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Correio nº 186 - APPOA

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editorial.No texto sobre o finito e o interminável de uma análise, Freud já anunciaraque um analista adquire as qualificações necessárias a seu ofício atravésda análise de si mesmo. Lacan faz coro com Freud, centrando no ‘desejodo analista’ a condição imprescindível para o ato analítico ser operado.A possibilidade de sustentação do ‘desejo do analista’, por sua vez, diz ele,advém do fim de análise de cada um.O ‘atravessamento do fantasma’ e a ‘destituição subjetiva’ produzidosno fim de análise preparam o desejo sem objeto e a subtração dos significantespróprios ao ‘desejo do psicanalista’. Despido do objeto que ditava as relaçõesde gozo com o Outro e dos significantes que o representavam, o psicanalistase (em)presta ao objeto e significantes do analisando. O analista,enquanto ‘semblante de a’, torna-se causa e agente do barramento do sujeito,operando a queda dos ideais e da suposição de saber, encarnando oobjeto a, o qual presentifica a hiância que divide o sujeito analisando.A análise pessoal, assim, somando-se à supervisão e ao estudo teórico,compõem as prerrogativas necessárias à formação do analista. O chamadotripé da formação reúne esforços na elaboração e sustentação do lugar doanalista. A Instituição Psicanalítica, por sua vez, associa-se a este tripé,dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .1


editorial.buscando intervir em cada um destes pilares. Lacan ao abordar o ‘passe’ indicao lugar da Instituição Psicanalítica: de articulação entre Psicanálise em intensãoe em extensão; entre a análise pessoal e a transmissão da Psicanálise.Há, no entanto, instituições analíticas que tomam o ‘dispositivo dopasse’, tal qual instituído por Lacan em 1969, como imprescindível paraesta articulação. Na <strong>APPOA</strong> adotamos o pressuposto que à Instituição cabea associação entre o singular da análise pessoal e a transmissibilidade paraalém do particular, sem, entretanto, supor que o mecanismo do passe sejaindispensável para tal. A autorização e nominação dos psicanalistas da <strong>APPOA</strong>se efetuam sem que seus membros peçam diretamente por isto. Pois, o psicanalistanão pede para sê-lo: ele revela os efeitos de seus atos. O ‘desejo denada’, próprio do ‘desejo do analista’, advindo do fim de análise implica queele nada peça, só podendo colher os efeitos do ato analítico que operou.O desafio da <strong>APPOA</strong> ao longo de seus 20 anos de existência foi e seguesendo proporcionar na Instituição as condições necessárias para que seusmembros revelem seus atos analíticos, sem fomentar, todavia, um pedidode reconhecimento por isto. Coerente com as peculiaridades do ‘desejo doanalista’, a <strong>APPOA</strong> busca colher os efeitos dos atos analíticos de seus membros,e nominá-los de acordo com aquilo que operam sem saber, sem pedir.A partir da nominação, assim como do ato analítico, é que o analista poderáse indagar sobre o que produziu tal agir e formular suas razões, as quaispodem se tornar transmissíveis para seus pares da Instituição.A experiência tem mostrado ser possível a articulação entre os efeitosdas análises pessoais, a escuta disto nas diversas instâncias institucionaisda <strong>APPOA</strong>, bem como a transmissão desta experiência à comunidade analíticaligada à Instituição. Sendo assim, aniversariamos com o contentamentode termos nos guiado pelo ‘desejo do analista’, além de, tambémcoerente com este princípio, seguirmos nos interrogando sobre a falta e oque temos ainda a realizar.2.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


notícias.Festa de fim de anoDia 05/12/2009Hora: 21:00Local: Sede da <strong>APPOA</strong>Neste final de ano completamos 20anos da fundação da <strong>APPOA</strong>, horade celebrar os laços de trabalho que tantos efeitos importantes têm produzido.Convidamos a todos para brindar mais esta passagem.CoquetelJantarShow - “Andy boy Bluecious Company”Balada - DJ “Garota Vinil”*Convites a venda, antecipadamente, na secretaria da <strong>APPOA</strong>Valor: R$ 60,00.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .3


notícias.Claude Lévi-Strauss (1908 – 2009)Lévi-Strauss viveu um século, o século XX, e foi autor de pesquisas ereflexões que marcaram fortemente o panorama das Ciências Humanas deseu tempo. Apesar de ser reconhecido como fundador da antropologia estrutural,ele na verdade era um filósofo que tomou a diversidade culturalcomo seu objeto de estudo.Até 1930, ano em que se transferiu para o Brasil, integrando a missãofrancesa que contribuiu para a fundação da Universidade de São Paulo,Lévi-Strauss lecionava filosofia em escolas secundárias. E foi aqui, maisespecificamente no interior dos estados do Mato Grosso, Goiás e Paraná,que ele realizou suas primeiras (e raras) investigações etnográficas.Como sempre acontece, a trajetória de Lévi-Strauss foi se definindoa partir da singularidade de suas circunstâncias e de seus encontros.Voltando do Brasil para a França, em 1939, ele se viu forçado, junto comoutros judeus e intelectuais, a buscar asilo nos EUA, onde encontrouRoman Jakobson. Fruto deste encontro, o estruturalismo começou a tomarforma (literalmente) e se expandir para além do campo da lingüística.Lacan foi grande leitor de Lévi-Strauss, que foi grande leitor de Freud.É por este caminho que o estruturalismo chegou à psicanálise, sempre lembrandoo lugar pioneiro da lingüística no pensamento estrutural.Muitas foram as contribuições de Lévi-Strauss para a psicanálise, masa principal delas certamente é a noção de “inconsciente estrutural”, e aidéia de que “o símbolo constitui o homem”.A antropologia estrutural de Lévi-Strauss, e sua reconhecida influênciano pensamento lacaniano, constituíram um dos raros armistícios nasrelações entre antropologia e psicanálise, na medida em que se elaborouuma forma de conciliar a universalidade da lógica simbólica com a diversidadedas modalidades de constituição de culturas e subjetividades.4.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.Há muito o estruturalismo depara-se com seus impasses, mas, tantopara reafirmar suas teses, quanto para buscar alternativas, recorrer ao pensamentode Lévi-Strauss é imprescindível.LetravivaEduardo Mendes RibeiroDia: 12 de janeiro de 2010, terça-feiraHorário: 19h30minLocal: sede da <strong>APPOA</strong>Convidada: Ana CostaParticipantes: Maria Auxiliadora P.Sudbrack,Heloisa H. Marcon, Sonia Mara M.Ogiba,Ricardo Vianna Martins, Aidê Ferreira Deconte.Letraviva, atividade proposta pela Comissão da Biblioteca como espaçode leitura e fala, neste segundo encontro, traz à tona um tema caro àpsicanálise: Clinica e Escrita! Em seu livro “Clinicando: Escritas da ClínicaPsicanalítica”, Ana Costa, inspirada nas proposições lacanianas sobre letrae escrita, desdobra temas cruciais da psicanálise. Ocupa-se da transmissãodaquilo que seria o mais singular ao analista: sua clinica.De onde a escrita do caso tira seu poder? Como conceber o caso clínico:uma construção do analista? A reconstituição da narrativa do analisante?Interrogantes esses que constituem o ponto de partida do SeminárioClinicando, no qual Ana Costa vem, desde 2003, dedicando-se à escrita daclinica psicanalítica, revisitando e resituando conceitos como: letra e traço;verdade, saber e transferência; fantasma e sintoma; clinica aberta: social einstitucional; escrita sintomática, escrita do fantasma e escrita do sinthoma;dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .5


notícias.transmissão da clinica, entre outras. Além dessas questões, durante o percursodo Seminário, há ainda a busca de uma indagação mais ampla sobrea escrita em psicanálise. Busca essa atravessada por tantas interrogações,cuja obra “Clinicando ...” se propôs a desdobrar: De onde vem a necessidadede escrever? Porque é que se tem a necessidade da escrita? Que espéciede escrita é essa (a do “caso”)? Que escrito é esse?As construções apresentadas em “Clinicando: Escritas da clinica psicanalítica”,enfatiza a autora: “trazem a especificidade do vivo da produçãode uma fala, que percorre um caminho de elaboração em transferência (...)”.Da fala ao escrito, do escrito que se retoma como fala, fazendo com queo escrito se torne “letra viva”, é um dos desafios da atividade Letraviva. E,ao que nos parece, é um movimento precioso buscado de modo permanentepelo analista, e que Ana Costa deixa que se signifique também na expressão“mesmo com o andar da carruagem as abóboras não se acomodam”(op.cit., p.17), ao se referir de modo específico à necessidade (do analista)de falar do caso.Mudança de endereçoFernanda Pereira Breda informa seu novo endereço eletrônico:fpbreda@gmail.comBeatriz Kauri dos Reis comunica seu novo endereço: Rua Joaquim PedroSalgado, 165/401, Rio branco, Porto Alegre/ RS, Cep: 90420-060.ErrataNo <strong>Correio</strong> anterior (número 185), na página 45, desconsiderar a expressãoentre parênteses.6.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


temática.de um “cientista” da escuta. Semblante morto de seu próprio desejo paraque o desejo de outro possa vir a falar.Impossível vir a produzir tal posição por um mero esforço voluntarioso,e somente possível – embora a ausência de garantia para tal – naexperiência de sua própria análise, particularmente no atravessamento doseu fantasma fundamental, ou seja, suportar o estilhaçar-se do espelhode seu narcisismo para passar a se sustentar nas vicissitudes dosignificante.2 – Apropriação conceitualAo saber do psicanalista, embora ele exceda a extensão do conhecimento,nada desse último lhe é estranho. Não poderia ser de outro modo:de um lado, precisa estar disposto a escutar o que não conhece, do outrolado precisa reconhecer o saber que, por estar situado no inconsciente deoutro, não lhe pertence. Dois territórios alheios que determinam nele aprodução de um ato analítico na medida em que eles cumpram a condiçãode atravessar um corpo conceitual capaz de dar prevalência à instancia daletra.O psicanalista requer, então, para sua formação, que se configure, mediantea apropriação dos conceitos que a psicanálise tem cunhado, umacapacidade operatória que permita uma leitura do que está cifrado nodeslizamento do significante. É no apego à esses princípios que têm a formade enunciados, que o ato de enunciação vira ato psicanalítico na medidaem que fica, assim, operatoriamente garantida, estabelecida, opertencimento da significação atribuída (nas construções), e a pertinênciado enigma assinalado (no corte), como próprias do analisante e não determinadaspor um julgamento de atribuição do psicanalista.8.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.3 – SupervisãoComo dar conta do Outro que fala em cada analisante ao mesmo tempoem que ele próprio fala na medida em que se equivoca? Que tenhamos duasorelhas para nada garante qualquer multiplicidade de escuta. Natural, então,que escape sempre um viés já que assim como nunca conseguimosdizer o que queríamos dizer, também nunca conseguimos escutar quantopretendíamos escutar.Por isso a supervisão (“análise de controle”, no dizer de Lacan) nãosomente forma parte da formação – para nos deixar bem in-formados acercada in-suficiência de nossa escuta – mas, faz parte permanente do trabalhodo psicanalista.4 – Dar conta a seus pares da qualidade analítica de seutrabalhoPara um psicanalista, revelar as razões de seu ato desvela a qualidademesma de seu ser. Porque a sua intervenção o compromete na responsabilidadedo efeito de corte e torção que ela provoca nos vetores da vida de seupaciente (e nessa posição o termo “paciente” cabe nos seus vários sentidos).Por isso mesmo, dar conta a seus pares, do modo que lhe for possível,da qualidade analítica de seu ato, denota não a disposição a se oferecera um procedimento de fiscalização, mas o quanto a sua função de analistanão fica condicionada a seu narcisismo.Quando Lacan propõe que “o psicanalista se autoriza de si mesmo”não está afirmando qualquer autonomia ou independência intimista dopsicanalista, mas está se referindo ao fato de que a autorização de sua práticaprecisa estar alicerçada em que ele mesmo assuma publicamente a responsabilidadedo que ali se dispõe a produzir.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .9


temática.5 – Sustentação do discurso psicanalítico“A psicanálise é, sobretudo, a prática de uma ética”. Deixemos claro; aética de um sujeito representado pelo significante. Ética que define umcritério de verdade inédito nas formas que, do discurso, inventaram-se atéo advento do discurso psicanalítico. Uma verdade cuja verificação não seopera pelo que o objeto mostra, mas pelos efeitos que o significante desvela.Sustentar as conseqüências dessa prática em todas as intersecções comos outros discursos é tarefa que incumbe ao psicanalista na sua condiçãode tal, tanto quanto na sua formação: é na dúvida, no equívoco e na vacilaçãodiante o confronto crítico com os outros discursos que o psicanalistacolocará à prova a consistência, e também os limites, de seu saber acerca daposição do inconsciente no tempo e na cultura que lhe toca viver.6 – Os DispositivosA história da psicanálise, no que se refere às experiências de formaçãodos psicanalistas, demonstra que nenhum dos dispositivos inventados paraproduzi-la foi capaz de garantir per se os efeitos necessários. Isso demonstraque a chave da transmissão não reside na qualidade ou forma dos artefatosburocráticos, mas no estilo que a pratica discursiva toma na transmissão,assim como na garantia de que o processo analítico do candidato nãofique a serviço de sua qualificação.Os dispositivos são configurados de acordo com as políticasinstitucionais e, por esse mesmo motivo, ficam aptos para ligar transferênciasde maestria com posições de poder.Se um analista não se atreve a questionar esse lugar “amo” estará colocandoem xeque sua própria formação na medida em que o ato analítico não10.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.é possível desde uma posição imaginariamente subalterna: as posições desubmissão capturam o significante numa redoma ecolálica.7 – O passe e a experiência da <strong>APPOA</strong>Onde se revelam os efeitos da própria análise de um analista? Onde ecomo ficam expostos os efeitos de sua formação? Qual o lugar e tempo emque ele pode dar testemunha desses efeitos?A experiência permitiu perceber que quanto mais se cinge o lugar etempo dessa demonstração, quanto mais se legisla sua forma, mais os dispositivosfavorecem o controle político das nomeações e menos permitem oprocesso da formação. <strong>APPOA</strong> tem dado lugar à formação de quatro geraçõesde psicanalistas ao longo de vinte anos de cuja qualidade testemunhaa variedade e extensão dos trabalhos que sustentam em toda a extensão dapolis, desde a escrita até a clínica, desde a intervenção no discurso socialaté o trabalho institucional.Poderíamos afirmar – certamente com algum temor de nos equivocarmos– que, nessa experiência, o “passe”, em lugar de se cumprir sob aforma de uma cerimônia de revelações oferecidas ao julgamento de um pequenoconjunto de passadores, operou-se sob a forma de extensas e singularesproduções, onde a delicadeza e crueza dos assuntos em jogo era tal,que cada passo, para quem se decidia dá-lo, vinha a testemunhar da estruturasem que o sujeito pudesse ocultar as linhas de suas fraturas.notas.1Texto possivelmente elaborado entre 1989 e 2000, embora fosse escrito – tardiamente – em 22 de novembro de 2009.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .11


