o inevitável – a carta chega a seu desti-<br />

COSTA, A. Um tipo especial...<br />

no 2 . Novo fracasso, nova busca: desta vez por engravidar. No entanto, com o<br />

retorno insistente dessa “carta ”3 , a prova de novo fracasso se precipita “em<br />

corpo”: Betty ouve vozes, Betty vê coisas e, por fim, interpelada pela angústia,<br />

produz uma falta no lugar em que seu corpo se cola ao Outro: arranca<br />

seu próprio olho. Esse ato esvazia Betty, leva-a embora. É nessa forma de<br />

catatonia que Zorg a revê no hospital. Nesse momento é dele que depende a<br />

passagem a ato para reconstituir a cena: ele precisa matar Betty. Coisa<br />

curiosa: ele o faz vestido de mulher.<br />

Acrescentando algo mais ao tema, no Seminário sobre a angústia 4 ,<br />

Lacan diferencia acting-out e “passagem a ato” com a fineza de uma precisão<br />

clínica. O acting-out, nos diz ele, demanda interpretação, o que implica<br />

numa determinada relação ao Outro como suposto saber, que indica ainda a<br />

preservação desse lugar. Já na passagem a ato o sujeito “se deixa cair” para<br />

fora de cena. Ele está numa situação de máximo embaraço, como refere<br />

Lacan, “apagado pela barra”.<br />

Mesmo não sendo o objetivo neste artigo, a personagem Zorg merece<br />

algumas considerações. Ele parece secundário à presença extremada de<br />

Betty. No entanto, é ele quem “faz o palco” e que constitui o ponto necessário<br />

para a montagem fantasmática. Tanto é assim que seu ato de assassinato<br />

– o ato final – o faz internalizar essa mulher louca. Talvez não fosse usar<br />

de muita licenciosidade em dizer que se o lugar de Betty constitui essas<br />

passagens a ato, o lugar de Zorg é o do sintoma. Sintoma, este, em fracasso<br />

constante. Encerremos com essa colocação para pensar.<br />

2 Talvez seja desnecessário mencionar, mas uma das cartas chega até Betty, com um texto<br />

de extrema violência sobre a incompetência de Zorg como escritor. A menção que fazemos<br />

aqui retoma essa proposta lacaniana da relação entre repetição e destino ligado ao destinatário<br />

de uma carta.<br />

3 Estamos empregando uma licenciosidade na escrita. Carta, aqui, faz menção à letra, tal<br />

qual proposta por Lacan, como designativo de um gozo na repetição. No filme, a personagem<br />

também fracassa ao tentar engravidar, o que provoca sua última crise.<br />

4 Lacan, J. O Seminário, livro 10, a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.<br />

12 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

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SEÇÃO TEMÁTICA<br />

ALGUMAS NOTAS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE<br />

MATEMÁTICA E PSICOSE NO CINEMA<br />

Nilson Sibemberg<br />

Aidéia de uma relação entre a matemática e a loucura está presente<br />

no senso comum. O mundo do cinema captou esse pensamento.<br />

Em 1998 e 2001, foram lançados dois filmes sobre matemáticos<br />

psicóticos, enfocando uma ligação entre o raciocínio lógico matemático e a<br />

construção delirante dos protagonistas de ambas histórias. Na história da<br />

matemática, também encontramos importantes pensadores psicóticos. Haveria,<br />

neste encontro, algo além do folclore popular? O filme “Pi”, dirigido por<br />

Darren Aronofsky em 1998, será o contraponto dialógico para a construção<br />

de algumas notas sobre este tema. Ron Howard dirigiu em 2001 o filme<br />

“Uma mente brilhante”. Baseado na biografia do matemático John Forbes<br />

Nash Jr., escrita pela jornalista Sylvia Nasar, Ron narra a trajetória do ganhador<br />

do prêmio Nobel de economia de 1994, da sua psicose e da elaboração<br />

da teoria que aplica jogos e relações de rivalidade na compreensão de questões<br />

econômicas complexas, ao reconhecimento da comunidade científica<br />

pelo seu trabalho. O filme sofreu críticas negativas por ter feito uma adaptação<br />

do livro em que questões da sexualidade deste importante matemático<br />

ficaram apagadas.<br />

Aronofsky escreveu, em parceria com Sean Gullette e Eric Watson, o<br />

roteiro e assinou a direção do elogiado “Pi”. Conta a história de um matemático<br />

judeu, Maxmilian Cohen, paranóico e obcecado na busca incessante da<br />

representação numérica de um padrão para a vida, da bolsa de valores à<br />

palavra cifrada de Deus.<br />

A ficção cinematográfica encontra apoio na história de grandes matemáticos<br />

que ajudaram a estabelecer as bases da matemática moderna. Georg<br />

Cantor, responsável pela teoria dos conjuntos, dos números transfinitos e<br />

dos infinitesimais, faleceu aos 72 anos em um hospital psiquiátrico, após<br />

inúmeras crises psicóticas ao longo da vida. Já o austríaco naturalizado<br />

SIBEMBERG, N. Algumas notas sobre...<br />

americano, Kurt Gödel, morreu recusando-se a comer, acreditando que estava<br />

sendo envenenado. Gödel escreveu o teorema da incompletude: qualquer<br />

sistema axiomático suficiente para incluir a aritmética dos números inteiros<br />

não pode ser simultaneamente completo e consistente. Isso significa, se o<br />

sistema é auto-consistente, então existirão proposições que não poderão<br />

ser nem comprovadas nem negadas por esse sistema axiomático. E se o<br />

sistema for completo, então ele não poderá validar a si mesmo – seria inconsistente.<br />

Em “Uma mente brilhante”, o diretor nos apresenta um sujeito com<br />

nítidas dificuldades na constituição de laços sociais. A função simbólica do<br />

Nome-do-pai está ausente da relação com o Outro. Entre tantas, uma cena<br />

chama especial atenção. Observando um jogo entre colegas de faculdade,<br />

se coloca freneticamente a escrever fórmulas matemáticas na janela de seu<br />

dormitório. Sua teoria sobre jogos e relações de rivalidade, aplicada a questões<br />

econômicas complexas, surge na tentativa de entender o que se passava<br />

nos jogos entre equipes rivais e, também, no jogo das relações<br />

interpessoais e amorosas. A álgebra lhe permite uma escrita, a formalização<br />

de um conhecimento, mas não o exercício de um saber simbólico capaz de<br />

fazer furo no real, rompendo a captura imaginária no Outro. Ele busca um<br />

sentido, seja nas mensagens criptografadas em seu delírio paranóico, seja<br />

nos laços sociais que aparecem como códigos a serem decifrados e traduzidos<br />

de forma algébrica.<br />

Aronofsky nos apresenta um movimento de câmera distinto de “Uma<br />

mente brilhante”. Howard conduz sua narrativa incitando o espectador com a<br />

pergunta sobre onde está a fantasia, onde está a realidade. Questão também<br />

abordada por David Cronemberg em “Spider”, outro filme que aborda a<br />

psicose e a vivência do delírio. A lente desses diretores nos confronta com a<br />

colagem entre sintoma e fantasma que se dá na psicose, mas divergem de “Pi”<br />

quando a câmera volta ao lugar do olho que testemunha a cena da psicose. Se,<br />

em momentos dos filmes, somos tragados pela construção delirante que apaga<br />

fronteiras, no final conseguimos voltar ao nosso posto avançado da neurose.<br />

Já em “Pi”, a câmera, usando de forma magistral o jogo de luzes e sombras<br />

14 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

15


SEÇÃO TEMÁTICA<br />

entre o preto e o branco, com planos rápidos e fechados, nos joga no turbilhão,<br />

na dor e no caos que a busca do UM, da nomeação do inominável, do absoluto<br />

na paranóia, ao mesmo tempo que tenta acalmar, leva ao pior. Somos jogados,<br />

sem movimento de volta, na experiência delirante de Max Cohen.<br />

A vida de John Nash parece ter um final feliz. Depois do reconhecimento<br />

pelo seu trabalho, ele segue dando aulas em Princeton. Sua obra lhe deu um<br />

lugar social. Cohen, não o matemático Paul Cohen autor da teoria da forçagem,<br />

mas o personagem da ficção de Aronofsky, tem um final diferente. A falta do<br />

corte simbólico leva-o a produção de um furo real no cérebro, uma espécie de<br />

lobotomia com uma furadeira, dando um ponto de basta na sua busca.<br />

O filme inicia com o matemático Max Cohen escrevendo em seu diário:<br />

“12:45 – Eu reassumo minhas posições :<br />

1.- Matemática é a língua da natureza;<br />

2.- Tudo ao nosso redor pode ser representado e entendido através<br />

dos números;<br />

3.- Se você criar gráficos dos números de qualquer sistema, padrões<br />

surgirão;<br />

4.- Existem padrões em todos os lugares da natureza.”<br />

Max vive encastelado em seu apartamento, transformado numa teia<br />

de fios, chips, telas e teclados, na busca de um padrão numérico que possa<br />

definir o movimento da bolsa de valores. Entre suas crises de enxaqueca e o<br />

vai e vem do valor das ações no mercado financeiro global, ele se defronta<br />

com a questão de sua origem, sua filiação. O Talmud, escritura sagrada da<br />

religião judaica, na interpretação da Cabala, constitui uma escrita cifrada.<br />

Cada letra do alfabeto hebreu representa um número. O deciframento e a<br />

interpretação de um sentido secreto nas escrituras seria possível a partir do<br />

simbolismo presente nas letras e nos números. O encontro do matemático<br />

com o estudioso da Cabala, Lenny Meyer, instala a busca delirante do número<br />

que permitiria o acesso à palavra de Deus, reveladora do segredo guardado<br />

na Arca Sagrada, conhecimento da verdade sobre o messias, cuja<br />

chegada viria restaurar a ordem divina entre os homens. Max se torna o<br />

eleito, o escolhido para desvelar o código divino que abriria a era messiânica.<br />

SIBEMBERG, N. Algumas notas sobre...<br />

Entre o deus mercado e o deus da religião, nosso herói procura, na<br />

linguagem matemática, um nome para o Pai. A busca do padrão absoluto,<br />

da linguagem perfeita, da forma pura e sem furos – as falhas só podem ser<br />

fruto de erros humanos – nos é apresentada no argumento de Aronofsky<br />

como insana. Ao invés de pôr ordem no caos do pensamento de Cohen, o<br />

leva na dolorosa busca de atingir o impossível, encontrar o ideal, nomear o<br />

inominável, encontrar o sentido último e indubitável do real. Loucura que só<br />

encontra sossego na lobotomia que o próprio protagonista se impõe para dar<br />

pausa na sua dor. Pausa infindável. A cena final do filme é rica em sua<br />

metáfora. Max contempla a natureza, não busca mais produzir um saber<br />

sobre ela. Os olhos podem sentir, ver. Ao ser questionado sobre operações<br />

matemáticas que antes respondia de imediato, responde, acenando com um<br />

olhar bobo, que não sabe mais como obter o resultado. A dor de viver passa,<br />

mas não passa a vida também?<br />

A questão que o filme me coloca vai além da descrição cinematográfica<br />

do que vem a ser as psicoses, da esquizofrenia à paranóia. Haveria uma<br />

relação entre psicose e linguagem lógico-matemática?<br />

A existência de gênios matemáticos psicóticos não nos autoriza a<br />

fazer uma relação direta entre sujeitos que se dedicam ao estudo da lógica e<br />

da matemática e os efeitos psíquicos da forclusão do Nome-do-pai. No entanto,<br />

seria possível pensar que o ideal de Leibniziano do desenvolvimento<br />

de uma linguagem perfeita, livre das ambigüidades da linguagem cotidiana,<br />

através da álgebra, poderia constituir um terreno fértil para uma elaboração<br />

delirante paranóica? Frege argüiu que todo apelo ao pensamento intuitivo<br />

deveria ser eliminado do raciocínio lógico-matemático. Uma lógica pura deveria<br />

levar a uma construção puramente racional, permitindo unir verdade e<br />

racionalidade. Um domínio UNO. Não encontraríamos aí uma forma absoluta<br />

e fechada de linguagem, tal qual se dá no saber delirante do paranóico? O<br />

paranóico está fixado à identificação do S1, do significante-mestre, lugar fixo<br />

de sua representação para os outros significantes. Identificado a esse Um,<br />

ideal ao qual tudo e todos se referem, não se inscreve como exceção (-1) em<br />

relação nem ao significante, nem ao gozo, como nos coloca Antonio Quinet<br />

16 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

17


SEÇÃO TEMÁTICA<br />

no livro “Psicose e laço social” (2006). O delírio paranóico tenta imaginarizar<br />

o real dando-lhe um sentido único, um conhecimento sem furos.<br />

Curiosamente, dois matemáticos psicóticos, entre os responsáveis<br />

pela matemática moderna, são os que postularam a impossibilidade de se<br />

chegar ao Um. Lacan não partilhou da afirmação fregeana da existência de<br />

um domínio que seria Uno. Ele se valeu da noção do lugar vazio, da função<br />

do incompleto, insaturado, para explicar o que escapa a um circuito unitário.<br />

