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Revista n.° 31 - APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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TEXTOSAFÂNISE 1Ligia Gomes Víctora 2RESUMOO sujeito da linguagem surge da alienação entre os significantes. A neurose, ea psicanálise, foram pensadas a partir da lógica da alienação. O que é afânise?Seria possível uma psicanálise com um sujeito que partisse <strong>de</strong> uma posição <strong>de</strong>afânise, e não da alienação?PALAVRAS-CHAVES: Afânise, psicanálise, lógica do significante, topologia,superfície <strong>de</strong> Boy.APHANISISABSTRACTThe subject of language emerges from the alienation between signifiers. Neurosis,and psychoanalysis, have been conceived based on the logic of alienation. Whatis aphanisis? Would a psychoanalyis be possible for a subject <strong>de</strong>parting froman aphanisis position, and not from alienation?KEYWORDS: Aphanisis, psychoanalysis, signifier’s logic, topology, Boy’ssurface.1Apresentado nas Jornadas Clínicas da <strong>APPOA</strong>, Fundamentos da psicanálise: inconsciente,repetição, transferência, pulsão, em outubro <strong>de</strong> 2006.2Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica <strong>de</strong> <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>; Coor<strong>de</strong>nadora do Seminárioe das Oficinas <strong>de</strong> Topologia da <strong>APPOA</strong>; Membro da Association Lacanienne Internationale.76


Alguns autores (como Bergès e Balbo) usaram o termo afânise para sereferirem às formações holofrásicas, nas quais o filho, vampirizado pelo <strong>de</strong>sejoda mãe, faz como que um eco à fala <strong>de</strong>sta. Outros (como J. Hillman) trataramcomo casos <strong>de</strong> afânise os clássicos shakespearianos – Ricardo II e Hamlet –nos quais o “auto-espelhamento” vai se <strong>de</strong>sdobrando, até que a passagem aoato se torne inevitável. Seria o me funai da tragédia <strong>de</strong> Édipo: – “Quisera eununca ter nascido” (... para não ter <strong>de</strong> pagar pelos crimes cometidos pelosmeus pais)!Alfredo Jerusalinsky (2002) relaciona a afânise com a passagem ao ato,dizendo que esta seria uma manifestação <strong>de</strong> que o significante, por si só, nãodá conta, e que isso traria conseqüências reais, impossíveis <strong>de</strong> serem “amortecidas”pelas palavras: – “Apresenta-se como recurso ao qual o sujeito apeladiante da angústia provocada pelo temor <strong>de</strong> que seu <strong>de</strong>sejo possa acabar. Lacanaplica a esta formação inconsciente o nome <strong>de</strong> afanisis”.A LÓGICA DO SIGNIFICANTEPara explicar melhor minha hipótese sobre a afânise, retomarei brevementeo conceito <strong>de</strong> alienação em Lacan, e o que entendo por lógica dosignificante.O que consi<strong>de</strong>ro como sendo a lógica do significante tem a ver com aoperação da alienação: um primeiro termo, rechaçado enquanto real(Urverdrängung), e as conseqüências que advirão <strong>de</strong>ssa primeira exclusão.Lacan (1964) vai se utilizar <strong>de</strong>ssa lógica para discorrer sobre o surgimentoda linguagem no “falasser” (parlêtre).Figura 1Po<strong>de</strong>mos, para tentar resumir, dizer que é a partir <strong>de</strong> uma interdição realdo representante da pulsão incestuosa que surgirá o sujeito como “falasser”.(Figura 1) S1, o primeiro representante da representação (o Vorstellungsrepräsentanz,<strong>de</strong> Freud) <strong>de</strong>ssa pulsão primordial, fica recalcado junto com ela. S2 vem seacoplar ao espaço <strong>de</strong>ixado por esse recalque original, mas, aí, já ficou um vazio78


AFÂNISEentre os dois. Isso terá como conseqüência toda uma organização psíquica e apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construção da linguagem. Lacan (1964) disse que “neste primeiroacasalamento significante”, o sujeito aparecia em algum lugar, e <strong>de</strong>sapareciaem outro, “como fading” [p. 207]. Neste caso, penso que seria melhordizer que o sujeito nasce <strong>de</strong>sta primeira “falha” no acasalamento significante,pois esse primeiro encontro foi um <strong>de</strong>sencontro, já que “S1” faltou!Em outras palavras: houve um primeiro termo, que foi rechaçado da consciência.Um segundo termo é “solicitado” ao Outro, para tentar substituir o primeiro.Isso inaugura uma or<strong>de</strong>m entre as palavras – a ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> significantes 6 .(Tentarei mostrar esse primeiro <strong>de</strong>s-encontro com os círculos <strong>de</strong> Euler). (FiguraFigura 22) 7 Consi<strong>de</strong>ra-se que seja por causa <strong>de</strong>ssa primeira alienação, isto é, separação,entre representantes das representações das pulsões, que nasce a linguagem.Linguagem, aqui, também tem um sentido matemático, <strong>de</strong> função ourelação entre objetos, representados por conjuntos <strong>de</strong> letras, que se combinamconforme regras lógicas. Então, a lógica do significante seria um conjunto <strong>de</strong>axiomas e regras <strong>de</strong> inferência que representa formalmente os afetos e o raciocíniodo sujeito. O significante seria a unida<strong>de</strong> mínima <strong>de</strong>sse conjunto.O sujeito, para Lacan (e como eu o entendo), é um ser feito <strong>de</strong> linguagem.Assim, é o significante que “forma” o sujeito (pois ele é “falado” mesmoantes <strong>de</strong> nascer); “formata” seu corpo, assim como o “<strong>de</strong>forma”, com os sintomas,e também “transforma”, no caso da cura psicanalítica, que também se dávia significantes. O movimento <strong>de</strong>sses significantes construirá a realida<strong>de</strong> e o6Ca<strong>de</strong>ia ou link, no sentido matemático mesmo, o que significa que os termos estão ligados entresi.7Como em Lacan, <strong>de</strong>ixo em branco os campos vazios, e hachurados os campos que contêmelementos.79


TEXTOSsentido das coisas, para esse “falasser”. Por tudo isso, ele só po<strong>de</strong> ser compreendidocomo um ser <strong>de</strong> representações, feito e efeito <strong>de</strong> palavras.A ALIENAÇÃOOutra maneira <strong>de</strong> explicar a lógica da alienação foi trabalhada no seminárioO ato psicanalítico, por Lacan (1967/68), a partir <strong>de</strong> um retângulo (grupo <strong>de</strong>Klein). O ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong> toda neurose, e também <strong>de</strong> uma psicanálise, seriao sujeito cartesiano questionado pela negação: uma disjunção entre ser e pensar.(Figura 3).Figura 3Assim, durante a psicanálise, o analisando percorreria todo esse grafo,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ponto <strong>de</strong> partida, acima, à direita (ou não penso, ou não sou), passandopor todos os vértices – o que equivale ao atalho central (transferência/castração)– até chegar ao lugar <strong>de</strong> “eclipse” (a, Analista). Passar pela castração simbólicanão significa apenas aceitar as regras da civilização (e da linguagem), mastambém ter a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> assumir seu <strong>de</strong>sejo (<strong>de</strong>stacando o objeto (a) do<strong>de</strong>sejo).Este ponto (a), que chamamos <strong>de</strong> eclipse, cura, ou final <strong>de</strong> uma análise,também é o ponto para o qual se encaminha o analista, “caído” do lugar inicial –imposto pelo analisando – <strong>de</strong> sujeito-suposto-tudo-saber (S.S.S.). Seria o mesmotrajeto: tanto o da castração simbólica do analisando, quanto o da transferênciae, finalmente, o da <strong>de</strong>stituição do analista no final <strong>de</strong> uma análise. 88Ver texto A lógica do ato psicanalítico, no Correio da <strong>APPOA</strong> <strong>de</strong> agosto 2006.80


AFÂNISEA AFÂNISEVoltando à questão da afânise: como po<strong>de</strong>ria se representar com os círculos<strong>de</strong> Euler? Minha sugestão seria com o eclipse total do sujeito. (Figura 4).Figura 4Nesse esquema, po<strong>de</strong>mos ver que não há lugar para o sujeito, que ficasubsumido pelo Outro.Po<strong>de</strong>-se pensar nesse esquema para as psicoses, mas há casos <strong>de</strong>problemas menos <strong>de</strong>clarados, em que não há o apagamento total ou a mortesubjetiva, mas em que o sujeito da enunciação <strong>de</strong>saparece momentaneamente,soterrado pelo discurso, ou pelo <strong>de</strong>sejo, do Outro (que po<strong>de</strong> ser representado<strong>de</strong>s<strong>de</strong> por um semelhante, pela “turma”, e até pela mídia).O que eu gostaria <strong>de</strong> propor seria uma lógica que partisse da posição <strong>de</strong>afânise, e não da alienação, para dar conta <strong>de</strong> certos casos <strong>de</strong> diagnósticoin<strong>de</strong>cidível, com os quais tenho me <strong>de</strong>parado na clínica (minha e <strong>de</strong>supervisionandos) – e que parece que caem <strong>de</strong> pára-quedas na sala do psicanalista!São pessoas com <strong>de</strong>senvolvimento normal, inteligentes, sensíveis, e quetêm amigos. Geralmente eles vão bem na escola ou no trabalho, escrevem bem,praticam esportes e tocam algum instrumento musical. Aparecem na clínica“disfarçados” <strong>de</strong> adolescentes ou com diagnóstico <strong>de</strong> “Síndrome <strong>de</strong> déficit <strong>de</strong>atenção”. São “mandados” ao psicanalista pelos médicos ou professores, ou,simplesmente, porque os pais se tratam e acham que há “alguma coisa” comseus filhos. 99Outros casos, com diagnósticos difíceis como crianças ditas autistas, doenças <strong>de</strong>generativas<strong>de</strong> origem obscura, síndromes dismórficas na adolescência, conduta homossexual em meninase meninos, po<strong>de</strong>rão também fazer parte <strong>de</strong>ste grupo.81


AFÂNISEQuando eu lhe perguntava por que afinal ele vinha me ver, já que não haviauma queixa explícita, dizia que “só queria alguém para conversar”. O fato <strong>de</strong> terenfim “alguém” a quem en<strong>de</strong>reçar suas “aventuras” – não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>armais actings out ou até uma passagem ao ato (por ter “platéia”)? Para LuísFernando Oliveira (2002), a passagem ao ato não é uma escolha, é um agir quetem lugar sem que a pulsão passe pela língua. Equivale a um colapso do sujeitoda representação. 12Uma coisa que acalmava um pouco minhas preocupações era saber queo “gosto pelo risco”, conforme Rassial (2002) serve muitas vezes ao adolescentecomo <strong>de</strong>fesa contra a <strong>de</strong>pressão... Mesmo assim, a atração irresistível <strong>de</strong>ssemeu “quase-analisando” pelo perigo e sua preferência por lugares altos e semproteção me remetiam à função tiquê, <strong>de</strong> Lacan, <strong>de</strong> um encontro marcado como real. A pulsão <strong>de</strong> morte fica ali, insistindo com alguma coisa da or<strong>de</strong>m doimpronunciável (até porque é anterior à linguagem). Seria aquela angústia primitivachamando para a morte, que o sujeito <strong>de</strong>nega – e que os sonhos apocalípticosteimam em empurrar para a consciência. O sujeito <strong>de</strong>leta, mas os sonhos <strong>de</strong>latam,sua existência.Esse menino tinha sonhos recorrentes, em que saltava e ia ficando cadavez mais leve, até que alçava vôo, e voava cada vez mais alto... Esses sonhos,no início, eram sonhos bons, mas <strong>de</strong>pois ele perdia o controle <strong>de</strong> seu vôo e viaa Terra se afastando cada vez mais longe – “Como no Google Earth” (sic), e aíacordava. Outras vezes, o sonho começava da mesma forma, só que lá do altoele via a Terra se acabar, com uma gran<strong>de</strong> enchente. E não tinha como voltar,pois não havia mais terra firme. Somente em sonhos a angústia era reconhecidacomo tal. Mas quando solicitado a associar, não trazia conteúdos <strong>de</strong> morte nem<strong>de</strong> medo.Perguntei uma vez o quê ele gostaria <strong>de</strong> ser se não fosse humano – “Umavião. Ou melhor, um pássaro, para po<strong>de</strong>r voar”. Paradoxalmente, o que nãogostaria <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> jeito nenhum? – “Uma mosca”. – Por que, se a mosca tambémpo<strong>de</strong> voar? – “Porque é muito chato, elas só vivem duas semanas!” Nessejogo <strong>de</strong>si<strong>de</strong>rativo, ele conseguiu, <strong>de</strong> passagem, falar que morrer era “chato”, oque eu já consi<strong>de</strong>rei um gran<strong>de</strong> passo. Ele jamais imaginava seu futuro, mesmoquando eu o estimulava a divagar – o “sonhar acordado” com o futuro parecia serimpossível para ele.12Isso me tranqüiliza, mas sempre me intriga – o que uma pessoa assim faz no consultório <strong>de</strong> umanalista, já que, aparentemente, não tem sofrimento?83


AFÂNISEAliás, forçar a entrada <strong>de</strong> um significante (do analista) no código simbólicodo analisando – não seria isso “um abuso <strong>de</strong> metáfora”, como Lacan sereferiu ao nó borromeu em O sinthoma? Não seria um acting out ou uma resistência,do lado do analista? 14Nas psicoses infantis é fácil acompanhar as “falhas” do suporte dosignificante paterno, que se refletem na imagem corporal, cuja gênese costumaser atribuída à fase do espelho e cujo efeito é uma imagem distorcida <strong>de</strong> si, oua falta <strong>de</strong> representação especular. Pareceria que falta uma prova <strong>de</strong> sua existência,já que o espelho não lhe diz nada. Sabe-se como essa ausência <strong>de</strong>imagem provoca uma angústia niilista – não só o sujeito se sente perdido e“sem pé”, como o próprio objeto se per<strong>de</strong> atrás do espelho...Diagnósticos à la DSM 15 , do tipo Transtorno dismórfico corporal, tambémnão ajudam muito, a não ser para servir <strong>de</strong> alerta, pois as estatísticas mostramcomo os jovens que sofrem <strong>de</strong>ssas síndromes são terrivelmente propensos aosuicídio 16 . Já o antigo “bor<strong>de</strong>rline” po<strong>de</strong> ser útil, na medida em que fala <strong>de</strong> bordasFigura 514Interpretar um “acting-out” como sintoma histérico em um caso <strong>de</strong>sses po<strong>de</strong> até precipitar umapassagem ao ato, com o <strong>de</strong>senlace do suicídio. Ou, então, incrementar a atração pelo perigo.Como Lacan <strong>de</strong>finiu, em outras palavras, na conferência A terceira: quanto mais se injetarsentido no imaginário, via simbólico, mais aumentará o sintoma.15Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disor<strong>de</strong>rs.16As estatísticas americanas falam que 21% dos portadores <strong>de</strong>ssa síndrome fizeram pelomenos uma tentativa <strong>de</strong> suicídio em 1999. Outras falam em 30% daqueles, com ida<strong>de</strong> entre 15 e16 anos, no ano 2000! Fonte: http://psiqweb.med.br/dsm.85


TEXTOSe sabemos como as pulsões necessitam <strong>de</strong>las para circular. As bordas – naturais(oral, anal, genitais) ou criadas (cicatrizes, piercings, tatuagens) – funcionariamcomo limite entre, ou intra, superfícies dos corpos. Nesses casos, penso que oolhar do psicanalista seja fundamental para “recompor” um corpo <strong>de</strong>spedaçadoou sem “pele” que faça fronteira clara entre o mundo interior e o exterior.E forçar a passagem entre estruturas – seria isso possível ou recomendável?Não seria um salto quase intransponível (como entre os elevadores, ou nosalto para o infinito, do sonho do meu quase-analisando)?(Figura 5) O nó borromeu <strong>de</strong> Lacan (1974) po<strong>de</strong> ser útil para compreen<strong>de</strong>ra organização da neurose. Nele se enlaçam as três instâncias: o real, o simbólico,e o imaginário (R, S, I). Aí se vê que as palavras (que estariam situadas nocampo do simbólico), <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do corpo (imaginário), para lhes dar sentido.Mas o simbólico (S) também está interligado ao real (R) pelo gozo fálico (dafala), que é o único gozo consi<strong>de</strong>rado “fora do corpo”.Para os nossos jovens afanísicos, esta ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> nós não dá conta, poisseu corpo parece todo tomado pelo gozo do Outro. O campo do sentido parecese per<strong>de</strong>r, e o imaginário fica subsumido por um real mortífero...A SUPERFÍCIE DE BOYAssim, penso que os nós borromeanos <strong>de</strong> Lacan a três e a quatro elos,tão eficientes para explicar a neurose e para a psicose (como seu “nó <strong>de</strong> Joyce”),não bastam para dar conta <strong>de</strong>ssas pseudoestruturas aqui em questão, quepo<strong>de</strong>m ser temporárias (como na adolescência) ou <strong>de</strong>finitivas (diagnósticosin<strong>de</strong>cidíveis), que envolvem a lógica do significante. Para tanto, penso que seteria que estudar mais a topologia das superfícies uniláteras que Lacan apenasapontou nos últimos Seminários, mas <strong>de</strong>ixou um campo em aberto para sermais e melhor <strong>de</strong>senvolvido.Se é que existe (como Jones afirmava) uma angústia anterior à linguageme mesmo à consciência, para tratar <strong>de</strong>sses casos não “compreendidos”(no sentido <strong>de</strong> que não foram ali incluídos) pela teoria freudiana, penso que seteria <strong>de</strong> recuperar um conceito da biologia chamado <strong>de</strong> “atavismo”.Esse termo, do latim atavu, que significa quarto avô (atavi = antepassados),é originário da genética e traduz o ressurgimento, em um organismoou numa <strong>de</strong>terminada geração, <strong>de</strong> certos caracteres tidos por extintos.Aplica-se, na linguagem corrente, para <strong>de</strong>signar semelhanças físicas oupsicológicas com parentes mais antigos e não com os mais recentes 17 .17Daí “atávico”, que muita gente emprega in<strong>de</strong>vidamente como sinônimo <strong>de</strong> “inevitável”.86