temática.O porquê da instituição 1Maria Ângela BrasilAo ler o título que propus para meu trabalho nesta I Jornada da AssociaçãoPsicanalítica de Porto Alegre, me surpreendo pelo seu tom categórico:haveria algo da promessa de resposta à questão, ou de uma exposiçãode motivos que soaria indutiva?Talvez fosse mesmo este o meu espírito na ocasião, mas não é mais nestemomento, após ter reunido algumas idéias e ter percorrido alguns textossobre o tema e, mais do que isso, revisado o que tenho vivido nos últimosdez anos de trabalho como membro de uma Instituição Psicanalítica.Imagino que se inverter a ordem e colocar um ponto de interrogação, otítulo estaria mais afinado com o que motiva este trabalho e, talvez também,com a presença de vocês hoje aqui conosco: “Instituição Psicanalítica –Porquê?”A pergunta se impõe: por que, afinal de contas, o trabalho do analistanão se realiza na solidão?dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .13


temática.De solidão pode falar Sigmund Freud, que se refere a um tempo de“esplêndido isolamento”. Neste período, junto com seu trabalho clínico, ecomo prolongamento deste, ele teoriza sobre os efeitos que produz com suaprática.Havia também Fliess, o delirante interlocutor de Freud, encarnando oSujeito Suposto ao Saber, constituindo o que, para Octave Manoni, seria aanálise original. Pode-se pensar que cada uma destas vertentes estão estreitamenteenlaçadas, de modo que não seria possível concebê-las umas semas outras: o trabalho com os pacientes produzia e se sustentava na elaboraçãoteórica, o que permitia à Freud interrogar-se sobre suas próprias formaçõesdo inconsciente dirigidas a Fliess.O fim do período de “esplêndido isolamento” coincide mais ou menoscom o término de sua relação com Fliess. A amizade com Fliess termina em1900, e em 1902 começam a agrupar-se, em torno de Freud, alguns médicosinteressados em aprender, exercer e difundir a psicanálise. Aí se situa aorigem das Sociedades Analíticas, na “Sociedade das Quartas-feiras”, reuniãorealizada na casa de Freud, a qual este, mais de uma vez, dissolveu evoltou a convocar. Não parece que ele antecipa os destinos das SociedadesAnalíticas? Na proposicão de 22 de setembro de 1907, dirigindo-se aosassociados, diz: “Proponho-me, ao iniciar este novo trabalho, dissolver apequena sociedade que tinha o hábito de reunir-se todas as quartas-feriasem minha casa para fazê-la reviver novamente. A dissolução da Sociedadee sua posterior reorganização tem o propósito de devolver a cada um sualiberdade”. Ernest Jones diz que esta era uma forma delicada de Freud aceitarrenúncias de membros indesejáveis. Seria? O fato é que em 1910, mesesdepois de ter fundado a IPA, ele se lamentava de sua pressa em instituí-la.Freud esperava que a Instituição protegesse seu ensino e assegurasse acontinuidade da psicanálise. Para isso, cria um comitê, integrado “peloshomens de maior confiança, que tomaria a seu cuidado o desenvolvimento14.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.ulterior da psicanálise e defenderia a causa contra as pessoas e obstáculoscom que esta poderá tropeçar quando eu não mais estiver”. Mas ele sabe dafragilidade da proposta e diz: “Não ignoro que isto encerra também umelemento quase infantil e romântico”.O destino da psicanálise entregue à Instituição que ele propôs quase afaz desaparecer, descaracterizada como o foi, como já o sabemos.Isso leva Charles Melman a dizer que a psicanálise freudiana nos foitransmitida por um acidente: Jacques Lacan!Segundo Melman, não há, na teoria freudiana, nada que possa assegurara transmissão da experiência analítica. A criação, pela IPA, de dispositivosburocráticos para a formação de novos analistas esconde a total faltade uma teoria a respeito do que poderia autorizar um analista; mais do queisto, esconde, sob esse excesso de regulamentação, a ambivalência quanto àpsicanálise e uma revanche contra as renúncias que a prática exige. Lacanpropõe um retorno à Freud e vai fazendo com que a obra legada por elesaísse do congelamento, no qual uma leitura burocratizada e tendenciosa ajogara, para fazer essa obra trabalhar, produzir conceitos e revelar sua atualidadee precisão. Mas não só na teoria! “Lacan ousa modificar a técnica! Aífoi demais! A técnica não! Esta deve ser standartizada”.Neste momento, a Instituição oficial mostra sua face de sindicato: asrecomendações do Relatório Turkely, encarregado de investigar “o problemaLacan”, indicam que ele deveria ser afastado das atividades de transmissão,principalmente das análises didáticas e das supervisões; poderiaaté continuar seus seminários (que atraíam muitos alunos), contanto quenão figurassem no programa de ensino. E a frase mais espantosa, pelo querevela o laço de conveniência que unia os membros da IPA: “Que trabalheem paz, à sua maneira, como um simples membro”. Freud pensou queasseguraria a continuação da psicanálise criando uma instituição que tomassea responsabilidade ética da formação dos analistas. Mas se a respos-dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .15


temática.ta à pergunta de como se chega a ser psicanalista for burocrática, o cerne daexperiência do inconsciente se perde e, com ela, a psicanálise mesma.Lacan rompe com os standards firmados da análise didática para dizerque se uma análise é didática, o saberemos depois. Na ata de fundação daEscola Freudiana de Paris, ele diz: “O único princípio a ser proposto, principalmentepor ser desconhecido, é o de que a psicanálise se constituicomo didática pelo querer do sujeito, e ele deve ser advertido de que aanálise discutirá esse querer, na medida em que se aproxime do desejo queteme”.Uma nova abordagem da transferência, da análise didática e daespecificidade do desejo do analista são, a meu ver, os pontos com queLacan redimensiona totalmente o lugar da Instituição na Psicanálise.Esses conceitos levam a um princípio fundamental na questão da formação,enunciado na “Proposição de 9 de outubro de 1967”, que é o famoso:“O psicanalista só se autoriza por si mesmo!” É dito assim, simplesmente,sem mais nem menos, fazendo desabar todas as montagens burocráticase superegóicas, mas colocando também um problema imenso se forentendido pelo lado de uma conveniência ou de uma facilidade! Na suaconcisão, a frase é repetida por muitos e faz com que os mais consequentesse lancem a pensar o que a análise poderia produzir a esse “si mesmo”, quenão é, seguramente, o mesmo que veio buscá-la. Que transformação operaseaí que nada tem a ver com um querer egóico, ou com uma vontade, oudecisão do tipo “Decidi ser analista, vou montar um consultório!” Montar!... “Fulano está montando um consultório!” O que é montar? Diz o dicionárioque é reunir peças de um dispositivo, de modo que este possa funcionarou preencher o fim a que se destina. Pode-se pensar que é o oposto do“autorizar-se por si mesmo”, já que é o resultado de uma desmontagem —a das identificações imaginárias, a do fantasma — e não uma montagem,que afinal é justamente o motor da neurose.16.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.Pois é recalcando a função paterna que o funda, que o neurótico seconvence de que é um ser livre; delírio este que organiza como qualqueroutro: a partir do ego ideal!É justamente aí que se engaja a responsabilidade do analista em relaçãoao analisante que explicita esta intenção: apontar até que ponto essadecisão é tributária desse delírio, pois é importante que se diga que sósomos “livres” na mesma medida que ignoramos. Isto é, quanto mais ignoramosnossas determinações, mais pensamos que somos livres.Se esse “si mesmo” não tem qualquer referência a uma subjetividadefenomenológica ou psicológica, em que se fundamenta? Segundo C.Calligaris, o analista se autoriza do lugar de onde se exerce o seu desejoinconsciente, que não é mais do que seu exercício, sua enunciação; istorequer que o analista possa se desvestir da série de identificações imagináriasque compõem a sua subjetividade, para que apareça uma subjetividadeinconsciente, lugar de onde é possível desejar.“Autorizar-se desde si mesmo” seria autorizar-se desse lugar que nosfoi reservado no Outro. E como resultado de uma análise, este momento, ode “autorizar-se por si mesmo”, em nada implica à Instituição, isto é, elanada tem a dizer até aí.Mas há um segundo tempo. Se o primeiro tempo é a passagem daposição de analisante para analista (o que não interessa à instituição), háum segundo tempo no qual se recolhe um saber sobre esta passagem, sobreeste momento. Segundo Pommier, o segundo tempo transforma o primeiroem um ato e justifica uma nomeação. A Instituição tem a ver com essemomento, não somente pelo saber, senão também porque o passe é quandopode surgir um novo laço social.O resgate dessa experiência implica exercício e teorização, encontrando,na supervisão, uma interlocução outra e, na instituição, um lugar ondeo analista pode dar conta de sua prática, compartilhar, produzir, inventar.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .17


temática.Já que a psicanálise é uma práxis, não pode ter provas de competência, massim de sustentação do discurso analítico.Lacan nos diz, na “Proposição de 9 de outubro”, que, se o analista sóse autoriza por si mesmo, isso não exclui que a Instituição garanta que umanalista dependa de sua formação, e, nesse sentido, “ele deve ir além: tornar-seresponsável pelo progresso da Escola, tornar-se analista de sua própriaexperiência”.Portanto, creio que a Instituição Psicanalítica teria o lugar de testemunha,de escuta, do que já aconteceu, dessa passagem de analisante paraanalista, tornando-a um ato. Não é uma função dispensável, mesmo que asdificuldades para que se cumpra plenamente sejam grandes e que se prestea imaginários que distorceriam sua função.O assunto não é simples, pois comporta um conflito básico: se o cerneda experiência analítica põe em cena o desejo, este não é institucionalizável,sob pena de cristalizar-se e morrer.Portanto tem aí o conflito: como articularo primeiro tempo do passe com o Segundo? Se o desejo do analista éarticulável a um desejo de deslocamento simbólico, como sobreviver nainstância institucional, se ela é regida pela ordem do estável? Sim, porqueinstituir quer dizer estabelecer, o que em latim significa “fazer firme”, fixar.Deixemos momentaneamente esse conflito de lado para colocar outraquestão: “qual é a demanda feita às Instituições em geral e as InstituiçõesPsicanalíticas em particular?”A analogia com a instituição familiar é a primeira que ocorre, é óbvio;esta se caracteriza por uma dupla transmissão: a transmissão coletiva donome próprio do pai aos membros do grupo familiar; e a outra, que emcerto sentido se opõe à primeira, que é a do significante do pai simbólico,na medida que esta não se dá coletivamente, mas apenas um a um, porqueaí há um “passador do significante do Nome-do-Pai, que é a mãe, o que dáa particularidade dos disturbios psíquicos.18.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.Um filho recebe o nome próprio de seu pai como proveniente de ummais além deste, que é o pai simbólico; há uma função nomeante que ultrapassao pai e que não é nomeável. A Instituição, pelo contrário, não podeter um nome se não nomear novos nomes, senão se torna não-nomeável;nesse sentido, a Instituição só pode ser renomeável.Portanto, compreender o que a demanda de nomeação implica é compreendera sua dupla face: um pedido patente dos membros de serem nomeadose um latente, da Instituição, que é o de que se lhe demande seremnomeados. Este movimento é exatamente o inverso daquele que é promovidopelo significante do Nome-do-Pai, cuja função nomeante não advémdaquilo que nomeia. Esse movimento numa Instituição Analítica seria catastrófico,pois revelaria um acordo tácito, recíproco, de autorização imaginária,do tipo: “Te reconheço analista para que me reconheças como analista”.Quando se pensa eliminar a contradição inerente entre o desejo doanalista de deslocamento simbólico e a instância institucional, isto tem umpreço; traz, como conseqüência, as cisões que suprimem o conflito pelareunião dos “nossos”, ou da militância psicanalítica fundada no ódio, ou ahisterização da relação com o mestre, produzindo o silêncio.A questão à qual o analista deve estar atento é que, ele analisou suaalienação nos significantes da demanda familiar, ele não está imune quantoao retorno dessa alienação sob a forma de uma instituição. Talvez, por isso,Lacan teria dito que ele não cessava de passar o passe, que o trabalho depasse, como o da separação, nunca é feito de uma vez por todas.Daí, que o pedido feito a uma instituição psicanalítica seja de reconhecimentode uma filiação, só cabe no que diz respeito a uma doutrina; isto é,do tipo: será reconhecido como Lacaniano, Kleiniano, Freudiano, etc.Mas, enquanto pedido de reconhecimento como psicanalista, é precisoque se diga que continua vigente o “autorizar-se”. Neste sentido, como dis-dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .19