Serviu-se justamente das teorias de Cantor e Gödel, dois loucos geniais. O<br />

conjunto vazio, os números transfinitos de Cantor e o teorema da incompletude<br />

de Gödel nos dizem de um elemento irredutível, incapaz de ser circunscrito<br />

pela ordem do conhecimento.<br />

Maxmilian Cohen procura um fiador. Na falta do registro simbólico, da<br />

função de corte do terceiro que se instala no campo do fantasma, da relação<br />

entre o sujeito e o Outro, ele tem no delírio um substituto malogrado. No<br />

discurso lógico-matemático, ele busca a garantia de uma ordem que ponha<br />

fim ao caos de sua mente atribulada.<br />

A linguagem matemática procura a escritura do real. O que Max carece<br />

é do simbólico capaz de fazer furo nesse real, permitindo acesso a uma<br />

indagação sobre a incidência do desejo do Outro. A escrita unívoca, equivalendo<br />

cada símbolo algorítmico a um sentido único, da forma pura e perfeita,<br />

longe de afastá-lo da invasão real que o aflige, o conduz cada vez mais em<br />

direção ao abismo.<br />

Seu mestre e amigo, doente e aposentado, após uma vida buscando<br />

um padrão para o número Pi, lhe diz para desistir de sua busca, que dê uma<br />

pausa no seu pensar. O universo não é possível de ser reduzido a uma ordem,<br />

ele é complexo e caótico.<br />

Na falta de um significante que viesse substituir outro significante, o<br />

do desejo da mãe, não há metáfora paterna que se inscreva como fiadora da<br />

ordem e do caos. O saber sobre o princípio da Coisa é da ordem de um<br />

impossível. Quanto mais Max o procura, quanto mais ele se aproxima, mais<br />

turvo vai ficando seu pensamento. Com uma furadeira ele faz buraco real no<br />

corpo. Não há mais no que pensar.<br />

A CENA QUE SE DESVELA<br />

OU O QUE VELA UMA IMAGEM?<br />

Francilene Rainone 1<br />

RAINONE, F. A cena que se desvela...<br />

“Está em nossa condição correr sempre o risco<br />

de nos perdermos por nosso melhor movimento” 2 .<br />

Acâmera filmadora leva o olho com ela, alterna constantemente as<br />

perspectivas do espectador que se torna a dos atores e não mais a<br />

do observador sentado na platéia. Os movimentos da câmera parecem<br />

propor um pacto com o espectador, conduzem o mesmo para o interior<br />

da tela e logo para o âmago das imagens, o olhar da câmera investe-se na<br />

função de narrador situado fora do mundo da história, mas ainda assim assimila<br />

e representa o olho da platéia.<br />

Falar de um filme ou escrever sobre o que um filme nos suscita é<br />

sempre uma tarefa difícil, não por não se ter o que dizer, mas por apresentarmos<br />

ao leitor justamente uma parte muito singular de nós mesmos.<br />

Quando recebi o convite para escrever um texto para este número do<br />

<strong>Correio</strong>, me perguntei que recorte seria possível do que venho pesquisando<br />

nesta trajetória como mestranda da UFRGS, no Instituto de Psicologia, no<br />

Programa do Pós Graduação da Psicologia Social e Institucional. Por onde<br />

tecer os vários fios que têm me acompanhado neste percurso de investigação?<br />

Decidi partir de um seminário proferido em 2002 por Alfredo Jerusalinsky,<br />

na Universidade de São Paulo, no Instituto de Psicologia. Vou apresentar<br />

um pequeno fragmento que, para este momento, me interessa.<br />

1 Terapeuta Ocupacional do Cais Mental Centro, mestranda em Psicologia Social e Institucional<br />

do Instituto de Psicologia da UFRGS.<br />

2 Lacan, (1946[1998]) p.165.<br />

18 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

19


SEÇÃO TEMÁTICA<br />

Pensando desde o caso Aimée e de seu primeiro capítulo, que se<br />

chama “Exame clínico do caso”, Alfredo questiona por que Lacan começou a<br />

contá-lo por este episódio. Vou resumi-lo para que possam acompanhar o<br />

raciocínio.<br />

“Desde abril de 1900 às 8:00hs da manhã, Madame Z., uma das atrizes<br />

mais apreciadas pelo público parisiense, chegava ao teatro onde ela<br />

atuaria naquela tarde. Foi abordada no vestíbulo de entrada dos artistas por<br />

uma desconhecida que lhe colocou a questão:<br />

– Você se encontra bem, Madame Z.?<br />

A interrogadora estava vestida corretamente com um abrigo com golas<br />

forradas, carregava uma sacola e nada no tom da questão formulada<br />

vinha promover a desconfiança da atriz.<br />

Habituada às homenagens de um público ávido em se aproximar de<br />

seus ídolos, ela respondeu afirmativamente e urgida de dar um fim ao encontro,<br />

pois estava pronta para ir atuar, ela fez o gesto de passar.<br />

A atriz declarou que a desconhecida, nesse momento, mudou violentamente<br />

de cara, tirou energicamente de sua sacola um canivete aberto e<br />

com o olhar carregado de um feroz ódio deu uma facada contra ela. Para<br />

parar o golpe, Madame Z. parou a lâmina plenamente com a mão e ali se<br />

cortaram dois tendões flexores dos dedos [...].”<br />

Por que Lacan começa por essa passagem ao ato? Por que não descreve<br />

os sintomas, os delírios, ou mesmo algumas passagens anteriores da<br />

vida de Aimée?<br />

Jerusalinsky nos diz que “Lacan começa a contar um caso pelo que<br />

constitui o fracasso na vida desta mulher. Fracasso que provoca nela a emergência<br />

da impossibilidade de simbolização substitutiva reparadora do que<br />

nela se perdeu.” É por esse lugar, esse ato, que se constitui o cerne do seu<br />

sofrimento.<br />

Lacan começa pela passagem ao ato porque ela é nodal, porque dali<br />

se pode cerzir todo o tecido disperso do significante. É por esse lugar, esse<br />

ato, essa passagem ao ato que podemos falar do caso Aimée, esta impossibilidade<br />

de devolver a seu significante sua polissemia.<br />

RAINONE, F. A cena que se desvela...<br />

Por que começo este texto por aí? Para continuá-lo lembrando, agora,<br />

de um artigo de Alain Badiou (2005): “Pode-se falar de um filme”?<br />

Badiou (2005), neste artigo, faz referência a três modos de falarmos<br />

de um filme. Chama de “juízo indistinto” os comentários tecidos<br />

desde o ponto de vista se nos interessou ou não, se gostamos ou não, se<br />

é algo atrativo ou que tiramos proveito. Aponta para uma outra forma que<br />

chama de “juízo diacrítico”, que argumenta a favor da consideração do filme<br />

como estilo, o que o distingue, o que se opõe ao indistinto. Mas a terceira<br />

forma, que ele assinala, é a que me parece mais pertinente de discussão<br />

neste escrito. Badiou chama de “axiomática” a forma que se pergunta<br />

quais são, para o pensamento, os efeitos de tal ou qual filme. O que pode<br />

as imagens em relação aos pensamentos do espectador? De que forma<br />

o que parece claro e evidente abre questões que não estão ali expostas?<br />

Logo, associo a forma axiomática com a questão da polissemia que<br />

Lacan nos propõe. Para falarmos de algo que nos convoca, precisamos estar<br />

abertos para o novo, para a amplitude que os conceitos encerram e entrar<br />

na direção de novas possibilidades de respostas ou mesmo de novas perguntas.<br />

Deixar a clareza e as evidências tomarem conta de nossos pensamentos<br />

e nos impulsionarem para além.<br />

Falar de um filme é deixar-nos envolver pela idéia em toda sua força,<br />

pois quando permitimos que uma “idéia nos visite em toda sua abrangência”<br />

(Badiou 2005, p.31.) podemos perceber uma quantidade de diferentes “ingredientes”<br />

contidos na mesma, naquela cena que nos tomou. Aqui, insisto<br />

com a idéia acima: falar de um filme é permitir que a polissemia das imagens<br />

nos direcione para “mares nunca antes navegados”, ou ainda, mares<br />

já navegados, mas esquecidos pela turbulência das ondas.<br />

Dadas as especificidades do cinema, cuja matéria-prima se constitui<br />

de imagens, não se pode negar que existe uma relação de comunicação<br />

entre espectador e filme. Podemos dizer que o filme prevê seu espectador.<br />

Dirige-se a ele, não só através da narrativa, mas principalmente pelos apelos<br />

visuais e sonoros.<br />

20 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

21


SEÇÃO TEMÁTICA<br />

O espectador não é um elemento passivo, totalmente iludido. É alguém<br />

que usa de suas faculdades mentais para participar ativamente, preenchendo<br />

as lacunas das imagens com seus investimentos intelectuais e transformando<br />

seu pensamento a partir destes efeitos.<br />

O cinema põe em cena e mantém com a imagem em movimento sua<br />

condição essencial. A imagem em movimento que é montada através de<br />

fotogramas propicia ao espectador algo que o captura que o atinge pela via<br />

do olhar e o remete à lembrança.<br />

Todo esse preâmbulo se propõe a introduzir o que venho trabalhando<br />

desde minha prática clínica e como pesquisadora da Universidade. Tenho<br />

acompanhado uma atividade que chamamos “Cinema em debate”. É uma<br />

prática que a cada dois meses leva pessoas, acometidas por transtornos<br />

mentais graves, atendidas nos serviços de saúde mental de Porto Alegre, ao<br />

cinema.<br />

O “Cinema em debate” combina a sessão de cinema com uma conversa<br />

sobre o filme logo após a exibição. Vamos todos (profissionais e participantes)<br />

ao cinema numa quinta-feira pela manhã. Saímos de diversos bairros<br />

da cidade – e mesmo de outras cidades como Esteio, Novo Hamburgo e<br />

São Leopoldo. É um encontro marcado, como nos lembra Froemming 3 : “(...)<br />

de surpresa em surpresa vamos descobrindo que cada filme propicia uma<br />

experiência diferente da que inicialmente poderíamos supor, um filme que<br />

consideramos como uma comédia se revela como um drama e outras vezes<br />

faz aflorar comentários indignados”.<br />

Por que cinema e saúde mental? A resposta a essa pergunta remete<br />

às indagações sobre as possibilidades que o cinema anuncia de entrar em<br />

contato com novos mundos, de pensar sobre o mundo e nossa existência<br />

nele. A capacidade de nos re-apresentar, nos devolver, em forma discursiva,<br />

os assuntos coletivos e individuais, nos situar entre a massa e a intimidade.<br />

3 Liliane Froemming, professora da UFRGS e psicanalista, participante do Projeto Cinema em<br />

debate, numa mesa do Seminário de Acompanhamento Terapêutico na UFRGS em outubro<br />

de 2005.<br />

RAINONE, F. A cena que se desvela...<br />

E principalmente pela condição do cinema em oportunizar o alcance diferente<br />

que as imagens podem assumir para cada um que a elas se submete, ou<br />

mesmo para cada um que se deixa levar pelo seu valor perceptivo, seu valor<br />

imaginário ou mesmo simbólico.<br />

Compartilho com vocês a fala de uma participante do “Cinema em<br />

debate” após o filme “As crônicas de Nárnia”, do diretor Andrew Adamsson:<br />

“Eu achei o filme bem interessante, este armário foi aberto como vocês viram<br />

e lá no outro mundo também havia guerra, num mundo que eles não conheciam,<br />

onde as pessoas eram muito diferentes, a gente tá lá, não acreditando<br />

em alguma coisa e acha um jeito de acreditar, encontrando algo que não<br />

conhece, mas faz a gente seguir” (M.).<br />

Estes dizeres nos remetem a pensarmos sobre o que ali se produz,<br />

quando acompanhamos M. em cada uma das sessões de cinema e começamos<br />

a conhecer alguns dos significantes em cena na sua trajetória particular.<br />

M. diz que é tímida que sente vergonha em ir à frente e pegar o microfone<br />

para pronunciar suas idéias (ela participa de todos os cinemas em debate<br />

e sempre inicia sua fala desta forma). Porém, após os preliminares que<br />

a apresentam, coloca suas impressões. É como se necessitasse dizer que<br />

não pode fazê-lo, mas que deseja deixar sua marca, apresentar sua fala e<br />

nos deixar tentando compreendê-la.<br />

Lacan (1992[1955-1956]) – ao procurar pensar a psicose do lado da<br />

alteridade, ou seja, um funcionamento psíquico que se coloca como alteridade,<br />

como diferença – afirma que se trata, então, de não compreender, e sim de<br />

dar lugar à diferença, à alteridade. “Comecem por não crer que vocês compreendem.<br />