AFÂNISEIsso tem sido muito explorado na literatura, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a tragédia grega até osromances atuais.Porém, com todo o cuidado para não cair em um geneticismo, nem numsimbolismo, pois não se trata <strong>de</strong> atavismo biológico nem cosmológico (“do além”),mas lógico: dos significantes transmitidos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma família. Minha hipóteseé <strong>de</strong> que essa angústia latente, geradora da afânise, circule via i<strong>de</strong>ntificações(logo, inconscientemente), através <strong>de</strong> palavras e fatos não falados, ou mal contados.18 Haveria um erro na “contagem” dos significantes (S 1, S 2... S n...). 19Para esses casos, como penso que haveria certo apagamento do sujeitoda enunciação, proponho a superfície <strong>de</strong> Boy (Figura 6) como estrutura <strong>de</strong> base.Figura 6Trata-se <strong>de</strong> uma superfície unilátera, sem bordo, fechada sobre si mesma.Po<strong>de</strong> ser obtida a partir do rebatimento das coor<strong>de</strong>nadas cartesianas x, y,z, ou se costurando o bordo único <strong>de</strong> uma cinta <strong>de</strong> Mœbius triplamente torcida.Para tanto, é preciso fazer uma projeção em D 2 e um mergulho em D 4 (on<strong>de</strong> a18No caso que nos serve <strong>de</strong> exemplo, havia questões sobre a morte <strong>de</strong> membros da família, elutos mal elaborados.19Freud não se referia às três gerações necessárias para a eclosão <strong>de</strong> uma psicose? A primeirarecalca e cala, a segunda <strong>de</strong>nega, e a terceira faz o sintoma...87


TEXTOSquarta dimensão seria o tempo necessário para sua construção). Foi <strong>de</strong>scoberta(ou inventada?) pelo matemático Werner Boy (aluno <strong>de</strong> Hilbert), em 1902.Não se teve mais notícias <strong>de</strong>le <strong>de</strong>pois disso. Somente em 1981 ela foi <strong>de</strong>scritaformalmente, pelo matemático Jérome Souriau, e <strong>de</strong>senhada pelo artista Jean-Pierre Petit. Finalmente, Christophe Tardy a construiu virtualmente, segundoequação <strong>de</strong>duzida por Apéry. 20Nesse tipo <strong>de</strong> superfície, há o apagamento da fronteira entre os elosR.S.I., que passam a estar em continuida<strong>de</strong>.DA LETRA AO CORPOUma passagem entre duas referências, como a letra (pertencente à álgebra)e o corpo (topologia das superfícies), intuída por Lacan (e criticada porvários matemáticos da época) po<strong>de</strong> ser possível, mas ainda está por ser teorizadae formalmente <strong>de</strong>scrita (escrita matematicamente).Para quem, como esse meu quase-analisando, se “<strong>de</strong>ixar cair”, ou se“<strong>de</strong>ixar levar”, soar como uma promessa <strong>de</strong> gozo eterno, penso que o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>morte não <strong>de</strong>va ser apontado (diferentemente da interpretação na neurose, emque isso po<strong>de</strong> ser feito), sob o risco <strong>de</strong> se empurrar o sujeito para uma passagemao ato. Na hipótese <strong>de</strong> que esse sujeito não parta <strong>de</strong> uma posição inicial <strong>de</strong>alienação, mas da <strong>de</strong> afânise – o trabalho do psicanalista também não <strong>de</strong>ve<strong>de</strong>sconstruí-lo. Por isso a minha questão: po<strong>de</strong>-se chamar “isso” <strong>de</strong> psicanálise?Não seria mais algo como dar sustentação a um enca<strong>de</strong>amento possíveldos representantes das representações das pulsões, tentando dar suporte àangústia latente que provoca essa afânise, e que produz nele a aniquilação dosafetos <strong>de</strong> prazer e a <strong>de</strong>sapropriação dos significantes?Algumas vezes, esse menino falava, mas as palavras pareciam não “apropriadas”,no sentido <strong>de</strong> que ele não se apropriava <strong>de</strong>las (pareciam copiadas <strong>de</strong>outros). Apesar <strong>de</strong> ter amigos, também parecia não se apropriar ele próprio dassuas qualida<strong>de</strong>s – ou custava a reconhecer seu valor. Num caso <strong>de</strong>sses, talvezo analista seja não somente “alguém para conversar”, mas propicie uma novaarticulação entre significantes <strong>de</strong>sgarrados ou <strong>de</strong>letados da ca<strong>de</strong>ia.Será que a transferência com o analista (inicialmente “via transferênciamaterna”), po<strong>de</strong>ria reconstituir o encontro faltado entre significantes – ao acolhersuas “aventuras” e <strong>de</strong>ixar-se enganar pela topologia “guenza” dos seus sal-8820Para mais imagens e construções, ver o site: http://ctardy.free.fr/jadore/sciences/boy/animations/topologicon.htm


AFÂNISEtos e meus sustos? Sabe-se como, muitas vezes, a errância <strong>de</strong> significantesaparentemente sem sentido se “amarra” na transferência, e nesse movimento“topo lógico”, o nó do sintoma se <strong>de</strong>sata. O psicanalista, ao sustentar um novoenca<strong>de</strong>amento dos representantes das pulsões, encarnaria não só um fator“disjuntivo” 21 , próprio à análise, mas também “conjuntivo”, <strong>de</strong> “síntese” ou <strong>de</strong>contenção, dando-lhe certa tranqüilida<strong>de</strong> ou uma “quase-garantia” <strong>de</strong> que suaexistência é possível.Se a afânise tem a ver (como supunha Jones) com a tentativa <strong>de</strong> apagamentoda interdição do incesto e do recalcamento primordial da pulsão incestuosa,marca in<strong>de</strong>lével no inconsciente do <strong>de</strong>sejo humano, então, a escuta analíticae suas pontuações po<strong>de</strong>riam ter valor <strong>de</strong> interpretação, reconstituindo aca<strong>de</strong>ia dos representantes das representações das pulsões (ao <strong>de</strong>volver ossignificantes <strong>de</strong>letados à ca<strong>de</strong>ia) e exercendo as leis da lógica do significante.Estaria, assim, separando as três instâncias (R.S.I.) que estavam em continuida<strong>de</strong>,e atuando como operador da castração simbólica (daí se constataria,après coup, que não se tratava mesmo <strong>de</strong> uma psicose).Então, a escuta psicanalítica para esses sujeitos (apesar <strong>de</strong> suaanosognosia), po<strong>de</strong>rá ter, como em todo ato analítico, função <strong>de</strong> um cortetopológico, e o sujeito resultante <strong>de</strong>sse corte será diferente do original. Masisso permanecerá no <strong>de</strong>sconhecimento. Ou seja: o representante da representação<strong>de</strong>sse ato também será <strong>de</strong>negado – o sujeito não o reconhecerá como tal.No final do “tratamento” (?) haverá um ganho terapêutico, mas não haverá umatomada <strong>de</strong> consciência, uma vez que não há uma memoração <strong>de</strong>sse processo(a não ser uma memória inconsciente). E o sujeito permanecerá na sua ilustre“<strong>de</strong>sconhessência” (com dois esses): o <strong>de</strong>sconhecimento <strong>de</strong> sua própria essência.Nesse caso específico, <strong>de</strong> que estamos aqui tratando, no final do nossotrabalho, talvez ele tenha enfim alcançado a posição da alienação (“ou não penso,ou não sou”)...No en<strong>de</strong>reçamento <strong>de</strong> suas palavras ao Outro, representado pelo analista,o sujeito afanísico po<strong>de</strong>rá, talvez, passar do “nada” ao “po<strong>de</strong> ser”. Em suas“quase psicanálises”, a função “tiquê” será essencial, para se estabelecer quala intervenção possível, e o papel do analista na transferência. Afinal, entre oimpossível (nada-po<strong>de</strong>-ser) e o contingente (po<strong>de</strong>-ser-que-seja-nada) existe umainfinita distância.21O “ou... ou...” da alienação, também é conhecido na lógica dos conectivos como “uniãodisjunta”.89


TEXTOSCaberia, finalmente, uma reflexão sobre o que Freud escreveu em umacarta a Pfister, sobre a luta <strong>de</strong> logos (a razão) com anánke (o <strong>de</strong>stino). Po<strong>de</strong>riasempre logos vencer anánke?Por sorte, ou por conter em si a sorte, o encontro com o real da morte –como todo encontro – sempre po<strong>de</strong> ser faltado. A aposta na vida, por parte doanalista, po<strong>de</strong>rá ou não segurar tyché e anánke? Sempre aposto que sim, queeros e logos sejam os vencedores.REFERÊNCIASDARMON, Marc. O nó que <strong>de</strong>sata. Correio da <strong>APPOA</strong>, <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, n. 103, jun. 2002.JERUSALINSKY, Alfredo. Novas proposições sobre acting out e passagem ao ato.Correio da <strong>APPOA</strong>, <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, n. 103, jun. 2002.JONES, Ernest (1927). Le dévelopment précoce <strong>de</strong> la sexualité feminine, in Théorieet pratique <strong>de</strong> la psychanalyse. Paris: Payot, 1969.LACAN, J.M. (1963/64) Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar Ed., 1979.______. (1967/68) Seminário L’acte psychanalytique. Ed. Interna da AssociationLacanienne Internationale. Paris.______. (1974) Conferência A terceira. Ca<strong>de</strong>rnos Lacan II. Ed. Interna da AssociaçãoPsicanalítica <strong>de</strong> <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>.OLIVEIRA, Luís Fernando Lofrano <strong>de</strong>. Injúria, a pulsão na ponta da língua. Ijuí: Ed.Unijuí, 2002.RASSIAL, Jean Jacques e outros. Os nós adolescentes. Entrevista na <strong>Revista</strong> da<strong>APPOA</strong>, <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, n. 23, p. 127-137. <strong>de</strong>z. 2002.VÍCTORA, Ligia Gomes. A lógica do ato psicanalítico. Correio da <strong>APPOA</strong>, <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>,n. 149, ago. 2006.90


TEXTOSA AGRESSIVIDADE NOSLIMITES DA LINGUAGEM 1Luís Fernando Lofrano <strong>de</strong> Oliveira 2RESUMOEste artigo propõe uma discussão sobre o tema da agressivida<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong>precisões acerca dos conceitos <strong>de</strong> pulsão e <strong>de</strong> eu em psicanálise. Na discussãoproposta enfoca a agressivida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formação<strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> representação <strong>de</strong>senvolvida pelo eu sob pressão da pulsãoe com base em suportes <strong>de</strong> linguagem. Com esse enfoque, procura situar questõesconcernentes à agressivida<strong>de</strong> inerente aos processos dialéticos e <strong>de</strong>cisóriosdo eu.PALAVRAS-CHAVE: agressivida<strong>de</strong>, pulsão, eu, linguagem.AGGRESSIVENESS TO THE LIMITS OF LANGUAGEABSTRACTThis paper proposes a discussion on the topic aggressiveness, from precisenessregarding the concepts of pulsion and Ego in psychoanalysis. In the proposeddiscussion it approaches the aggressiveness which is released from the activityof forming units of representation <strong>de</strong>veloped by the Ego un<strong>de</strong>r pressure of thepulsion and based on language supports. Using this approach it seeks placingquestions concerning the aggressiveness that is inherent to the dialectic and<strong>de</strong>cision making processes of the Ego.KEYWORDS: aggressiveness, pulsion, ego, language.1Apresentado nas Jornadas Clínicas da <strong>APPOA</strong>, Fundamentos da psicanálise: inconsciente,repetição, transferência, pulsão, em outubro <strong>de</strong> 2006.2Psicanalista; Membro da <strong>APPOA</strong> e do Espaço Psicanalítico <strong>de</strong> Ijuí; Professor do Departamento<strong>de</strong> Filosofia e Psicologia da UNIJUI; Doutor em Psicologia pela Universida<strong>de</strong> Paris 13; Autor dolivro Injúria, a pulsão na ponta da língua (Ed. UNIJUI). E-mail: luis.oliveira@unijui.tche.br.91


TEXTOSNossa abordagem do tema da agressivida<strong>de</strong> procura colocá-lo em discussãoa partir <strong>de</strong> conceitos e noções teóricas do campo da psicanálise. Adiscussão proposta tem lugar no contexto <strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate sobre o conceito <strong>de</strong>pulsão e parte da premissa da indissociabilida<strong>de</strong>, nesse campo, entre esseconceito e o <strong>de</strong> eu. Indissociáveis enquanto conceitos, eles referem-se a domíniospsíquicos radicalmente disjuntos. Partindo daí, nossa discussão enfoca aagressivida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> das operações <strong>de</strong> formação do eu realizadassob pressão da pulsão.A agressivida<strong>de</strong> interessa-nos enquanto <strong>de</strong>corrência dos processos <strong>de</strong>constituição das formações discursivas. Dado esse interesse, nossas consi<strong>de</strong>raçõessobre o tema procuram <strong>de</strong>stacar alguns aspectos da linguagem e dasociabilida<strong>de</strong> mediante as quais o eu constitui tais formações.Trata-se, a nosso ver, <strong>de</strong> um tema atual. E, como tudo que proce<strong>de</strong> doeu, facilmente a sua teorização se dá fora do campo da psicanálise. Nossointeresse geral está em ampliar a discussão do tema da agressivida<strong>de</strong> ao promovêlacom base em conceitos exclusivos e <strong>de</strong>limitadores <strong>de</strong>sse campo, como, emespecial, o <strong>de</strong> pulsão.A abordagem do tema da agressivida<strong>de</strong> justifica-se ao mesmo tempopela constatação da sua vigência em laços sociais <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m e pela falta <strong>de</strong>conhecimento que o cerca. Dada sua atualida<strong>de</strong>, o próprio tema requer que otratemos por meio <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações apresentadas sob forma <strong>de</strong> questão. Propomos,a seguir, um conjunto <strong>de</strong> tais consi<strong>de</strong>rações, que se divi<strong>de</strong> em três partes.A primeira <strong>de</strong>las <strong>de</strong>dica-se a conseqüências tanto da indissociabilida<strong>de</strong>entre os conceitos <strong>de</strong> pulsão e eu como da diferença entre os domínios psíquicosa que se referem. Trata-se <strong>de</strong> conseqüências observáveis nos <strong>de</strong>senvolvimentosdo eu, especialmente no que concerne à agressivida<strong>de</strong>. A segundaparte enfoca a agressivida<strong>de</strong> que se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> das condições sob as quais seconstituem, num mesmo processo, o eu e a sua noção própria <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>. Naterceira tratamos <strong>de</strong> situar questões acerca da tensão agressiva dos processosdialéticos do eu.DA PULSÃO AO PULSIONAL: OS DESENVOLVIMENTOS DO EUNossa discussão sobre a agressivida<strong>de</strong> apóia-se principalmente no conceito<strong>de</strong> pulsão. O risco <strong>de</strong> tomar apoio neste conceito nos <strong>de</strong>ixa frente a proposiçõesfundamentais em psicanálise. Em especial, frente à concepção <strong>de</strong> pulsão<strong>de</strong> morte.Correndo esse risco, <strong>de</strong>paramo-nos com uma primeira atração <strong>de</strong> formação<strong>de</strong> opinião sobre a agressivida<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>ríamos ce<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, à tentação<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a agressivida<strong>de</strong> como uma espécie <strong>de</strong> realização da pulsão92