temática.se C. Calligaris, o psicanalista é sem pai, ou melhor, o psicanalista, no seuato, não tem pai. Por quê? “Porque a operação que nos faz sujeito é o efeitode uma lei que se compõe através de uma rede de fala, a qual nos espera enos reserva um lugar de onde desejar; não é a fala de alguém, nem do pai,nem da mãe, mas fala que vem de mais longe e que não opera uma soluçãode continuidade com o núcleo familiar, mas é coextensiva à fala humanadesde sempre”.E é aqui que se sustenta o “autorizar-se”. A aposta lacaniana é que asubjetividade não seja um efeito da função paterna, e que a lei possa serpensada como não tendo um agente.Isto é pensar que, numa ordem da lei, seria possível sustentar-se semreferência a uma potência fálica primordial (que é justamente o que nosneurotiza: a suposição de um legislador, em função da qual, abrimos mãodo nosso desejo, para agradá-lo). Lacan não nos diz que a ética da Psicanáliseé não ceder sobre o seu desejo?A dimensão ética do “autorizar-se por si mesmo” impediria um laçosocial entre analistas? Creio que não, pois podemos opor o instituir enquanto“manter-se de pé” por si próprio ao sustentar ou, segundo umasugestão de Didier Weill, insistir, quer dizer, “fazer-se manter de pé”. Então,em vez de Instituição Psicanalítica, conforme propõe ele, teríamos a“Instituição” Psicanalítica, uma vez que o desejo não se mantém por sipróprio e deve ser sustentado cada vez mais, e não de uma vez por todas.Por aí, o único antídoto contra a Instituição enquanto estabilizadora, é queela se autorize a questionar e a questionar-se. Que não seja apaziguadora econfortável ou brazão fálico a ser ostentado.E sobretudo, que não seja um sindicato, uma associação de profissionaisque exercem atividades idênticas, para a defesa do interesse comum,em nome do qual as diferenças devam ser anuladas ou escamoteadas – masque laços diferenciados possam ser a efetivação da experiência pessoal, tão20.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.somente; diferenças que, por não serem hierárquicas, não promovam paranóias,comparações e disputas narcisistas.Neste sentido, o único laço que deve animar o pedido a uma Instituiçãopsicanalítica é o da transferência de trabalho; e o que nela não se basearserá impostura. Mais do que isso, se não houver transferência de trabalho,o efeito esperado da Instituição não se dará, pois ela não estará autorizadaa dizer algo que valha a pena ser ouvido, da mesma forma que sem transferêncianão há análise. Neste sentido, a Instituição não é uma coleção degrupos de estudos mais sistematizada, pois a demanda que se faz a estesnão é a mesma que a “que se faz à Instituição”. Está certo que o grupo deestudos também possibilite transferência, mas não há nada que autorize aocoordenador de um grupo de estudos, ou ao grupo mesmo, manter a funçãointerrogante da Instituição, função esta que põe em causa o desejo doanalista. É bem mais fácil que se constitua em um grupo de apoio mútuo. Epara que essa função interrogante da instituição soe persecutória, é precisopensar que não reduziu, o suficiente, as instâncias persecutórias do Outro,o que seria o efeito mínimo esperado de um desprendimento subjetivonecessário para quem escuta um analisante.Lacan diz que é preciso retomar-se analista e que isso exige trabalho desimbolização e não imaginárias reconfirmações emblemáticas e narcisitas.E aquele que vem só para estudar teoria, que supõe que assim se apropriado saber de um mestre, apostando só aí o seu ganho defensivo — nãovê o que perde: a dimensão da experiência do inconsciente, seu lugar deenunciação.A questão que coloca é como pagar, como analista, o empréstimo feitoaos significantes de Lacan? Como responder a questão da dívida simbólica?Uma forma de não pagar o preço desse reconhecimento é situar a dívidana relação a um mestre, através do qual a quitação seria acessível; essa édezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .21


temática.a posição do militante, que se anuncia como porta-voz do Outro; renuncia,desta forma, à palavra própria, levando ao luto desta, o que desencadeia afúria, o patrulhamento. Mas, a forma mais radical de negar a dívida simbólicaé colocar-se como autor de sua própria palavra. Esta quitação postiça sópode levar a uma necessidade de instituir inimigos de quem possa suspeitarde uma inadimplência que é sua.O esquecimento dessa dívida se paga com o sentimento persecutóriode ser um impostor.Por outro lado, reconhecer a dívida simbólica é a possibilidade derenegociá-la sem medo, aceitando endividar-se mais ainda com osignificante.A Instituição deve ser um lugar de trabalho que não vise produzir, emprimeira instância, o nome próprio de um analista, mas permitir – dar ascondições para – que um analista, em um dado momento que é singular,aconteça, isto é, fazer passar a psicanálise, ser o passador de Freud. Anomeação se dá depois e não para sempre.Por fim, é preciso dizer, embora seja bastante óbvio, que uma InstituiçãoPsicanalítica não existe por si mesma, que ela tem um trabalho a cumprirque é, como nos diz Lacan, na ata de fundação da Escola Freudiana deParis, “denunciar os desvios e compromissos que freiam o progresso dapsicanálise, restaurando a lâmina cortante de sua verdade no nosso mundo.E nesse trabalho, todo psicanalista que está à altura da experiência nãopode senão sentir-se convocado”. Por quê? Porque é preciso pensar que acausa da transferência de um paciente com seu analista, não é o analista,mas esta no analista em função da transferência com a psicanálise mesma.O analista é o representante da transferência com a psicanálise. Lacan écategórico: afirma que a transferência existe antes da entrada em análise e éo resultado do trabalho de Freud e dos outros analistas que, de algum22.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.modo, aí colocaram esse saber na cultura.Portanto, assim como a Instituição tem a responsabilidade para com atransferência com a psicanálise mesma, os analistas também têm uma dívidapara com essa transferência e com o trabalho desenvolvido pela Instituição;e mesmo com os conflitos, cisões e o mal-estar que a vida institucionalnos impõe frequentemente, a tarefa de enfrentar-se com o impossível dogrupo analítico, na busca de um novo tipo do laço entre os analistas, évaliosa e necessária.Eu encerraria esta fala com uma citação de Guimarães Rosa: “Viver éplural”.notas.1Trabalho apresentado na “Jornada de 7 de abril: A questão da formação do psicanalista”, 1990. Publicado no Boletim da <strong>APPOA</strong>,n° 3/4, novembro, 1990 (Esgotado).referências bibliográficas.DIDIER-WEILL, Alain. Inconsciente freudiano e transmissão da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. 189 p.POMMIER, Gerard. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.LACAN, Jacques. A situação da Psicanálise em 1950. In: __. Escritos. [Écrits]. São Paulo: Perspectiva, 1978. 342 pLACAN, Jacques. Proposicão de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, In J. Lacan, Outros Escritos (V. Ribeiro, trad.,pp. 248-264) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.SOUZA, Alduisio M. de. Transferência e interpretação: ensaio clínico lacaniano. Porto Alegre: Artes Medicas, 1988.MILLER, Jacques Alain. Dissolução e Excomunhão.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .23


temática.Pontuações sobretransmissão em psicanáliseAna CostaO que faz com que alguém procure um analista? Por um lado, podemostratar essa pergunta como uma obviedade, desqualificando mesmo seu suposto.No entanto, enquanto psicanalista me coloco essa indagação sempreque alguém exercita sua narrativa diante de mim. Nas primeiras entrevistas,tentando circunscrever uma demanda, a pergunta que faço ao sujeitoque me fala é a mesma que me coloco: “o que o traz aqui”? No mais das vezes,quando ainda não estabelecemos uma singularidade de trocas em transferência,quando o interlocutor ainda não está explicitado, as construções narrativasobedecem às idéias pré-concebidas. Temores e explicações antecipadasfazem correspondência com fantasias da mídia, discursos da medicina global,clichês psicanalíticos, ou mesmo o senso comum das explicações amorosas.Na amplitude de temas trazidos inicialmente percebe-se o quanto apsicanálise se disseminou como possível resposta ao mal-estar na cultura.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .25


temática.Isso nos leva a uma questão interessante: seria possível estabelecer asdiferenças no tipo de demanda, entre o tempo de Freud e o nosso? É umapergunta que não deixa de encerrar armadilhas, as quais convêm explicitar.Em primeiro lugar, convoca-nos imediatamente a uma tendência – em vigênciaentre nós – de nos sentirmos atraídos pelo significante novo: “novasformas”, “novas patologias”, “novos sintomas”... Sublinho aqui algo queme parece relevante. Nestas abordagens não se trata simplesmente que setenha descoberto sintomas e patologias, e com isso nomeado essas descobertas.O termo “novo” traz embutida uma comparação. É novo por relaçãoao antigo. Logo, trata-se de uma re-nomeação e não propriamente de umadescoberta. Isso que se manifesta como diferença em relação ao antigo, aprincípio, não me parece razão suficiente para uma re-nomeação. É precisofundamentar de que bases se estabelecem as descrições mesmas da clínica,para nomeá-las ou bem como descoberta e rupturas de paradigmas, ou bemna esteira de análises já estabelecidas. Bem entendido, para inovar, inventar,ou mesmo criar, é necessário partir dos fundamentos.Este assinalamento me parece importante porque faz parte da própriaconcepção de clínica psicanalítica. No entanto, é inegável que clínica émovimento, e sua experiência toca o real no momento mesmo de sua produção.Isto significa que essa experiência mantém a tensão entre discurso eato singular. Ou seja, somente a posteriori, referida a uma lógica temporal,é que a apresentação que fazemos da clínica precisa buscar sua expressão.Nesse sentido, é sempre impossível estabelecer a priori categorias fixas doque se irá encontrar no seu exercício. No entanto, isso não implica que ofato de tomarmos cada apresentação clínica na sua especificidade, faça necessáriocriar novas categorias a cada vez.Pode-se dizer que a singularidade dessa clínica inclui na sua experiênciaa dimensão da transmissão. Esta dimensão está suposta em todos osseus elementos, desde os avatares cotidianos nos consultórios, até a tenta-26.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.tiva de objetivá-la para um ensino. Em termos do consultório, coloca-se nomomento em que o analisando precisa transmitir ao analista algum tipo devivência, impossível de expressar, ou mesmo de ser entendida. Como transmitira angústia? Ela nunca cabe na palavra, pairando sempre inadequada aqualquer conformação. Como fazer o outro entender as raízes do padecimentode desconfianças? O sentimento de solidão dessas experiências causaa impressão de que nunca ninguém conseguirá entende-las.Partindo dessas considerações podemos admitir estarmos fundadosnum paradoxo. De um lado, a necessidade de escuta da transmissão de algoque, de tão singular, parece estar fora do discurso; ou seja, está por ser nomeado.De outro, a necessidade de transmitir essa experiência inscrevendo-a numatradição da clínica. E como se dá a transmissão do singular, tanto quanto suainscrição numa tradição? Por algo que foi definido já desde Freud como formade inscrição da experiência do inconsciente: sua construção em transferência.É pela repetição numa estrutura discursiva, situada em transferência, quese reconhece o lugar do sujeito como um singular nessa estrutura.Por esses elementos brevemente expostos, o termo “novo” não me parecepróprio para descrever as formações clínicas encontradas pela psicanálise.Dentro desta clínica, o novo costuma pautar-se pelo recalcamento.Posso reconhecer nele um tema que Lacan tratou no início de seu trabalho,de como as produções em psicanálise, suas contemporâneas, teriamrecalcado o cerne do ensino freudiano. Tratava-se de colocações que nãocabe retomar, dirigidas a uma questão específica que se apresentava naquelecontexto. Retomarei este tema por outro viés, sustentando que o exercícioda clínica psicanalítica é inseparável da repetição significante, ou mesmode um real que insiste. Assim, situa-se nessas condições – aparentementeavessas a um trabalho narrativo – a possibilidade de cernir esse real.Somente neste momento pode-se retomar o termo “novo”, tal como entendoao seguir um assinalamento de Lacan. Acompanhando a esse algo que in-dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .27


temática.siste, no retorno de suas voltas, é novo ver surgir o sujeito. Nesse sentido,o “novo” não se coloca como uma novidade, mas como um momento deconcluir, como um desenlace de algo que insiste.Precisamos considerar também que – enquanto transmissão de suaprodução – a psicanálise tem um caminhar de mais de cem anos. E o quetestemunhamos desse tempo? Que já foram dadas inúmeras respostas aosdesenlaces das análises individuais. Como tratei da questão do sujeito acima,preciso sublinhar que – apesar de ser uma questão fundamental – elanão se propõe como saída, ela perpassa o trabalho de análise. Essas questõeslevam, inevitavelmente, à indagação do que amarraria o sujeito a umlugar e isso se situa nas elaborações sobre o sintoma. Como entrada e saída,os conceitos em torno deste termo ainda não cessaram de ser construídosna usina do trabalho analítico, compondo o campo de enigmas necessárioàs produções em psicanálise. Neste campo, a direção do tratamento não sepauta pela eliminação do sintoma, mas pela possibilidade de acompanharo sujeito na construção de balizas para sua sustentação.Retomando a correlação entre a clínica freudiana e a contemporânea,dois caminhos se abrem para considerar. Em primeiro lugar, a falta de umalinearidade que permita a análise. Ou seja, a experiência traz fraturas nasconcepções e construções teóricas. Essas fraturas são da mesma naturezaque o objeto tratado. Com isso sublinho que os percursos em transferênciapassam por diferentes tempos, acompanhando a entrada numa alienação,bem como suas tentativas de resolução. Destes, também faz parte a própriaelaboração conceitual. Para situar somente os dois principais autoresque nos orientam, foram descritas, pelos seus leitores, diferentes abordagensteóricas em Freud e também em Lacan. Será que essas diferenças seanulam mutuamente? Será que o último Lacan – como está sendo chamado– anula os desenvolvimentos anteriores desse autor? Qual a interrelação– porque certamente existe alguma e que não é somente teórica –28.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.entre esses diferentes tempos, bem como entre esses diferentes percursos?Em outro trabalho 1 já me detive numa correlação entre o percurso dessesdois autores, situando-os numa analogia com tempos pelos quais todospassamos no trabalho em psicanálise. Penso, com isso, propor uma outravolta nesse enlace da produção com as formações do inconsciente, que retoma– num outro tempo – os assinalamentos de Lacan sobre as produções dospsicanalistas como podendo situar-se do lado de um recalcamento.Esta relação entre produção e recalcamento se enlaça à pergunta inicialsobre a busca a um psicanalista. A entrada em transferência cria um campo que– inicialmente – não está proposto, que é a formação do analista. Esta últimatambém se apresenta como demanda de análise. Mas, seja lá qual razão inicialque se apresente, o padecimento sempre acaba se impondo no percurso deuma análise. No entanto, nesse percurso, acontece uma inversão nos rumose a curiosidade se apresenta como saída necessária no se deixar jogarludicamente com as formações do inconsciente. Isso, paradoxalmente, constituio osso da formação de um analista. Como se vê, os três interesses de procurade uma análise – padecimento, formação do analista e curiosidade – acabamnão sendo tão desamarrados entre si. Pode-se reduzi-los ainda mais: procuraseuma análise para tentar re-situar uma determinada relação com o saber.O que teria a ver o saber com o padecimento? Encontramo-los articuladosem seu ponto de chegada. Mesmo quando alguém sofre fisicamente,essa dor pode ser mitigada ao encontrar alguém que “saiba” ocupar-se dela.O que nos deixa a indagação de se não seria também um saber que estariacolocado em seu ponto de partida, na produção mesma do padecimento.Como aproximação, tomemos algumas referências de base, tentandoacompanhar os desdobramentos dessa questão na clínica. Freud conduziaas análises a partir de uma iniciação de seus analisandos no saber da psicanálise.É realmente curioso acompanhar estes primórdios. A direção empreendidapor Freud dizia respeito à tentativa de circunscrever a questãodezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .29