Partam da idéia do mal entendido fundamental” (p.30).<br />

Talvez possamos pensar que o “em” de “Cinema em debate”, possa<br />

deslocar sensações, emoções para a tela, para a projeção, para o cinema,<br />

permitindo a abordagem de determinadas questões de um modo não<br />

persecutório, não expondo a história pessoal de cada um que ali se coloca.<br />

O cinema é considerado para além do filme ou da história narrada, envolvendo<br />

todo seu contexto: a sala escura, as pessoas ao nosso lado, as emoções<br />

e sentimentos despertados nas duas horas de sessão e, principalmente, as<br />

22 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

23


SEÇÃO TEMÁTICA<br />

lembranças e expectativas que ali são propiciadas. Estamos aqui, como<br />

coloca Aumont 4 , pensando em como as imagens inscrevem significações<br />

para cada um e que não há imagem sem percepção desta imagem; acrescentamos<br />

que, à percepção subvertida pela linguagem no debate que se<br />

anuncia, soma-se um traço de percepção da imagem como elemento<br />

significante e a partir daí se faz uma construção de sentido possível 5 .<br />

Em seu artigo “Psicologia de grupo e análise do ego”, Freud (1921)<br />

aponta para o que é possível se estabelecer de laço social a partir de uma<br />

fantasia publicamente apresentada, através de um compartilhar de idéias, de<br />

um testemunho e ainda das identificações ali colocadas. E é no capítulo<br />

onde fala da sugestão e da libido que refere a descoberta de uma explicação<br />

psicológica dessa alteração mental que é experimentada pelo indivíduo num<br />

grupo, enfatizando que os laços emocionais que ali se produzem são mecanismos<br />

constitutivos.<br />

Ir ao cinema, nos diz Caldas (1995), “aparentemente de grupo, é na<br />

verdade de grupo, o filme funciona como líder. O horror do recalcado encontra,<br />

assim, na ficção da filmagem, o espaço virtual onde pode se fazer representar”<br />

(p.421).<br />

Na atividade do “Cinema em debate”, pudemos observar um fato muito<br />

curioso: após algumas sessões, os participantes começaram a reconhecerse,<br />

e quando iam à frente, ao finalizar sua fala, os demais aplaudiam. Os<br />

aplausos não ocorreram desde as primeiras sessões. Fomos verificando que<br />

após a atividade ter mais de um ano de acontecimento, este efeito se deu.<br />

Podemos pensar que o grupo foi se constituindo enquanto grupo na medida<br />

que a atividade já se fazia mediadora e o testemunho era compartilhado<br />

pelos demais como algo importante e merecedor de reconhecimento.<br />

Lacan aborda a questão do testemunho para nos dizer que “não é por<br />

acaso que isso se chama em latim testis, e que se testemunha sempre em<br />

4 AUMONT, J. A imagem. São Paulo: Papirus, 1995.<br />

5 Ibidem.<br />

cima dos próprios colhões. Em tudo o que é da ordem do testemunho, há<br />

sempre empenho do sujeito, e luta virtual a que o organismo está sempre<br />

latente” (p.51).<br />

“Quando F. foi lá e falou que não tinha acreditado, aí sim eu pude<br />

perceber que também tinha sentido isso e não havia me lembrado, foi só<br />

depois de ela falar é que isto me tocou, senti a mesma coisa”. Esta fala de<br />

G. nos faz verificar o quanto da fala de cada um pode resignificar o que os<br />

demais puderam sentir. Falar é sempre falar a outro, mas também é receber<br />

sua mensagem do outro sob uma forma invertida.<br />

Lacan nos lembra que “a promoção, a valorização na psicose dos<br />

fenômenos de linguagem é para nós o mais fecundo dos ensinamentos”<br />

(p.167) E, acompanhando seu raciocínio, podemos pensar a exclusão do<br />

Outro na psicose, obrigando-nos a refletir sobre os efeitos, na linguagem, de<br />

tal equação. Se considerarmos que não há algo compartilhado culturalmente,<br />

a partir do qual o sujeito se organiza e que diz respeito justamente ao<br />

corte, à descontinuidade, ao intervalo, a não correspondência entre o simbólico<br />

e o real, qual é a possibilidade, a via, ou o caminho para que o (sujeito)<br />

psicótico possa se fundar em alguma representação? Como considerar a<br />

questão da inscrição, da experiência na psicose? 6<br />

O que vela uma imagem? O cinema fascina mais pelo que vela do que<br />

pelo que desvela, nos aponta Caldas (1995, p.422). O filme leva o espectador<br />

a pensar, a ver-se vendo, e também ser olhado desde as imagens da tela. É<br />

a partir das imagens que nos chegam prontas que podemos trilhar até cantinhos<br />

muito esquecidos de nós mesmos. Observamos que ela é muito fecunda<br />

no que pode suscitar para cada um em um determinado momento de sua<br />

vida.<br />

A imagem comunica e transmite mensagens, a imagem não é um<br />

conceito contemporâneo, não surgiu com a televisão, mas ainda hoje em<br />

muitos textos e artigos é associada a noções complexas e contraditórias.<br />

24 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

25<br />

6 Ibdem.<br />

RAINONE, F. A cena que se desvela...


SEÇÃO TEMÁTICA<br />

No trabalho que estamos desenvolvendo, partimos da tentativa de escapar<br />

dessa impressão de passividade e de “intoxicação” 7 que a análise de<br />

imagens pode nos levar e pensar no que elas podem ativar em cada um de<br />

nós.<br />

Uma das definições mais antigas da imagem é de Platão: “Chamo de<br />

imagens em primeiro lugar as sombras, depois os reflexos que vemos nas<br />

águas ou na superfície de corpos opacos, polidos e brilhantes e todas as<br />

representações do gênero.” Imagem, no espelho, e tudo o que ela representaria<br />

na relação a um outro. 8<br />

Ao contar uma cena fílmica, como nos faz lembrar Espiño (2000),<br />

“desmontamos a montagem realizada e articulamos com nossas questões<br />

singulares”, colocamos entonações em partes que não têm esta importância,<br />

deixamos de relatar imagens que são essenciais naquele fotograma,<br />

imprimimos nosso particular ponto de vista. Ressignificamos as imagens<br />

devolvendo sua polissemia. A imagem desempenha sempre um papel capital<br />

no campo humano “por seu caráter de estrutura organizada” (Lacan, p.17)<br />

e este papel é totalmente refeito, reanimado, retomado pela ordem simbólica.<br />

Ao contar uma cena ou falar de um filme, é a historicização deste que<br />

conta, é nesta historicização que estão significantes importantes para cada<br />

um de nós.<br />

Talvez aqui seja importante dizer que falar em “nós” implica dizer também<br />

para os pacientes psicóticos, pois quando escutamos pessoas com<br />

graves problemáticas psíquicas, muito nos dizem de suas lacunas e rupturas<br />

com os relacionamentos afetivos e com suas relações profissionais. Há<br />

um empobrecimento da rede social, com perdas quantitativas e qualitativas,<br />

principalmente a partir da primeira rede social disponível, que é o núcleo<br />

familiar. Muitos transtornos mentais são marcados pela tendência ao isolamento<br />

e pela dificuldade de se estabelecer vínculos, onde a interação com<br />

7 Termo utilizado por Joly(1999).<br />

8 JOLY,1999.p.14.<br />

outras pessoas fica prejudicada e as trocas sociais escassas. Podemos<br />

pensar até em uma vida empobrecida, com falta de histórias para contar,<br />

com empobrecimento mesmo da memória.<br />

Toda a memória é formada no tempo presente, como se fosse uma<br />

obra de ficção. Poderíamos dizer que a memória, em termos da historicização<br />

de uma vida, é uma obra de ficção de cada um de nós (aquilo que contamos<br />

sobre nossa história é o ficcionar desta história). Isto não significa que seja<br />

menos ou mais verdadeiro. Se ficarmos com a idéia de que deve haver uma<br />

memória mais verdadeira, é como se supuséssemos que é possível acessar<br />

o traço tal qual ele foi inscrito; ele está perdido, não há como acessar. Toda<br />

vez que eu contar sobre algo que me aconteceu, vou contar diferente 9 .<br />

E, neste diferente, há algo que vai reconstruindo um passado, algo<br />

que pode estar sendo resignificado de um presente e, para além, estar devolvendo<br />

alguma polissemia possível.<br />

O que estamos podendo escutar nas falas dos participantes é justamente<br />

esta forma de pensar que de repente se modifica. Se a pessoa passa<br />

por uma experiência e, a partir dali, alguma coisa toma um outro sentido,<br />

isto tem sido interessante, pois cada um leva seus pensamentos, suas imagens<br />

para seguir conversando com outras pessoas, em outros lugares ficando<br />

o convite para a próxima sessão.<br />

Este é um trabalho em processo: pensar no que as imagens do cinema<br />

fazem de fronteira com a produção de imagens na psicose. Este tema<br />

tem nos colocado a pensar, escrever, investigar e fazer um recorte de análise<br />

possível, onde o propósito não é estudar os diversos conceitos de imagens e<br />

sim apresentar, desde o referencial psicanalítico, o que pode dizer uma imagem<br />

na sua correlação com a psicose.<br />

Para finalizar, sem a pretensão de concluir, deixo com vocês as palavras<br />

de G. na sessão do filme “As Crônicas de Nárnia”: “Fiquei pensando na<br />

guerra, quando as crianças se afastam dos pais e de casa por causa da<br />

9 Notas de leituras da colega Simone Lerner, 2006.<br />

RAINONE, F. A cena que se desvela...<br />

26 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

27


SEÇÃO TEMÁTICA<br />

guerra no país deles; aqui não temos guerra, mas me fez pensar nas guerras<br />

que cada um tem dentro de si, das fantasias que se passam e que não<br />

acreditam em nós e precisamos travar pequenas batalhas para sermos reconhecidos;<br />

esse filme foi muito importante para que eu possa acreditar que é<br />

possível ganhar esta guerra, isto fazia tempo que estava guardado e aflorou<br />

ali em mim”.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

AUMONT, J. A imagem. São Paulo: Papirus.1995.<br />

BADIOU, Alain. Se puede hablar de um filme? In: BADIOU, Alain. Imagens y<br />

palavras. Escritos sobre cine e teatro. Buenos Aires: Manantial, 2005, p.27-33.<br />

CALDAS, H. Cinema-Sonho Diurno? In: Escola Brasileira de Psicanálise-Rio de<br />

Janeiro-A imagem Rainha: as formas do imaginário nas estruturas clínicas e<br />

na prática psicanalítica. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995 p.417-423.<br />

ESPIÑO, G.“Cuéntame tu vida” especialmente porque no es tan tuya.In:<br />

Psicoanálisis y Cine-cuestiones clínicas em personajes de películas. FUDÍN,<br />

M.& ESPIÑO, G. Buenos Aires: Comunicarte Editorial,2000.<br />

FREUD, S. (1899/1976). Lembranças Encobridoras. In: Obras Completas. Rio de<br />

Janeiro: Ed. Imago, 1976.<br />

________. (1921). Psicologia de Grupo e análise do ego. In: Obras Completas.<br />

Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1976.<br />

JERUSALINSKY, A. Loucura e Liberdade. Palestra proferida no Instituto de Psicologia<br />

São Paulo. 2002. Transcrição Sandra Pavone. Texto mimeo.<br />

JOLY, M. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papirus, 1999.<br />

LACAN, J. O Seminário, livro III. As Psicoses. (1955-1956) Rio de Janeiro: Jorge<br />

Zahar, 1992.<br />

_________.Escritos. (1946) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.<br />

LERNER, S. Notas de leituras e estudos. Texto digitalizado sobre as Lembranças<br />

Encobridoras, (1899) de Sigmund Freud. 2006.<br />

_________.Textos escritos e digitalizados a partir de estudos do Seminário III:<br />

LACAN, J. O Seminário, livro III. As Psicoses. (1955-1956) Rio de Janeiro:<br />

Jorge Zahar, 1992.<br />

FILMAR A LOUCURA: “TUDO QUE SE IMAGINA, É”<br />

Miriam Chnaiderman<br />

CHNAIDERMAN, M. Filmar a loucura...<br />

1. JOSÉ AGRIPPINO<br />

Fui assistir “Estamira” ainda tomada por questões que tinham me perturbado<br />

em minha experiência com a realização do documentário “Passeios<br />

no Recanto Silvestre” sobre o escritor e cineasta, guru do<br />

tropicalismo, José Agrippino de Paula. Já há algum tempo, David Calderoni,<br />

psicanalista e músico, tinha o projeto de um filme que pusesse em movimento<br />

a importância do “Panamérica”, o livro tão cantado por Caetano Veloso, o<br />

livro que é nosso monumento pop dos anos 60. Reinaldo Pinheiro acalentava<br />

o mesmo sonho utópico: encenar o “Panamérica”. Afinal, fazer cinema é<br />

encarar sonhos e utopias.<br />

O que fez com que nos uníssemos para realizar o documentário foi<br />

uma entrevista que José Agrippino concedeu a Pedro Bial, na casa onde<br />

vive, em Embu, periferia de São Paulo, quando o “Panamerica” foi relançado<br />

pela Editora Papagaio. Assim David descreve a entrevista e o início de nosso<br />

processo: “Admirado com a inteligência de Agrippino, Bial lhe perguntou<br />

se a aceitação do diagnóstico de esquizofrenia não seria apenas um<br />

estratagema para obter dinheiro da Previdência. Tomando o próprio diagnóstico<br />

como um sinal dos tempos, o autor de ‘PanAmérica’ respondeu<br />

que, longe de farsa, a ‘esquizoidia’ era real num mundo que pagava ‘30<br />

sanduíches’ pela criação de um romance. Ao perceber ‘PanAmérica’ como<br />

a transfiguração estético-crítica desse diagnóstico sobre a nossa contemporaneidade,<br />

propus a Miriam que proporcionássemos a Agrippino os meios<br />

fílmicos de prosseguir a sua obra, reafirmando-se como sujeito intelectual<br />

e artístico, produtor de um saber e de um fazer sobre si mesmo e sobre o<br />

mundo.”<br />

O processo de filmagem e construção do personagem está descrito<br />

em ensaio que publiquei no livro “Sobre arte e psicanálise”, organizado<br />

por Tania Rivera e Vladimir Safatle, o “Panamérica de utópicos Embus”.<br />

Alguns princípios nos norteavam, sabíamos da delicadeza toda da<br />

28 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

29


SEÇÃO TEMÁTICA<br />

nossa proposta: José Agrippino é uma figura admirada, mítica. Está interditado,<br />

com o rótulo de esquizofrênico recebe uma parca pensão do Estado,<br />

mas que ajuda a levar sua vidinha em sua casa no Embu. O tutor jurídico é<br />

seu irmão, Guilherme de Paula. Quando elaboramos o projeto, a autorização<br />

para realizar o documentário foi pedida a Guilherme. Embora José Agrippino<br />

também tivesse assinado uma autorização, em termos jurídicos era Guilherme<br />

o responsável. Chegamos até Guilherme e José Agrippino através de<br />

Lucila Meireles, curadora da obra de José Agrippino. Lucila era muito clara:<br />

quando o “Panamérica” foi relançado ela se irritara com toda e qualquer reportagem<br />

que colocava em primeiro plano a doença mental em José Agrippino.<br />

Isso seria sensacionalismo, abuso. Em conversas nossas ficava muito claro<br />

que não estávamos procurando José Agrippino por causa de sua loucura,<br />

que esse diagnóstico não era importante, tanto fazia... Mas, não era o como<br />