A AGRESSIVIDADE NOS LIMITES...dita <strong>de</strong> morte. Isso, como se houvesse outra pulsão, que se <strong>de</strong>sdobraria, porexemplo, na ternura. Estancamos nesse ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>rivação e <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong>lado, com isso, o curto circuito teórico que colaria a morte à agressivida<strong>de</strong>.Fechamos questão, <strong>de</strong> início, com a <strong>de</strong>cisão teórica, compartilhada pordiversos autores em psicanálise, <strong>de</strong> conceber a pulsão, no singular, invariavelmentecomo pulsão <strong>de</strong> morte. Adotamos essa premissa contando com <strong>de</strong>senvolvimentosteóricos concernentes a outra noção igualmente cara e controversaem psicanálise. Referimo-nos aqui à noção <strong>de</strong> eu. Com isso, seguimos Freud,ao dizer que procurava outra noz contra a qual apertar aquela que tinha emmãos para <strong>de</strong>scascar, certo <strong>de</strong> que com uma e outra, isoladamente, pouco oudificilmente avançaria em seu propósito. Não preten<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>scascar aqui osconceitos <strong>de</strong> pulsão e <strong>de</strong> eu, mas esperamos <strong>de</strong>monstrar possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>avanço na discussão proposta ao pressionar um <strong>de</strong>les contra o outro.Nossa pretensão <strong>de</strong> ampliar a discussão sobre a agressivida<strong>de</strong>, combase na precisão do conceito <strong>de</strong> pulsão, animou uma retomada da noção <strong>de</strong> euna obra <strong>de</strong> Freud. Numa tal retomada, po<strong>de</strong>mos encontrar-nos com avanços <strong>de</strong>Freud em direção à precisão <strong>de</strong>sse conceito, alcançada na mesma época daconcepção da pulsão como pulsão <strong>de</strong> morte. Nessa época, o eu advém, na obrado autor, como instância <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m psíquica. Interessa-nos pensar que se trata<strong>de</strong> um só lance <strong>de</strong> teorização. Esse interesse apóia-se na suposição <strong>de</strong> queFreud dá à noção <strong>de</strong> eu o estatuto <strong>de</strong> conceito somente com o advento daformulação da pulsão <strong>de</strong> morte (Freud, 1920).Sabemos que a noção <strong>de</strong> eu po<strong>de</strong> ser objeto da teorização em várioscampos, passando por filosofia, psicologia, sociologia ou antropologia. Parecenosóbvio, também, que ela ganha estatuto próprio em psicanálise, articuladadiretamente ao conceito <strong>de</strong> pulsão. Por opção <strong>de</strong> método, o eu interessa-nossomente pressionado à pulsão. Delimitamos, assim, o campo conceitual <strong>de</strong>nossa discussão.Além <strong>de</strong> situá-la no campo da psicanálise, a articulação dos conceitos<strong>de</strong> eu e <strong>de</strong> pulsão nos permite chegar a uma <strong>de</strong>nominação criteriosa concernentea esta última. O critério ao qual chegamos, a partir <strong>de</strong>ssa articulação, diferencia,por concepção e <strong>de</strong>nominação, <strong>de</strong> um lado a pulsão e, <strong>de</strong> outro, as pulsões,uma pulsão e o pulsional. Seguindo essa articulação, a concepção <strong>de</strong> pulsãocomo pulsão <strong>de</strong> morte leva a <strong>de</strong>nominação no singular a pulsão, reservando-seo emprego do termo no plural em as pulsões ou o acompanhamento <strong>de</strong> artigoin<strong>de</strong>finido em uma pulsão para as resultantes dos processos <strong>de</strong> representaçãoda pulsão pelo eu. Como adjetivo, pulsional qualifica, por sua vez, o já processadopelo eu. Preservamos, com esses cuidados <strong>de</strong> <strong>de</strong>nominação, a precisão dosconceitos com os quais queremos contar.93


A AGRESSIVIDADE NOS LIMITES...Trata-se, para nós, <strong>de</strong> <strong>de</strong>finirmos algumas características do domínio em que se<strong>de</strong>sdobra a paixão política do eu, com base nessa que po<strong>de</strong>ríamos consi<strong>de</strong>rarsua palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m: reunir.Fazer um <strong>de</strong> novo. Eis o <strong>de</strong>stino eterno do eu. No domínio da linguageme <strong>de</strong> Eros em que opera, o eu <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas precipitadas <strong>de</strong> expressãoprópria. Trata-se <strong>de</strong> formas antecipadas como reconhecíveis enquanto unida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> um sistema que chamaremos <strong>de</strong> linguagem, na medida em que a suaregulação comporte, para o eu, instantes <strong>de</strong> indistinção entre 1ª e 3ª pessoa, ouentre a que fala e o objeto da fala. Encontramos exemplo disso na fala dascrianças, que, até certa ida<strong>de</strong>, se referem a si mesmas como ele ou ela, aoinvés <strong>de</strong> eu. Isso ocorrerá em ocasiões caracterizadas pela indistinção entre osujeito e o objeto <strong>de</strong> uma ação. A regulação da língua, por sua vez, não comportaindistinção <strong>de</strong> conjugação verbal em 1ª e em 3ª pessoa.Antes <strong>de</strong> avançar, mesmo <strong>de</strong>ixando em suspenso a distinção acima referida,consi<strong>de</strong>remos algumas <strong>de</strong>corrências da vocação erótica e sintética do eu,<strong>de</strong> fazer um on<strong>de</strong>, em princípio, não há. Uma <strong>de</strong>las: o eu torna-se <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nteda linguagem, uma vez que sua constituição ocorre por processos dialéticos.Outra: a expressão propriamente unitária do eu o faz, no social, indivíduo-uno,não-dividido. Outra: como indivíduo, o eu <strong>de</strong>senvolve-se em contextos instituídos.Outra: suas ações têm, então, caráter político. Essas consi<strong>de</strong>rações sobreo eu e suas organizações encontram, a nosso ver, apoio em passagenstextuais da obra <strong>de</strong> Freud. Destacamos a seguir citação extensa e exemplar doque tratamos <strong>de</strong> enfatizar. Trata-se, para nós, <strong>de</strong> levar em conta o aprisionamentodo eu à linguagem e seus <strong>de</strong>slocamentos nos contextos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social.Referimo-nos aos limites e às possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ação do eu nesses contextos,<strong>de</strong>monstrados também por Lacan em seu texto sobre o tempo lógico. Nas palavras<strong>de</strong> Freud:“[...] que outro homem possua também consciência [“eu”, diríamosnós no contexto <strong>de</strong>sta discussão], eis aí um raciocínio que extraímosper analogiam sobre a base das exteriorizações e ações perceptíveis<strong>de</strong>sse outro, e a fim <strong>de</strong> fazermos inteligível sua conduta.(Psicologicamente mais correta é, no entanto, esta <strong>de</strong>scrição: semuma reflexão especial, atribuímos a todos que estão fora <strong>de</strong> nósnossa mesma constituição, e portanto também nossa consciência[“nosso mesmo eu”, novamente por nossa conta]; e esta i<strong>de</strong>ntificaçãoé na verda<strong>de</strong> a premissa <strong>de</strong> nossa compreensão.) Este raciocínio–ou essa i<strong>de</strong>ntificação- foi <strong>de</strong> antanho atribuída pelo eu aoutros homens, a animais, a plantas, a seres inanimados e ao95


TEXTOSmundo como um todo, e resultou aplicável toda vez que a semelhançacom o eu-indivíduo era assombrosamente gran<strong>de</strong>, mas sefazia mais duvidosa na medida em que o outro se distanciava doeu” (1915, p.165).Permitimo-nos extrair, <strong>de</strong>sta citação, apoio para as consi<strong>de</strong>rações avançadasanteriormente sobre o eu, apesar <strong>de</strong> Freud falar, nessa passagem, emconsciência. “Consciência” interessa-nos apenas em função do pólo negativoque esse termo evoca, no qual se situa, em nossa discussão, a pulsão. Agregamos,portanto, eu entre colchetes à “consciência”, nesta citação, como meraproposta <strong>de</strong> leitura e <strong>de</strong> positivação. Fazemos isso por percebermos, nessacitação, menção indireta aos limites e às possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ação do eu. O euaqui está proposto enquanto pólo positivado no encontro com a alterida<strong>de</strong>, a<strong>de</strong>speito da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consciência e consistência da pulsão.Essa passagem textual refere-se, a nosso ver, a noções <strong>de</strong>senvolvidastambém por Lacan em seus textos sobre a agressivida<strong>de</strong>, a criminologia, oestádio do espelho e o tempo lógico. Remetemo-nos, portanto, <strong>de</strong> um autor aooutro, para consi<strong>de</strong>rar os limites do eu no <strong>de</strong>senvolvimento das forças da vida eda noção <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>.Dentro <strong>de</strong>sses mesmos limites situamos nossa discussão sobre aagressivida<strong>de</strong>. Eis o interesse geral <strong>de</strong>ssa citação. Em especial, ela nos encaminhaàs duas próximas etapas <strong>de</strong> nossa discussão: uma sobre as <strong>de</strong>cisões do euna realização alienante e outra sobre a tensão agressiva dos processos dialéticos.DA CISÃO À DECISÃO DO EU:A AGRESSIVIDADE NA REALIZAÇÃO ALIENANTEPela sua natureza <strong>de</strong> morte, a pulsão promove constantemente um estado<strong>de</strong> cisão do eu. Justamente, no ponto <strong>de</strong>ssa cisão, o eu po<strong>de</strong> advir. O eu<strong>de</strong>senvolve suas ativida<strong>de</strong>s, portanto, sob pressão da pulsão. A segunda parte<strong>de</strong> nossa discussão <strong>de</strong>dica-se a situar consi<strong>de</strong>rações e questões acerca dopapel da agressivida<strong>de</strong> na constituição, pelo eu, da noção <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>.Uma vez caracterizada a ativida<strong>de</strong> do eu como pulsional, passamos a<strong>de</strong>screver algumas coor<strong>de</strong>nadas <strong>de</strong> constituição e articulação das suas formações.Destacamos a restrição lógica do campo – <strong>de</strong> linguagem – no qual eleopera a realização alienante mediante a formação <strong>de</strong> imagens. Daí o entendimento<strong>de</strong> que a noção <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> constitui-se simultaneamente ao próprio eu.A constituição mesma das formações do eu correspon<strong>de</strong> ao processo <strong>de</strong> realização.Pela <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong> para constituição <strong>de</strong>ssasformações, a realização torna-se alienante.96


A AGRESSIVIDADE NOS LIMITES...Como dissemos, essas imagens formam-se sob a suposição <strong>de</strong> um ponto<strong>de</strong> alterida<strong>de</strong> a partir do qual elas são concebíveis. Concebidas a partir daalterida<strong>de</strong>, tais imagens vêm, sob o modo espelhado da i<strong>de</strong>ntificação, formar oeu e os objetos do <strong>de</strong>sejo segundo uma lógica reversível e própria <strong>de</strong> um sistema<strong>de</strong> positivação <strong>de</strong> formas. Consi<strong>de</strong>ramos o espelhamento <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntificaçãoe a erótica própria da constituição <strong>de</strong>ssas formas seguindo Lacan na observaçãoda “[...] evi<strong>de</strong>nte relação da libido narcísica com a função alienante do[eu], com a agressivida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>la se <strong>de</strong>staca em qualquer relação com ooutro, nem que seja a da mais samaritana ajuda” (1949, p.102). Seguindo asconseqüências <strong>de</strong>ssa observação, nosso estudo das condições e dos processosda formação do eu torna-se também uma abordagem da agressivida<strong>de</strong> quese <strong>de</strong>spren<strong>de</strong> da realização alienante.Nas palavras <strong>de</strong> Lacan: “A agressivida<strong>de</strong> é a tendência correlativa <strong>de</strong> ummodo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação a que chamamos <strong>de</strong> narcísico, e que <strong>de</strong>termina a estruturaformal do eu do homem e do registro <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s característico <strong>de</strong> seu mundo”(1948, p.112). Adotamos esta tese pelo seu interesse <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar a agressivida<strong>de</strong>como inerente aos processos <strong>de</strong> formação do eu e da noção <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>.A agressivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>-se do que Lacan <strong>de</strong>screve como“[...] o afloramento <strong>de</strong> uma estrutura que se encontra através <strong>de</strong>todas as etapas da gênese do eu, e mostra que a dialética fornecea lei inconsciente das formações, mesmo as mais arcaicas, doaparelho <strong>de</strong> adaptação, assim confirmando a gnoseologia <strong>de</strong> Hegelque formula a lei geradora da realida<strong>de</strong> no processo tese-antítesesíntese”(1950, p.142). Destacamos, com o autor, a consi<strong>de</strong>ração<strong>de</strong> uma agressivida<strong>de</strong> própria dos <strong>de</strong>senvolvimentos do eu e dosprocessos dialéticos. Ela <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>sses processos <strong>de</strong> constituição<strong>de</strong> formas <strong>de</strong>finidas e unitárias por meio <strong>de</strong> uma eróticaapta a promover estagnações formais em sínteses.De fato, o eu promove estagnação formal <strong>de</strong> traços perceptíveis em imagensou quadros <strong>de</strong> figura. Conforme Lacan,“[...] essa estagnação formal é parenta da estrutura mais geral doconhecimento humano: a que constitui o eu e os objetos sob atributos<strong>de</strong> permanência, <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> substancialida<strong>de</strong>, emsuma, sob forma <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s ou <strong>de</strong> coisas muito diferentes <strong>de</strong>ssasGestalten que a experiência nos permite isolar no domínio docampo disposto segundo linhas do <strong>de</strong>sejo animal” (1948, p.114).97


A AGRESSIVIDADE NOS LIMITES...Antes <strong>de</strong> referirmo-nos aos processos dialéticos, consi<strong>de</strong>remos a dimensãopolítica da ativida<strong>de</strong> do eu. Nessa dimensão dá-se a circulação social <strong>de</strong>um eu que, junto a outros em condição <strong>de</strong> semelhantes, proce<strong>de</strong> sucessivamentea uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões 5 . Destacamos que nessa circulação, social e <strong>de</strong>efeitos políticos, o eu encontra lugar como indivíduo. Enquanto tal, ele circulacom apoio na falta <strong>de</strong> uma divisão <strong>de</strong> si mesmo. O termo indivíduo tem aqui osentido <strong>de</strong> não-dividido e refere-se a uma condição <strong>de</strong> não-divisão. O processo<strong>de</strong>cisório pressupõe, por sua vez, a passagem do eu <strong>de</strong> um estado <strong>de</strong> cisão aum estado <strong>de</strong> não-cisão. Em síntese, exercitando sua prerrogativa <strong>de</strong> criar unida<strong>de</strong>s,como já dissemos, o eu faz e refaz um on<strong>de</strong> não havia. Nesse sentido,estamos tratando <strong>de</strong> situar a constituição da noção <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> como realizaçãoalienante, com base num processo dialético em que, sob i<strong>de</strong>ntificaçõesresolutivas, o eu vai e vem da cisão à <strong>de</strong>cisão.Em alguns aspectos, talvez o individualismo ou a prevalência das imagensnos tempos mo<strong>de</strong>rnos possam nos interessar nesta discussão, ao consi<strong>de</strong>rarmosa individuação como afirmação própria <strong>de</strong> um eu que toma <strong>de</strong>cisões.Alguma imagem figurará, em todo caso, o movimento supostamente correspon<strong>de</strong>nteà tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão. Fica implícito que, nesses tempos, a suposição emquestão compõe a realização alienante e que a imagem do movimento supostamente<strong>de</strong>cisório po<strong>de</strong> adquirir caráter político.Individuação indica também, numa <strong>de</strong> suas acepções 6 , “realização daidéia geral em cada indivíduo singular”. Destacamos, aqui, “realização da idéia”e “idéia geral”, ten<strong>de</strong>ndo a pensar que a individuação da realização alienanterequer processos lógicos como o <strong>de</strong> generalização. Junto ao <strong>de</strong> generalização,também o <strong>de</strong> categorização. Esses processos têm limitações tão evi<strong>de</strong>ntescomo as da linguagem e as <strong>de</strong> Eros, sobre a qual se apóia a ativida<strong>de</strong> do eu emsua circulação social <strong>de</strong> caráter individual. Em todo caso, a ativida<strong>de</strong> do eu nosparece prisioneira <strong>de</strong>sses limites.Seguimos ao lado do dicionário. Para “generalização” temos: “processopelo qual se reconhecem caracteres comuns a vários objetos singulares, daíresultando quer a formação <strong>de</strong> um novo conceito ou idéia, quer o aumento daextensão <strong>de</strong> um conceito já <strong>de</strong>terminado que passa a cobrir uma nova classe <strong>de</strong>exemplos” 7 . Fica evi<strong>de</strong>nte, segundo esta acepção, sua articulação à noção <strong>de</strong>5Aqui, mais uma vez, nossa referência encontra-se nos textos sobre o inconsciente e sobre otempo lógico, <strong>de</strong> Freud e <strong>de</strong> Lacan, anteriormente mencionados.6Cf. Novo Aurélio, Dicionário Eletrônico, versão 3.0, Nova Fronteira, verbete “individuação”.7Cf. I<strong>de</strong>m, verbete “generalização”.99