temática.da interpretação psicanalítica, como se impondo a um domínio do inconsciente.A interpretação resgataria um saber nas trevas, iluminando-o à linguagemda comunicação consciente. Saber as “razões” de seu inconsciente,neste momento de construção freudiana, seria suficiente para eliminar umconflito entre instâncias. Como já foi insistentemente lembrado em produçõessubseqüentes, isso não foi suficiente como suporte de trabalho. Noentanto, já está colocada de saída uma questão que parece situar a relaçãoentre a objetivação de um saber e um domínio do corpo e do sintoma.Lacan deu o nome de “saber” a muitos elementos da clínica. Em primeirolugar, temos o inconsciente como um “saber” que não se sabe, nabusca da produção de um sujeito referido a ele. O que o faz nomear atransferência de “sujeito suposto saber”, como a encarnação no analista,por parte do analisando, da possibilidade de sujeição desse saber insabido.A escolha da expressão “saber” – e não conhecimento, por exemplo – temseu princípio sustentado numa dinâmica de alienação. “Saber” implica inicialmenteque o que se processa deste lado não é da ordem de um conhecimentocontrolável pelo eu. Quer dizer, o saber pode apresentar-se exteriorao conhecimento, como não subjetivado, ficando o sujeito submetido a elesem saber. Implica, também, a suposição de que há, em algum lugar, umsujeito que sabe, situado primeiro num Outro, o que posicionaria alguémque se sente ultrapassado pelas formações do inconsciente (sonho, lapso,etc.) como submetido, como objetivado nessas mesmas formações. Ou seja,situa-se aqui a suposição de um Outro que saberia e o sujeito seria objetodesse saber nessas próprias formações do inconsciente.Colocar as coisas dessa maneira contempla a abordagem da temáticapela via da questão do domínio-submissão. Lacan deu diferentes desdobramentosa isso. Podemos encontrá-la nas colocações sobre o tema da alienação,partindo dos primórdios de suas elaborações, quando da proposiçãodo domínio corporal a partir da imagem do espelho. Isso que se imprime30.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.como matriz – que Lacan propõe, nesse momento, como fundante de um eusocial – resulta de um domínio do corpo por uma imagem que vem “defora”. É na produção dessa imagem que se dá a captura em um saberexteriorizado. Assim, como é possível acompanhar, o tema do saber liga-seinextricavelmente à temática que une sujeito e produção.Da referência ao saber passamos pela clivagem, antecipada por Freudcomo clivagem do eu, e retomada por Lacan como clivagem entre saber everdade. Em relação a esta última, temos o desdobramento da relação aosignificante, necessária para que se explicite como se situa o tema do sujeitoem psicanálise. Ali, encontramos o inusitado: a redução, de que padeceo sujeito, ao objeto que apresenta seu gozo.No período de novembro de 1971, a junho de 1972, Lacan desenvolveuum seminário em Saint Anne, no qual se propôs trabalhar o tema dosaber do psicanalista. Foi um seminário originalmente endereçado aos psiquiatras,situando ali um certo retorno dessas marcas: tanto aquelas queimplicaram sua entrada no campo da psicanálise, a partir do momento emque – estando realizando sua tese na construção do caso Aimeé – inicia suaanálise pessoal; quanto a influência do trabalho com a psiquiatria no rumomesmo de suas elaborações. Destaco, aqui, um viés importante no que dizrespeito à questão do saber em psicanálise. Ele se relaciona com a diferenciaçãoque Lacan faz no que diz respeito ao registro da negação. Ele coloca:“não há o não saber”, situando que a ignorância está do lado do saber etomando emprestada a expressão “douta ignorância”, usada por Nicolau deCusa. Nesse sentido, ele dá ao saber uma positividade, também ao proporo inconsciente como o “insabido”. Ou seja, o “insabido” é a própria naturezado saber inconsciente, que é efetivo e positivo nessa dimensão: não éum saber a ser buscado, cuja negatividade poderia ser positivada com sefosse uma “luz no fim do túnel”. Ele diferencia essa espécie de saber, daqueledo conhecimento. Deste lado encontramos uma metáfora do sexual: odezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .31


temática.discurso do conhecimento é uma metáfora do sexual – colocação freudianabem conhecida, a partir das teorias sexuais infantis.Assim, se o saber em psicanálise situa o inconsciente como insabido,resta uma indagação: como diferenciar crença, ficção e teoria, que entretecemrelações específicas com o saber? Ao situar uma dimensão positiva ao saberLacan desloca a negatividade para os operadores lógicos. Assim, “não todo”e “não há relação sexual” – por exemplo – implicam alguns exercícios nosquais vamos encontrar a relação com o tema da verdade. Neste ponto épossível diferenciar crença, ficção e teoria. É no exercício da função da falaque se colocam dimensões distintas da referência temporal, o que implica arelação com essa lógica do “não todo”. Assim, o exercício da função da fala– ponto fundamental da clínica psicanalítica – põe em causa a temporalidadedo a posteriori, dizendo respeito a que a verdade não toda coloca-se nesseexercício mesmo, no qual ao falar, o sujeito é também falado. Também nessesentido é possível diferenciar o que se institucionaliza como saber, daquiloque diz respeito ao sujeito da experiência.E aqui chegamos à questão de onde parti neste texto, nessa relaçãoentre o saber e o que se institui: como transmitir o intransmissível, pontonodal da experiência em psicanálise, desde as procuras singulares, até aformação do psicanalista? Esta pergunta precisa sempre ser aberta, independentedas respostas que inventemos. Nesse sentido, a institucionalizaçãode dispositivos também sofre o efeito dos giros que a aposta no discurso dopsicanalista pode produzir.notas.1Costa, A. A ficção do si mesmo. Interpretação e ato em psicanálise. Rio de Janeiro: Ed. Cia. de Freud, 1997.referências bibliográficas.Lacan, J. Seminário O Saber do Psicanalista (1971/72 – inédito).32.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


temática.Supervisão e Ato Analítico 1Carlos Henrique KesslerQuando procuramos trabalhar o tema da formação, encontramos inquietantesformulações propostas por Lacan. Notória é sua manifestação deque só conhece formações... do inconsciente. Sobre a transmissão, no encerramentodo Congresso dedicado a esse tema, Lacan (1995) colocou quenão existiria transmissão. Quando é um pouco mais ameno, sugere que oque se transmite é a castração... Mas isso seria um outro texto. Vamos aquibuscar contribuir trazendo alguns elementos para refletir sobre a supervisão,tema que estivemos trabalhando nestes últimos anos (Kessler, 2009).Tópicos acerca da Supervisão/ControleMesmo compondo um dos três componentes consagrados como indispensáveisà formação e prática analíticas, a supervisão, surpreendentemente,não é trabalhada teoricamente na mesma proporção. O material biblio-dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .33


temática.gráfico que se consegue localizar muitas vezes é o produzido no contextode mesas redondas em eventos, as quais, por sua vez, levam a outros materiaisde referência. Vejamos então como isto se apresenta, partindo de Freude Lacan.Freud e seu entornoUma primeira menção da expressão Kontrolle é encontrada no texto deFreud (1919/1976) sobre o ensino da psicanálise nas universidades. Encontramosneste texto a formulação do consagrado tripé da formação analítica.Diversos autores localizam a origem da supervisão em momentos informais,ainda não pré-definidos como tais: Breuer relatava seu trabalho aFreud; Freud descrevia a Fliess o andamento de seus atendimentos; Freudreunia-se às quartas-feiras com discípulos; Jung, em sua correspondênciacom Freud; ao tratamento do pequeno Hans, conduzido por seu pai. Istoseguiria até nossos dias. O analista demandaria sempre a um outro a escutade seu ato. Freud teria introduzido a noção de formação mais próxima daidéia de uma interrogação, crítica de si – colocando o acento no analistaenquanto sujeito e propondo como solução a análise do próprio analista –que da noção de modelo, que acabou por prevalecer. O foco seria no manejoda transferência e de como o analista vai contra a transferência, poremergir, enquanto sujeito, na situação analítica.Hélène Deutsch, em 1927, situa que a supervisão foi extraída de ummodelo de ramificações médicas, viabilizando uma experiência prática compacientes, mesmo que excluída a presença destes. Ela já indicava o paradoxoda dupla tarefa imposta aos didatas: terapeuta e professor. É igualmentesensível a uma outra dificuldade: a de que o supervisando não é transparente,o que coloca obstáculo a qualquer objetivo de “analisar o pacienteinvisível” (Deutsch, 1960/2001, p. 69).34.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.É a partir da fundação da Policlínica de Berlim que se estabelece asupervisão como necessária aos novos analistas. Ela foi tornada práticaobrigatória por Max Eitingon, em Congresso da IPA de 1925. Em 1930, apublicação do relatório do Instituto de Berlim (Colonomos et alli, 1985)leva a IPA a normatizar e burocratizar a formação do analista. Dessa forma,inverte-se o processo: enquanto na origem era o de uma demanda do analistade prestar contas de seu ato, passa a ter referência no discurso médico/universitário, na forma da burocracia institucional. Lacan, ao final da décadade 40, viria combater estas normas, propondo distinguir a ordem psicanalíticada institucional.Leclaire (1991) distingue três correntes na prática do controle. Umaprimeira, desenvolvida em Berlim, segue o modelo médico e serve de referênciana IPA. Deveria permitir evitar erros clínicos. Outra posição derivade Budapeste e considera o controle uma continuação, sob outra forma, daanálise. São duas concepções opostas, numa temos o controle de uma análise,na outra a análise do candidato em controle. Os trabalhos de Lacan eseus alunos vêm trazer inspiração ao debate, pois, se o passe é o momentode báscula onde se fixa o nascimento do desejo do analista como desejo, ocontrole permitiria ver em que condição opera este desejo.Lacan e alguns de seus comentadoresPara Lacan, a supervisão se imporia ao praticante por efeitos de suaanálise. O sujeito deixaria de estar alienado nas normas estabelecidas, impondo-sea responsabilidade de que assumisse os riscos de sua prática.Em dezembro de 1975, no auditório da Columbia University, Lacancoloca como contraponto à expressão supervisão, a de ‘super-audição’.Destaca aqui a dimensão de palavra, a escutar/dizer, e não para ver. Poucoadiante, vai agregar:dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .35


temática.“esta famosa supervisão... que... nós chamamos em francês simplesmentede um controle (o que não quer dizer, é claro, que nós creiamoscontrolar alguém). Eu, freqüentemente, nos meus controles – no iníciodeles ao menos –, eu encorajo geralmente o analista... a seguir seumovimento. Eu não penso que seja sem razão que ... alguém vem lhecontar qualquer coisa... alguém lhe diz que ele é um analista...” (Lacan,1976, p. 46).No Seminário 23, Lacan (2007) vai mencionar que, em uma primeiraetapa, os supervisandos seriam como os rinocerontes (animais que atacamàs cegas, guiados por suas orelhas). Em uma segunda etapa, procurariajogar com o equívoco. Importa poder se desapegar do relato do caso, paraque ali se abra um intervalo onde algo vá se produzindo. A esse respeito,Lacan (1983) já havia feito um comentário em seu primeiro seminário, relatandodizer a seus supervisandos que sempre evitassem entender demasiadamente.No Seminário 10 (Lacan, 2005), vai caracterizar o controle comopossuindo uma dimensão de ação, mediante a qual faz aparecer, como noclarão de um relâmpago, o que possa ser possível de captar mais além doslimites do saber. Na ata de fundação da Escola Freudiana de Paris, em 1964(Lacan, 2003), o controle é situado como garantia a ser dada pela instituiçãoao analista em formação e também para proteção dos que seriam os pacientes.Em relação às diferentes e sucessivas denominações que tomou – apesarda colocação de Roudinesco & Plon (1998) de que a palavra “controle”teria se imposto em alemão e depois, pela influência de Lacan, em francêse espanhol, enquanto “supervisão” teria substituído a palavra alemã nospaíses anglófonos pela influência da American Psychoanalytical Association– Lacan manifestou em pelo menos dois momentos o seu desconforto. Nodiscurso de Roma, Lacan (1998) já explicitara que o termo controle era36.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.vantajosamente substituído, em Inglês, por supervisão. E na conferênciana Columbia University vimos como ele mais uma vez expressa seu embaraço,dizendo que não se trata de controlar ninguém. O único consensoentre os analistas que talvez se encontre aqui é o de que todas expressõesutilizadas apresentam problemas e/ou restrições: controle, análise de controle,supervisão, análise quarta, análise assistida, análise referida...Um trabalho publicado na Revista Scilicet 2 ressalta que não existe essênciado psicanalista, alguém será analista apenas na situação analítica,constituído pelo analisante, o qual por sua vez também só pode reconhecer-secomo tal na medida em que seja a um psicanalista que ele fale. Ocontrole interviria como elemento perturbador, permitindo ao analista retomaro lugar de analisante frente a outro analista, impedindo assim um jogode reconhecimento mútuo analista-analisante. O papel do controlador/supervisor seria o do narrador, aquele que não está na cena, mas que colocaas questões que sejam pertinentes.Safouan (1975) fez uma intervenção na Escola Freudiana de Paris quese tornou uma referência no tema. Salienta a dimensão terceira da supervisão.Ele sublinha que no controle a dimensão do ser do analista não podeser desconsiderada. É essencial que o desejo do analista, enquanto desejode agarrar a oportunidade 3 , seja afirmado, ao menos do lado do analistacontrolador, viabilizando assim que não se deixe escapar a ocasião de penetrarno território das transferências.Zuberman (2008) também leva em consideração a intervenção deSafouan. Na análise de controle, deve-se deixar tramitar a letra naquilo quese diz, e não nos conhecimentos teóricos ou na experiência anterior que sepossa ter; o resto que perturba o analista. Por outro lado, chama a atençãopara o que possa haver também de resistência no analista controlador. Namesma oportunidade, Vegh (2005) busca formular razões da necessidadeda análise de controle na formação do analista. Algumas seriam contingen-dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .37