Agrippino lidava com o diagnóstico que atraira David? Não seria, inclusive, o<br />

questionamento do diagnóstico que movia David? Vendo “Estamira” me interroguei<br />

sobre se não houve um certo pudor na maneira como nós, psicanalistas,<br />

lidamos com a questão da “loucura” no contato com José Agrippino: em<br />

nenhum momento conversamos com ele sobre seu diagnóstico. Quando<br />

pedimos que lesse trechos de seu primeiro livro, o “Lugar Público”, relançado<br />

durante o processo de filmagem, Agrippino delicadamente recusou, disse<br />

que “não seria bom o contato com momentos seus depressivos”, momentos<br />

onde não estava bem. Respeitamos e...silenciamos. Assim homenageamos<br />

José Agrippino de Paula.<br />

2. ESTAMIRA<br />

O fotógrafo carioca Marcos Prado visitou durante seis anos o lixão do<br />

Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio, para<br />

registrar cenas cotidianas das pessoas que trabalhavam lá. O gigantesco complexo<br />

onde são depositadas nove mil toneladas diárias de lixo reservava surpresas.<br />

Em 2000, quatro anos depois da primeira visita, Marcos esbarrou com<br />

Estamira Gomes de Souza. “Sentei ao lado dela e começamos a conversar.<br />

Ela me disse que sua missão era revelar a verdade e que a minha era revelar a<br />

missão dela”, conta ele. A admiração por Estamira é visível pelo carinho com que<br />

foca a câmera nela e com que deixa que fale abertamente, sem em momento<br />

nenhum interferir na sua fala, seja colocando perguntas ou mesmo comentando.<br />

CHNAIDERMAN, M. Filmar a loucura...<br />

Estamira diz coisas impressionantes :“Não existe mais o inocente<br />

no mundo. Existe o esperto e o esperto ao contrário. A criação é abstrata. A<br />

água é abstrata, o fogo é abstrato e a Estamira também é abstrata. A<br />

minha missão, além de ser a Estamira, é revelar somente a verdade e<br />

capturar a mentira. Eu sou a Estamira, sou a beira do mundo, estou lá,<br />

estou cá, estou em todo lugar”.<br />

Durante o documentário, Estamira alerta para o “Trocadilho”. Segundo<br />

ela, o “Trocadilho” é o que faz as pessoas viverem na ilusão, quem engana o<br />

homem e o faz acreditar em coisas que não existem. Ela é contra a exploração<br />

do povo pelos pastores. Contesta a adoração de Jesus pelo sofrimento,<br />

já que tantos como ela sofrem ainda mais. Diz que os homens devem ser<br />

iguais, independente de cor e de sexo e defende a dignidade para todos. Tem<br />

vergonha pelo homem, um bicho evoluído, agir pior que os quadrúpedes.<br />

Reclama dos médicos, que são “copiadores” de receitas semifabricadas,<br />

prescrevendo remédios que sedam, controlam, mas não compreendem.<br />

Os dois filhos mais velhos se dividem quanto à possibilidade de<br />

internação. O filho é a favor, a filha contra, por temer que o sofrimento que a<br />

avó já passara se repita e a culpa que Estamira carrega por ter permitido a<br />

internação da mãe se repita.<br />

Estamira discursa sobre o desperdício que verifica cotidianamente<br />

no lixo: ”Economizar as coisas é maravilhoso, pois quem economiza as<br />

coisas tem. Quem não tem sofre”. Fala sobre como deveria ser o mundo<br />

mais justo: “Todos homens têm que ser iguais, têm que ser comunistas.<br />

Comunismo é a igualidade. Não é obrigado todos trabalhar num serviço só,<br />

não é obrigado todos comer uma coisa só, mas a igualidade é a ordenança<br />

que deu quem revelou o homem o único condicional, e o homem é o único<br />

condicional seja que cor for”.<br />

Apesar da sabedoria e do sorriso de Estamira, Marcos Prado não nos<br />

poupa de assistir a alguns dos surtos esquizofrênicos da protagonista, lembrando<br />

que no meio da mágica, por trás do truque, existe o mundo real. Em um<br />

desses momentos, Estamira fala em um rádio quebrado, usando uma língua<br />

imaginária. Em outro, nos conta como os astros ruins têm inveja do cometa que<br />

vive em sua cabeça, e raiva por ele ter escolhido um corpo frágil como o dela.<br />

Entre as cenas violentas há uma em que Estamira, em conflito<br />

30 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

31


SEÇÃO TEMÁTICA<br />

com seu filho evangélico, toca a região genital agressivamente para seu<br />

neto e grita contra Jesus: “Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só<br />

fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só<br />

pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve<br />

medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem ando com Deus<br />

dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de<br />

morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda,<br />

largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!”<br />

Questiona-se o quanto foi ético mostrar cenas onde o transbordamento<br />

aponta na direção do enlouquecimento. Marcos Prado afirma: “Refleti<br />

muito sobre os limites da ética e da intimidade. Mas pensei que, ao cortar<br />

certas cenas, eu iria estar mitificando a Estamira. Ela mesma foi a primeira<br />

a ver o filme pronto. E me disse que a decisão de cortar ou não qualquer<br />

coisa era mesmo minha. ´É a sua missão´, ela disse. Eu juntei esse quebra-cabeças<br />

como quis”.<br />

Estamira jamais pronuncia a palavra “mulher”. Para ela, o sexo feminino<br />

é “homem formato par”, o sexo masculino, para ela, é “homem formato<br />

ímpar”. No lixão, Estamira namora seu João Preto, que tem olhares<br />

embevecidos e apaixonados. Quando Estamira esbraveja diante da câmera<br />

num dia de Natal, João lhe dá ouvidos, silencioso, embevecido. “Não adianta”,<br />

Estamira esbraveja, para logo emendar cantarolando: “não adianta nem<br />

tentar me esquecer...”. Seu João rebate: “Se você pretende saber quem eu<br />

sou, eu posso lhe dizer...”.<br />

A cena final, Estamira na praia, o mar, afirma: “Tudo que se imagina,<br />

existe e é”. Afinal o lindo encontro com Marcos Prado realizou sua tão sonhada<br />

missão de escancarar a verdade.<br />

3. ESTAMIRA E JOSÉ AGRIPPINO<br />

Em “Estamira” o universo passa a ser mítico. O lixão passa a ser<br />

cenário medieval para uma subjetividade apocalíptica. De fato, Estamira chama<br />

o lixão de Gramaxo de “depósito de restos”.<br />

Em “Passeios no Recanto Silvestre” José Agrippino vive seu tempo<br />

mítico, momento de ebulição criativa, as décadas 60/70 são seu momento<br />

vital no qual permanece como museu vivo de lojas, endereços precisos, como<br />

se tudo tivesse acontecido ontem. Ou ainda estivesse acontecendo.<br />

CHNAIDERMAN, M. Filmar a loucura...<br />

A linda fotografia do documentário “Estamira” não passa por uma<br />

estetização do lixo e sim por um esforço em reproduzir uma subjetividade que<br />

brilha em meio a dejetos, restos de bichos, e, muitas vezes, restos humanos.<br />

Marcos Prado, através do trabalho de fotografia, faz uma escultura do mundo<br />

interno de Estamira. O lixo passa a ser vida, fonte de encontros possíveis.<br />

Em José Agrippino vemos a poeira que se amontoa por sua casa, a poeira<br />

do tempo. Seus andrajos, sua fala pacata e tranqüila. Domesticada? Talvez...<br />

Mas, assim como Estamira, José Agrippino não se dobra. Resiste<br />

na forma como continua construindo sua vida, dono do tempo, no congelamento<br />

de sua recusa.<br />

Estamira vai todo mês para ser atendida em um Caps, lugar onde recebe<br />

seus remédios. Fala disso com ironia. José Agrippino não toma remédios.<br />

Mas, o fato é que não falamos sobre isso com ele. Que não quer falar disso.<br />

Em Estamira não vemos o escancaramento do encontro entre realizador<br />

e a pessoa filmada. Essa opção pelo olhar sem o ponto de vista assumido<br />

de quem filma, sem a experiência de quem é de fora do espaço filmado,<br />

sem o choque de culturas e experiências entre diretor e personagem demonstra<br />

um objetivo estratégico de “Estamira”: expor o resultado de um processo<br />

e não o processo pelo qual se chegou a esse resultado.<br />

Em “Passeios no Recanto Silvestre” fica escancarado o processo de<br />

filmagem. Foram dois anos esperando que José Agrippino filmasse, pois no<br />

início do processo ele pedira uma câmera super-8 igual à que usara em<br />

lindos curtas seus nos anos 60/70. E essa ficou sendo a narrativa do<br />

documentário: a expectativa de que filmasse. E, através dessa estória, apresentar<br />

seus lindos filmes. Ou seja, foi acatado o tempo que José Agrippino<br />

impôs, o congelamento nos idos anos de criação.<br />

Apenas alguém que não é do mundo “psi” poderia fazer esse filme sobre<br />

Estamira, com tamanha liberdade. Temeríamos a estigmatização, o sensacionalismo,<br />

o uso da psiquiatrização. Mas, o filme que homenageia Estamira e é<br />

linda a relação de Marcos e Estamira. Homenageamos sim José Agrippino de<br />

Paula. Homenagem que respeitou seu tempo, respeitou os limites que ele<br />

colocou. Os vários mirares destes mirares todos, esta-mira de todos nós.<br />

Só nos resta, como psicanalistas, apreender com Marcos Prado e Estamira,<br />

que a ética proposta pela imagem no cinema tem amplidões inusitadas.<br />

32 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

33


SEÇÃO TEMÁTICA<br />

ESTAMIRA E “TRANSAMÉRICA”<br />

ODIAMOS O OUTRO NÃO POR ELE SER DIFERENTE, MAS PARA<br />

IGNORAR QUE ELE É PARECIDO CONOSCO 1<br />

Contardo Calligaris<br />

Durante quatro anos, Marcos Prado escutou Estamira, uma senhora<br />

de mais de 60 anos que vivia entre seu barraco (habitado e cuidado<br />

com a dignidade devida a uma casa) e seu lugar de trabalho (um<br />

aterro de lixo, onde ela passava dias e noites a fio).<br />

Dessa experiência, Prado fez um filme, “Estamira”, que é um extraordinário<br />

documento sobre a humanidade da loucura. Ele nos apresenta o<br />

território de Estamira (o mundo físico pelo qual ela anda), suas relações (de<br />

família e de amizade) e seu mundo íntimo, ou seja, o sentido que ela atribui<br />

ao seu ser.<br />

Alguns psicólogos reconhecerão nessa tríade (mundo físico, relações<br />

e intimidade) as três categorias da psicologia existencial de Ludwig<br />

Binswanger. Pensei em Binswanger e na generosidade de sua clínica e de<br />

seu pensamento quando, comentando o filme, uma amiga e colega me disse:<br />

“Estamira é delirante, mas suas palavras, poéticas, fantásticas ou brutais,<br />