TEXTOScategorização. Para “categoria” temos: “conceito <strong>de</strong> alto grau <strong>de</strong> generalida<strong>de</strong>que <strong>de</strong>fine, em perspectivas e níveis diversos, domínios do conhecimento e daação; cada um dos conceitos fundamentais do entendimento puro, que confereunida<strong>de</strong> aos juízos” 8 . Generalização e categorização mostram-se, por <strong>de</strong>finição,como prerrogativas lógicas da ativida<strong>de</strong> do eu unificador. A elas soma-se a doprocessamento das sínteses pelas quais se concluem e se relançam seus processosdialéticos.Persistimos em propor que a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> uma cisão do eu. Defato, a partir das características da <strong>de</strong>cisão do eu, enten<strong>de</strong>mos, ao pé da letra,que ela consiste na negação <strong>de</strong> um estado <strong>de</strong> cisão. Nossa atenção concentrase,por isso, na dita cisão do eu. Trata-se <strong>de</strong> uma cisão dita pela negativa ou<strong>de</strong>sdita, nos mol<strong>de</strong>s da <strong>de</strong>negação ou do <strong>de</strong>sdito 9 . Uma das figuras <strong>de</strong>ssa cisãoencontra-se nos ditos estados <strong>de</strong> crise. Nesses estados, embora em crise, o eucontinua pressionado pela pulsão. Evocamos, como quadro <strong>de</strong> tal pressão, afigura da expectativa social quanto aos mínimos indícios <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> do eu.Em períodos <strong>de</strong> crise, e para efeitos <strong>de</strong>cisórios, o eu conta com umaespécie <strong>de</strong> arsenal lógico para formação <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s; unida<strong>de</strong>s, estas, <strong>de</strong>stinadasa articulações. Em consi<strong>de</strong>ração a isso lembramos, com uma citação <strong>de</strong>Lacan, alguns avatares da pulsão verificáveis, em geral, nas sínteses do eu e,em especial, na forma dada ao que o autor chama <strong>de</strong> traços imperceptíveis nosprocessos dialéticos.“É ainda mais significativo reconhecê-la [a forma dos traços imperceptíveisno processo dialético] na sucessão das crises – <strong>de</strong>smame,intrusão, Édipo, puberda<strong>de</strong>, adolescência – que reformulam,cada uma <strong>de</strong>las, uma nova síntese dos aparelhos do eu, numaforma cada vez mais alienante para as pulsões que ali são frustradas,e cada vez menos i<strong>de</strong>al para as que ali encontram sua normalização.Essa forma é produzida pelo fenômeno psíquico mais fundamental,talvez, que a psicanálise <strong>de</strong>scobriu: a i<strong>de</strong>ntificação, cujopo<strong>de</strong>r formativo verifica-se mesmo em biologia. E cada um doschamados períodos <strong>de</strong> latência pulsional [...] é caracterizado pelopredomínio <strong>de</strong> uma estrutura típica dos objetos do <strong>de</strong>sejo” (1950,p.143).8Cf. Novo Aurélio, Dicionário Eletrônico, versão 3.0, Nova Fronteira, verbete “categoria”.9Verneinung ou Versagung, nos termos <strong>de</strong> Freud.100


A AGRESSIVIDADE NOS LIMITES...Devido a nossos interesses <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong>stacamos, a partir <strong>de</strong>ssa citação,a adolescência como um dos períodos ditos <strong>de</strong> crise. A adolescência nosimporta, nesta altura da discussão, enquanto período <strong>de</strong> latência pulsional. Atribuindoao eu a ativida<strong>de</strong> pulsional, enten<strong>de</strong>mos tal período como exemplar <strong>de</strong> umasuspensão dos seus processos dialéticos. Eis, para nós, o sentido da crise: inativida<strong>de</strong>do eu, ou, em outras palavras, latência pulsional. Convém dar <strong>de</strong>staquetambém para a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> caráter objetivante e resolutivo, bem como para asíntese que se opera por ocasião dos processos <strong>de</strong>cisórios <strong>de</strong> formação do eu.Salientamos, também, o que o autor chama <strong>de</strong> predomínio <strong>de</strong> uma estruturatípica dos objetos do <strong>de</strong>sejo em períodos <strong>de</strong> crise ou <strong>de</strong> latência pulsional.Encontra-se aqui, a nosso ver, uma referência, pela negativa, à ativida<strong>de</strong> do eu.Em questão nesses períodos, a inativida<strong>de</strong> do eu suspen<strong>de</strong> os processosdialéticos da linguagem e <strong>de</strong> Eros. Sob pressão, nessas ocasiões, o recurso doeu a operações lógicas elementares <strong>de</strong> generalização e tipificação parece favorecera elaboração <strong>de</strong> novas sínteses. Aliando-se estas operações a i<strong>de</strong>ntificaçõesnos períodos <strong>de</strong> crise, as formações do eu po<strong>de</strong>m reconstituir-se e a realizaçãoalienante retomar seu curso. Referimo-nos aqui, novamente, ao percursodo eu que vai e vem da cisão à <strong>de</strong>cisão.Na seqüência do trecho citado acima, Lacan traz a constatação <strong>de</strong> que“cada uma <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ntificações <strong>de</strong>senvolve uma agressivida<strong>de</strong> que a frustraçãopulsional não basta para explicar... mas que exprime a discordância que seproduz na realização alienante [...]” (1950, p.143). Em especial, ele situa aagressivida<strong>de</strong> na realização alienante como tensão. Essa tensão <strong>de</strong>senvolve-sepor ocasião da i<strong>de</strong>ntificação e expressa, com base nela, uma discordância.Para as aspirações do eu, o potencial negativo e, portanto, tensional, atribuído aessa discordância está em suspen<strong>de</strong>r os processos dialéticos.Centrando o foco na agressivida<strong>de</strong> como tensão à qual <strong>de</strong>dicamos a terceiraetapa <strong>de</strong>sta discussão, acompanhamos Lacan ao <strong>de</strong>ixar, a nosso ver, emsegundo plano, a frustração pulsional. Para o autor, parece estar em primeiroplano o fato <strong>de</strong> essa tensão ser inerente ao processo dialético. Para o eu, osproblemas <strong>de</strong>vem-se apenas aparentemente a um aumento <strong>de</strong>ssa tensão, mesmoem caso <strong>de</strong> frustração pulsional. Os impasses em sua ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>correm,efetivamente, <strong>de</strong> uma suspensão dos processos dialéticos.Nos termos <strong>de</strong> Lacan,“[...] a tensão agressiva, que integra a pulsão frustrada cada vezque a falta <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação do ‘outro’ faz abortar a i<strong>de</strong>ntificaçãoresolutiva, <strong>de</strong>termina um tipo <strong>de</strong> objeto que se torna criminógenona suspensão da dialética do eu” (1950, p.143).101


TEXTOSEm outras palavras, a tensão agressiva apenas <strong>de</strong>terminará um tipo <strong>de</strong>objeto criminógeno em caso <strong>de</strong> suspensão dos processos dialéticos. O eu per<strong>de</strong>,neste caso, seu estatuto próprio e não estamos mais no campo da linguagem.Com a prevalência da categorização em <strong>de</strong>trimento do objeto, não temoscomo situar um eu responsável pela ação que po<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vido à persistência datensão, <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> tal suspensão. Nesse caso, instaura-se o domínio da violência,pois não se trata mais <strong>de</strong> agressivida<strong>de</strong>.Os casos <strong>de</strong> agressivida<strong>de</strong> restringem-se aos domínios do eu e da ativida<strong>de</strong>pulsional, entendidos como alheios aos da violência e do crime. De fato,quem lida com esses domínios talvez nos <strong>de</strong>sse testemunho <strong>de</strong> um afazercaracterizado pela falta <strong>de</strong> um eu a quem dirigir a palavra. Uma vez que aagressivida<strong>de</strong> se restringe ao domínio do eu, a tensão agressiva tem lugar noslimites da linguagem e, portanto, dos processos dialéticos.A TENSÃO AGRESSIVA DOS PROCESSOS DIALÉTICOSNo texto Agressivida<strong>de</strong> em psicanálise, Lacan propõe-se a or<strong>de</strong>nar reflexõessobre a tensão <strong>de</strong> culpabilida<strong>de</strong>, a nocivida<strong>de</strong> oral, a fixação hipocondríacae o masoquismo primordial, “para disso tudo isolar a noção <strong>de</strong> uma agressivida<strong>de</strong>ligada à relação narcísica e às estruturas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecimento e <strong>de</strong> objetivaçãosistemáticos que caracterizam a formação do eu” (1948, p.118). Concordamoscom a relevância <strong>de</strong> pensar “a noção <strong>de</strong> uma agressivida<strong>de</strong> como tensão correlataà estrutura narcísica [...]” (1948, p.119). Embora não pretendamos abordar aquiesta estrutura, tratamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar a agressivida<strong>de</strong> como <strong>de</strong>corrente da i<strong>de</strong>ntificaçãoobjetivante e, nesta parte <strong>de</strong> nossa discussão, como tensão inerenteaos processos dialéticos.Continuamos com Lacan, consi<strong>de</strong>rando a agressivida<strong>de</strong> como significativa<strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento do eu (Cf. 1948, p.123). Esses <strong>de</strong>senvolvimentosocorrem mediante processos dialéticos. Dialética tem, para nós, o sentido geral<strong>de</strong> “arte do diálogo ou da discussão” 10 e, em especial, o <strong>de</strong> “<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>processos gerados por oposições que provisoriamente se resolvem em unida<strong>de</strong>s”11 . Enten<strong>de</strong>mos, nesse sentido, que uma i<strong>de</strong>ntificação po<strong>de</strong> ter caráterresolutivo, uma vez que com ela se obtenha síntese. Com isso, resolvem-seprovisoriamente, em unida<strong>de</strong>, processos gerados por oposições. Entre opostos,portanto, situamos o que Lacan chama <strong>de</strong> negativida<strong>de</strong> dialética.Ao falar sobre agressivida<strong>de</strong>, o autor diz:10Cf. Novo Aurélio, Dicionário Eletrônico, versão 3.0, Nova Fronteira, verbete “dialética”.11I<strong>de</strong>m.102


A AGRESSIVIDADE NOS LIMITES...“Essa tensão manifesta a negativida<strong>de</strong> dialética inscrita nas própriasformas em que se entranham no homem as forças da vida, epo<strong>de</strong>mos dizer que o talento <strong>de</strong> Freud <strong>de</strong>u a medida <strong>de</strong>la aoreconhecê-la como ‘pulsão do eu’ sob o nome <strong>de</strong> instinto <strong>de</strong> morte”(1950, p.143). Surge-nos, a partir <strong>de</strong>ssa citação, uma questão: apulsão teria como participar dos processos do eu senão fosse pelanegativa? Sabemos que Freud <strong>de</strong>dicou um texto importante aotema da negação, elaborado na época em que formulava teoricamentea instância psíquica chamada o eu, tendo chegado a precisõesimportantes sobre a pulsão com a noção <strong>de</strong> pulsão <strong>de</strong> morte.Enten<strong>de</strong>mos, com base no texto sobre a negação (1925, p.249-258), que as formações do eu se constituem pela referência a umanegativida<strong>de</strong> primordial. O autor dá a enten<strong>de</strong>r, a nosso ver, que apulsão participa dos processos do eu como referência primordial ecomo polarização negativa apta a gerar tensão.Eis a tensão, aliás, que encontra se<strong>de</strong> no corpo diante da perspectiva dapresença <strong>de</strong> outro corpo, e que o eu, por sua vez, se regozija em fazer retroce<strong>de</strong>r.Em todo caso, essa negativida<strong>de</strong> se encontraria na base da dita cisão doeu. O caráter difuso da prontidão corporal a que essa tensão dá lugar correspon<strong>de</strong>à in<strong>de</strong>finição característica da negativida<strong>de</strong> da qual ela se origina. De fato, qualquerexercício <strong>de</strong> linguagem nos mostra que a negativa <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia processos<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m lógica apenas <strong>de</strong> modo primário. Sua primarieda<strong>de</strong> está, por um lado,em inaugurar tais processos, mesmo por dispersão, <strong>de</strong>vido às aspirações própriasdas negativas à inconsistência. Por outro lado, sua primarieda<strong>de</strong> estácondicionada a que um exercício secundário venha permitir o <strong>de</strong>senvolvimentoem direção a uma resolução do processo lógico e dialético. Referimo-nos maisuma vez a questões em estado <strong>de</strong> elaboração, surgidas a partir da leitura, entreoutras, do texto <strong>de</strong> Lacan sobre o tempo lógico, que trata, a nosso ver, <strong>de</strong>consi<strong>de</strong>rar os limites e as possibilida<strong>de</strong>s do domínio do eu.Fica clara aqui, nos parece, a distinção entre os domínios da pulsão e doeu. Em princípio, diríamos nós, a pulsão não tem nada a ver com o eu ou comEros. A partir da irredutível falta <strong>de</strong> consistência e sentido da pulsão – suanegativida<strong>de</strong>, portanto – o eu entra em ação. A erótica própria da ação <strong>de</strong> formarunida<strong>de</strong>s mostra-se como potencial do eu alheio à pulsão. Esta última persistiráconstante, e negativamente vigente, como pulsão <strong>de</strong> morte. Entrementes, cadaformação do eu encarna, num certo sentido, essa negativida<strong>de</strong>.Seguimos Lacan na consi<strong>de</strong>ração da tensão agressiva como manifestação<strong>de</strong> uma negativida<strong>de</strong> dialética. Essa tensão promove ativida<strong>de</strong> por parte do103


TEXTOSeu, que, face à dimensão <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong>, se volta para a linguagem e passa aconstituir formas <strong>de</strong> articulação. De tal modo, nos diz Lacan, que “toda formado eu encarna, com efeito, essa negativida<strong>de</strong> [...]” (1950, p.143). As formasconstituídas pelo eu dão corpo à negativida<strong>de</strong> dos processos dialéticos e passama sediar a tensão que po<strong>de</strong> promover a sua resolução. O potencial resolutivo<strong>de</strong>ssas formas nos parece advir do caráter ao mesmo tempo pulsional e lógicoque elas po<strong>de</strong>m adquirir sob tensão agressiva. Esboça-se, assim, uma tese,<strong>de</strong> que a agressivida<strong>de</strong> própria dos processos dialéticos contribui efetivamentepara que uma formação do eu tenha, a ao mesmo tempo, caráter pulsional elógico.Estamos falando, aqui, <strong>de</strong> uma negativida<strong>de</strong> primordial, tanto das formaçõesdo eu como da linguagem. Inerente aos processos dialéticos, essanegativida<strong>de</strong> mostra seu caráter primordial nos <strong>de</strong>sdobramentos formais que<strong>de</strong>la <strong>de</strong>correm. Ela caracteriza aí a antítese e expressa o princípio do contraditório.Mesmo sem proce<strong>de</strong>r à argumentação filosófica que conviria a sua discussão,situamos a contradição como o “caráter essencial <strong>de</strong> tudo o que é real:aquele que revela que cada coisa que é só se compreen<strong>de</strong> pela negação <strong>de</strong> algoque a prece<strong>de</strong>u, negação que se perfaz pela posição da coisa mesma, isto é,pela negação daquela negação. É a categoria fundamental da lógica dialética” 12 .De fato, o processo dialético aparenta um jogo <strong>de</strong> forças. Interessa-nos situarque, em todo caso, ele requer suportes da linguagem.Ilustremos com lembranças elementares <strong>de</strong> estudos em física a polarizaçãotensiva e os vetores em jogo na formação, pelo eu, das unida<strong>de</strong>s resolutivasdos processos dialéticos. Referimo-nos às noções <strong>de</strong> direção e sentido. Demodo elementar, as noções <strong>de</strong> direção e <strong>de</strong> sentido em física estão atreladasuma à outra. A tal ponto que não se concebe uma sem a outra. Grosso modo, anoção <strong>de</strong> sentido contempla cada uma das possibilida<strong>de</strong>s ou vias opostasdisponibilizadas a partir <strong>de</strong> uma dada direção. Essa direção, por sua vez, tornaseproposta viável a partir da <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> um sentido possível que, por sua vez,está condicionada à <strong>de</strong> um sentido contrário. O vai-vem do sentido na direção<strong>de</strong>ssa cansativa ilustração tem lugar, a nosso ver, pela reversibilida<strong>de</strong> característicadas organizações obtidas por efeito <strong>de</strong> imagens com pretensões objetivas.Essa reversibilida<strong>de</strong> foi <strong>de</strong>monstrada por Lacan na introdução ao Semináriosobre “A carta roubada”, pela diferente or<strong>de</strong>nação – imaginária ou simbólica –das séries formadas por sinais diferenciais 1, 2, 3 e a, b, g, d (Cf. 1955, p.49-59).12Cf. Novo Aurélio, Dicionário Eletrônico, versão 3.0, Nova Fronteira, verbete “contradição”.104