temática.tes, como, por exemplo, o acompanhamento do jovem analista que aindanão concluiu a análise. A razão estrutural da supervisão associa-se a quesempre, mesmo após a conclusão da análise, resta algo que falha e que seresolve somente no real. Jerusalinsky (2005) concorda com isto e propõeque a supervisão indica a existência de lacunas, não apenas na fala, mastambém na escuta. Incidindo na resistência do analista, é prática necessáriaa todo analista, não apenas aos aprendizes. Brasil (2005) aponta que o impossívelde dizer que resta em toda análise encontra, na supervisão, umavia de produção, fazendo com que se deva procurá-la particularmente quandose supõe saber tudo o que o paciente vai dizer. Hoffmann (1996) situa afunção terceira naquele que está em função de controlador, enquanto subjetividadesecundária. Na medida em que seja tomado como uma instância,dentro do registro simbólico delimitado pela formação analítica, do Outro,poderá ler o que o analista em controle terá lido no que ouviu.Temos aí alguns elementos para um mapeamento inicial. Vamos agorabuscar interrogar a supervisão a partir especialmente do que pudemos colherem três seminários de Lacan.Fazendo uso das ferramentasLacan, no Seminário 15, sobre o ato analítico, vai sinalizar que a passagemà condição de analista se dá como efeito da análise do sujeito. Assim,esta condição de “tendo sido psicanalisante” (Lacan, 1967-8, p. 246) o tornaum sujeito “prevenido” de que não pode se considerar como constituinte,causador, de sua própria ação. Ora, isto implicaria que a causa, alhures– em consonância com o estabelecido no Seminário 10, sobre a angústia –,está em a.Cabe aqui relembrar o assinalamento que efetuamos sobre a radicalidadeda proposição do objeto a: objeto perdido no momento mesmo que se cons-38.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.titui o sujeito, resto que resiste à assimilação significante e que segue, desdeentão, como causa de seu desejo.É neste lugar que o analista se manterá, escutando dali o que lhe demandem– seja um saber, seja uma mestria – e, ‘estando prevenido’, buscaráproduzir uma torção, uma inflexão no discurso que esteja em jogo. Éadvertido disto que serão estabelecidas as diferentes possibilidades de intervenção,fazendo-se necessário que cada psicanalista reinvente a psicanálise,a partir do que ele extrair do fato de ter sido, durante algum tempo,psicanalisante.Esta posição do analista se determina por um ato daquele que no fimde sua própria análise aceita o desafio de voltar a restaurar o sujeito supostosaber. Lacan aponta que o ato é o que constitui um começo, lá onde nãohavia um. Isto também nos leva ao desejo do analista, outro importantetema, muito abordado no Seminário 10. Ora, o desejo do analista não poderiasenão implicar no discurso do psicanalista! Na supervisão, portanto,tratar-se-ia de estar prevenido quanto a isto, em vez de se dedicar a pensarse o paciente melhorou ou não, e quanto.Cabe ao supervisor portar-se, eticamente, à altura da responsabilidadeem jogo, encontrando vias de trabalhar frente aos tantos impasses e impossíveisinterpostos na situação. Frente ao impossível, resta o ato. Lidar teoricamentecom este impossível permite não só precisar o que se dá ali, massair desses embaraços. Servindo-nos então das ferramentas dos quatrodiscursos propostos no Seminário 17, na supervisão podemos receber umademanda de mestria, de saber, ou podemos estar frente a um momento dedivisão do sujeito. A partir daí esboçam-se diferentes variações. Conformea circunstância clínica o determinar, teríamos um trânsito entre os discursos.Podemos pensar em intervenções pautadas por cada um deles. E quaisseriam, nessa perspectiva, os elementos ocupantes dos lugares? Qual odiscurso de que se trata?dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .39


temática.Já o supervisor, em “tendo sido analisante” poderá, advertido,redirecionar esta demanda, imprimindo uma torção no discurso, para aqueleno qual o a está como causa (do desejo). O agente que está no comando, omaestro, o regente do concerto de todos estes discursos, é o a, ali posicionadopor alguém prevenido pela experiência de ter sido analisante. As intervençõespodem seguir os vários discursos, mas em momentos pontuais – etambém cruciais – a marca desse resto (a) que a experiência analítica deixaem cada um que por ela tenha passado vai se fazer presente (neste caso, porintermédio do supervisor) como sendo o agente do discurso. É este discurso,como referência de fundo, que os rege, articula, sustenta o/um tratamentoe é o que toca a transmissão, enquanto permanece como a base dereferência de um trabalho de psicanalista.FinalizandoUm dos consensos, não só entre Freud e Lacan, mas também entrevários outros analistas, é o de que cada analista deve inventar seu próprioestilo de intervenção. Não existem fórmulas prontas para fazer o sujeitopassar a falar “o que lhe vem à cabeça”, condição o mais próxima possíveldo sonhar (ou ao menos do devanear). Essa seria uma pré-condição paraa emergência daquilo que concerne ao inconsciente, uma vez que, falandosem pensar previamente, se está confrontado ao inantecipável, ao quepode surpreender. Existem posições clássicas sobre procedimentos técnicosem relação a isso. Mas cada analista (aquele que se proponha a virocupar esta posição) necessita agenciar isto a seu próprio modo. Esta seriauma das formas de entender porque Lacan (2003b) escreveu que oanalista não se autoriza a não ser de si mesmo sendo que, quando acrescentaque isto é com alguns outros, reforça a função necessária da supervisão.40.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.Em nossa prática de supervisão sempre tem sido preocupação permanenteque cada clínico crie seu próprio estilo de atender, se fazendo responsávelpor suas decisões, por mais incipientes que ainda sejam. Estanos parece ser a forma de dar consequência ao que tanto Freud, quantoLacan e tantos outros analistas, sempre deixaram bem claro: que o quepropunham como forma de escutar era a sua solução, pessoal, singular,não devendo ser tomadas como modelo universal a ser copiado. Trata-se dedistinguir o que é contingente, decidido no momento do ato, na transferência,muitas vezes em aparente ruptura com as regras, daquilo que é estruturalna direção do tratamento. Nesse sentido, como ressaltou Robson Pereira(1998), é responsabilidade intransferível de cada clínico compor o contexto,a condição de possibilidade de, com seu estilo pessoal, dirigir um tratamento.E o supervisor tem aqui decisivo papel quando, como colocou Lacan,deve intervir na medida em que o analista se recuse ao ato. Assim, a resistênciado psicanalista iria se manifestar caso ele se recuse ao ato. “O atoconsiste em autorizar a tarefa psicanalisante” (Lacan, 1967-8, p. 140). Aquivemos então outra possível intervenção do supervisor, prevenido de quenão será através de uma comunicação, ensino de uma técnica, de um saber,que irá produzir uma inflexão no tratamento que vem a ser conduzido peloclínico em supervisão.Como coloca Safouan (1975), o desejo do analista se manifesta naquiloque traduzimos como agarrar a oportunidade, aproveitar a ocasião 4 em queo ato, como no clarão de um relâmpago, se apresenta, tendo em vista quesejamos prevenidos a partir da marca deixada pela experiência de ter sidoanalisante; e correndo o risco 5 que o ato implica, seja em uma análise,como também na supervisão. Não hesitar, conforme indicado por Hoffmann 6 .Enfim, como pronunciou Lacan, ter um desejo decidido.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .41


temática.notas.1Esse texto baseia-se em material elaborado para capítulo de minha Tese de Doutorado, produzida sob orientação de Anna CarolinaLo Bianco, no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, com apoio Capes-Picdt. e Cnpq-SWE2Artigo publicado, segundo a proposição de Lacan para esta revista, sem indicação de autoria. Em Jorge & Costa (2005) este textoé atribuído à Clavreul.3Saisir l’occasion, no original. Literalmente, agarrar, prender a ocasião.4Cf. n. rod. 2.5Prendre le risque, no original.6Comunicação pessoal.referências bibliográficas.Brasil, M. A. (2005) “Entrevista com Maria Ângela Brasil” in <strong>Correio</strong> da <strong>APPOA</strong>, 142, 12, Porto Alegre, p. 20-2.Colonomos, F et alli (1985) On forme des psychanalystes. Rapport original sur les dix ans de l’Institut Psychanalitique de Berlin1920-1930. Paris, L’Espace Analythique, Denoël.Deutsch, H. (1960[1927]/2001) “Supervisão” In Opção Lacaniana, 31, São Paulo, p. 67-81.Freud, S. (1976) (1919/1976) “Sobre o ensino da psicanálise nas universidades”, in Edição standard brasileira das Obras psicológicasCompletas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, vol. XVII.Jerusalinsky, A. (2005) “Entrevista com Alfredo Jerusalinsky.” in <strong>Correio</strong> da Appoa, 142, 12, Porto Alegre, p.17-9.Jorge, M.A.C. & Costa, T. (2005) “Entre supervisão e controle: a psicanálise no SPA da universidade. In: Altoé, S. & Lima, M. M.(orgs.) Psicanálise, clínica e instituição. Rio de Janeiro, Rios Ambiciosos.Kessler, C. H. (2009) A supervisão na clínica-escola: o ato no limite do discurso. Rio de Janeiro, PPG em Teoria Psicanalítica/UFRJ.Tese de Doutorado.Lacan, J. (1967-8) O ato psicanalítico. Publicação não comercial._______ (1976) “Lê symptôme (Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines – Columbia University)”, inScilicet, nº 6/7, Paris, déc, p. 42-52._______. (1983) O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. RJ, Zahar._______. (1992) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise 1969-1970. RJ, Zahar._______ . (1995) Conclusões – Congresso sobre a transmissão – Paris 6-9 de julho de 1978, in Documentos para uma escolaII – Lacan e o passe. RJ, Letra freudiana, XIV, 0._______. (1998) “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, in Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.______ . (2003) “Ato de fundação”, in Outros Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar._______. (2003b) “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola”, in Outros Escritos. Rio de Janeiro, JorgeZahar._______. (2005) O seminário, livro 10: a angústia. 1962-3. RJ, Jorge Zahar.42.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista._______. (2007) O seminário, livro 23: o sinthoma. 1975-6. RJ, Jorge Zahar.Leclaire, S. (1991) État des lieux de la psychanalyse. Paris, Albin Michel.Pereira, R. (1998) “O que é um psicanalista ou observações a respeito da instituição como terceiro”, in Ato e interpretação – Revistada Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, n º 14.Roudinesco, E. & Plon, M. (1998) “Supervisão”, in Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.Safouan, M. (1975) “Vers une thèorie de la analyse du contrôle” in Lettres de l’École Freudienne de Paris, 16. p. 205-19Safouan, M., Julien, P. & Hoffmann, C. (1996) O mal estar na psicanálise. Campinas, Papirus.Scilicet. (1976) “D’un discours à l’autre, l’instituition dite du contrôle”, in Scilicet, nº 6/7, déc. Paris, Seuil. p. 204-22.Vegh, I. (2005) “A análise de controle”, in Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – Onde fala o analista. Porto Alegre,<strong>APPOA</strong>, n º 29.Zuberman, J. et al. (2008) Análise de controle. Porto Alegre, CMC.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .43


temática.Antonio Quinet 1 na <strong>APPOA</strong>No mês de outubro tivemos o prazer de receber Antônio Quinet, queveio nos falar sobre seu novo livro, “A Estranheza da Psicanálise”. O temade seu trabalho sem dúvida muito nos convoca, trazendo questões de extremarelevância para o debate em relação à formação analítica e sobre opercurso de uma análise que se revela didática no a posteriori. A discussãoem torno do passe foi amplamente privilegiada neste encontro. Convidamosos leitores a acompanhar nesta edição o texto estabelecido a partir desua fala.Agradeço o convite da <strong>APPOA</strong> para estar aqui falando sobre o meunovo livro 2 que acabou de ser lançado. Estou super contente e não sei se oassunto vai ser polêmico porque quando se fala de Escola, de formação doanalista e do passe, que é sobre o que vou falar, é sempre uma questãopolêmica. E não é de hoje, sempre foi polêmica, desde que Lacan fez aproposição em 1967 sobre o passe, para estabelecer garantias de formaçãodo analista na Escola.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .45


temática.FormaçãoPrimeiro queria dizer um pouco de onde eu falo, porque quando se vaifalar, principalmente sobre a formação do analista, sempre se está falandode algum lugar: ou se está inserido em alguma Instituição, ou numa Escola,ou se está fora dela, e isso marca de onde se fala. Então, contando rapidamente,fiz minha formação em Paris. Cheguei logo depois que Lacan haviadissolvido a Escola Freudiana de Paris – EFP. Um ano depois lançou aCausa Freudiana e convocou algumas pessoas para liderarem esse grandefórum. Essas pessoas fundaram a École de la Cause Freudienne, que eleadotou. A partir da dissolução da EFP, começa, digamos, a grande diásporalacaniana. Várias escolas vão ser formadas a partir disso e podemos dizerque continuam em formação desde o momento em que Lacan a dissolveu.Voltei da França em 1989 e fiz parte do movimento de constituição deuma Escola do Campo Freudiano, sendo inclusive presidente do Congressoque fundou a Escola Brasileira de Psicanálise que, em 1998, passou poruma cisão. Eu saí nesse momento. Depois criamos, aqui no Brasil e emvários lugares do mundo, uma Escola internacional, a Escola de Psicanálisedos Fóruns do Campo Lacaniano. Então, fiz parte e acompanhei o movimentoe toda a discussão sobre o passe e ao longo do tempo esse foi umtema que me interessou e acabei ocupando certo lugar de responsabilidadena formação analítica, principalmente aqui no Brasil. Então, dez anos depoisrecolhi todos os textos que eu havia escrito e fiz uma reescritura. Essemeu livro é o resultado das reflexões sobre a transmissão da psicanálise, aformação do analista e a análise do analista.RegulamentaçãoAcho importante retomar esse tema neste momento em que aqui noBrasil vem se discutindo a questão da regulamentação da profissão do ana-46.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.lista, e somos chamados a falar de como as associações, as escolas garantemuma formação, para que isso não seja regulamentado de fora para dentro.Meu livro também tem esse propósito, de pensar o que o analista deve àsociedade. Penso que deve, porque ele está inscrito no laço social, e a Escolaé uma instituição que faz parte da sociedade, nós oferecemos para que secrie a demanda na análise, então, me parece também que temos de respondercomo formamos analistas. E a Escola de Lacan me parece também umaresposta a isso. A regulamentação traz a questão da tutela. Não é próprio dopsicanalista ser tutelado por um outro que não seja a sua própria comunidade,mas tampouco o analista deve ser tutelado na sua própria instituição,ou, em outros termos, na sua própria Escola.Princípios fundamentaisRetomando alguns princípios sobre a formação, que não são novidadepara ninguém, essa formação, a bildung freudiana, é individual – essa semprefoi a perspectiva de Lacan – a responsabilidade pela formação é dopróprio analista. É diferente de um curso universitário.Agora, o fato de o analista ser responsável pela sua própria formação nãoimplica que a Escola, ou a Instituição não dê garantias, lembrando que Lacan,na “Proposição de 9 de outubro de 1967”, trata exatamente deste tema.Para quem não conhece muito essa história, há dois momentos que sãofundantes da Escola de Lacan. Um é o próprio ato de fundação da EFP em1964, dirigido àqueles que querem seguir o ensino de Lacan após ele serretirado da função didática da IPA e impedido de proferir seus seminários.Essa experiência é referida no prólogo do Seminário 11 como sua“excomunhão”. O outro momento é o da “Proposição de 1967”, em que elepropõe órgãos de garantia da formação analítica, incluindo o passe – o maispolêmico.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .47