são coisas que ela diz não porque é psicótica, mas porque é ela,<br />

Estamira”.<br />

Que falemos lugares-comuns (como a maioria dos neuróticos) ou expressemos<br />

curiosas visões do mundo (como quem parece delirar), de qualquer<br />

forma, não há quadro clínico que possa (e deva) anular a unicidade de<br />

nossa presença no mundo, a dignidade do que se chamava, tempo atrás,<br />

nossa “pessoa”. Marcos Prado permitiu que Estamira lhe (e nos) falasse<br />

porque quis e soube escutá-la como se escuta, em princípio, um semelhante.<br />

Com isso, o filme é absolutamente imperdível para quem, “psi” ou não,<br />

1 Texto publicado na Folha de São Paulo dia 03 de agosto de 2006.<br />

34 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

CALLIGARIS, C. Estamira e transamérica...<br />

esteja disposto a se aproximar da loucura, ou melhor, a descobrir que o<br />

“louco” é estranhamente próximo da gente.<br />

A cosmologia de Estamira (o além, o além do além, o mundo abarrotado<br />

que transborda) e sua religião (uma briga constante com Deus e com o<br />

Trocadilho, face diabólica e maldita do mesmo) não são menos verossímeis<br />

do que muitas de nossas crenças. A diferença é que nossas crenças são<br />

delírios que tiveram sucesso e ganharam credibilidade por serem compartilhados<br />

pela maioria.<br />

Estamira (esse talvez seja o drama fundamental da loucura) deve inventar<br />

sozinha os meios de dar sentido à sua presença no mundo. Ela consegue<br />

essa façanha atribuindo-se o destino de ter de transmitir o que ela vê.<br />

O Trocadilho, ao persegui-la, lhe deu uma missão, que é (como esperar<br />

outra coisa de um deus com esse nome?) um jogo de palavras: Estamira<br />

é esta mira, o olhar que tudo vê e tudo deve revelar. Missão cumprida, graças<br />

a Marcos Prado.<br />

Corolário: quem não acredita na reforma psiquiátrica veja o filme e se<br />

pergunte: será que nossa sociedade pode tolerar a loucura só na margem<br />

extrema (o além do além) do lixão ou na clausura dos hospícios?<br />

Quero mencionar um outro filme, antes que saia de cartaz. “Transamérica”,<br />

de Duncan Tucker, é uma ficção e, à primeira vista, pouco tem a ver<br />

com “Estamira”. Salvo que ambos os filmes nos forçam a descobrir destinos<br />

e jeitos de estar no mundo que são, no melhor dos casos, objetos de nossos<br />

olhares compassivos ou, mais freqüentemente, de exclusão, zombaria e ódio.<br />

O ódio, nesses casos, é o índice de uma cegueira proposital: odiamos o<br />

outro não por ele ser diferente de nós, mas para poder ignorar que ele é<br />

parecido conosco.<br />

O herói (ou a heroína) de “Transamérica” é um transexual que, na hora<br />

em que obtém, enfim, o direito de ser operado e mudar de gênero, descobre<br />

que é pai de um filho adolescente. Difícil assistir ao filme sem entender de<br />

vez o seguinte: o drama de quem vive num corpo que lhe parece estrangeiro<br />

(por ser de um gênero no qual ele não se reconhece) tem pouco a ver com os<br />

avatares do desejo sexual. É um drama de identidade.<br />

C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

35


SEÇÃO TEMÁTICA<br />

Algumas leituras para a fila do cinema. A Martins Fontes publica os<br />

seminários de Michel Foucault: no ano passado, “Os Anormais” e, neste<br />

ano, “O Poder Psiquiátrico”. O Centro Latino-Americano em Sexualidade e<br />

Direitos Humanos acaba de publicar “Política, Direitos, Violência e Homossexualidade,<br />

Pesquisa na Nona Parada do Orgulho GLBT São Paulo 2005”,<br />

de Carrara, Ramos, Simões e Facchini. A pesquisa confirma que, em matéria<br />

de discriminação, o transexual, que discorda de seu próprio gênero, é a<br />

vítima preferida.<br />

É difícil abandonar o conforto da crença de que nós somos os “normais”.<br />

Mais difícil ainda é admitir que a anatomia de nosso corpo possa não<br />

bastar para nos dar a certeza de que somos homem ou mulher.<br />

O INCONSCIENTE<br />

E A REPETIÇÃO<br />

II<br />

O INCONSCIENTE FREUDIANO E O NOSSO<br />

Pensamento selvagem.<br />

Só há causa do que manca.<br />

Hiância, tropeço, achado, perda.<br />

A descontinuidade.<br />

Signorelli.<br />

Para começar na hora , vou iniciar minha fala hoje com a leitura de um<br />

poema que, na verdade, não tem nenhuma relação com o que lhes vou dizer,<br />

mas tem alguma com o que disse o ano passado, no meu seminário, sobre<br />

o objeto misterioso, o objeto mais escondido de todos, o da pulsão escópica.<br />

Trata-se do curto poema que, na página 73 de Fou d’Elsa, Aragon<br />

intitula Contre-chant Contracanto.<br />

Vainement ton image arrive à ma rencontre<br />

E ne m’entre où je suis qui seulement la montre<br />

Toi te tournant vers moi tu ne saurais trouver<br />

Au mur de mon regard que ton ombre rêvée<br />

Je suis ce malheureux comparable aux miroirs<br />

Qui peuvent réfléchir mais ne peuvent pas voir<br />

Comme eux mon oeil est vide et comme eux habité<br />

De l’absence de toi qui fait sa cécité *<br />

SEÇÃO DEBATES<br />

* Em vão tua imagem vem ao meu encontro/ E não me entra onde estou quem somente a<br />

mostra/o/ Voltando-te para mim só poderias achar/ Na parede do meu olhar tua sombra<br />

sonhada // Sou esse infeliz comparável aos espelhos/ Que podem refletir mas não podem<br />

ver/ Como eles meu olho está vazio e como eles habitado / Da ausência de ti que faz sua<br />

cegueira.<br />

36 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n.<strong>150</strong>, set. 2006.<br />

37


SEÇÃO DEBATES<br />

Dedico esse poema à nostalgia que alguns possam ter daquele seminário<br />

interrompido e do que eu ali desenvolvia sobre a angústia e a função do<br />

objeto pequeno a.<br />

Esses, penso, captarão – peço desculpas por ser tão alusivo, – eles<br />

captarão o sabor do fato de que Aragon – nessa obra admirável onde me<br />

orgulho de encontrar o eco dos gostos de nossa geração, aquela que faz<br />

com que eu seja forçado a me remeter a camaradas da mesma idade que eu<br />

para ainda poder me entender sobre esse poema – de que Aragon faz seu<br />

poema ser seguido do seguinte verso enigmático: Ainsi dit une fois An-Nadjî,<br />

comme on l’avait invité pour une circoncision ** .<br />

Ponto onde aqueles que ouviram meu seminário o ano passado reconhecerão<br />

a correspondência das diversas formas do objeto a com a função<br />

central e simbólica do menos-fi (– φ) – aqui evocado pela referência singular,<br />

e certamente não fortuita, que Aragon confere à conotação histórica, por<br />

assim dizer, da emissão por seu personagem, o poeta louco, desse<br />

contracanto.<br />

1<br />

Sei que há aqui algumas pessoas que estão se iniciando no meu<br />

ensino. Iniciam-se nele por escritos já datados. Gostaria que saibam que<br />

uma das coordenadas indispensáveis para captar o sentido desse primeiro<br />

ensinamento está em que, dali onde estão, eles nem imaginam a que grau<br />

de desprezo, ou simplesmente de ignorância de seu instrumento, podem<br />

chegar os praticantes. Que saibam que, durante alguns anos, tive de empenhar<br />

todo meu esforço para revalorizar aos olhos deles esse instrumento, a<br />

palavra – para lhe devolver sua dignidade e fazer com que não consistisse<br />

sempre nesses vocábulos, desvalorizados de antemão, que os forçavam a<br />

fixar o olhar em outra parte para encontrar o que os caucionava.<br />

** Assim disse uma vez An-Nadjî, quando o convidaram para uma circuncisão.<br />

LACAN, J. O inconsciente e a repetição.<br />

Foi por isso que fui tido, ao menos por um tempo, como alguém obsedado<br />

por não sei que filosofia da linguagem, heideggeriana até, quando na<br />

verdade tratava-se apenas de uma referência propedêutica . E não será por<br />

falar nestes lugares que falarei mais como filósofo.<br />

O que se trata de enfrentar é outra coisa, que efetivamente ficarei<br />

mais à vontade para denominar aqui, algo que não chamarei de outra forma<br />

senão de recusa do conceito. É por isso que, como anunciei ao término de<br />

minha primeira aula, tentarei introduzi-los hoje aos principais conceitos<br />

freudianos – que isolei em número de quatro e que cumprem propriamente<br />

essa função.<br />

Estas poucas palavras no quadro-negro (sob o título de conceitos<br />

freudianos) são os dois primeiros, o inconsciente e a repetição. A próxima<br />

vez, espero abordar a transferência, que nos introduzirá diretamente aos<br />

algoritmos que acreditei ter de expor na prática, com o intuito específico de<br />

pôr em obra a técnica analítica como tal. Quanto à pulsão, ainda é de um<br />

acesso tão difícil – a bem dizer, tão inabordado – que não creio conseguir<br />

fazer mais este ano do que chegar a ela somente depois de termos falado<br />

da transferência.<br />

Portanto, apenas examinaremos a essência da análise – especialmente<br />

o que, nela, a função da análise didática tem de profundamente problemático<br />

e ao mesmo tempo diretor. Só depois de ter passado por essa<br />

exposição é que talvez possamos, no fim do ano – sem que nós mesmos<br />

minimizemos o lado movediço, se não escabroso, da aproximação desse<br />

conceito – abordar a pulsão. E isso por contraste com aqueles que nisso se<br />

aventuram em nome de referências incompletas e frágeis.<br />

As duas flechinhas que vocês vêem escritas no quadro depois de O<br />

inconsciente e A repetição apontam para o ponto de interrogação que se<br />

segue. Este indica que nossa concepção do conceito implica que ele sempre<br />

se estabelece como uma aproximação, que não deixa de estar relacionada<br />

com o que o cálculo infinitesimal nos impõe como forma. Embora, com<br />

efeito, o conceito se modele por uma aproximação da realidade que ele foi<br />

feito para captar, é apenas por um salto, por uma passagem ao limite, que<br />

38 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

39


SEÇÃO DEBATES<br />

ele termina de se realizar. A partir daí, exige-se que digamos em que pode se<br />

completar – diria, na forma de quantidade finita – a elaboração conceitual<br />

que se chama o inconsciente. O mesmo vale para a repetição.<br />

Os dois outros termos escritos no quadro no final da linha, O sujeito e<br />

O real, é com relação a eles que seremos levados a dar forma à pergunta<br />

feita a última vez: a psicanálise, em seus aspectos paradoxais, singulares,<br />

aporéticos, pode ser considerada entre nós como constituindo uma ciência,<br />

uma esperança de ciência?<br />

Começarei por tomar o conceito de inconsciente.<br />

2<br />

A maioria dessa assembléia tem alguma noção de que enunciei que<br />

o inconsciente é estruturado como uma linguagem, o que remete a um campo<br />

que hoje nos é bem mais acessível que nos tempos de Freud. Vou ilustrálo<br />

com algo que está materializado num plano certamente científico, com<br />

esse campo que Claude Lévi-Strauss explora, estrutura e elabora e que intitulou<br />

de Pensamento selvagem.<br />

Antes de qualquer experiência, antes de qualquer dedução individual,<br />

antes mesmo de se inscreverem nele as experiências coletivas, relacionáveis<br />

apenas com as necessidades sociais, algo organiza esse campo, inscreve<br />

nele as linhas de força iniciais. É a função que Claude Lévi-Strauss nos<br />

mostra ser a verdade da função totêmica – uma função classificatória primária<br />