A AGRESSIVIDADE NOS LIMITES...Seguimos, a partir <strong>de</strong>sse texto, a hipótese <strong>de</strong> que a agressivida<strong>de</strong> própria dalinguagem <strong>de</strong> Eros e do eu, mediante a qual se constituem as unida<strong>de</strong>s que setravam como opostos, apóia-se nessa reversibilida<strong>de</strong>. Trata-se, evi<strong>de</strong>ntemente,<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações que aguardam <strong>de</strong>senvolvimentos ulteriores. Elas nos interessamna medida em que colaboram para o estudo da agressivida<strong>de</strong> e para distinçãoque perseguimos entre linguagem e língua. Situando alguns princípios dalinguagem, portanto, esperamos encontrar os limites da agressivida<strong>de</strong> e dispensara conotação <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> com a qual já se procurou justificá-la na predaçãohumana.Enfim, esse conjunto <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações sobre a agressivida<strong>de</strong> leva a questõesdiversas, que igualmente carecem <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimentos. Dentre elas situaríamosalgumas sobre o masoquismo, perguntando-nos: a essência do masoquismoestá na erótica da posição do objeto da agressão? Essa erótica tem aver com a encarnação da negativida<strong>de</strong> na linguagem ou com a experiência doslimites do eu? E, noutra direção, o que o flerte adolescente com a <strong>de</strong>linqüênciateria a ver com a latência pulsional ou com a suspensão da dialética do eu?Quanto à agressivida<strong>de</strong>, ainda em discussão, mantemos o questionamento:po<strong>de</strong>-se pensar uma agressivida<strong>de</strong> fora dos limites da linguagem? Até aqui somoslevados a pensar que não.REFERÊNCIAS:FREUD, S. Lo inconsciente (1915). In: ______. Obras completas. Buenos Aires:Amorrortu, 1994. v. 14.FREUD, S. Más allá <strong>de</strong>l principio <strong>de</strong> placer (1920). In: ______. Obras completas.Buenos Aires: Amorrortu, 1994. v. 18.FREUD, S. Pue<strong>de</strong>n los legos ejercer el análisis? Diálogos com um juez imparcial(1926). In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1994. v. 20.FREUD, S. La negación (1925). In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1994.v. 19.FREUD, S. El malestar em la cultura (1930). In: Obras completas. Buenos Aires:Amorrortu, 1994. v. 21.LACAN, J. A agressivida<strong>de</strong> em psicanálise (1948). In: Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge-Zahar, 1998.LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu (1949). In:______.Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge-Zahar, 1998.LACAN, J. Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia (1950). In:______. Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge-Zahar, 1998.LACAN, J. Seminário sobre “A carta roubada” (1955). In: ______. Escritos. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Jorge-Zahar, 1998.Novo Aurélio. Dicionário Eletrônico, versão 3.0, Nova Fronteira.105


TEXTOSESTRANHAVAGÂNCIA NA LÍNGUA 1Marta Pedó 2RESUMOEste ensaio aborda as formações homofônicas presentes na linguagem, queindicam pontos relevantes ao trabalho clínico em psicanálise, indagando sobreo estranhamento pelo qual o sujeito passa durante o processo em que é solicitadoa associar livremente, inerente ao vaguear na linguagem, que dá condiçõespara a ultrapassagem do sentido sintomático durante a cura.PALAVRAS-CHAVE: língua, homofonia, estranhamento, ultrapassagem.WANDERING IN THE LANGUAGEABSTRACTThis essay approaches the homophonic formations present in language,formations that indicate significant points to the clinical work in psychoanalysis.It investigates the estrangement that the subject goes through while asked tofreely associate, inherent to the erring in language, which allows the symptom’ssense surpassing during the cure.KEYWORDS: language, homophony, estrangement, surpassing.1061Apresentado nas Jornadas <strong>de</strong> trabajo Inconsciente y Pulsión, promovida no marco <strong>de</strong>Convergencia, Movimento Lacaniano para a psicanálise freudiana, em Buenos Aires, Argentina,em agosto <strong>de</strong> 2006 e apresentado nas Jornadas Clínicas da <strong>APPOA</strong>, Fundamentos da psicanálise:inconsciente, repetição, transferência, pulsão, em outubro <strong>de</strong> 2006.2Mestre em Psicologia; Psicanalista; Membro da Associação Psicanalítica <strong>de</strong> <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>. E-mail: mpedo@brturbo.com.br.


ESTRANHA VAGÂNCIA...Q“ uando eles mentem?”–Essa pergunta, repetida por um paciente referindo seu sofrimento, encontra-secerto dia com um sonho que culmina na frase when they lie. Quandoeles mentem – ou – quando eles <strong>de</strong>itam. A dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tradução para a línguamaterna revela a preciosida<strong>de</strong> do encontro, que suspen<strong>de</strong> o sentido, entre osexo e a mentira, nessa formulação que lhe vem em língua estrangeira.Imprevistos, extravagantes, não-ordinários, constituem elementos <strong>de</strong> umamesma série que compõem o jogo pelo qual algumas palavras são <strong>de</strong>cisivas.O ensaio que lhes proponho parte <strong>de</strong>sse título, que enseja um convite avaguear, perambular, por alguns efeitos da linguagem, no que ela se constituicomo afazer possível da psicanálise. E, na medida em que nesse afazer estamoscotidianamente confrontados pelos analisandos em seu sofrimento vivo, pulsional,também abordaremos o laço da linguagem com o corpo no âmbito da pulsão,pois enten<strong>de</strong>mos que a linguagem or<strong>de</strong>na e <strong>de</strong>termina as condições do gozo edo mal-estar.Estranha... vagância... extravagância... na língua.Há um autor sempre lembrado, quando pensamos em extravagâncias nalinguagem. Difícil não nos referirmos, pelo menos minimamente, aqui, a JamesJoyce, tantas vezes enigmático, tantas vezes abordado por psicanalistas e outrosintelectuais. Ele é um escritor cuja leitura faz pensar no que vagueia nalíngua. E, se Joyce vagueia na língua <strong>de</strong>ssa forma, é porque na sua escrita oorganizador paterno não está. Po<strong>de</strong>-se dizer que Joyce vagueia na alíngua 3 .Na leitura <strong>de</strong> Joyce, seja em Finnegans Wake (1939), ou mesmo emUlysses (1922), encontramos um modo <strong>de</strong> escrita em que os jogos <strong>de</strong> palavrasprecipitam <strong>de</strong> um uso que ele faz da língua inglesa, que tem o que aqui chamo<strong>de</strong> “extravagante”, pois os fonemas inseridos em múltiplas ca<strong>de</strong>ias significantesabolem muito do sentido. Abolido o sentido imaginário, a letra e o som vagueiampor inúmeras tramas possíveis, como se tratasse da própria alíngua, no sentidolacaniano. O Outro-organizador não está, e sua ausência tem o efeito <strong>de</strong> ilimitado,aberto, errante na língua.O que faz possível o reconhecimento <strong>de</strong> Joyce pelo social? On<strong>de</strong> o leitorpo<strong>de</strong> encontrar a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> seguir a leitura?3Lacan, J. El seminario: seminario 21. Classe 5, <strong>de</strong> Enero <strong>de</strong> 1974. Lacan fala que o sentido daspalavras é apenas um “aparato para o coito sexual”, e que a linguagem é feita <strong>de</strong> elementos“unos”, unida<strong>de</strong>s, que constituem ca<strong>de</strong>ia a partir <strong>de</strong> certo or<strong>de</strong>namento. Essa or<strong>de</strong>m mantémuma unida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve ser rompida para que <strong>de</strong>sapareça o sentido. Isso não é válido paralalengua (lalangue), na qual o sentido escorre, flui copiosamente pela ambigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cadapalavra.107


TEXTOSComo leitora iniciante <strong>de</strong> Joyce, encontrei-me, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> as primeiraspáginas provocarem exaustão, satisfeita em ler em voz alta. Rapidamente concluí,na felicida<strong>de</strong> do incauto, que a satisfação nessa leitura residia numa certamusicalida<strong>de</strong> com que ele trançava os fonemas no <strong>de</strong>senrolar das palavras.Assim, o fisgamento para seguir na aventura proposta pelo autor provinha <strong>de</strong>sseefeito musical do encontro <strong>de</strong> vocábulos quase sem sentido. Efeito sonoro napercepção <strong>de</strong> nuances entre-línguas parcializadas e <strong>de</strong>compostas, as quaispouco se faziam perceber na leitura silenciosa 4 .Diana Voronovsky (2001) lembra que é ao limitar a metáfora, usufruindoda condição partitiva da língua mãe, que se quebra a língua e se criam línguasparciais. Essa <strong>de</strong>composição, diz, introduz o estranho no familiar.No texto O estranho, <strong>de</strong> Freud, “o estranho é aquela categoria do assustadorque remete ao que é conhecido, <strong>de</strong> velho, e há muito familiar” ([1919],1976, p. 277). Estranho que alu<strong>de</strong> a algo sinistro, porque relativo a um encontroalienante. O fisgamento <strong>de</strong> algumas obras literárias, mesmo que sinistro e assustador,convoca a seguirmos a leitura, guiados pelo autor, que nos ilu<strong>de</strong> napromessa <strong>de</strong> dizer toda a verda<strong>de</strong>, para, no final, exce<strong>de</strong>r essa verda<strong>de</strong>.Jentsch, citado por Freud ([1919], 1976), dá uma <strong>de</strong>finição incompleta doestranho, mas nem por isso menos interessante, ao dizê-lo como aquilo quenão sabemos como abordar. Freud segue por ela ao evocar a compulsão àrepetição, por exemplo na cena em que vagueia pelas ruas <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>, naItália e, na busca <strong>de</strong> seu caminho, esbarra por três vezes com a mesma rua,on<strong>de</strong> as pessoas já começavam a olhá-lo. Naquele momento, <strong>de</strong> repetiçãoinvoluntária diante <strong>de</strong> uma situação estrangeira, a idéia que sobrevém, diz ele, é<strong>de</strong> algo fatídico e inescapável, seguida pela sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>samparo e estranheza.Po<strong>de</strong>ríamos seguir Freud, acompanhando nosso aporte com a leitura <strong>de</strong>Lacan, e pensar que, em <strong>de</strong>terminadas circunstâncias, em terra estrangeira ouem língua estrangeira, a compulsão à repetição faz-se presente como o impossível,presença real que carecemos <strong>de</strong> meios para abordar.Richard é inglês, está vivendo há cerca <strong>de</strong> meio ano no Brasil e diz queainda sofre por dificulda<strong>de</strong>s com a língua. Certo dia, conta ele, numa cena <strong>de</strong>carícias com a namorada brasileira, pergunta a ela: “– Está bem assim? Assimtá melhor?”, e ela respon<strong>de</strong>: “– Um pouco”. O que quer dizer esse um pouco?Richard sabe o que significa um pouco. Conhece a tradução a little, mas esse1084Robson Pereira lembra que o próprio Joyce lia recitando-quase-cantando seus textos. Vi<strong>de</strong> agravação <strong>de</strong> trecho <strong>de</strong> Ulysses feita em 1922, que po<strong>de</strong> ser escutada no Musée <strong>de</strong> la Parole etdu Geste, em Paris.


ESTRANHA VAGÂNCIA...conhecimento não lhe é suficiente, e se pergunta: “– O que quer dizer esse umpouco?” “– Um pouco mais? Só um pouco? “Pouco?” “– O que quer dizer isto –é suficiente um pouco?”O eco que se faz a partir daí é relativo a essa suspensão do saber, quebeira o mau augúrio. Richard vacila então, como se oferecido a esse Outro quevai lhe indicar se ele tem suficiente savoir-faire, com o corpo sexuado e com alíngua – alíngua, propriamente falando.Richard mostra bem que é no confronto com a língua estrangeira queficamos <strong>de</strong> frente, <strong>de</strong> forma mais ostensiva, para o que é inerente à linguagem,o mal-entendido.Curiosamente, no mesmo texto do estranho ([1919], 1976), Freud, interessadoem pesquisar o que os dicionários <strong>de</strong> língua estrangeira dizem serUnhmeilich, escreve que não encontra neles nada <strong>de</strong> novo e, literalmente, “talvezapenas porque nós próprios falamos uma língua que é estrangeira”(p 278,[1919], 1976).Se, na linguagem comum, na tagarelice cotidiana, ou mesmo no faletudo psicoterápico, é o consenso que se almeja, na psicanálise trata-se <strong>de</strong>visada muito diferente – trata-se da língua enquanto prenhe <strong>de</strong> bizarria, extravagante.Esses jogos com a linguagem, seus códigos e <strong>de</strong>codificações possíveis,para lembrar um exemplo não pouco notável, tem levado às telas <strong>de</strong> cinemamuita gente, no Código da Vinci (2006), Harry Potter (2001 e seguintes: 2003,2005, 2006) ou O nome da Rosa (1986). O gran<strong>de</strong> lance <strong>de</strong>ssas obras é justamentea aventura na língua, que arrasta a emoção e o corpo consigo: nos jogos<strong>de</strong> palavras, há uma mínima chance <strong>de</strong> se chegar lá. O que po<strong>de</strong>mos ler noatual interesse por <strong>de</strong>svendar códigos, em transitar entre-línguas. Trata-se dabusca pelo <strong>de</strong>svendamento ou da magia do <strong>de</strong>saparecimento?Se, como leitores ou espectadores, acompanhamos as aventuras, ansiosospelo gran<strong>de</strong> momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendamento, alguém no divã também supõeque haveria um Outro capaz <strong>de</strong> – recebendo essas mensagens cifradas – <strong>de</strong>svendaro enigma tão longamente cultivado. Esse Outro, analista por efeito datransferência, po<strong>de</strong>ria dar conta <strong>de</strong> organizar essas palavras – essas palavrasque vagueiam como sobre o mar e que não parecem conhecer limites.A transferência representa, portanto, a esperança e a convicção <strong>de</strong> queesse Outro a quem o analisante se dirige em associação livre organize o <strong>de</strong>stinodas palavras soltas e sem sentido. Ou seja, sob efeito <strong>de</strong> amor transferencial, oOutro é amado como forma <strong>de</strong> fazê-lo existir, para fazê-lo uno, transformá-lo emunida<strong>de</strong>. Admite-se que esse Outro se faria presente numa língua secreta, cujamensagem Ele leria. A questão é que essa suposição do analisante será frus-109


TEXTOStrada, o analista não opera como um <strong>de</strong>codificador <strong>de</strong> mensagens que abrefinalmente o segredo contido naquilo que nem o analisante enten<strong>de</strong>. A alínguanão conhece limites, e a cura está na liquidação da transferência, ou seja, naaceitação do fato <strong>de</strong> que no Outro há apenas alíngua, na liquidação <strong>de</strong>sse amorque faz existir no Outro precisamente o que lhe falta.Fica assim o paradoxo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início colocado, da suposição <strong>de</strong> quehaveria uma chave, uma <strong>de</strong>codificação possível para o enigma que provoca aaventura sofrida da vida, e uma proposição cuja ética supõe a passagem a outracoisa, ao <strong>de</strong>sejo que se permeia na própria língua.Assim, este trabalho tenta, inicialmente, abordar o estranhamento queencontramos quando nos <strong>de</strong>ixamos levar pelas formações linguageiras, sejamelas da literatura, sejam elas relativas às formações do inconsciente comoirrompem na análise.Vaguear na linguagem em associação livre comporta momentos <strong>de</strong>estranhamento, <strong>de</strong> encontros com estranha familiarida<strong>de</strong>, correspon<strong>de</strong>ntes aum estabelecimento do real, na medida em que o real é o que ao sujeito emergecomo inapreensível, fatídico e inevitável, a repetir-se compulsivamente. Assim, oanalisante tolera o estranhamento <strong>de</strong>sses encontros, na crença <strong>de</strong> que o analistaserá aquele que <strong>de</strong>codificará o segredo que vai tirá-lo do sofrimento enigmático.Porém, é na medida em que possa usufruir <strong>de</strong> momentos em que encontraum significante que o faz surgir como sujeito, no momento da interpretação, queo analisante encontra a razão para seguir adiante, não obstante a extravagânciae a bizarria <strong>de</strong> que se acompanha a aventura.Lacan, no seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise(1998), abordando a pulsão, fala uma frase assim: entre o recalcado e ainterpretação, a sexualida<strong>de</strong>. A interpretação é o pas-<strong>de</strong>-sense: não-sentido,passo <strong>de</strong> sentido – algo passa. Da comunida<strong>de</strong> topológica que se produz comoefeito do exercício da sexualida<strong>de</strong>, sempre aberrante e sempre repetida, seja nocorpo seja na língua bizarra <strong>de</strong> um Joyce, o surgimento do sujeito do <strong>de</strong>sejo<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> um momento <strong>de</strong> suspensão, <strong>de</strong> uma escansão momentânea dovisível, do audível, do corpo enquanto presença.Retomando o exemplo com que introduzi este texto, esta frase que sobrevémao <strong>de</strong>spertar 5 <strong>de</strong> um sonho – when they lie – imediatamente surge como1105Um sonho que se inicia com a entrada do sonhador numa peça, um quarto, on<strong>de</strong> há homens queconversam sobre uma cama – o piso, preto e branco em listras, move-se como em re<strong>de</strong>moinho,e uma mulher sedutora conduz o sonhador a uma peça lateral.