temática.Escola – conceitoCom o ato de 1964, portanto, Lacan funda a Escola Freudiana de Parispara aqueles que querem seguir seu ensino. Esse ponto fundante é muitoimportante porque é uma Escola que se baseia num ensino determinado.Passa-se de uma questão histórica para uma questão conceitual, ou seja, aEscola, além de ser historicamente fundada – antes de Lacan fundar nãohavia escola de psicanálise – ela é um conceito que precisa ser aplicadopara existir. Embora possamos identificar diferentes interpretações em termosconceituais há determinados princípios indispensáveis, sem os quaisnão seria a Escola de Lacan. É preciso pensar qual a lógica implicada nesseconceito.Então, se Lacan inventa uma Escola de psicanálise, temos que seguir oque ele está propondo a partir de determinados axiomas que constituemessa escola. Primeiro axioma: ela é fundada em torno de um ensino. O S 1,o significante mestre da Escola, não é o um Um personificado na pessoa deLacan. Ele morreu e sua Escola pôde continuar, porque fundada em tornode um ensino. Uma escola de psicanálise baseada num ensino que não sejao de Lacan não pode mais ser chamada de Escola de Lacan. Pode-se chamarde outra escola. Se atualmente a École de la Cause Freudienne está centradano curso de orientação lacaniana de Jacques Alain Miller, podemos nosperguntar se continua sendo a Escola de Lacan.Escola, Passe, CisõesFoi a partir da proposta do passe que houve um rompimento e fundouseo Quarto Grupo, que não estava de acordo com o passe na escola deLacan. Foi também em torno do passe que presenciei duas cisões na Écolede la Cause Freudienne: a primeira em 1989 que deu origem a atual École48.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.Sigmund Freud, e a de 1998 quando fundamos a Escola de Psicanálise dosFóruns do Campo Lacaniano.A Escola de 64 não é exatamente a mesma Escola da proposta de 67.Quando Lacan propõe a Escola de 64, convoca o que ele chama “os trabalhadoresdecididos”, onde não há diferença, todos são membros. Quem dizque é analista se declara como analista e ponto, e todos são iguais perante otrabalho. Ele convoca quem está a fim de trabalhar e que venha com umaproposta de trabalho, surge aí o “cardo” que depois vai se transformar nocartel. A primeira novidade proposta é a participação de membros nãoanalistas– uma diferença em relação às sociedades da IPA.Em 1967 ele introduz uma diferença: se todos são iguais perante otrabalho, nem todos são iguais em relação à formação analítica e em relaçãoao reconhecimento como analista. E propõe duas designações: AME – AnalistaMembro da Escola e o AE – Analista da Escola, que se diferencia dasfunções hierárquicas de poder na Escola. A Escola não autoriza nemdesautoriza ninguém a praticar a psicanálise, porém é seu dever reconhecer egarantir a formação de cada um. Trata-se então de reconhecer que determinadosanalistas são analistas membro daquela escola. Há diferença entre o analistapraticante que se declara analista, e o AME ou o AE, são titulações conferidaspela Escola. O AME é designado por uma comissão a partir dos trabalhos eintervenções que produz e, eventualmente, perguntando-se ao seu analista eao supervisor como ele conduz as análises. O AE é designado a partir dodispositivo do passe. É nesse momento que Lacan vai propor os órgãos degarantia e seu famoso aforisma: “o analista só se autoriza por si mesmo”. Émais, eu diria, uma constatação que um preceito, pois é sempre o analista quese autoriza a começar a clínica. Resta saber o que é esse “de si mesmo”.Essa constatação é feita por Lacan dentro desse contexto, para diferenciara garantia de formação da autorização a clinicar, pois não é a Escola queautoriza a prática. Não há uma desresponsabilização do analista com suadezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .49


temática.formação, mas a Escola tem um dever em relação àqueles que estão ali presentes.O AE é aquele a quem, segundo Lacan, se imputa estar entre os quepodem dar testemunho dos problemas cruciais, nos pontos nodais em quese acham no tocante à análise, especialmente na medida em que eles própriosestão investidos dessa tarefa.O AME é eleito, ou escolhido, por um júri de recepção, cuja função égarantir a capacidade profissional dos psicanalistas que pretendem provirda Escola. O pertencimento a uma escola não é garantia nenhuma da formação,tanto que ela pode ter não-analistas. Há uma diferenciação em entrarpara a Escola e ser AME da escola, que é conferido, diz Lacan, a partir doque o júri de recepção sabe da prática efetiva do interessado. E a função do“júri de confirmação” é nomear o AE. Interessante essa palavra confirmação,porque confirma algo que já ocorreu: a passagem de analisante à analistano interior da sua própria análise. Essa função do “júri de confirmação”é duplamente constituinte: ele tem a função de nomeação a partir daverificação da passagem de analisante à analista no interior de sua análise,de elaboração de uma doutrina do que seria uma psicanálise que produzum analista e a elaboração do que é uma análise didática.Para Lacan, uma análise se revela a posteriori didática, quando produzum analista. A grande questão da Escola de Lacan gira em torno do queacontece em uma análise para que se produza um analista, baseada na polêmicade que toda análise levada até o fim produz um analista, mas, nemtodos que passam por esta experiência se tornam analistas. Haveria umaprodução, mas não necessariamente uma passagem.A Escola de Lacan, segundo o meu ponto de vista, a partir da “Proposiçãode 1967” se constitui e gira toda em torno desse furo: ninguém sabe oque é o analista, o que é a análise. É o que a gente vem se perguntando e asrepostas só podem ser dadas uma a uma. Daí o dispositivo do passe seinscrever fora da transferência para tentar recolher, elaborar e responder à50.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.pergunta: o que é ou como se forma um analista. É sobre essa estrutura quevai se situar, no âmago da Escola, a própria experiência analítica, que Lacanchama de “pura”. A psicanálise pura é o estudo, o trabalho, a elaboração doque é essa prática da análise enquanto tal. Ao situar no cerne da Escola opasse com essa pergunta – o que é o analista – a escola, que é uma coletividadede analistas, promove a relação dessa coletividade com seu âmago epossibilita uma exterioridade daquilo que há de mais íntimo de cada um,sua própria análise. Então, é essa estrutura que tomei para dar o nome aolivro, o “estranho familiar”. Esse lugar desse oco, onde Lacan vai situar opróprio objeto a, que é extremamente estranho à linguagem, estranho aopróprio conhecimento, mas, ao mesmo tempo, é aquilo que me causa, éaquilo que me é o mais familiar, conforme a releitura de Lacan sobre a“inquietante estranheza” do Freud.Passe – La passeA melhor tradução para o termo francês la passe seria na verdade passagem,e não passe, como costumamos referir. O passe é um neologismo,uma tradução errada do termo. Passe significa uma passagem de percurso epassagem a um lugar. Quando disser “passe, ‘escutem’ passagem deanalisante à analista no interior da análise”.É o passe que vai fazer a passagem moebiana entre o que Lacan chamada psicanálise em extensão e a psicanálise em intensão, ou seja, é a partirdeste dispositivo que se estabelece o continuum entre a psicanálise do divãe a psicanálise que se transmite nessa passagem.E, para complicar um pouco mais as coisas, Lacan utiliza essa mesmapalavra La passe, ou o passe, para duas coisas diferentes: o passe clínicocomo essa passagem que se dá no interior de uma análise, e o dispositivodo passe, que acontece na Escola para recolher essa passagem de analisantedezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .51


temática.à analista. O passe clínico é correlativo a esse dispositivo da Escola. Emtermos da proposta de Lacan uma coisa não está dissociada da outra dentrodo conceito de Escola.Há um interessante detalhe histórico, Lacan também queria participardessa transmissão ao ouvir de seus analisantes como tinha sido a experiênciadessa passagem. Há uma dificuldade do analista em saber disso, podeter uma idéia mas, estruturalmente, é difícil ao analista dar alta porque seencontra no que Lacan chama um des-ser, está desinvestido do ser que oanalisante situa nele. Os afetos do analista quando um analisante sai daanálise não interessam e não são critérios para nada. Lacan não se colocavano lugar do saber absoluto sobre o que é o analista; ele tinha vários exanalisantesno dispositivo, os quais queria ouvir.O dispositivo na prática em nossa instituição funciona assim: um candidatose dirige a uma comissão, que chamamos “secretariado do passe”,ou “comissão de entrada” e declara seu desejo de “fazer o passe”. É recebidopor um dos membros e averigua-se se sua ideia de passe corresponde aoque a instituição oferece. Realiza-se entrevistas antes de entrar no dispositivoe a partir delas o candidato escolhe, por sorteio, dois passadores e oscomunica dessa atribuição.Esses encontros não têm regras ou quantidade previamente definidas.Há encontros com um passador e depois com o outro. Geralmente prestaseu testemunho a um e depois a outro e, ao término, o “passante” dirige-seà comissão para informar que terminou seu passe. Os passadores transmitemao “cartel do passe” ou, como Lacan chamava, o “júri de confirmação”,o relato daquilo que escutaram. O cartel delibera e confere ou não otítulo de AE. Ao não nomeá-lo AE, um membro do cartel do passe recebe efala com o passante dizendo dos motivos da não nomeação.Os passadores são nomeados pelos AME da Escola, que, da sua posiçãode analistas, julgam quem se encontra nesse momento de passe, ainda52.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.que não tenham terminado sua análise. O passador é aquele que vai ouviro passante, e tem que estar numa disposição tal que possa transmitir suaescuta ao cartel do passe. Lacan chega a dizer que “o passador é o passe”,destacando a importância dessa função, da fundamental disposição para aescuta e da dessubjetivação que o passador requer para poder escutar opasse e transmiti-lo. É um dispositivo que vai condensando, filtrando oque é o fundamental, ou depurando o que foi a análise do sujeito. Lacanem 1976 utiliza essa importante expressão: “o passante é aquele que“historisteriza-se” de si mesmo”, para mostrar que o passante como analisadoé aquele que pode fazer a história de sua própria análise.Dentro desse processo há essa depuração dos significantes primordiais,da questão da fantasia, dos pontos cruciais do que aconteceu na própriaanálise. Escutamos os analistas contando, elaborando, construindo oscasos clínicos a partir da sua posição como analisantes. Pois no passe tratasede contar sua própria análise, do seu processo analítico, do que atravessou,das transformações que aconteceram. Geralmente são analistas quefazem essa elaboração e quem escuta também faz um trabalho de condensaçãopara passar ao cartel. O trabalho de elaboração é fundamental para lapidar,trazer o cristal. A não nomeação de alguém Analista de Escola não permitedizer que não fez essa passagem. O máximo que se pode dizer é que nãohouve transmissão. Houve algum problema que impediu a escuta; oimponderável realmente é aí muito grande.Lacan propôs esse dispositivo para tentar verificar o que é essa passagem.Na Proposição de 1967 oferece uma orientação e estabelece o matemada transferência, da entrada em análise. Na fórmula, o analista está nolugar onde há emergência do sujeito suposto saber a partir da vinculaçãosimbólica a um significante qualquer que o analisante encontra no analista.SSqA partir dali temos a estrutura da transferências(S 1, S 2,...Sn)e a emergência do sujeito suposto saber.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .53