–, verdade que reduz sua aparência.<br />

Já antes de se estabelecerem relações propriamente humanas, algumas<br />

relações estão determinadas. São extraídas de tudo o que a natureza<br />

pode oferecer como suporte, suportes que se dispõem em temas opostos.<br />

A natureza fornece, para chamá-los pelo seu nome, significantes, e<br />

esses significantes organizam de modo inaugural as relações humanas, fornecem<br />

suas estruturas e as modelam.<br />

O importante, para nós, é que percebemos aqui o nível em que –<br />

antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito que pensa, que se<br />

situa – isso conta, é contado, e nesse contado já está quem conta. É<br />

LACAN, J. O inconsciente e a repetição.<br />

somente em seguida que o sujeito terá de se reconhecer nisso, reconhecerse<br />

como quem conta. Lembremos o ingênuo tropeço do homenzinho com<br />

que o medidor de nível mental exulta quando aquele enuncia: – Tenho três<br />

irmãos, Paulo, Ernesto e eu. No entanto, é muito natural: primeiro são<br />

contados os três irmãos, Paulo, Ernesto e eu, e depois há o eu no nível em<br />

que dizem que tenho de pensar o primeiro eu, isto é, o eu que conta .<br />

Em nossos dias, neste tempo histórico de formação de uma ciência,<br />

que podemos qualificar de humana, embora deva ser distinguida de qualquer<br />

psicossociologia, qual seja, a lingüística, cujo modelo é o jogo combinatório<br />

operando em sua espontaneidade, sozinho, de maneira pré-subjetiva, – é<br />

essa estrutura que confere seu estatuto ao inconsciente. É ela , em todo<br />

caso, que nos garante que, sob o termo inconsciente, há algo qualificável,<br />

acessível e objetivável. Mas quando incito os psicanalistas a não ignorarem<br />

esse terreno, que lhes proporciona um apoio sólido para sua elaboração,<br />

será que isso quer dizer que pretendo manter os conceitos introduzidos historicamente<br />

por Freud sob o termo inconsciente? Pois bem, não! Não pretendo.<br />

O inconsciente, conceito freudiano, é outra coisa, que hoje gostaria<br />

de tentar fazê-los entender.<br />

Certamente não basta dizer que o inconsciente é um conceito dinâmico,<br />

pois isso seria substituir pela ordem de mistério mais corrente um mistério<br />

particular – a força serve em geral para designar um lugar de opacidade. É<br />

à função da causa que irei me referir hoje.<br />

Bem sei que entro aí num terreno que, do ponto de vista da crítica<br />

filosófica, não deixa de evocar um mundo de referências, bastantes para me<br />

fazer hesitar entre elas – teremos apenas de suportar escolher. Provavelmente,<br />

parte de meu auditório pelo menos não saciará sua fome se eu simplesmente<br />

indicar que, no Ensaio sobre as grandezas negativas de Kant,<br />

podemos ver o quanto é analisada com precisão a hiância que, desde sempre,<br />

a função da causa oferece a toda compreensão conceitual. Nesse ensaio,<br />

diz-se aproximadamente que é um conceito, no final das contas,<br />

inanalisável, impossível de compreender pela razão (se é que a regra da<br />

razão, a Vernunftsregel, é sempre alguma Vergleichung, ou equivalente), e<br />

40 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

41


SEÇÃO DEBATES<br />

que na função da causa resta essencialmente uma certa hiância, termo<br />

empregado nos Prolegômenos do mesmo autor.<br />

Não sublinharei que o problema da causa foi desde sempre uma<br />

complicação para os filósofos e que não é tão simples quanto se crê ver<br />

equilibrarem-se em Aristóteles as quatro causas –, pois não sou filosofante<br />

aqui e não pretendo me desincumbir de uma tarefa tão pesada com essas<br />

poucas referências, que simplesmente bastam para tornar claro o que quer<br />

dizer isso sobre o que insisto. Para nós, a causa, seja qual for a modalidade<br />

com que Kant a inscreva nas categorias da razão pura – inscreve-a, mais<br />

precisamente, no quadro das relações entre a inerência e a comunidade –, a<br />

causa nem por isso é mais racionalizada.<br />

Distingue-se do que há de determinante numa cadeia, em outras palavras,<br />

da lei. Para exemplificar, pensem na imagem da lei da ação e reação.<br />

É, por assim dizer, uma coisa só. Um não existe sem o outro. Num corpo<br />

que se esborracha no chão, sua massa não é a causa do fato de que ele<br />

receba de volta sua força viva, sua massa está integrada a essa força que<br />

retorna a ele para dissolver sua coerência por um efeito de retorno. Não há<br />

aqui nenhuma hiância, exceto no final.<br />

Em contraposição, cada vez que falamos de causa, há sempre algo<br />

de anticonceitual, de indefinido. As fases da lua são a causa da marés – isso<br />

é vivo, sabemos nesse momento que a palavra causa foi bem empregada.<br />

Ou então, os miasmas são a causa da febre – também isso não quer dizer<br />

nada, há um buraco, e algo que vem oscilar no intervalo. Em suma, só há<br />

causa do que claudica.<br />

Pois bem! O inconsciente freudiano, é nesse ponto, para o qual tento<br />

dirigi-los por aproximação, que ele se situa, nesse ponto onde, entre a causa<br />

e o que ela afeta, há sempre claudicação. O importante não é que o inconsciente<br />

determina a neurose – quanto a isso, Freud adota facilmente o gesto<br />

pilático de lavar as mãos. Um dia desses, quem sabe, encontrarão alguma<br />

coisa, determinantes humorais, pouco importa – é-lhe indiferente. Pois o<br />

inconsciente nos mostra a hiância por onde a neurose se conecta a um real<br />

– real que bem pode, ele sim, não ser determinado.<br />

LACAN, J. O inconsciente e a repetição.<br />

Nessa hiância, algo acontece. Uma vez tapada essa hiância, a neurose<br />

estará curada? Afinal, a questão permanece sempre aberta. A neurose<br />

só se torna outra coisa, às vezes simples debilidade, cicatriz, como diz<br />

Freud – não cicatriz da neurose, mas do inconsciente. Não estou ordenando<br />

muito engenhosamente essa topologia, porque não tenho tempo – vou direto<br />

para ela, e acho que vocês poderão se sentir guiados pelos termos que<br />

introduzo quando forem aos textos de Freud. Vejam de onde ele parte – da<br />

Etiologia das neuroses –, e o que acha no buraco, na fenda, na hiância<br />

característica da causa? Algo da ordem do não-realizado.<br />

Fala-se de recusa. É avançar rápido demais – aliás, faz algum tempo<br />

que quando falam de recusa já não sabem o que estão dizendo. De primeiro,<br />

o inconsciente se manifesta para nós como algo que permanece à espera na<br />

área, diria eu, do nonato. Que o recalcamento ali despeje algo, não é de<br />

estranhar. É a relação da fazedora de anjos com o limbo.<br />

Essa dimensão deve certamente ser evocada num registro que não é<br />

nada de irreal, nem de desreal, mas de não-realizado. Nunca é sem perigo<br />

que se faz com que algo nessa zona de larvas se mexa, e talvez seja próprio<br />

da posição do analista – caso a ocupe verdadeiramente – dever ser assediado,<br />

digo realmente assediado por aqueles em quem ele evocou esse mundo<br />

de larvas sem ter conseguido sempre trazê-las à luz. Todo discurso não é<br />

inofensivo aqui – meu próprio discurso destes últimos dez anos encontra aí<br />

alguns desses efeitos. Não é à toa que, mesmo em um discurso público, o<br />

visado sejam os sujeitos e que sejam tocados no que Freud chama o umbigo<br />

– umbigo dos sonhos, escreve ele para designar, em última instância, o<br />

centro de desconhecido deles –, que nada mais é, como o próprio umbigo<br />

anatômico que o representa, senão essa hiância de que falamos.<br />

Perigo do discurso público na medida em que ele se endereça justamente<br />

ao mais próximo – Nietzsche sabia que um certo tipo de discurso só<br />

pode endereçar-se ao mais longínquo.<br />

A bem dizer, essa dimensão do inconsciente que evoco estava esquecida,<br />

como Freud previra perfeitamente bem. O inconsciente fechara-se<br />

sobre sua mensagem graças aos cuidados dos ativos ortopedistas que os<br />

42 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

43


SEÇÃO DEBATES<br />

analistas da segunda e da terceira geração se tornaram, analistas estes que<br />

se dedicaram, psicologizando a teoria analítica, a suturar essa hiância.<br />

Creiam-me, eu mesmo nunca a reabro sem tomar precauções.<br />

3<br />

Agora, nesta data, nesta época, estou decerto em condições de introduzir<br />

no terreno da causa a lei do significante, no lugar onde essa hiância se<br />

produz. Ainda assim, se quisermos entender de que se trata na psicanálise,<br />

será preciso voltar a evocar o conceito de inconsciente nos tempos em que<br />

Freud procedeu a forjá-lo – pois não podemos completá-lo sem levá-lo ao<br />

seu limite.<br />

O inconsciente freudiano não tem nada a ver com as formas, ditas do<br />

inconsciente, que o precederam, o acompanharam ou, até, ainda o cercam.<br />

Para entender o que quero dizer, abram o dicionário Lalande. Leiam a muito<br />

bela enumeração feita por Dwelshauvers em um livro publicado faz uns quarenta<br />

anos pela Flammarion. Enumera ali oito ou dez formas de inconsciente<br />

que não ensinam nada a ninguém, que simplesmente designam o não-consciente,<br />

o mais ou menos consciente e, no campo das elaborações psicológicas,<br />

encontramos mil e uma variedades suplementares.<br />

O inconsciente de Freud não é de forma alguma o inconsciente romântico<br />

da criação imaginante. Não é a sede das divindades da noite . Isso<br />

sem dúvida não deixa de ter alguma relação com o lugar para o onde se volta<br />

o olhar de Freud – mas o fato de que Jung, sucedâneo dos termos do inconsciente<br />

romântico, tenha sido repudiado por Freud, é indicação suficiente de<br />

que a psicanálise introduz outra coisa. Tampouco deveríamos nos precipitar<br />

e dizer que o inconsciente tão saco de gatos, tão heteróclito, que Édouard<br />

Von Hartmann elaborou durante toda a sua vida de filósofo solitário não é o<br />

inconsciente de Freud, pois, no capítulo VII da Interpretação dos sonhos, o<br />

próprio Freud faz referência a ele em nota – ou seja, é preciso examiná-lo de<br />

mais perto para designar o que, em Freud, dele se distingue.<br />

A todos esses inconscientes sempre mais ou menos vinculados a<br />

uma vontade obscura considerada primordial, a algo anterior à consciência,<br />

LACAN, J. O inconsciente e a repetição.<br />

o que Freud opõe é a revelação de que no nível do inconsciente há algo em<br />

todos os aspectos homólogo ao que acontece no nível do sujeito – isso fala<br />

e isso funciona de modo tão elaborado quanto no nível do consciente, que<br />

perde assim o que parecia ser privilégio seu. Sei das resistências que ainda<br />

provoca essa simples observação, que no entanto é clara em qualquer texto<br />

de Freud. Leiam a esse respeito o parágrafo desse capítulo VII intitulado O<br />

esquecimento dos sonhos, a respeito de que Freud faz referência exclusivamente<br />

aos jogos do significante.<br />

Não me contento com essa referência maciça. Destrincei ponto por<br />

ponto o funcionamento do que Freud primeiro produz como fenômeno do<br />

inconsciente. No sonho, no ato falho, no chiste – o que primeiro chama a<br />

atenção? O modo de tropeço pelo qual aparecem.<br />

Tropeço, desfalecimento, fissura. Numa frase pronunciada ou escrita,<br />

algo tropeça. Freud está magnetizado por esses fenômenos e é onde irá<br />

buscar o inconsciente. Ali, algo outro pede para se realizar, algo que certamente<br />

aparece como intencional, mas dotado de uma estranha temporalidade.<br />

O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se<br />

apresenta como o achado. É inicialmente assim que a exploração freudiana<br />

encontra o que acontece no inconsciente.<br />

Achado que é ao mesmo tempo solução – não necessariamente<br />

acabada, mas, por mais incompleta que seja, tem esse não-sei-quê que<br />

nos afeta com esse toque particular que Theodor Reik destacou de forma<br />

tão admirável – só destacou, pois Freud o notara claramente antes dele<br />

– a surpresa – aquilo pelo que o sujeito se sente ultrapassado, pelo que<br />

ele encontra ao mesmo tempo mais e menos do que esperava – mas que<br />

de qualquer modo, com relação ao que ele esperava, é algo de valor<br />

único.<br />

Ora, esse achado, assim que se apresenta, é um reachado , e mais,<br />

sempre prestes a escapar de novo, instaurando a dimensão da perda.<br />

Entregando-me um pouco à metáfora, Eurídice duas vezes perdida é a<br />

imagem mais clara que possamos dar, no mito, da relação do Orfeu analista<br />

com o inconsciente.<br />

44 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

45


SEÇÃO DEBATES<br />

Com o quê, se me permitirem acrescentar uma pitada de ironia, o<br />

inconsciente se acha na margem estritamente oposta do que ocorre com o<br />

amor, que todos sabem ser sempre único, e no qual a fórmula quem perde<br />

uma encontra dez encontra sua melhor aplicação.<br />

A descontinuidade, tal é portanto a forma essencial em que o inconsciente<br />

como fenômeno nos aparece de primeiro – a descontinuidade na qual<br />

algo se manifesta como uma vacilação. Ora, se essa descontinuidade tem<br />

esse caráter absoluto, inaugural, no caminho da descoberta de Freud, devemos<br />

colocá-la – como os analistas tenderam a fazer em seguida – sobre o<br />

fundo de uma totalidade?<br />

Será que o um é anterior à descontinuidade? Penso que não, e tudo o<br />

que ensinei nesses últimos anos tendia a fazer dispensar essa exigência de<br />

um um fechado – miragem à qual se apega a referência ao psiquismoenvoltório,<br />

espécie de duplo do organismo onde residiria essa falsa unidade.<br />

Vocês concordarão comigo que o um introduzido pela experiência do inconsciente<br />