ESTRANHA VAGÂNCIA...prenhe <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um sentido, porque lie opera por homofonia uma passagem<strong>de</strong> mentir a <strong>de</strong>itar, ou vice-versa: <strong>de</strong>itar a mentir. Nesta frase, a interpretaçãovem <strong>de</strong> pronto, como um momento <strong>de</strong> concluir, como simples constatação,perante a qual ao sujeito só resta <strong>de</strong>la se apropriar – a verda<strong>de</strong> na mentira, eles<strong>de</strong>itam como na cena primária. Os significantes copulam. Uma interpretação aum passo <strong>de</strong> sentido e, ao mesmo tempo, sem sentido – pequeno momento <strong>de</strong>suspensão pela cópula significante 6 .O mais extraordinário, nesse exemplo, parece-me não ser apenas o trasladarpela homofonia, mas o fato <strong>de</strong> essa palavra marcar uma idéia e também oseu contrário, o que, precisamente, faz <strong>de</strong> lie uma palavra-valise, uma palavra<strong>de</strong>cisiva.Ao consi<strong>de</strong>rarmos, ainda, que o inglês não é a língua materna do sonhador,uma questão se coloca, a saber: que conseqüências po<strong>de</strong>ríamos tirar dofato <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> uma interpretação que se impõe em língua estrangeira?Tomamos a língua materna como sendo aquela em que o sujeito conheceue reconheceu, para si, a castração, ou seja, aceitou a interdição do corpomaterno.O recalcamento primário é propriamente essa operação <strong>de</strong> interdição dogozo na língua materna, que, a partir <strong>de</strong> então, passa a se organizar em torno <strong>de</strong>um corpo interditado – o impossível, que não cessa <strong>de</strong> não se escrever, passa ater uma imagem: o corpo da mãe. Então, o funcionamento da língua na falaalu<strong>de</strong> ao que não se po<strong>de</strong> – o que está interditado e <strong>de</strong>sejado passa nas formaçõesdo inconsciente, e daí em diante o <strong>de</strong>sejo anda na língua.Se o interdito articula o <strong>de</strong>sejo inerente à ca<strong>de</strong>ia expressa na língua,veiculado e constitutivo <strong>de</strong>ssa ca<strong>de</strong>ia, o sujeito, por seu lado, não po<strong>de</strong> apreendêloou articulá-lo, mas ele po<strong>de</strong>, sim, emprestar-lhe a voz (sem que o saiba e semcomandar esse processo).6Angela Vorcaro diz que o fisgamento da pulsão invocante prescin<strong>de</strong> do sentido – uma surpresano andamento, uma <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>, é antecipada, ao mesmo tempo em que, nessa vertigem,um acréscimo <strong>de</strong> gozo po<strong>de</strong> ser contado. O gozo <strong>de</strong> que se trata é o <strong>de</strong> ser objeto implantado nofuncionamento <strong>de</strong> alguém, alienado ao andamento. O ponto <strong>de</strong> on<strong>de</strong> surge o significante éaquele que não sabe ser significado – o grito, lido como apelo pelo Outro materno, será, doravante,respondido com a linguagem. A coisa perdida surge como virtual na busca sempre repetida <strong>de</strong>um reencontro que será sempre assimétrico, pois, à falta o Outro, respon<strong>de</strong> com uma leitura nalinguagem. Trauma nuclear constituído assim pela <strong>de</strong>fasagem da satisfação, que nunca é aquela,nunca é no tempo certo. Trauma que constitui o recalcamento primário como incidência dabarra sem um elemento específico rejeitado, mas, sim, qualquer elemento literal.111


TEXTOSAo passar para outra língua, uma língua estrangeira, o interdito do corpoda mãe, esse limite, não se faz presente. Na língua estrangeira há limites, maseles não estão <strong>de</strong>marcados no mesmo sentido em que na língua materna, e aconseqüência disso é <strong>de</strong> que a alíngua po<strong>de</strong> ali facilmente camuflar-se.A alíngua, em Lacan, se refere ao corpo simbólico, ao conjunto <strong>de</strong> traçosfixados, selados a cada retorno do circuito pulsional, e que se revestem simbolicamente.A alíngua constitui, assim, um conjunto <strong>de</strong> traços dos pedaços recortados,perdidos, do real. Os traços revestidos simbolicamente são comocicatrizes daquelas bordas pelas quais as pulsões emergiram para o trajeto <strong>de</strong>sua aventura. 7É na materialida<strong>de</strong> da voz e nas estreitas relações do som com o corpoque a linguagem se apóia, para advir a alíngua, lembra Diana Vonorovsky (2001).Esse corpo, que, antes mesmo do advento do sujeito, é preparado como leitopara o gozo sem-sentido no andar ritmado do embalo ao som da voz da mãe.Nesse andamento, uma surpresa, uma <strong>de</strong>scontituida<strong>de</strong>, é antecipada, ao mesmotempo em que ali nessa vertigem um gozo a mais se conta. Gozo da alienaçãoao <strong>de</strong>sejo do outro, mas que também coinci<strong>de</strong> com o momento <strong>de</strong> separação.Uma pulsação que testemunha os primórdios da constituição por efeito dalinguagem. A partir daí, trata-se <strong>de</strong> enfeitar-se com o significante.A experiência mínima do significante, <strong>de</strong>monstrada na experiência peloapelo que faz função, atualiza-se no recalque originário. E é a pulsão invocanteaquela que traz a possibilida<strong>de</strong>, não menos que o imperativo, <strong>de</strong> o sujeito surgirnão mais como puro corpo. É a homofonia, como aquela da palavra-valise lie,que algo passa, que há efetivamente transliteração (1995) 8 , momento em que selê ali on<strong>de</strong> isso se ouve.Ou seja, do ritmo da repetição alienante, morno e nauseante acalento damesmice, o imprevisto irrompe, e o sujeito surge em espanto – súbito <strong>de</strong>spertarque suspen<strong>de</strong> o fôlego. Passado esse efêmero momento, que dura um quasenada <strong>de</strong> tempo, em que o fôlego fica suspenso, o que suce<strong>de</strong>? O imprevisto<strong>de</strong>veria repercutir como estranho familiar, Unheimlich, como a aproximação <strong>de</strong>1127Angela Valore escreve sobre a diferença entre corpo simbólico, corpo imaginário e corpo realem seu texto O corpo na neurose obsessiva.8Allouch, J. Letra a letra. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Cia. <strong>de</strong> Freud Editora, 1995. Jean Allouch propõe otermo transliteração para <strong>de</strong>signar a operação <strong>de</strong> transferência <strong>de</strong> uma escrita (aquela que seescreve) para outra (aquela que escreve). Ele <strong>de</strong>fine a transliteração como a escrita da letra,quando a letra assume o significante até <strong>de</strong>sarticulá-lo <strong>de</strong> seu referente. Trata-se <strong>de</strong> “ler ali on<strong>de</strong>isso se ouve” (p. 209)


ESTRANHA VAGÂNCIA...algo da or<strong>de</strong>m do sinistro, ou po<strong>de</strong>ria ser diferente... A suspensão po<strong>de</strong>ria antecipara chegada <strong>de</strong> uma emoção com entusiasmo – um espanto súbito e bemvindo?Para Didier-Weill (1997), esse tipo <strong>de</strong> espanto 9 é a experiência subjetiva<strong>de</strong> um acontecimento súbito que introduz, na continuida<strong>de</strong> do saber, uma<strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong>.Expressão boquiaberta da trovoada <strong>de</strong> uma experiência fugidia, que, antes<strong>de</strong> ser atemorizante, comemora o tempo originário em que (sem doçura ouharmonia) fui um dia arrancado do primeiro amor do verbo.É esse momento <strong>de</strong> suspensão que se constitui no fisgar, no que convocaà busca renovada do efeito <strong>de</strong> surpresa. Trata-se, assim, do momento <strong>de</strong>silêncio, da ausência na presença, o <strong>de</strong>cisivo, pois assinala ao mesmo tempo aqueda da letra e a antecipação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>slizamento a seguir.Encontramos o espanto bem-vindo, solicitado, nas crianças que pe<strong>de</strong>mpara repetir uma brinca<strong>de</strong>ira que culmina no inesperado – elas esperam ativamentea surpresa... o momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecimento-reaparecimento.Proponho pensarmos nessa suspensão <strong>de</strong> sentido, mais do que na busca<strong>de</strong> um mestre <strong>de</strong>codificador, como o que po<strong>de</strong> se constituir efetivamentenaquilo que torna ao sujeito suportável o estranhamento do vaguear na língua,ao qual o convocamos <strong>de</strong> saída, no pedido <strong>de</strong> “associe livremente”. Pois, se apsicanálise <strong>de</strong>sata o sintoma, é, em primeiro lugar, reconhecendo no sintoma asua dimensão <strong>de</strong> real (1992). E o real nunca está on<strong>de</strong> ele é esperado, ele estáno imprevisto – <strong>de</strong>sse confronto com o estranho-familiar não é possível se poupar.O <strong>de</strong>sejo do sujeito é sempre <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> outra coisa, e é isso que mantéma proprieda<strong>de</strong> original da língua <strong>de</strong> ser sempre Outra, indomável. E se a língua éindomável, a interpretação – como conseqüência – é também extravagante, nosentido <strong>de</strong> certa bizarria, pois opera com o efeito <strong>de</strong> não-sentido, pas-<strong>de</strong>-sense,passo <strong>de</strong> sentido. O espanto que alguns significantes especiais po<strong>de</strong>m causarconfigura a <strong>de</strong>stituição subjetiva que impulsiona o sujeito da passivida<strong>de</strong> a umponto zero, <strong>de</strong> começo e recomeço, <strong>de</strong> esquecido inesquecível.A estupefação é <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>sse efeito do <strong>de</strong>scolamento, <strong>de</strong>svelamentodo equívoco que um dia enlaçou o corpo ao significante e criou um enredo <strong>de</strong>ter-9Espanto como efeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>stituição subjetiva produzida por um significante especial (MarieBonaparte o chama <strong>de</strong> si<strong>de</strong>rante, que Freud isolara nos chistes como Verblüfung), conformeDidier-Weill (1997).113


TEXTOSminado, momento em que a letra escorrega a outra coisa, o <strong>de</strong>sejo passa ecarrega consigo o sintoma.REFERÊNCIASALLOUCH, Jean. Letra a letra. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Cia. <strong>de</strong> Freud Editora, 1995.CHEMAMA, Roland. Elementos lacanianos para uma psicanálise no cotidiano. <strong>Porto</strong><strong>Alegre</strong>: CMC Ed., 2002.DIDIER-WEILL, Alain. Os três tempos da lei. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997FREUD, Sigmund. O estranho. [1919] In: ______. Obras completas. Ed Imago, Rio<strong>de</strong> Janeiro, 1976JOYCE, James. Ulysses. [1922]. Disponível em: www.online-literature.com. Acessoem 20 set. 2006.JOYCE, James. Finnegans Wake [1939].LACAN, Jacques. O seminário: Livro XI. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.LACAN, Jacques. El seminario: Seminário XXI. Classe 5, <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 1975. Ediçãoeletrônica a partir da edição da Escuela Freudiana <strong>de</strong> Buenos Aires.MELMAN, Charles. O ser e as paixões. Bogotá, 2004. Disponível em: www.freudlacan.com.Acesso em 20 jul. 2006VALORE, Angela. O corpo na neurose obsessiva. Disponível em: www.freudlacan.com.Acesso em 20 jul. 2006.VORCARO, Angela. Incidência da matriz simbolizante no organismo. Disponívelem: www.freud-lacan.com, 2005. Acesso em 20 jul. 2006.VORONOVSKY, Diana. Palavras no limite. Disponível em:www.convergencia.aocc.free.fr., 2001. Acesso em 20 set. 2006.114


TEXTOSO QUE FUNDA O SUJEITO 1Carmen Backes 2RESUMOO artigo retoma a noção <strong>de</strong> sujeito, diferenciada do eu, com a qual éfreqüentemente confundida. A “invenção” do inconsciente rompe as certezasque fazem o homem se reconhecer como eu. Trabalha com a noção <strong>de</strong> sujeitodividido em sua fugacida<strong>de</strong> e coloca o acento no que se produz como efeito <strong>de</strong>sujeito a partir do ato do psicanalista. Um breve recorte clínico <strong>de</strong>staca pontos<strong>de</strong> indagação que o real da clínica apresenta como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho.Isto é o que assegura aos conceitos da psicanálise sua pertinência e atualida<strong>de</strong>,constantemente renovados.PALAVRAS-CHAVE: eu, sujeito, efeito <strong>de</strong> sujeito, ato do psicanalista.WHAT ESTABLISHES THE SUBJECTABSTRACTThe article reviews the notion of subject, differentiated from the ego, with whichit is frequently mistaken. The unconscious “invention” breaks the certaintiesthat lead the man to recognize himself as “I“. It works with the notion of divi<strong>de</strong>dsubject in his fugacity and stresses on what is produced as subject effect fromthe psychoanalyst’s act. A brief clinical fragment highlights points of questioningthat the actual of the clinic presents as working possibility. This is what ensuresto psychoanalysis concepts their pertinence and state of the art, constantlyrenewed.KEYWORDS: ego, subject, subject effect, psychoanalyst’s act.1Apresentado nas Jornadas Clínicas da <strong>APPOA</strong>, Fundamentos da psicanálise: inconsciente,repetição, transferência, pulsão, em outubro <strong>de</strong> 2006.2Psicanalista; Membro da <strong>APPOA</strong>; Psicóloga do Instituto <strong>de</strong> Psicologia da UFRGS; Autora do livroO que é ser brasileiro?. São Paulo: Escuta, 2000. Organizadora conjunta do livro Adolescênciae experiências <strong>de</strong> borda. <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>: Editora da UFRGS, 2004; Mestre em Psicologia Social eInstitucional. E-mail: cbackes@cpovo.net115


TEXTOSO QUE FUNDA O SUJEITO... um sujeito que ainda não está lá,in<strong>de</strong>finidamente suscetível <strong>de</strong> advir.Alain Didier-WeillAnoção <strong>de</strong> sujeito é cara à psicanálise. Introduzida por Lacan, opera com ahipótese freudiana do inconsciente, reforçando sua dimensão essencial <strong>de</strong>não-sabido. Descartes, por sua vez, anunciou o princípio da racionalida<strong>de</strong> nofamoso cogito cartesiano: “penso, logo sou” 3 . E Freud ([1900]1981) ensina, naInterpretação dos sonhos: “sou, lá on<strong>de</strong> não penso”, o que coloca o acento naexistência <strong>de</strong> pensamentos inconscientes 4 . Assim, o homem da razão não ésenhor em sua seara. O eu articula o que ignora, ou seja, insiste um não-dito nodizer que obriga a reconhecer a existência do inconsciente, sujeito mudo quefala em nós.Freud ([1900]1981) também ensinou que o discurso consciente – cujaexpressão mais acabada está no discurso da ciência – se encontra inteiramenteimpregnado e invadido pelos mecanismos inconscientes, porque são estesque fazem funcionar o homem, seja em estado vigil, seja <strong>de</strong> sono.Lacan (1998), seguindo Freud, afirma novamente a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>reduzir a psicanálise ao discurso da ciência. Contudo, isso é diferente <strong>de</strong> dizerque o sujeito da psicanálise é outro que o da ciência. Em Ciência e verda<strong>de</strong>, eleafirma que o sujeito que a psicanálise opera é o sujeito da ciência. Porém, não<strong>de</strong>vemos confundir sujeito da ciência com um <strong>de</strong>terminado campo científico,com uma ciência, seja ela qual for.Sobre isto, reproduzo a colocação <strong>de</strong> Lacan em Ciência e verda<strong>de</strong>:Eis por que era importante promover, antes <strong>de</strong> mais nada, e comoum fato a ser distinguido da questão <strong>de</strong> saber se a psicanálise éuma ciência (se seu campo é científico), exatamente o fato <strong>de</strong> quesua práxis não implica outro sujeito senão o da ciência. (Lacan,1998, p. 878)Lacan (1998) inicia o artigo Ciência e verda<strong>de</strong> (p. 869) referindo que apsicanálise <strong>de</strong>tecta, em sua práxis, um estado <strong>de</strong> fenda, <strong>de</strong> spaltung do sujeito.3Cogito, ergo sum. Sujeito que reflete, pensa, tem dúvidas. Logo, este sujeito, a partir daadmissão da dúvida, da ignorância, recorre ao pensar e se racionaliza. Se penso é porque tenhodúvida, então não sei tudo. Por <strong>de</strong>corrência disso, Descartes funda o sujeito ancorado no ser.4E o pensamento inconsciente expresso é um saber, mas que não é conhecimento. Os efeitos<strong>de</strong>ste saber contêm a verda<strong>de</strong> do sujeito.116