temática.É neste texto também que ele indica que não há matema de final deanálise. Dá porém, algumas indicações: no final de análise há uma constante,agalma, objeto precioso, que se encontra desde o início, quando oanalisante encontra (tiquê) um significante qualquer no analista, que encadeiea transferência. Aí ocorre a agalmatização do analista. O enganchetransferencial é sempre a partir de um traço, de um significante qualquerque fisga o analisante, e que corresponde ao agalma – essa constante queencontramos no final da análise, e para a qual ele não propõe fórmula. Háum enigma que é o “x”, que é uma variável. É a partir de uma incógnita – oenigma – que é proposto ao analisante pelo desejo do analista, que aparecepara o analisante como desejo enigmático do outro, é a partir disso que elevai interpretar o desejo do analista que vai sustentar a análise até o seu final.Pois bem, é esse “x” que equivale, como Lacan diz em 67, ao ser do sujeito,e que pode se apresentar sob valores distintos de objeto a ou menos fi.Esse furo é hiância, que corresponde à castração freudiana, a falta doOutro, como tesouro significante, indicando que não há palavras que designemo ser do sujeito, que não há uma localização segura no desejo doOutro. Quando faço uma interrogação sobre o desejo do Outro, aparece oOutro do amor como ideal a ser encontrado, um Outro que pode responder,como essa mãe suficientemente boa que Bion propõe ao analista encarnarcomo esse Outro do amor, onde o analisante possa alojar o seu ser. Lá ondese poderia encontrar esse Outro é o menos fi que aparece. Essa falta retornaao sujeito como complexo de castração. E o objeto a surge como solução deser, ou seja, da conjunção entre a impossibilidade do sujeito encontrar oseu ser no significante e, ao mesmo tempo, a constância e a indestrutibilidadedo desejo que aparece vinculado a uma causa nas suas modalidades deobjeto oral, anal, olhar ou voz.Ao solucionar o desejo do analista, seja na sua modalidade de falta noOutro, ou objeto a, há aí uma passagem e o analista – que estava sendo54.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.sustentado como sujeito suposto saber, sustentando o agalma – se esvai eperde o seu ser. É nesse des-ser que Lacan diz que se revela o “inessencial”do sujeito suposto saber. Donde, esse agalma que o sujeito situava no analista,o sujeito vai se dirigir ou se entregar ao agalma como essência dodesejo. No meu livro retomo esse ponto, mostrando que a causa do seudesejo que o sujeito encontra, em análise, ele pode transformá-la numacausa para ele, a causa analítica, por exemplo e vir a ser analista e trabalharcom e por essa causa. Por haver uma queda do sujeito suposto saber e doanalista que sustenta esse agalma como objeto precioso do sujeito, estepode “largar” o analista. Isso se dá numa passagem que Lacan tambémchamou, apenas uma vez, de “travessia da fantasia”, ou seja, é ao mesmotempo a construção e a desconstrução da fantasia que o sujeito faz na suaprópria análise, e que vai reduzindo até encontrar determinada cenafantasmática, traumática, fundante, fundamental para ele.É interessante que na análise falamos da travessia da fantasia comodesconstrução, mas tenho verificado que o sujeito só pode desconstruir aoconstruir a fantasia. Ou seja, que essa travessia, $ v a que esse é o matemada fantasia, o sujeito aqui, como sujeito do significante, sujeito do desejo,sujeito de linguagem, ele vai encontrar a sua equivalência objetal na fantasia,como objeto que responde ao enigma do desejo do Outro. $ a . Em“Bate-se numa criança”, a fantasia fundamental, que é construída, que nãoé nem lembrada, é ‘eu sou objeto do meu pai’, o sujeito aí como objeto doOutro. Ao se experimentar como sujeito do desejo a quem falta umsignificante que lhe designe, o sujeito lança mão de todos atributos paratentar dizer quem é, e não encontra uma definição porque vai deslizandode significante em significante. Mas, tem alguma coisa de fixo, que estásempre ali, o objeto causa de seu desejo e ali ele experimenta seu ser: ‘eusou também esse objeto da fantasia’, e assim o sujeito pode se experimentarnos dois pólos da fantasia (como sujeito e como objeto). Então, o desejo dovdezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .55


temática.analista, que sustentava a operação, foi solucionado como enigma e oanalisante destitui o analista como sujeito suposto saber. Esse “sujeito supostosaber” não é exatamente o analista, ele, o sujeito, atribui ao analista,mas esse sujeito suposto saber é um sujeito que eu suponho como umsaber, ou mesmo, ao inconsciente. É um sujeito suposto ao inconsciente,como sujeito vinculado à cadeia significante do inconsciente. Então, quandose opera essa travessia há um esgotamento. Há uma queda concomitantedo sujeito em relação à própria cadeia significante, aos seus significantesideais que o sustentavam. Esses significantes ideais que sustentam o sujeitocomo sujeito do inconsciente, $, vão caindo à medida que você vai“desfolhando” suas identificações simbólicas, e nisso há uma separação dacadeia significante. Há uma “des-suposição” também de saber ao inconsciente,algo como: “está bom, já entendi”, como uma saturação, ou satisfação.Não se supõe mais um saber ao inconsciente porque do contrário, não temfim, pois sempre se pode associar algo mais. O fim só pode ser supostoquando o sujeito se desvincula dessa cadeia sem fim da associação livre.Como se desvincula? Seus significantes ideais vão caindo e ele pode seidentificar a essa constante que é o objeto causa de desejo: “não, se temessa coisa constante aí, eu sou também esse objeto”. O sujeito supostosaber é tributário da associação livre, do deslizamento significante e dodeciframento significante, e nós só podemos supor um fim, uma interrupçãose estivermos outro ponto de ancoramento que não seja o sujeitodeslizante na cadeia significante, que é o objeto a.A destituição subjetiva é simultânea à destituição dos significantes ideaisque sustentam o sujeito, sua posição fantasmática e ao mesmo tempo osujeito suposto saber ao inconsciente, para se chegar ao inconsciente comoum saber sem sujeito, como Lacan diz. Esse é o momento de travessia dafantasia, onde os dois termos estão disjuntos, o sujeito se esvanesce, ou édestituído, e o objeto cai. São algumas balizas de Lacan para se pensar o56.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.que é o final de análise, que ele vai chamar de “destituição subjetiva”. Opróprio Lacan dá um exemplo de destituição subjetiva quando foi“excomunhado” e todos falavam que era um farsante, que ficava inventandoumas tantas coisas. Ele diz que foi em frente e continuou seu seminárioem outro lugar e fundou a Escola sem se importar com todas as críticas edegradações de que foi alvo, ou seja, dessubjetivado. Ele segue como umguerreiro aplicado – termo que ele inclusive emprega, a partir de um romancedo Jean Poulain – em frente, completamente destituído de qualquersubjetividade. É um ato “sem sujeito”. E por causa disso que Lacan designaesse momento de “ato analítico”, é essa passagem, do analisante à analista.No momento da Proposição sobre o analista da Escola, Lacan está proferindoo Seminário do Ato Analítico no ano em que afirma que o sujeito noato está no “eu não penso”; fora da cadeia significante, do lado do objeto.“Eu penso” é do lado da cadeia significante. O “eu não penso” do ato é oque o analista efetua com seus analisantes. Tem algo dessa estrutura do ato.Esse primeiro ato é efetuado no interior da análise quando o sujeito tomaposse, por assim dizer, desse momento de destituição subjetiva. Essa estruturado ato analítico será retomada pelo sujeito como analista com seusanalisantes.Lacan propõe o dispositivo do passe para tentar colher esse momentodo ato analítico. A Escola ume o lugar propício para o analista dispor doato analítico através do testemunho que ele dá do que foi o seu ato analíticoem sua própria análise. Lacan chama o lugar dessa essa passagem, o passe,de seuil, um portal, uma soleira, como um lugar de atravessamento. Otermo que ele usa para designar o movimento de passagem é virage, quepode ser traduzido por reviravolta, ou por virada, volta, “viramento”. É umtermo da marinha, relativo a uma manobra do navio quando, de repente,este muda completamente de direção: ele realiza uma virage. O passe é umareviravolta.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .57


temática.Encontramos esse movimento no decorrer da tragédia por Aristóteles,em sua Poética, sob o nome de peripécia.Ao saber da morte do pai, que para ele ainda é Pólibo, Édipo ficacontente de “constatar” (erroneamente) que ele não matou o pai. Mas subitamentelembra que segundo o oráculo ele casará com a mãe e se preocupade sua mãe ainda estar viva. Aí, o mensageiro de Corinto diz todo contenteachando que vai trazer uma boa notícia: “Mas Mérope não é sua mãe ePólibo não é seu pai”. O que é uma péssima notícia e em seguida advém acatástrofe ao descobrir-se assassino do pai e marido da mãe.Então, nesse momento, que Aristóteles chama de peripécia, dá-se umavirada, ou seja, a notícia que poderia aliviar Édipo tem efeito oposto, anotícia anuncia a catástrofe. Podemos pensar no passe como uma peripécia.O sujeito está no caminho da decifração, e tem alguma coisa que vira,um inesperado que produz um efeito nele de “está bom, chega!” Uma mudançade posição subjetiva de sujeito de desejo a um objeto dejeto do desejodo Outro. Nessa virada ele muda de polaridade. No caso do Édipo éevidente, ele que é o sujeito da decifração volta a ser o que sempre foi, umdejeto como objeto de filicídio, para ser expulso da polis.Outro aspecto que também é interessante pensar e comparar com o queacontece no passe é o que Aristóteles chama do “reconhecimento”: passarda ignorância ao conhecimento. O mais belo dos reconhecimentos , dizAristóteles, é que sobrevém no decorrer de uma peripécia, como acontececom Édipo Rei, ou seja, no momento da virada há um ganho de saber. Éesse ganho de saber que também se tenta recolher no dispositivo do passe.Tudo que Lacan descreve, na Proposição, é muito bonito, mas encontrálo,é outro problema. Lacan diz que inventou o dispositivo do passe parase descobrir a emergência do desejo do analista, por que é nesse momentoque o sujeito passa de algo que era o seu desejo, de decifração do desejoinconsciente, a alguma outra coisa. Vimos que pode ser o agalma, que ele58.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.toma para si e vai se transformar na causa analítica, e tem algo de um desejonovo que vai acontecer, “o desejo do analista”, que nos move e que não é odesejo inconsciente. Não é o desejo de tratar, não é o desejo de fazer osoutros ficarem bons, não é nada disso. Não é o desejo nem de ser analista,é essa coisa enigmática que é o desejo do analista.O ato analítico que ocorre nesse momento é um problema, porque ocorreno “eu não penso”. Como relatar alguma coisa no momento que se está forada cadeia significante, algo que está fora da linguagem? Só será possíveldizer alguma coisa depois. Eis a aporia de se falar do ato analítico. A aporiaé uma dificuldade lógica, um impedimento lógico. Há uma aporia do próprioato analítico em seu relato. A gente parte muitas vezes com uma idéiapré-concebida, é difícil ir para o cartel do passe sem expectativa nenhuma.Conseguimos verificar as condições propícias ao ato analítico, mas muitasvezes é muito difícil encontrar exatamente a constituição da fantasia, ouessa identificação do sujeito com o objeto. É possível deduzir a partir dorelato do sujeito porque cada passante vai privilegiar alguma coisa que émais marcante. Uns privilegiam mais o que foi ao longo da sua análise amudança na sua vida sexual, outros vão privilegiar a mudança em relaçãoaos seus pais, outros vão privilegiar as intervenções do analista, outrassuas mudanças em relação aos significantes encontrados e alguns vão falarde determinados sintomas. Como não tem regra, é impossível padronizarnão só a análise com também o ato analítico que nela ocorre.Lacan propõe uma teorização sobre o ato analítico presente na Proposição,que serve como indicador, mas é problema se a tomarmos totalmenteao pé da letra para dizer que ali há ou não há analista. É interessante pensarque as mudanças que são feitas, principalmente na relação do sujeito como Outro, é de realmente esvaziar o que é o Outro para ele e cingir o objetocausa de seu desejo e sua posição de objeto na fantasia. As mudanças nãose dão sem que haja uma destituição subjetiva, e sem uma elaboraçãodezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .59


temática.subsequente. O passe não se dá como uma porta que se entra e vira analista.Seria muito mais como um período, ou momentos de passe numa análise,momentos de destituição subjetiva, de quedas de identificação. Algumasvezes pode acontecer despersonalizações em momentos de queda deidentificações ideais, em que o sujeito fica totalmente identificado ao sujeitodesvanecido, o sujeito em fading, “desidentificado”, do que propriamenteo grande momento, epifânico, que vai de repente transformá-lo em analista.Esses momentos são possíveis de serem reconstituídos a posteriori, eretomar-se determinadas cenas fantasmáticas desde onde o sujeito se vêcomo um objeto do outro – não sem angústia – podendo passar, comoLacan falou, no final da análise por um período maníaco depressivo. Balinttinha afirmado isso também. No momento maníaco, que é o sujeito próprioda cadeia significante, o sujeito vai deslizando de objeto em objeto, e saipor aí comprando, sapatos, bolsas, toda sorte de objetos significantes. É omaníaco da cadeia significante, sem lastro de um objeto pulando de umsignificante ao outro. O sujeito melancolizado, deprimido, é o sujeito identificadocom o objeto, como ocorre no luto em que a sombra do objeto caisobre o sujeito e ele se encontra identificado com o objeto que cai. Esseperíodo maníaco depressivo, que corresponde ao período de passe, terminaquando o analisante pode largar enfim o seu analista e dar baixa naanálise.notas.1Psicanalista, Psiquiatra, Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris VIII. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns doCampo Lacaniano - Brasil, autor de vários livros de psicanálise, Um olhar a mais (2002) e Psicose e Laço social (2006) e das peçasteatrais A lição de Charcot (2005) e Artorquato (2006).2QUINET, A. A estranheza da psicanálise. A Escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.3Acesse o texto com debate incluído no site www.appoa.com.br a partir de janeiro/2010.60.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


ensaio.Entrevista com Anna Irma CallegariLigia Gomes VictoraPara estas entrevistas, depois de semanas de negociações, Anna Irmafinalmente concordou em me receber em seu consultório, em um enormeprédio do centro da cidade. Marcamos um horário, no fim da tarde, e,quando saiu seu paciente, eu entrei em uma sala, rodeada por estantes delivros e quadros antigos (como o pôster do filme Cria-cuervos, de CarlosSaura), o divã, a mesa de trabalho, a atmosfera de penumbra que leva imediatamenteà introspecção.Fizemos três entrevistas, sendo que, na primeira delas, Anna me emprestousua tese de mestrado e outros escritos, dentre os quais muitas poesias.Ligia Gomes Victora(Maio, 2005)dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .61