é o um da fenda, do traço, da ruptura.<br />

Aqui brota uma forma ignorada do um, o Un do Unbewusste. Digamos<br />

que o limite do Unbewusste é o Unbegriff – não não-conceito, mas conceito<br />

da falta.<br />

Onde está o fundo? É a ausência? Não. A ruptura, a fenda, o traço da<br />

abertura faz surgir a ausência – assim como o grito não se desenha sobre<br />

um fundo de silêncio, mas, ao contrário, o faz surgir como silêncio.<br />

Se conservarem em mãos essa estrutura inicial, vocês se impedirão<br />

de se entregar a esse ou aquele aspecto parcial do que está em questão no<br />

que concerne ao inconsciente – como, por exemplo, que é o sujeito, enquanto<br />

alienado em sua história, no plano onde a síncope do discurso se une com<br />

seu desejo. Verão que, mais radicalmente, é na dimensão de uma sincronia<br />

que devem situar o inconsciente – no plano de um ser, mas na medida em<br />

que pode se aplicar a tudo, ou seja, no plano do sujeito da enunciação, na<br />

medida em que, conforme as frases, conforme os modos, ele se perde tanto<br />

quanto se acha, e em que, numa interjeição, num imperativo, numa invocação,<br />

ou até num desfalecimento, é sempre ele que lhes coloca seu enigma e<br />

LACAN, J. O inconsciente e a repetição.<br />

que fala – em suma, no plano em que tudo o que se expande no inconsciente<br />

se difunde, tal como o micélio, como diz Freud a respeito do sonho, em torno<br />

de um ponto central. É sempre do sujeito enquanto indeterminado que se<br />

trata.<br />

Oblivium é levis com o e longo – polido, unido, liso. Oblivium é o que<br />

apaga – o quê? O significante como tal. Reencontramos aí a estrutura basal,<br />

que torna possível, de maneira operatória, que algo adquira a função de barrar,<br />

de riscar, outra coisa. Nível mais primordial, estruturalmente, que o recalcamento<br />

de que falaremos mais adiante. Pois bem, esse elemento operatório<br />

do apagamento é o que Freud designa, desde a origem, na função da<br />

censura.<br />

É a censura na base da tesoura, a censura russa, ou então a censura<br />

alemã, conforme Henri Heine no princípio do Livro da Alemanha . Senhor e<br />

Senhora Fulanos de Tal têm o prazer de anunciar o nascimento de um filho<br />

belo como a liberdade – o Doutor Hoffmann, censor, risca a palavra liberdade.<br />

Podemos decerto indagar o que acontece com o efeito dessa palavra<br />

devido a essa censura propriamente material, o que é outro problema. Mas é<br />

justamente sobre isso que incide, da maneira mais eficiente, o dinamismo<br />

do inconsciente.<br />

Retomando um exemplo nunca suficientemente explorado, aquele que<br />

é o primeiro ao qual Freud aplicou sua demonstração, o esquecimento, o<br />

tropeço de memória, concernente à palavra Signorelli após sua visita às pinturas<br />

de Orvieto, será possível não ver surgir do próprio texto e se impor, não<br />

a metáfora, mas a realidade do desaparecimento, da supressão, da<br />

Unterdrückung, passagem para baixo ? O termo Signor, Herr, passa para<br />

baixo – o mestre absoluto, disse uma vez, a morte em suma, está ali desaparecida.<br />

Mas não vemos também, lá atrás, desenhar-se tudo o que obriga *<br />

* As várias traduções consultadas cometeram um erro de leitura neste trecho, erro cheio de<br />

implicações teóricas. No original: “se profiler tout ce qui nécessite Freud à trouver dans les<br />

mythes de la mort du père la régulation de son désir?” A construção “nécessiter qqn à faire”,<br />

também usada em português (necessitar alguém a) apesar de pouco usual, significa exigir,<br />

obrigar, coagir alguém a.<br />

46 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

47


SEÇÃO DEBATES<br />

Freud a encontrar nos mitos da morte do pai a regulação de seu desejo?<br />

Afinal, ele se encontra com Nietzsche para enunciar , no seu próprio mito,<br />

que Deus está morto. E talvez sobre o fundo dos mesmos motivos. Pois o<br />

mito do Deus está morto – de que eu, de minha parte, estou bem menos<br />

certo, como mito entendam bem, do que a maioria dos intelectuais contemporâneos,<br />

o que não é de modo algum uma declaração de teísmo ou de fé na<br />

ressurreição – esse mito talvez não seja mais que o abrigo encontrado contra<br />

a ameaça da castração.<br />

Se souberem lê-los, vocês a verão nos afrescos apocalípticos da catedral<br />

de Orvieto. Se não, leiam a conversa de Freud no trem – fala-se<br />

apenas do fim da potência sexual, que seu interlocutor médico, precisamente<br />

o interlocutor diante de quem ele não encontra o nome Signorelli, relata<br />

como tendo um caráter dramático para aqueles que costumam ser seus<br />

pacientes.<br />

Assim, o inconsciente se manifesta sempre como o que vacila num<br />

corte do sujeito, de onde ressurge um achado, que Freud assimila ao desejo,<br />

desejo que situaremos provisoriamente na metonímia desnudada do discurso<br />

em causa, onde o sujeito se capta em algum ponto inesperado.<br />

No que diz respeito a Freud e sua relação com o pai, não esqueçamos<br />

que todo o seu esforço só o levou a reconhecer que, para ele, a questão<br />

permanecia intacta. Ele o disse a uma de suas interlocutoras: – Que quer<br />

uma mulher? Questão que nunca resolveu, ou seja, aquilo que foi efetivamente<br />

sua relação com a mulher, seu caráter uxório, como se exprime<br />

pudicamente Jones ao se referir a ele. Poderíamos dizer que Freud teria<br />

dado certamente um admirável idealista apaixonado se não tivesse se dedicado<br />

ao outro, sob a forma da histérica.<br />

Decidi parar sempre meu seminário às vinte para as duas em ponto.<br />

Como vêem, não fechei hoje a questão do que seja a função do inconsciente.<br />

Faltam as perguntas e as respostas.<br />

22 de janeiro de 1964.<br />

PEREIRA, R. DE F. Buenos Aires o inconsciente...<br />

BUENOS AIRES O INCONSCIENTE E A PULSÃO 1<br />

CONVERGÊNCIAS<br />

Robson de Freitas Pereira<br />

Tempo 2 – noite no Torquato Tasso (Tango en el Tasso) – San Telmo,<br />

casi em La Boca, poucas quadras do estádio La Bombonera. O quarteto<br />

Pua apresenta suas armas; quatro violões, todos jovens, tocam<br />

tangos clássicos e modernos, alguns de composição própria. Em seguida<br />

“Los Astilleros”, um grupo na formação quase clássica (piano, bandoneons,<br />

baixo acústico, violão, violino e cantor) apoiando-se no traço deixado por<br />

Piazolla para alçar vôos próprios na música e buscar novas formas de expressar<br />

uma tradição da qual eles se apropriaram. Assim, podem deixar de<br />

lado o vestuário formal das orquestras típicas e dos octetos 2 para apresentar<br />

uma indumentária despojada, uma “atitude” no palco que parece mais próxima<br />

dos grupos roqueiros. Sem falar na variação do repertório que permitiu<br />

um “candombe” com o contrabaixo fazendo as vezes de caixa de percussão<br />

e os recursos visuais (clips, curtas) utilizados para “acompanhar “ as músicas.<br />

Mas era tango. Inconfundível.<br />

Tempo 1 – Hotel Conquistador Jornada de trabalho sobre “Pulsão e<br />

Inconsciente”. As palavras de abertura anunciavam os propósitos: apostar<br />

na pluralidade e na construção de um laço de trabalho efetivo; arejar a leitura<br />

dos mestres com o intercâmbio de idéias, leituras, invenções de novos artifícios.<br />

Para tentar enfrentar as conhecidas dificuldades de idiomas (português<br />

e castelhano), solicitou-se que os trabalhos fossem traduzidos antecipa-<br />

1 Inconsciente e Pulsão foi o título da jornada de trabalho ocorrida em Buenos Aires, nos dias<br />

4, 5 e 6 de agosto passado. O evento foi convocado por quatro instituições argentinas e<br />

quatro brasileiras entre elas a <strong>APPOA</strong> cuja delegação somou 18 pessoas. O dispositivo de<br />

trabalho consistiu em uma jornada aberta nos dois primeiros dias e uma rodada de comentários<br />

no terceiro dia.<br />

2 Para não esquecer a tradição: Leopoldo Federico (um dos herdeiros de Pichuco) estava<br />

sendo homenageado no Teatro Colón por seus 50 anos de serviços prestados ao tango.<br />

48 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

49


SEÇÃO DEBATES<br />

damente. A maioria conseguiu. Uma tradutora ficava a postos para auxiliar<br />

nas discussões, houve momentos em que mais atrapalhou do que ajudou,<br />

mas fez seu esforço.<br />

As Mesas se sucediam, quatro palestras em cada, fazendo uma mescla<br />

de trabalhos brasileiros e argentinos. Os textos mostravam as preocupações<br />

e os momentos de cada um. Tentativas de apresentar questões surgidas<br />

do exercício da clínica, precisões conceituais e formas de abordar o tema<br />

proposto e como cada um, a partir de suas referencias institucionais e analíticas,<br />

estava fazendo para dar conta a seus pares desta prática que Freud<br />

um dia denominou como impossível. Enumeramos algumas questões abordadas:<br />

pulsão e inconsciente são balizadas pela linguagem. Não há pulsão<br />

sem linguagem, onde o pulsional é o eco no corpo de que há um dizer que o<br />

marca. Assim, o pulsional se recorta na análise cujo motor é a transferência<br />

impulsionada pelo desejo do analista. O reconhecimento de que o inconsciente<br />

é um campo que se perde. A análise como causa perdida que escapa<br />

ao saber e que implica em lidar com a perda de gozo. A partir daí o lugar do<br />

significante e do Real como dimensão crucial para a prática de uma ética<br />

passam a ser fundamentais. Os efeitos de sentido que se perdem e se<br />

recuperam no trabalho com os chistes, com os jogos de palavras que misturam<br />

as línguas e as gramáticas. Por isto, Joyce o sinthoma foi bastante<br />

lembrado. Quais as conseqüências para uma clínica psicanalítica que leve<br />

aos limites o trabalho com as torções linguageiras? Lalangue civiliza o gozo.<br />

Civilizar seria domesticar ou aceitar os jogos e a insegurança do sem-sentido?<br />

Pulsão, fantasma e sujeito do inconsciente. Qual a relação da pulsão<br />

com o fantasma (fantasia fundamental) e do sujeito com o autismo? Uma<br />

questão que restou em aberto, como várias outras, apontando a continuidade<br />

da discussão. Tanto assim que o próximo encontro, previsto para 2008,<br />

no Rio de Janeiro, está propondo o mesmo tema de trabalho. Apostando (e<br />

não prometendo) que assim poderemos acompanhar o andamento de nossas<br />

elaborações.<br />

Tempo 3 – Os comentaristas. Domingo de manhã, oito “comentadores”<br />

deixaram-se falar sobre o que ouviram, escreveram e discutiram nos dois<br />

PEREIRA, R. DE F. Buenos Aires o inconsciente...<br />

dias anteriores. Uma experiência considerada rica; pois permitiu uma retomada<br />

dos avanços e dos problemas encontrados. Curiosamente, neste âmbito<br />

a tradução foi necessária em poucos momentos. O que concluímos que<br />

nas dificuldades de tradução a língua é apenas um dos fatores. Afinal, em se<br />

tratando de Brasil e Argentina faz mais de vinte anos que estamos trabalhando<br />

neste campo institucional. A psicanálise argentina está articulada com a<br />

história da psicanálise no Brasil, não somente no lacanismo. Deste modo,<br />

os diversos estilos, as diferenças de formação analítica e cultural influem<br />

decisivamente para fazer ruído no intercâmbio de experiências.<br />

Esforço de fazer-se entender, difícil fazer uma discussão. Trabalhos<br />

traduzidos ajudam, mas tem a desvantagem de todo texto escrito previamente,<br />

marca a leitura. Falar livremente sobre o tema, que poderia estar<br />

mais próximo de um procedimento ao qual os psicanalistas estão mais afeitos,<br />

traz um problema de dificultar a tradução e, por vezes, tergiversar questões.<br />

Dificuldades são impossíveis de serem transpostas? Se levarmos em<br />

conta os aforismas de Lacan a respeito da perda teremos que admitir que há<br />

dificuldades que são intransponíveis (o próprio Freud se perguntou sobre isto<br />

no mal-estar na cultura). Porém, reconhecer o impossível que nos organiza é<br />

reconhecer que não temos controle antecipado. Trabalhar sobre as diferenças<br />

e desacordos requer uma persistência; pois dizer que as diferenças, a<br />

alteridade é fundamental não pode ser simplesmente uma questão de princípios<br />

vazios. Uma das observações repetidas no testemunho de domingo foi<br />

que havia uma mudança no discurso de pessoas que antes iam para estes<br />

encontros como uma forma de reforçar sua posição institucional (“que bom<br />

que não somos como eles”), para um dar-se conta que a psicanálise depende<br />

destes desacordos. Temos que correr o risco e neste caso, não mimetizar<br />

Ulisses que se protegeu do canto das sereias 3 . Não estamos isentos dos<br />

sintomas que pretendemos escutar e interpretar.<br />

3 É bem conhecida a passagem da Odisséia, onde o herói amarrou-se ao mastro do navio<br />

para não sucumbir ao canto das sereias. Os psicanalistas não podem dar-se ao luxo de<br />

amarrar-se seja ao mastro dos conceitos, seja aos dispositivos burocráticos. Ambos podem<br />

assegurar a reprodução , mas arriscam a morte da psicanálise.<br />

50 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

51


SEÇÃO DEBATES<br />

Tempo 4 – Savoir-faire<br />

Um ponto em comum; em todas as palestras, sem exceção, aconteceram<br />

atos falhos. Melhor, sinal de que apesar de nossas resistências, de<br />

nossas tentativas de apresentar um saber sem falhas o inconsciente insiste.<br />