O QUE FUNDA O SUJEITOEssa fenda está na base e basta, diz ele. Traduz a spaltung com uma série <strong>de</strong>termos: divisão, refenda, corte, enfim, não caberia aqui citar todos. No seminárioAs formações do inconsciente (1999), proferido em 1957, passa a grafar osujeito assim <strong>de</strong>finido pelo S barrado ($), que representa a ação do significantesobre o sujeito. Acrescenta que nenhuma unida<strong>de</strong>, nenhuma síntese <strong>de</strong>ve seratribuída a tal sujeito dividido. A clivagem é própria do sujeito e não se refere aalgo da or<strong>de</strong>m do patogênico; sujeito dividido não é sinônimo <strong>de</strong> doença. E dizainda que o sujeito é sempre representado por um significante na relação a umoutro significante, in<strong>de</strong>finidamente dividido por força do funcionamento da ca<strong>de</strong>iasignificante. A divisão do sujeito também <strong>de</strong>monstra o ilusório <strong>de</strong> se pensar umsujeito como lugar exclusivo do verda<strong>de</strong>iro conhecimento. Se assim fosse, sujeitonão-dividido seria igual a sujeito do conhecimento. Esse pensamento aindaé vigente em alguns campos da ciência. Porém a psicanálise insiste na nãoreduçãoda divisão do sujeito e nos efeitos que disso advêm.O sujeito cartesiano vinculado à consciência é uma concepção que fundamentou,além da filosofia, a psicologia e muitas outras disciplinas. E é essesujeito, como sujeito da consciência, que passa a ser interrogado a partir dotexto freudiano a Interpretação dos sonhos. A partir <strong>de</strong> Freud ([1900]1981), aconsciência passa a ser consi<strong>de</strong>rada uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apreensão do eu,não do sujeito. Em muitas teorias o eu se confun<strong>de</strong> com o sujeito.A psicanálise lacaniana ainda subdivi<strong>de</strong> o eu em dois: o moi e o je. Lacan<strong>de</strong>senvolveu esses conceitos no texto dos escritos do O estádio do espelhocomo formador do eu ([1949] 1998). Nesse artigo ele <strong>de</strong>fine o moi como aqueleque diz respeito à constituição da unida<strong>de</strong> corporal imaginária, e o je à constituiçãodo sujeito social, a partir da dialética da relação com o outro. Se o outro,no Estádio do espelho é aquele que empresta o olhar e a palavra, o eu seconstitui especularmente e se fun<strong>de</strong> e confun<strong>de</strong> com isso que lhe vem do campodo outro. É somente quando a palavra, vinda do campo do outro, po<strong>de</strong> apresentardúvida, ser relativizada, ser simbolizada, é que o sujeito po<strong>de</strong> advir.Porém, o sujeito não advém <strong>de</strong> forma a po<strong>de</strong>rmos apreendê-lo. Quando o eu seapresenta para dizer <strong>de</strong>le, o sujeito já não está mais. O sujeito não é apreensível.Como pensar esse sujeito em sua fugacida<strong>de</strong>?Trago aqui um breve recorte clínico. Marli é uma senhora <strong>de</strong> quase sessentaanos que tem se angustiado com uma constatação: sua vida é marcadapelo trabalho. Des<strong>de</strong> os sete anos acompanhava o pai no trabalho agrícola, nalavoura e no cuidado com animais. Mais tar<strong>de</strong>, aos 16 anos, migra para a capital,começa a trabalhar num hospital, no serviço <strong>de</strong> enfermagem, função essacom a qual se aposenta, mas segue trabalhando. Sua vida é constituída e referidapelo trabalho. É isso que lhe dá sustentação subjetiva. Hoje se vê angusti-117


TEXTOSada por não ter conseguido imprimir nos seus três filhos já adultos (um rapaz eduas moças) a marca que a orienta: o trabalho. Dito <strong>de</strong>la: “Eles não queremnada, são <strong>de</strong>smotivados, apáticos, não têm iniciativa, não fazem nada”.Essa é a questão que vem na frente, ou, como costumamos chamar, é aqueixa. Fiquei bastante absorvida por isso que ela traz, por ser atual, freqüenteem nossa escuta cotidiana e causa <strong>de</strong> muita preocupação para os pais: o fato<strong>de</strong> os filhos não se orientarem, ou se orientarem cada vez mais tar<strong>de</strong> para a vidaprofissional, malgrado o exemplo que eles freqüentemente dão, <strong>de</strong> uma vidamarcada pelo trabalho. Constatamos, junto com esses pais, que a adolescênciaé cada vez mais estendida, prolongada; os filhos tornam-se eternos estudantes,permanecem morando na casa paterna mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> adultos, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndofinanceiramente, e assim por diante. Porém, essa é outra questão, enão a que vou abordar aqui. O que essa paciente traz então é o seu fracasso natentativa <strong>de</strong> transmitir aos filhos algo <strong>de</strong> autonomia, <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência e <strong>de</strong> ummodo <strong>de</strong> inserção no universo do trabalho. A sua vonta<strong>de</strong> não faz diferença paraos filhos. Ela trazia acentuadamente essa questão.Para mim, outra interrogação insistia: o que estaria ela buscando ali, nomesmo lugar em que sua filha, há alguns anos atrás vinha, para se ver com aquestão <strong>de</strong> uma gravi<strong>de</strong>z precoce, aos 16 anos? Sobre isso ela nada diz, nãofaz nenhuma referência.Porém, ao reconstituir sua história, isso <strong>de</strong> que ela não fala, mas que falanela, vai-se articulando: a bisavó, na adolescência, tem uma gravi<strong>de</strong>z precoce ese vê obrigada a casar com o homem <strong>de</strong> quem engravida e com quem vai viver avida toda; contudo, sempre nutriu uma gran<strong>de</strong> paixão por outro homem, mascom quem não estava <strong>de</strong>stinada a se casar. Guarda isso como um segredo,mas conta-o para Marli antes <strong>de</strong> morrer.Outro elemento: quando a filha <strong>de</strong> Marli engravida, ela, Marli, está vivendoum gran<strong>de</strong> amor, fora do casamento, mantido em segredo, ao qual renunciaquando sabe da gravi<strong>de</strong>z da filha.Esses elementos da sua história não lhe fazem questão, não trazemnenhuma interrogação. Um único comentário acerca disso é <strong>de</strong> que esses fatossugerem a ela que a gravi<strong>de</strong>z da filha na adolescência “pareceria ter a ver comalgo que envolveria todas as mulheres da família”.Marli, utiliza anti<strong>de</strong>pressivos, cumpre a vida da mesma forma que cumpreo trabalho, não tem projetos. Uso a expressão “cumprir a vida” justamentepara fazer referência ao modo como ela se coloca diante da vida, <strong>de</strong> tudo. Apergunta <strong>de</strong>la, a pergunta que vem na frente, é sobre aquilo que não conseguiuensinar (transmitir): o <strong>de</strong>sejo pelo trabalho. Mas o que é que se transmite?Desejo? Condição <strong>de</strong>sejante? Posição <strong>de</strong> sujeito? Efeito <strong>de</strong> sujeito?118


O QUE FUNDA O SUJEITOA construção <strong>de</strong> um lugar, um lugar social, lugar <strong>de</strong> sujeito no mundo, sediferencia do lugar, que é indicado, ensinado. A psicanálise sustenta que não énecessariamente aquilo que se ensina que é transmitido, e se refere ao trabalhopsíquico <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um lugar que o sujeito tem que realizar para, assimcomo constituí-lo, também erogeneizá-lo, libidinizá-lo, e que passa antes pelo<strong>de</strong>sejo daqueles que o antece<strong>de</strong>m. Trata-se da construção <strong>de</strong> um lugar atravessadopelo <strong>de</strong>sejo, pelos significantes, pela cultura, <strong>de</strong>terminando a organizaçãoda vida, das relações, do trabalho, da profissão.No caso <strong>de</strong> Marli, pareceria que o que se passa ao longo das gerações écerta fixi<strong>de</strong>z na transmissão <strong>de</strong> uma posição alienada no fantasma: colagem aolugar do outro, que não provoca pergunta, mas que aliena a pergunta no outro 5 .Ela se interroga pelo <strong>de</strong>sejo dos filhos, na afirmação que insiste: “Afinal,o que eles querem? Eles não querem nada”. E o que ela quer? Sobre isso elanão pensa – alternativa alienante –, só vai fazendo, ao longo da vida, uma coisa<strong>de</strong>pois da outra: trabalho, cuidado com os filhos, cuidado da casa. É como sedissesse “Não penso, apenas faço”. Na escansão a respeito <strong>de</strong> “o que ela quer”,algo da pergunta sobre o <strong>de</strong>sejo po<strong>de</strong> advir.Efeito <strong>de</strong> sujeito e sujeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo é o que se constitui na separação, nadivisão. A alienação no fantasma dificulta a relativização daquilo que advém docampo do outro. A essência do sujeito é o corte. A alienação não produz corte,que não produz falha, que não produz <strong>de</strong>sejo.No processo <strong>de</strong> análise, dadas as condições da transferência, quandoum tropeço se produz, quando aparece um lapso, uma falha, um esquecimentono discurso, a intervenção faz corte. A interpretação é corte, que tem comoefeito o sujeito na sua evanescência. Porém é corte no sentido <strong>de</strong> que dá suporteao conceito <strong>de</strong> sujeito barrado, <strong>de</strong>finido pela pura emergência, apreendidocomo efeito pelo ato do psicanalista. Esse sujeito concerne à psicanálise.Aqui po<strong>de</strong>ríamos acrescentar a pergunta: quem pensa nela, quem <strong>de</strong>sejanela? Freud respondia a essa questão com seu célebre enunciado wo es war,soll Ich wer<strong>de</strong>n à qual Lacan (1978) acrescenta “eu não sou, lá on<strong>de</strong> sou ojoguete <strong>de</strong> meu pensamento; eu penso no que sou, lá on<strong>de</strong> eu não penso pensar”(Lacan, 1978, p. 248). Pensar é duvidar, interrogar. Nenhuma interrogaçãose coloca sobre sua história. Acerca das lembranças que surgem em torno dahistória das mulheres da família – isso que sugere uma forma <strong>de</strong> transmissãofantasmática – ali ela se coloca como as primeiras pacientes <strong>de</strong> Freud5Fórmula do fantasma: $ a.119


TEXTOS([1895]1981): “Estes fatos sempre estiveram presente na minha memória, masnão da forma que enxergo agora”. Sobre isso Lacan (1998) acrescenta: o sujeitoé aquele <strong>de</strong> quem só po<strong>de</strong>mos dizer “ele não sabia”.Sujeito é efeito da articulação significante <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado campocultural, que se produz num instante pontual, através do instantâneo do ato dopsicanalista, e, repetindo, dadas as condições da transferência. O sujeito é, aomesmo tempo, o instante pontual e sua evanescência. Trocando a or<strong>de</strong>m daspalavras, po<strong>de</strong>ríamos falar em pontual sujeito do ato analítico.Já referi acima que o sujeito aparece como um efeito a ser interpretado, eque esse efeito se mostra como <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> do enunciado discursivo, comoo conhecemos: uma homofonia, um absurdo lógico, um lapso, um ato falho, umtropeço, um esquecimento, ou numa expressão qualquer que insiste.Esse sujeito, portanto, não é cognitivo, não se trata da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>conhecê-lo. Ele “advém” quando fala, e nas arestas da fala, sob a condição datransferência. Ele não é substancial e se manifesta nos equívocos. Porém, essesujeito não está fundado sempre nem para sempre. O que se po<strong>de</strong> supor é arepetição do surgimento <strong>de</strong> efeito <strong>de</strong> sujeito a partir do ato do analista, mas quenão é apreendido. Ao contrário, se <strong>de</strong>fine pela fugacida<strong>de</strong>. Quando o eu seapresenta para dizer <strong>de</strong>le, o sujeito já não está mais. Já mencionei que muitaconfusão se estabelece entre eu e sujeito.O sujeito da psicanálise é, então, o sujeito da enunciação, produzido noencontro que surpreen<strong>de</strong> o sujeito falante na produção <strong>de</strong> uma significação queele não sabia, mas que é efêmera como o próprio ato. Dizendo <strong>de</strong> outro modo:o efeito <strong>de</strong> sujeito diz do <strong>de</strong>sacordo entre o enunciado e a enunciação. O sujeito,tomado no rigor do conceito, seria inapreensível no enunciado. Esse sujeitoda psicanálise, apreendido pelo ato do psicanalista, inclui transferência e <strong>de</strong>sejodo analista – o analista só o é por seu <strong>de</strong>sejo, e não simplesmente por sernomeado ou exaltado.Para encerrar:Por que a <strong>APPOA</strong>, este ano, optou por retomar os fundamentos da psicanálise?Lacan (1979) o fez num momento muito particular <strong>de</strong> seu ensino. Elerefere isso no capítulo Excomunhão, no início do Seminário 11, Os quatro conceitosfundamentais da psicanálise. Nesse seminário ele fala das relações dapsicanálise com a ciência, tema que não é novo para a psicanálise, pois aquestão da incidência do discurso científico na cultura é algo sempre recorrente.Reafirmar a posição da psicanálise sem, no entanto, se contraporespecularmente é a tarefa colocada.Se lançamos questões à ciência e afirmamos a psicanálise em contraposiçãoa ela, ficamos na mesma. Não estamos propondo um embate com a120


O QUE FUNDA O SUJEITOciência. Também não é isso que Lacan (1979) propõe no início do Seminário 11,quando traz a religião e a ciência para se ocupar <strong>de</strong> recolocar os fundamentosda psicanálise. Ao contrário, em Ciência e verda<strong>de</strong> (1965), escrito um ano <strong>de</strong>pois,ele dirá que o sujeito da ciência é o mesmo da psicanálise, que o sujeitoque a psicanálise opera é o sujeito da ciência, conforme referi acima. Quemopera a ciência é um sujeito. A ciência, porém, parece não suportar o sujeito emsua divisão. Por isso, as tentativas <strong>de</strong> sutura <strong>de</strong>sse sujeito são insistentes.Nos momentos difíceis do nosso trabalho como psicanalista, trabalhobastante solitário, lançamos mão <strong>de</strong> alguns recursos. Buscamos o que nosfunda, nossos mestres. Se buscamos Freud, ele nos fala <strong>de</strong> seu trabalho, <strong>de</strong>seus impasses na condução da clínica <strong>de</strong> seu tempo. E assim nos damosconta, repetidas vezes, <strong>de</strong> que a clínica <strong>de</strong>sarruma, <strong>de</strong>sarticula, abre os conceitos,inclusive os fundamentais.Ocupamo-nos <strong>de</strong> estudar, operar, reconstruir os conceitos quando umapergunta se funda em nós, a partir da nossa prática clínica. Por isso, o conceitocom o qual estamos operando é aquele que se mostra fundamental para nósnaquele momento. Porém, se a clínica <strong>de</strong>sarruma os conceitos, ela também osrenova. Os conceitos, na psicanálise, são constantemente construídos.Lacan (1979) termina sua introdução aos fundamentos da psicanálise, noSeminário 11, apontando para o <strong>de</strong>sejo do analista. Pergunta ele: “o que há <strong>de</strong>ser do <strong>de</strong>sejo do analista para que ele opere <strong>de</strong> maneira correta”? (Lacan, 1979,p.17). E respon<strong>de</strong> no mesmo momento: “O <strong>de</strong>sejo do analista em cada caso,não po<strong>de</strong> <strong>de</strong> modo algum ser <strong>de</strong>ixado fora <strong>de</strong> nossa questão, pela razão <strong>de</strong> queo problema da formação do analista o coloca.” (Lacan, 1979, p.17).Lidamos, na contemporaneida<strong>de</strong>, com variadas tentativas <strong>de</strong> formular umaexpressão “científica” da subjetivida<strong>de</strong>. Os remédios para todo o mal-estar <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m psíquica po<strong>de</strong>m funcionar como uma expressão disso. Em tempos <strong>de</strong>promessas científicas, <strong>de</strong> ato médico, <strong>de</strong> medicalização, <strong>de</strong> insuportabilida<strong>de</strong>do mal-estar constitutivo, a psicanálise mantém-se como o reduto do sujeito, talcomo ela o <strong>de</strong>fine e ao qual faço referência neste texto. A fluoxetina, só paracitar um exemplo, propõe retirar o sujeito <strong>de</strong> sua tristeza. Mantive, propositalmente,a ambigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa frase porque ela contém, ao mesmo tempo, apromessa e <strong>de</strong>sresponsabilização, a retirada do sujeito.Freqüentemente, assim o sujeito se coloca: <strong>de</strong>sresponsabilizado peloseu sintoma. Algo <strong>de</strong> fora lhe vem (um saber, uma verda<strong>de</strong>) para dizer <strong>de</strong>le. Osujeito não tem mais soberania sobre o seu sintoma. Porém, enquanto a ciênciajoga o sujeito pela janela, ele volta pela porta com toda a carga.Cabe ao sujeito, então, pegar o seu sintoma pelo rabo. Volto a citar Lacan:“Por nossa posição <strong>de</strong> sujeito, sempre somos responsáveis” (Lacan, 1998, p. 873)121


TEXTOSREFERÊNCIASDOR, Joël. A-cientificida<strong>de</strong> da psicanálise. <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>: Artes Médicas, 1993.FREUD, Sigmund. Estúdios sobre la histeria [1895]. In ______. Obras completas. 4.ed. Madrid: Bibl. Nueva, 1981. v.1.______ . La interpretación <strong>de</strong> los sueños [1900]. In ______. Obras completas. 4.ed.Madrid: Bibl. Nueva, 1981. v.1.LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Freud (1957).In: Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 223-259.______ . O estádio do espelho como formador do eu (1949). In: Escritos. Rio <strong>de</strong>Janeiro: J. Zahar Ed., 1998. p. 96-103.______ . Ciência e verda<strong>de</strong>. In: ______. Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: J. Zahar Ed., 1998.p. 869-892.LACAN, J. O seminário, livro 5: As formações do inconsciente (1957-1958). Rio <strong>de</strong>Janeiro : Jorge Zahar. Ed., 1999.______ . O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise(1964). Rio <strong>de</strong> Janeiro: J. Zahar Ed., 1979.122


