O QUE FUNDA O SUJEITOciência. Também não é isso que Lacan (1979) propõe no início do Seminário 11,quando traz a religião e a ciência para se ocupar <strong>de</strong> recolocar os fundamentosda psicanálise. Ao contrário, em Ciência e verda<strong>de</strong> (1965), escrito um ano <strong>de</strong>pois,ele dirá que o sujeito da ciência é o mesmo da psicanálise, que o sujeitoque a psicanálise opera é o sujeito da ciência, conforme referi acima. Quemopera a ciência é um sujeito. A ciência, porém, parece não suportar o sujeito emsua divisão. Por isso, as tentativas <strong>de</strong> sutura <strong>de</strong>sse sujeito são insistentes.Nos momentos difíceis do nosso trabalho como psicanalista, trabalhobastante solitário, lançamos mão <strong>de</strong> alguns recursos. Buscamos o que nosfunda, nossos mestres. Se buscamos Freud, ele nos fala <strong>de</strong> seu trabalho, <strong>de</strong>seus impasses na condução da clínica <strong>de</strong> seu tempo. E assim nos damosconta, repetidas vezes, <strong>de</strong> que a clínica <strong>de</strong>sarruma, <strong>de</strong>sarticula, abre os conceitos,inclusive os fundamentais.Ocupamo-nos <strong>de</strong> estudar, operar, reconstruir os conceitos quando umapergunta se funda em nós, a partir da nossa prática clínica. Por isso, o conceitocom o qual estamos operando é aquele que se mostra fundamental para nósnaquele momento. Porém, se a clínica <strong>de</strong>sarruma os conceitos, ela também osrenova. Os conceitos, na psicanálise, são constantemente construídos.Lacan (1979) termina sua introdução aos fundamentos da psicanálise, noSeminário 11, apontando para o <strong>de</strong>sejo do analista. Pergunta ele: “o que há <strong>de</strong>ser do <strong>de</strong>sejo do analista para que ele opere <strong>de</strong> maneira correta”? (Lacan, 1979,p.17). E respon<strong>de</strong> no mesmo momento: “O <strong>de</strong>sejo do analista em cada caso,não po<strong>de</strong> <strong>de</strong> modo algum ser <strong>de</strong>ixado fora <strong>de</strong> nossa questão, pela razão <strong>de</strong> queo problema da formação do analista o coloca.” (Lacan, 1979, p.17).Lidamos, na contemporaneida<strong>de</strong>, com variadas tentativas <strong>de</strong> formular umaexpressão “científica” da subjetivida<strong>de</strong>. Os remédios para todo o mal-estar <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m psíquica po<strong>de</strong>m funcionar como uma expressão disso. Em tempos <strong>de</strong>promessas científicas, <strong>de</strong> ato médico, <strong>de</strong> medicalização, <strong>de</strong> insuportabilida<strong>de</strong>do mal-estar constitutivo, a psicanálise mantém-se como o reduto do sujeito, talcomo ela o <strong>de</strong>fine e ao qual faço referência neste texto. A fluoxetina, só paracitar um exemplo, propõe retirar o sujeito <strong>de</strong> sua tristeza. Mantive, propositalmente,a ambigüida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa frase porque ela contém, ao mesmo tempo, apromessa e <strong>de</strong>sresponsabilização, a retirada do sujeito.Freqüentemente, assim o sujeito se coloca: <strong>de</strong>sresponsabilizado peloseu sintoma. Algo <strong>de</strong> fora lhe vem (um saber, uma verda<strong>de</strong>) para dizer <strong>de</strong>le. Osujeito não tem mais soberania sobre o seu sintoma. Porém, enquanto a ciênciajoga o sujeito pela janela, ele volta pela porta com toda a carga.Cabe ao sujeito, então, pegar o seu sintoma pelo rabo. Volto a citar Lacan:“Por nossa posição <strong>de</strong> sujeito, sempre somos responsáveis” (Lacan, 1998, p. 873)121
TEXTOSREFERÊNCIASDOR, Joël. A-cientificida<strong>de</strong> da psicanálise. <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>: Artes Médicas, 1993.FREUD, Sigmund. Estúdios sobre la histeria [1895]. In ______. Obras completas. 4.ed. Madrid: Bibl. Nueva, 1981. v.1.______ . La interpretación <strong>de</strong> los sueños [1900]. In ______. Obras completas. 4.ed.Madrid: Bibl. Nueva, 1981. v.1.LACAN, Jacques. A instância da letra no inconsciente ou a razão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Freud (1957).In: Escritos. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 223-259.______ . O estádio do espelho como formador do eu (1949). In: Escritos. Rio <strong>de</strong>Janeiro: J. Zahar Ed., 1998. p. 96-103.______ . Ciência e verda<strong>de</strong>. In: ______. Escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: J. Zahar Ed., 1998.p. 869-892.LACAN, J. O seminário, livro 5: As formações do inconsciente (1957-1958). Rio <strong>de</strong>Janeiro : Jorge Zahar. Ed., 1999.______ . O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise(1964). Rio <strong>de</strong> Janeiro: J. Zahar Ed., 1979.122