Quando discursamos, palestramos em posição de analisantes, nunca como<br />

analistas, esta é uma das heranças que Lacan transmitiu. Talvez isto possibilite<br />

trabalhar sobre as dificuldades citadas; pois uma discussão consegue<br />

ser rica se a posição discursiva puder ser modificada. Espera-se que o efeito<br />

de uma análise seja a produção de S1, isto implica que o saber (S2) mostre<br />

sua disjunção com a verdade. Curiosamente, é no discurso universitário e<br />

também no discurso do capitalista que o significante primordial (S1) fica na<br />

posição de verdade. A verdade fica recoberta por um conhecimento e, se<br />

incrementamos o conhecimento, incrementa-se o gozo.<br />

Aqui podemos retornar ao tempo inicial (tempo dois relacionado acima).<br />

Tentar articular o vigor da cultura 4 , a apropriação do tango pelos jovens<br />

com o esforço dos psicanalistas de se apropriarem/inventarem uma forma<br />

de preservar/fazer perseverar a psicanálise. Vamos ter que tomá-los como<br />

exemplo e romper com as tradições para poder transmitir 5 . Conseguiremos?<br />

Não há garantias. Estamos neste tempo onde o melhor talvez seja possibilitar<br />

a desordem e suportarmos a desorganização (pas de sens) que o encon-<br />

4 Na Argentina o movimento cultural foi um dos primeiros a apontar uma saída para a crise.<br />

Assim que a vida política e econômica começou a dar sinais de mudança a “movida” portenha<br />

mostrou sua força. Evidenciou que um apesar do enfraquecimento econômico e social, o<br />

patrimônio cultural e educacional ainda é um valor fundamental.<br />

5 Bem entendido que estamos fazendo aqui uma articulação com o conhecido adágio de<br />

Lacan de que é possível dispensar o pai, a condição de passar por seus significantes. Em<br />

outras palavras, não há ruptura sem tradição. Isto que acontece com o tango, também se<br />

passa no jazz e em outras formas musicais. Quem passar pela esquina de Santa Fé e Callao<br />

numa quinta-feira à noite poderá escutar jazz no café “Cinema”. Ali o trio formado por voz,<br />

harmônica e guitarra toca um repertório de canções que vai de new orleas a canção dos<br />

anos 30 e 40. ( someone to watch over me, over the rainbow para citar duas). Os jovens<br />

que hoje mostram os efeitos da apropriação da tradição, o fazem para um público identificado<br />

e que prestigia esta pesquisa. E o público, em sua maioria também é de faixa etária inferior<br />

aos 40 anos, com exceção deste escriba e alguns amigos.<br />

PEREIRA, R. DE F. Buenos Aires o inconsciente...<br />

tro com a alteridade nos provoca. No início do século XX, um cronista otimista<br />

poderia escrever que nos encontrávamos frente a possibilidades de transporte<br />

dos mais variados, as pessoas podiam escolher o cavalo, a charrete, a<br />

bicicleta, os transportes coletivos de tração animal e os recentes automóveis<br />

com motor a explosão. Qual não seria sua surpresa ao ver que estas<br />

possibilidades foram reduzindo-se com a hegemonia do automóvel. Nenhuma<br />

nostalgia, só a constatação de que não controlamos o que vai acontecer<br />

amanhã, mas podemos antever a chegada de algo novo e importante, sem<br />

que isto represente o apocalipse ou a proximidade do paraíso prometido e<br />

adiado. Neste tempos de desconfiança, de fragilidade da civilidade, de violência<br />

urbana conseguir desfazer certas posições enrijecidas e construir um<br />

âmbito de confiança com as ferramentas do discurso analítico já é alguma<br />

coisa de importante. O que não quer dizer que possamos nos acomodar<br />

sobre louros desconhecidos e evanescentes. Hiância e costura onde o pulso<br />

ainda pulsa.<br />

52 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006. C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

53


SEÇÃO DEBATES<br />

DEPOIS DA VIDA<br />

Wandafuru Raifu. Japão, 1998 diretor: Hirokazu Koreeda<br />

estrelado por: Arata, Erika Oda<br />

Se você pudesse escolher uma só recordação<br />

de sua vida para levar para toda a<br />

eternidade, qual escolheria? Pense...<br />

Você tem três dias para escolher. Depois disso,<br />

nós faremos tudo para rodar um filme que<br />

retrate o mais fielmente possível este cenário,<br />

para recriar sua atmosfera. Depois, todas as<br />

suas outras memórias serão apagadas, e você<br />

viverá nesta única cena para sempre.<br />

After life (Wandafuru Raifu), um filme de<br />

1998, dirigido pelo japonês Hirokazu Kore-eda, diretor também de Mabrosi e<br />

Without memory, fala com delicadeza de um tema já tratado inúmeras vezes:<br />

a vida após a morte. A simplicidade retratada no filme é tocante.<br />

Afinal, que imagem, sentimento ou situação valeria ser escolhida para<br />

se viver e reviver para sempre? Uma recordação da infância? Uma aventura<br />

sexual? Ou um dia na Disneylândia, como muitas meninas precocemente<br />

mortas talvez escolhessem?<br />

No filme, um homem escolhe uma experiência de guerra, em 1945,<br />

pilotando seu pequeno avião – vendo as nuvens brancas como algodão doce<br />

passando ao lado, e o céu azul na frente. Uma velhinha, que não teve amores<br />

nem filhos, reúne em silêncio pequenos galhos e folhas caídas no jardim<br />

e são estas as recordações que ela quer levar consigo para o implacável<br />

sempre.<br />

Chama atenção no filme que muitos escolhem não uma grande aventura,<br />

não uma emoção extrema, mas uma cena banal, por exemplo, uma<br />

tarde no parque, simplesmente sentados ao lado de alguém que se gosta,<br />

com uma sensação de paz e delicada alegria. Um almoço com a esposa,<br />

em casa – nada de muito esfuziante. Um piquenique com a mãe e as tias, na<br />

54 C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

RESENHA<br />

infância, enrolando bolinhos de arroz, por exemplo, pode ser uma boa imagem<br />

para se guardar para sempre.<br />

Um adolescente punk , recém falecido – pergunta: “Então é assim? E<br />

aquela baboseira de não faz isso, não faz aquilo? Nada de inferno?” Este<br />

rapaz pede para escolher a memória de um sonho – “Uma sensação de<br />

câmera lenta, em que você corre na maior velocidade e parece que está<br />

flutuando...” Na impossibilidade de ter um sonho como escolha, recusa-se a<br />

escolher, e ficará no limbo da estação de passagem...<br />

Essa casa de passagem entre a vida e a morte, diferentemente de<br />

como outros filmes retratam – em fictícios palácios gregos, ou em suntuosos<br />

jardins das mil e uma noites – é um prédio tosco como uma escola<br />

antiga ou um internato abandonado. E os funcionários... Bem, estes fantasmas<br />

– ou seriam anjos? Eles tentam ser o mais discreto possível, para não<br />

interferirem nas decisões dos recém-chegados. Será que conseguem? Esses<br />

funcionários públicos da morte, por sua atenção e ao mesmo tempo<br />

apagamento de seu próprio desejo para poder captar os de seus “clientes”,<br />

lembram um pouco o papel do psicanalista como passadores respeitosos da<br />

dor e da história alheia.<br />

Um deles, incapaz de fazer sua própria escolha, e olhando o vídeo de<br />

sua amada falecida, descobre que estava na cena criada por ela! Ele era<br />

parte da felicidade de alguém... Que descoberta maravilhosa! Só então consegue<br />

fazer sua escolha, e opta pela mesma cena, para recordar em sua<br />

própria eternidade que um dia foi tão importante para alguém.<br />

Então? Já fez sua escolha? Qual a cena mais representativa de sua<br />

vida? Uma grande emoção? O nascimento de um filho? Conhecer o grande<br />

amor, a primeira transa, ou a melhor delas? O primeiro vôo, a primeira neve,<br />

o cheiro do vento da primavera? Ou um dia banal, na paz da infância em<br />

família, em que o sentimento de segurança e aconchego pareciam ser eternamente<br />

garantidos pela presença dos pais?<br />

Às vezes não nos damos conta de que as maiores alegrias e emoções<br />

de uma vida podem estar em coisas tão simples... como fazer parte da<br />

felicidade de alguém.<br />

Ligia Gomes Victora<br />

55


AGENDA<br />

SETEMBRO – 2006<br />

Dia Hora Local Atividade<br />

14, 21<br />

e 28<br />

19h30min Sede da <strong>APPOA</strong> Reunião da Comissão de Eventos<br />

14 21h Sede da <strong>APPOA</strong> Reunião da Mesa Diretiva<br />

15 e 29 8h30min Sede da <strong>APPOA</strong> Reunião da Comissão de Aperiódicos<br />

04 e 18 20h30min Sede da <strong>APPOA</strong> Reunião da Comissão do <strong>Correio</strong><br />

01, 15<br />

e 29<br />

15h15min Sede da <strong>APPOA</strong> Reunião da Comissão da Revista<br />

Dia Hora Local Atividade<br />

02 10h Sede da <strong>APPOA</strong> Exercícios Clínicos<br />

09 10h Sede da <strong>APPOA</strong> Núcleo de Psicanálise de Crianças<br />

21 21h Sede da <strong>APPOA</strong> Cartel “Seminário XI”<br />

PRÓXIMO NÚMERO<br />

INCONSCIENTE, REPETIÇÃO, TRANSFERENCIA E PULSÃO<br />

C. da <strong>APPOA</strong>, Porto Alegre, n. <strong>150</strong>, set. 2006.<br />

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events<br />

in the last decade. London, Hogarth, 1992.)<br />

Criação da capa: Flávio Wild - Macchina<br />

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE<br />

GESTÃO 2005/2006<br />

Presidência: Lucia Serrano Pereira<br />

1 a Vice-Presidência: Ana Maria Medeiros da Costa<br />

2 a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees<br />

1 a Secretária: Marieta Madeira Rodrigues<br />

2 a Secretária: Ana Laura Giongo e Lucy Fontoura<br />

1 a Tesoureira: Maria Lúcia Müller Stein<br />

2 a Tesoureira: Ester Trevisan<br />

MESA DIRETIVA<br />

Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ângela Lângaro Becker, Carmen Backes,<br />

Edson Luiz André de Sousa, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora,<br />

Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Maria Ângela Cardaci Brasil,<br />

Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz, Maria Cristina Poli, Nilson Sibemberg,<br />

Otávio Augusto Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira e Siloé Rey<br />

EXPEDIENTE<br />

Órgão informativo da <strong>APPOA</strong> - Associação Psicanalítica de Porto Alegre<br />

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-<strong>150</strong> Porto Alegre - RS<br />

Tel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922<br />

e-mail: appoa@appoa.com.br - home-page: www.appoa.com.br<br />

Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n 0 3956<br />

Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda.<br />

Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-<strong>150</strong> Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355<br />

Comissão do <strong>Correio</strong><br />

Coordenação: Gerson Smiech Pinho e Marcia Helena de Menezes Ribeiro<br />

Integrantes: Ana Laura Giongo, Ana Paula Stahlschimidt, Fernanda Breda, Henriete<br />

Karam, Liz Nunes Ramos, Márcio Mariath Belloc, Maria Cristina Poli, Marta Pedó,<br />

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior, Robson de Freitas Pereira,<br />

Rosane Palacci Santos e Tatiana Guimarães Jacques


S U M Á R I O<br />

EDITORIAL 1<br />

NOTÍCIAS 2<br />

SEÇÃO TEMÁTICA 10<br />

UM TIPO ESPECIAL<br />

DE LOUCURA DE OBJETO<br />

Ana Costa 10<br />

ALGUMAS NOTAS SOBRE<br />

A RELAÇÃO ENTRE MATEMÁTICA<br />

E PSICOSE NO CINEMA<br />

Nilson Sibemberg 14<br />

A CENA QUE SE DESVELA OU<br />

O QUE VELA UMA IMAGEM<br />

Francilene Rainone 19<br />

FILMAR A LOUCURA:<br />

“TUDO QUE SE IMAGIMA, É”<br />

Miriam Chnaiderman 29<br />

ESTAMIRA E “TRANSAMÉRICA”<br />

Contardo Calligaris 34<br />

SEÇÃO DEBATES 37<br />

O INCONSCIENTE E A REPETIÇÃO<br />

Jacques Lacan 37<br />

BUENOS AIRES O INCONSCIENTE E A<br />

PULSÃO CONVERGÊNCIAS<br />

Robson de Freitas Pereira 49<br />

RESENHA 54<br />

AFTER LIFE 54<br />

AGENDA 56<br />

N° <strong>150</strong> – ANO XIII SETEMBRO – 2006<br />

CINEMA E LOUCURA

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