TEXTOSE N E A O T I L 1Otávio Augusto Winck Nunes 2RESUMOO presente artigo propõe a discussão do conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>negação, presente naobra freudiana, e sua <strong>de</strong>corrente apreciação pela releitura feita por JacquesLacan. Apresenta, a partir <strong>de</strong> uma vinheta clínica, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificara qual operação psíquica está associado o enunciado da palavra não, no quepo<strong>de</strong> ser chamado a gramática do inconsciente, pois a <strong>de</strong>negação aparece nãosó na fala, mas também no acting-out e na alucinação.PALAVRAS-CHAVE: <strong>de</strong>negação, aceitação, operação, juízo.N OABSTRACTThe present article proposes to discuss the concept of <strong>de</strong>nial in the Freudianwork and in its following appreciation as presented by Jacques Lacan´s reading.It presents, through a clinical vignette, the need to i<strong>de</strong>ntify which psychic operationis associated to the word no enunciated, in what it can be called to the unconsciousgrammar, as the <strong>de</strong>nial appears in speech as well as in the acting out andhallucination.KEYWORDS: <strong>de</strong>nial, acceptance, operation, judgment.1Apresentado nas Jornadas Clínicas da <strong>APPOA</strong>, Fundamentos da psicanálise: inconsciente,repetição, transferência, pulsão, em outubro <strong>de</strong> 2006.2Psicanalista, Membro da <strong>APPOA</strong>, , Mestre em Psicologia do Desenvolvimento-UFRGS, Mestre mPsicopatologia e Psicanálise-PARIS 7. E-mail: otaviown@terra.com.br123


TEXTOSSim,são três letrinhas,Todas bonitinhas,Fáceis <strong>de</strong> dizer!Ditas por vocêNesse seu sim, assim,Outras três também representam não que não ficam bem no seu coração!Três letrinhas, M. Moreira e GalvãoOs versos acima ecoaram com a fala <strong>de</strong> uma paciente que enunciava aseguinte problemática numa sessão: “Tenho um problema com a palavrinhanão. Cada vez que tenho que dizer não, preciso fazer uma negociação. Umanegociação interna”. É bastante comum escutar esse tipo <strong>de</strong> frase no nossotrabalho clínico, se não exatamente essa, pelo menos alguma variação em tornodo que a enunciação <strong>de</strong>ssa palavra acarreta. Ou seja, a palavra não exerce,por assim dizer, função um tanto mais abrangente no discurso do que sua simplespresença numa frase parece ter.Pois é. “Letrinha, palavrinha”. Afinal <strong>de</strong> contas qual é o problema do não?De um lado três letrinhas; <strong>de</strong> outro, palavrinha. Será efetivamente que ao nãocabe um diminutivo? O diminutivo serve para dar um tom infantil à fala, ao discurso.Justamente, esse infantil que, no mais das vezes, cansamos <strong>de</strong> ouvir dizere que, muita vezes dizemos, precisam do não!Uma imagem bastante recorrente do não, e que entraria em choque coma idéia do diminutivo, é <strong>de</strong> que a ele seria atribuído um po<strong>de</strong>r representativo.Po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> restrição, privação, controle, pois o não é a palavra que, por excelência,representa a interdição, o limite. Seu alcance é supostamente, por assimdizer, superlativo. Por outro lado, po<strong>de</strong>ria ser diminutiva no campo das possibilida<strong>de</strong>s,por impor regras, mandamentos. Quando associada ao po<strong>de</strong>r, ela po<strong>de</strong>ser gran<strong>de</strong>, quando associada às possibilida<strong>de</strong>s, pequena.Aliás, po<strong>de</strong>-se dizer que um dos conceitos fundamentais da psicanálise,o inconsciente, já foi nomeado a partir <strong>de</strong> um não: o não do não-consciente.Mesmo que o inconsciente freudiano não coincida exatamente com o não-conscientefilosófico, ou poético – que são mais ligados ao estado <strong>de</strong> não-consciência–, é interessante pensar <strong>de</strong> on<strong>de</strong> Freud partiu para nomear esse conceito, poisa escolha <strong>de</strong>sse nome já estava indicando a direção do seu pensamento. Ou seja,a existência <strong>de</strong> um intervalo em que o sujeito po<strong>de</strong> situar o saber do qual o sujeitonão sabe. E nesse caso po<strong>de</strong>ríamos dizer que o não tem mais relação com umaoperação do que a simples oposição à existência ou à presença <strong>de</strong> algo.No texto A <strong>de</strong>negação (1925), portanto alguns anos após estabelecer asegunda tópica, quando promulgou o eu, o isso e o supereu, Freud, retoma os124


ENEAOTILconceitos do juízo <strong>de</strong> existência e do juízo <strong>de</strong> atribuição. Digo que ele os retoma,pois são concepções que já havia trabalhado, tanto no Projeto para umapsicologia científica (1950[1895]), quanto no Caso Dora (1905). A esses doisjuízos, Freud articula toda uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramentos que têm relação como que estamos tratando.Desse texto, o que interessaria resumidamente precisar aqui seria a idéiada formação da noção <strong>de</strong> juízo, pois é através <strong>de</strong>ssa noção que Freud (1925)estabeleceu a ocorrência da suspensão do recalcamento. E isso é importante,pois é a partir daí que temos duas situações. Primeira: o juízo <strong>de</strong>ve atribuir ounão uma proprieda<strong>de</strong> a uma coisa; segunda: ele <strong>de</strong>ve admitir ou impugnar aexistência <strong>de</strong> uma representação na realida<strong>de</strong>, ou seja, o ser e o não-ser.No entendimento freudiano, o julgar, sinal do recalcado, serve tanto paraliberar os pensamentos, ou seja, para o exercício da vida intelectual, quanto énecessário para o <strong>de</strong>senvolvimento da formação do eu e do não-eu, ou seja, doeu e da realida<strong>de</strong>, vida e morte. O que fica bastante evi<strong>de</strong>nte, nesse aspecto, éque a polarida<strong>de</strong>, como a que existe entre o sim, pela aceitação, e o não, pelanegação, vai muito além: ela está atrelada à questão da pulsão <strong>de</strong> vida e dapulsão <strong>de</strong> morte, respectivamente. E o julgamento está ligado à pulsão <strong>de</strong> morte,pois é o que separa, diferencia. Ou seja, com o conceito <strong>de</strong> pulsão <strong>de</strong> morte,Freud pô<strong>de</strong> dar melhor formulação às questões relativas à criação do símbolo.Freud ilustrou esse texto, em seu início, apresentando o caso <strong>de</strong> umpaciente que disse: “Não! A figura que aparece no sonho não é a minha mãe!”.Freud compreen<strong>de</strong>u <strong>de</strong> imediato que o não nesse caso indicava, justamente, ocontrário, a presença, a afirmação. A figura que aparecia no sonho, por mais queo paciente esperneasse, se contorcesse sobre o divã, a luta era inglória, Freudsabia que lá estava ela, a santa. Tratava-se da mãe <strong>de</strong> seu paciente! Mais do quelamentar, o paciente, em princípio, não aceitaria essa idéia, por isso ela aparecenegada. E o juízo é <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong>ssa negação; ele é um sinal do recalcado.Então, na tradição da teoria psicanalítica encontramos muitas referênciasa respeito do não. Parece-me que po<strong>de</strong>ríamos estabelecer a seguinte distinção:existe um não gramatical, simples, em que uma coisa não é outra. E o nãoda gramática do inconsciente, que opera noutra lógica, que tem relação comuma posição subjetiva. Como no caso da paciente que referi acima, o problemaem dizer a “palavrinha não”, não estava aliado ao fato <strong>de</strong> falar a palavra não, ouem enunciar o significante não, o que estava em causa era outra dimensão: adimensão <strong>de</strong> uma operação, como ela mesma disse, uma negociação interna.Mais uma negação.Mas friso, também, que a perspectiva presente no senso comum <strong>de</strong> queaquilo que aparece no discurso com um não está, muito simplesmente, revelan-125


TEXTOSdo o seu contrário é, para dizer o mínimo, muito reducionista, mesmo que possamosconsi<strong>de</strong>rá-lo. No entanto, situo que, embora isso seja recorrente, indicariaque há quase uma espera, uma expectativa, por parte do analista, que apareçaum não no discurso do paciente, anunciando o verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sejo do sujeito.O mesmo valeria para o não que, ao proibir, interdita, e assim, produziria o<strong>de</strong>sejo.Lacan, no Seminário 1 - Os escritos técnicos <strong>de</strong> Freud (1953-54), montouum verda<strong>de</strong>iro tríptico a respeito do texto da Denegação, <strong>de</strong> Freud. Inicialmenteele pe<strong>de</strong> a Jean Hyppolite (1998[1954]), filósofo da escola heggeliana, que façauma leitura do texto. Antes da intervenção <strong>de</strong> Hyppolite, Lacan (1998a[1954])apresenta uma introdução, pontuando algumas questões a respeito da <strong>de</strong>negação.Nessa introdução, Lacan propõe uma dura crítica ao entendimento, muitoem voga naquela época, <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>negação estivesse associada aos mecanismos<strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, que seria uma resistência do analisante. Nessa aula é queLacan enuncia uma <strong>de</strong> suas famosas frases: “não existe na análise outra resistênciasenão a do analista” (Lacan, 1998a [1954], p.378). Sabemos bem o queisso representou para a psicanálise, já que Lacan propôs, nesse caso, um <strong>de</strong>slocamentonão só da técnica analítica, mas também <strong>de</strong> uma posiçãotransferencial. Ou seja, a resistência, no sentido freudiano, é sempre sinal datransferência, então seria um fenômeno inevitável e provocado pelo processoanalítico. Desse modo, dizer que é o paciente que resiste, é minimizar o po<strong>de</strong>ra que a estrutura subjetiva, posta em causa pela análise, se propõe. De algumamaneira, pareceria liberar o analista <strong>de</strong> qualquer implicação com a direção dacura. Somado a isso haveria, ainda, o entendimento <strong>de</strong> que o analista é aqueleque tem um saber sobre o paciente. Ao enfatizar que a resistência é do analista,Lacan <strong>de</strong>sloca esse eixo <strong>de</strong> “saber”, ao propor ao analista a posição em que osaber é atribuído. O analista resistiria, justamente, ao tomar e confundir a suposição<strong>de</strong> um saber como a própria encarnação <strong>de</strong>ste.Outro apontamento interessante é que Lacan situa, então, que a chamadaanálise das resistências era uma técnica que não se propunha a estabeleceruma relação com o real. E, além disso, refere-se à questão da morte, “enquantoaquilo que nega o discurso, bem como <strong>de</strong> saber se é ela que introduz neste anegação” (1998a [1954] p. 381), pois é <strong>de</strong>la que surge a separação ser/não-ser(que referimos acima) e a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>. Ou seja, estamos num vastoterreno teórico e clínico.O comentário feito por Hyppolite (1998 [1954]) é uma rigorosa leitura dotexto freudiano, em que ele <strong>de</strong>staca uma série <strong>de</strong> questões extremamente importantes,mas como ele mesmo sublinha: trata-se da sua interpretação, ouseja, da procura por dar um novo sentido ao discurso freudiano.126


ENEAOTILNesse aspecto, pontua como sendo um momento mítico a criação dosímbolo da negação, pois ele seria resultado da dissimetria existente entre duaspalavras encontradas no texto <strong>de</strong> Freud (1925): a aceitação e a expulsão. A<strong>de</strong>negação estaria associada, então, à gênese da inteligência e do posicionamentodo pensamento, ou seja, do julgar. Mas, o que estaria anterior ainda aessa divisão, seria a existência do <strong>de</strong>ntro e do fora, que po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r peloeu e não-eu, que será fundamental para o prosseguimento da discussão, porcolocar em jogo uma operação aparentemente banal: o que está no eu, o que foiaceito pelo eu, está <strong>de</strong>ntro; o que não está no eu está fora, foi expulso. Essassão duas palavras-chave do texto <strong>de</strong> Freud e <strong>de</strong> Hyppolite, aceitar (Bejahung) ouexpulsar (Ausstossung).Então, no texto freudiano está em pauta toda uma gama <strong>de</strong> pares <strong>de</strong>opostos, pares complementares como <strong>de</strong>ntro-fora, eu e não-eu, introjeção-expulsão,vida-morte, aceitação-negação, que são <strong>de</strong>stacados por Hyppolite. Trata-se<strong>de</strong> opostos facilmente reconhecíveis, e que serviriam à operação da<strong>de</strong>negação, na medida em que o produto <strong>de</strong>ssa polarida<strong>de</strong> é dissimétrico, ouseja, do produto <strong>de</strong>sses pólos <strong>de</strong> opostos há um resto, o símbolo da negação.E isso ocorre, pois é a <strong>de</strong>negação, do tipo “não é a minha mãe”, que está ligadaao exercício <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência do pensamento frente ao recalque.Essa in<strong>de</strong>pendência frente ao recalque, manifestada pela <strong>de</strong>negação, é oque me parece explicar as frases finais <strong>de</strong> Freud, encontradas no texto daDenegação, em que ele fala da inexistência do não no inconsciente, ao mesmotempo em que o reconhecimento do inconsciente por parte do eu se exprime nafórmula negativa. Lembro que estamos na segunda tópica.Lacan (1998b [1954]) elabora sua resposta ao comentário <strong>de</strong> Hyppolitepontuando, inicialmente, que uma simbolização primordial (afetivo) está relacionadacom a estruturação discursiva (intelectual) havendo, portanto, nesse cruzamento,uma ligação com a morte. É o encontro do Simbólico com o Real.Ele articula, nesse texto, os registros do Real, do Simbólico e do Imaginário,para propor, a partir <strong>de</strong> dois exemplos clínicos, o que seria relativo à<strong>de</strong>negação. Contrariamente à idéia, que se po<strong>de</strong>ria ter, <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>negaçãotivesse apenas relação direta com a palavra não, ele trabalha a <strong>de</strong>negação dandoa ela outras figurações.O primeiro exemplo é bem conhecido, é o caso do Homem dos Lobos,em que Lacan trabalha o episódio da alucinação do corte do <strong>de</strong>do mínimo. Ooutro caso trabalhado é o relato feito por Ernst Kris, psicanalista austríaco,estabelecido nos Estados Unidos, ligado à psicologia do eu. Ernst Kris publicouum artigo em que trabalhava o caso <strong>de</strong> um paciente que sofria <strong>de</strong> compulsão aoplágio, e que conta ao analista que, ao sair das sessões, após o meio-dia, ele127


TEXTOSprocurava restaurantes para comer miolos frescos. Nesse caso, é trabalhada anoção <strong>de</strong> acting-out.Desses exemplos, o que me interessa <strong>de</strong>stacar é a seguinte afirmação<strong>de</strong> Lacan (1998b [1954]: neles ocorre uma intersecção do Simbólico e do Real,que opera sem a mediação do Imaginário. Enfatizo que Lacan ainda não tinha afigura do nó borromeano, que surgiu em sua obra apenas em 1972, quandocoloca, então, a vida fazendo parte do registro do Real, e a morte fazendo partedo registro do Simbólico.Portanto, temos que a condição da <strong>de</strong>negação é estar ligada à produção<strong>de</strong> um símbolo, o que não ocorreu nos exemplos apresentados por Lacan. Elediz, por sua vez, que o efeito provocado pela forclusão e pelo acting-out é <strong>de</strong>corrente<strong>de</strong> uma absolvição simbólica, ou uma espécie <strong>de</strong> apagamento do Outro.Não havendo uma matriz simbólica, não há como ocorrer <strong>de</strong> forma diferente: oque não veio à luz do Simbólico retorna no Real.Mas no caso da minha paciente, talvez ela esteja coberta <strong>de</strong> razão. Onão exige muito trabalho interno. Já que a operação necessária para a inscriçãosignificante, mediada pelo imaginário, é resultado <strong>de</strong> um processo bem maiscomplexo que o simples enunciado da palavra não.Aliás, como sugere o título <strong>de</strong>ste texto, passar das letras eneaotil à palavranão – figurativamente, da letra ao significante – pressupõe uma representaçãoprovocada pelo próprio efeito da castração. Os versos da canção, ou, talvez,das letras da música, indicam isso, o não po<strong>de</strong> até não ficar bem no coração doobjeto amado, o problema é que sem ele não há como negociar.128REFERÊNCIASFREUD, S. Proyecto <strong>de</strong> psicologia (1950[1895]). In: _____. Obras completas SigmundFreud. 5. ed. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1996. v. 1.FREUD, S. Fragmentos <strong>de</strong> analisis <strong>de</strong> un caso <strong>de</strong> histeria (Caso Dora) (1905). In:_____. Obras completas Sigmund Freud. 5. ed. Buenos Aires: Amorrortu Editores,1996. v. 7._____. La negacion (1925). In: _____. Obras completas Sigmund Freud. 5. ed.Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1996. v. 19.HYPPOLITE, Jean. Comentário falado sobre a Verneinung <strong>de</strong> Freud (1954). In: LACAN,Jacques. Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 893-902.LACAN, Jacques. O seminário – Livro 1. Os escritos técnicos <strong>de</strong> Freud(1953-1954).Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1983._____. O seminário – Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise(1964). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985._____. Introdução ao comentário <strong>de</strong> Jean Hyppolite sobre a Verneinung <strong>de</strong> Freud(1954). In: ______. Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998a, p. 370-382._____. Resposta ao comentário <strong>de</strong> Jean Hyppolite sobre a Verneinung <strong>de</strong> Freud(1954). In: Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998b, p. 383-401.

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