ensaio.L.G.V.: Me conta, como foi a tua vida?ANNA IRMA: O que queres saber?L.G.V.: Como foi que tudo começou?ANNA IRMA: Começou o quê? Pensas que eu comecei alguma coisa?Nós começamos juntos!L.G.V.: Isso não é verdade! Tua tese de mestrado em Psicologia foidefendida em 1975, no ano em que eu estava começando o curso. Esta tese,sobre o fenômeno da identificação em adolescentes, filhas de mães quetrabalham fora do lar, mostra que o quê importava, na relação, era a satisfaçãodas mães com seu trabalho, independente deste ser dentro ou fora decasa.ANNA IRMA: No curso de psicologia, eu já tive noções de psicanálise.Eu tinha um professor que nos fazia discutir Caruzo. E Freud, eu li umpouco na faculdade. Lia-se Freud, não se falava ainda em Lacan. Mas, antesdisso, queria vir para Porto Alegre, mas não sabia quase nada de latim.Então fiz o vestibular mais fácil que havia... para o curso de Geografia eHistória. Isso foi só um trampolim para poder vir para a capital estudar etrabalhar. Aqui, fiz a faculdade de Educação, me especializei em OrientaçãoEducacional, e depois fiz Filosofia. Só mais tarde fui fazer a faculdade dePsicologia e o mestrado em Psicologia Clínica.L.G.V.: Tua tese relacionava conceitos de diferentes referenciais teóricos,como da psicanálise, da antropologia e da sociologia (a identificação, asatisfação das mães com seu trabalho, o fato de as mães trabalharem ou nãofora). Isso, em 1975, uma época em que as mulheres no Brasil ainda buscavamavidamente seu lugar ao sol no mundo profissional. Que repercussõesteve na época?62.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.ANNA IRMA: Na época não houve muito reconhecimento, mas eunotei que bem depois começaram a falar muito deste assunto, das mulherestrabalharem fora e se isso não prejudicava o seu papel de mães.L.G.V.: Uma reportagem do <strong>Correio</strong> do Povo da época citava tua tesecomo referência para o ano internacional da mulher (1975). Seria um pilarpara o feminismo no Brasil dos anos 70?ANNA IRMA: Nem tanto, mas confirmava que não é o trabalho da mãeque decide sobre a identificação das filhas, mas a atitude da mãe com referênciaà atividade que está desempenhando, se ela está feliz ou não.L.G.V.: Em 1976, em artigo sobre “Desajustes familiares” publicado nojornal do Juizado de Menores, citavas como possíveis causas destes, além doconflito da mulher com o papel feminino, a insatisfação sexual das mulherese os sentimentos de culpa que as mães tinham por fracassar em suas obrigaçõesmaternais. Aí já havia uma dialética psicanalítica em questão?ANNA IRMA: Pode ser. Eu estudei Filosofia. Isso me serviu de basepara a Psicanálise.L.V.: E no consultório, quando começaste?ANNA IRMA: Minha primeira análise durou sete anos. Foi meu analistaque me perguntou se eu não queria trabalhar os casos do juizado emsupervisão. Comecei a fazer supervisão com ele mesmo, e aí que comeceicom o consultório.L.G.V.: Já em 1988, no jornal “Che vuoi?”, escreveste sobre o sonho,na transferência, como meio de acesso à língua materna, e aparece o conceitode “Lalíngua”. Como se deu essa virada para Lacan e a psicanálise?ANNA IRMA: O Alfredo (Jerusalinsky), quando ele chegou a PortoAlegre, deu uma mexida com todos nós. Depois veio o Contardo (Calligaris):dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .63


ensaio.nós tínhamos um grupo no consultório dele para estudar Lacan. Tu já estavasnaquele grupo. A Sílvia (Molina), o Robson (Pereira).L.G.V.: Sim, eu estava neste grupo.ANNA IRMA: Foi na época da Cooperativa (Cultural Jacques Lacan).Minha segunda análise foi com um lacaniano e durou mais de dez anos.Cheguei a fazer 5 sessões por semana, durante anos. Fazia supervisão, foimuito bom, porque eu estudei muito. Nunca estudei tanto na minha vida!A gente se reunia para estudar. Isso durante muitos anos.L.G.V.: A filiação, a adoção, são os temas de teus escritos dos anos 90,por que te interessastes por esses assuntos?ANNA IRMA: Provavelmente por causa do meu trabalho no Juizadode Menores. Trabalhava muito, lá. Fazia laudos, conversava com as famíliasdas crianças e, se elas não tinham família, fazia avaliações, para decidirse tinham que ficar com as famílias ou se podiam sair e para onde iriam.Isso me marcou muito, aquelas histórias, aquelas crianças, de certa formativeram um efeito também na minha vida.L.G.V.: E o interesse pela topologia de Lacan?ANNA IRMA: A topologia trata do espaço, não do ponto de vista daquantidade, mas qualitativo. Talvez tenha a ver com isso, das relações entrelugares, para onde ir, as fronteiras, as vizinhanças... Fui estudar topologiamais por causa do teu grupo, que é muito acolhedor.64.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.Faz-solAnna Irma CallegariFaz sol lá!Vem, vem comigo,Vem, vamos lá!É convite? Convocação?Não sei...Mil olhos d’água me olhamOlho as águas fluindoQue num compasso rítmicoRepetem: faz sol lá!Fá, sol, lá.Fico fascinada, surpresa.O familiar e o sinistroMe olham... e lá estáSão os mil olhos d’água.O faz-sol verde, vermelho, branco,É bandeira, ou lenço?Como saber?E as águas continuamA correr, a rolar, a saltar,A murmurar, a cantar,A encantar, e, num acorde,A repetir: vem, vem,Faz sol lá!E, num balanço rítmico,Carregando o Faz-sol,Seguem sem destino,Seguem para o mar.Sempre sem parar,Sempre a rolar,Sempre a passar,Sempre a cantar: vem, vem...Sigo também o caminhoSigo para o mar.Amar?Sempre! A buscar,Sempre o amor,Sempre a sonhar.Sonho feito de sons, sol, cor.Fluindo cantando: acorde!Faz sol lá!Fá, sol, lá...Vem!L.G.V.: E as poesias?ANNA IRMA: Às vezes eu sonho e acordo com uma na cabeça. Àsvezes vêm de uma paisagem ou de uma cena que eu vejo, então me brotamas palavras na cabeça.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .65


ensaio.L.G.V.: E a cabeça?ANNA IRMA: Meu médico diz que é uma bênção, eu ainda gostar detrabalhar tanto.L.G.V.: Eu também acho. Quando crescer, eu quero ser igual a ti!RAUL (LUAR)La lumière deVotre nom –Rayon de lune...Rayon de jour...Rayon de soleil !Rayonnement de vous même !Rayonnement de bonheur,Rayons figurés,Rayons se répandre,Toutes les directionsDans le lingage,La parole,Les informations,Le théatre, le cinéma,Les sentiments de solidarité,Avec les gens, tous,Nous avons besoinD’amour, amitié,Enfin...C’est Raul :Lumière ?R-rayon d’A-amour, amitiéU-unis fontL-luire la vie.(Agosto/2000)-o0o-PoèmeLe printemps est arrivéDans les champs verts, je t’aisentiSur les arbres fleuris, je t’ai sentiEn savourant um fruit, je t’ai sentiDans les premiers rayons du soleilOu dans l’obscur épais de la nuit,Dans le sommeil tout a changéL’air frais et clair au compasDans l’intensité de la passionLe doux murmure de l’eau,L’attachement de nos mains,Nous embrassant, join nos corpsEm revenant la nuit (hiver),je t’ai sentiEn se souvenant des jours tendresde la jeunesse (été)Dans mon corps avec tes caresses,je t’ai sentiDans l’élan de la tendresse de mêsrêves, je t’ai sentiJe ne te laisserai jamais.(Dezembro/2000)66.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.L.G.V.: Nas poesias, falas de um amor...ANNA IRMA: Foi só uma brincadeira, com o professor de francês!L.G.V.: Falando sério: e os amores, fora teu caso com a Psicanálise?ANNA IRMA: Tive meus amores!L.G.V.: Me conta...ANNA IRMA: Ah, não tem muita coisa para contar! Eu fiz uma opçãopor trabalhar. Primeiro era professora, depois foi o Juizado. Depois o consultório,os pacientes, os estudos.L.G.V.: Foi uma sublimação pelo trabalho?ANNA IRMA: E eu tinha sempre a família em volta de mim: meussobrinhos, que eu considero como meus filhos.L.G.V.: Voltando à psicanálise – o que mais te apaixonou?ANNA IRMA: A clínica. Eu nunca fui muito boa em teoria.L.G.V. : Tu és modesta.A. I. C.: Não: é verdade! Vocês sabem mais que eu! Passei minha vidaestudando, e não sei nada! As pessoas têm mania de achar que eu soufundadora de alguma coisa, só pela idade. Eu não sou fundadora de nada!Se tu queres saber, eu não sei nada!L.G.V.: És tu, e o Sócrates: – “Só sei que nada sei?”.ANNA IRMA: E eu nem sei o que eu fiz, se é que eu fiz alguma coisa!-o0o--o0o-dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .67


ensaio.Textos pesquisados, de Anna Irma Callegari:- O fenômeno de identificação em adolescentes-filhas de mães que trabalhamfora do lar. Tese de mestrado. PUCRS. Instituto de Psicologia, dezembrode 1975.- Profissão maternidade, sem culpa. Jornal O <strong>Correio</strong> do Povo. Artigode Jurema Alcides Cruz. Dezembro de 1975.- Desajustes familiares. Jornal do Juizado de menores de Porto Alegre,julho de 1977.- Apenas um sonho. Jornal Che voui? Psicanálise e cultura. N o 4. Primaverade 1988.- O enigma da filiação. Atas da Reunião Lacanoamericana de psicanálisede Porto Alegre. Agosto de 1993.- Adoção ou doação? <strong>Correio</strong> da <strong>APPOA</strong>. Junho de 2002.- Escrever é preciso. <strong>Correio</strong> da <strong>APPOA</strong>. Julho de 2003.- R.S.I. <strong>Correio</strong> da <strong>APPOA</strong>. Setembro de 2004.68.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


debates.Reflexões sobre a análise leiga 1Edgar CherubiniPrimeiramente, gostaria de agradecer à Associação Psicanalítica de PortoAlegre pelo acolhimento que aqui recebi. Acolhimento esse que mostraque a instituição está no caminho da transmissão da psicanálise.Sobre o meu trabalho, resolvi mudar o título e chamar “Reflexões sobrea análise leiga”. Falo em reflexões, pois gostaria de colocar o que para mimse passou, o que foi transmitido nesse Percurso de Escola da <strong>APPOA</strong>. Achoisso significativo e importante de ser dito. Trago este trabalho, ou melhor,esta troca, sem a preocupação de uma estruturação teórica ou técnica e sim,como falei, mais próximo de um testemunho, de uma experiência mesmo.O tema análise leiga me faz questão devido a minha caminhada napsicanálise.. Quando entrei em análise, jamais imaginei que estaria em umainstituição de psicanálise, estudando, fazendo uma formação e muito menostrazendo a uma jornada um texto meu. Isso só está acontecendo pelatransferência, os significantes que a análise apresentou.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .69


debates.Especificamente no texto sobre a análise leiga de 1926, Freud produzum corte significativo e necessário para a sobrevivência da psicanálise. Ascircunstâncias da época, o debate sobre quem pode e quem não pode exercera psicanálise já circulavam com intensidade. Com o texto, ele marcauma posição que tem efeitos sobre a psicanálise até hoje.Segue uma citação de Freud: “Charlatão é todo aquele que efetua umtratamento sem possuir o conhecimento e a capacidade necessários paratanto” (Freud 1976, p.261). Essa fala representa bem sua forte posição , queaqui não está descartando nenhum diploma, mas dizendo que para o exercícioda psicanálise é necessária uma formação adequada, pois se trata deuma formação de outra ordem, a ordem do inconsciente.O que leva Freud a publicar “A análise leiga” é a acusação decharlatanismo que o Dr. Theodor Reik sofreu nos tribunais de Viena. Essaacusação, posteriormente, foi abandonada. Não vou aqui relatar essa história,pois é de conhecimento de todos e não é meu foco principal. O importanteé ver que Freud escreve este texto muito tempo depois do início desua obra, 40 anos depois, ou seja, quase no final da obra. Por isso, digo daimportância do tema, que deixou uma janela, deixou a psicanálise oxigenada,difícil de ser “fechada”.Nesse mesmo contexto temos mais uma citação de Freud: “Minha teseprincipal foi no sentido de que a questão importante não é se um analistapossui diploma médico, mas se ele recebeu a formação necessária à práticada análise” (Freud, 1927, p.86). Vejam os termos: “formação adequada, formaçãoespecial”. (onde está citado o termo formação especial e adequada?Não seria de ver com o autor?)Freud, ao escrever o texto sobre a análise leiga, quis proteger a psicanálisee não regulamentá-la. Isso fica muito claro em uma carta que ele escrevea Oscar Pfister (“pastor psicanalista”), dois anos após o texto de 1926.Freud escreve: “Não sei se o senhor adivinhou a ligação entre a análise leiga70.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.e a ilusão. Na primeira, quero proteger a análise dos médicos, na segunda,dos sacerdotes. Quero entregá-la a uma categoria que ainda não existe, umacategoria de cura de almas seculares, que não necessitam ser médicos e nãopodem ser sacerdotes” (25/11/1928). Quando diz “uma categoria que aindanão existe”, refere-se a uma categoria que tenha compromisso com os pacientes,com a fala deles.Calligaris, em seu livro “Cartas a um jovem psicanalista”, nos traz essecompromisso com os pacientes... Em uma das cartas (nº.7,p.98), ele respondea questão “o que é preciso para ter mais pacientes?”. Calligaris diz:“Para estabelecer sua clínica, vale esta máxima: se seu compromisso forcom os pacientes, não se preocupe, eles vão ficar sabendo”.Quando, no início de minha fala, coloquei que jamais imaginaria estaraqui etc., foi por que, falando em diploma, formação universitária, eu venhoda faculdade de Administração onde se forma administrador. Bem,hoje estou administrando a dor, o sofrimento, ou seja, entrei em análisepara administrar essa dor. Não se entra em análise para “vir a ser” umpsicanalista. Isso tem que ser um acontecer.Durante o Percurso, muitos momentos me marcaram. Gostaria de destacarum, a leitura da Ata da <strong>APPOA</strong> no último semestre. Ata que é um dospilares da instituição. Na leitura da Ata senti que estava fazendo laço com apsicanálise. Quem lia a Ata via-se em um recomeçar, em um repensar. Acreditoque estar analista é estar sempre recomeçando, pois uma análise ésempre única.O término do Percurso Escola, que tem como base a teoria, não significa quese está pronto a exercer a psicanálise. A formação adequada, especial, enfim, deoutra ordem, mostra que estar em um percurso é estar apenas em umas dastravessias desse preparo, que é sempre contínuo. Preparo que implica um tripé,que é a análise pessoal, o estudo da teoria e a supervisão. Por fim, espero tercontribuído com esse momento do Percurso, momento de reflexões para todos.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .71


debates.Obrigado, por enquanto é isso!notas.1Trabalho apresentado na Jornada do Percurso de Escola VIII em setembro de 2009.referências bibliográficas.FREUD, S. A questão da análise leiga (1926). In: Obras Completas de S.Freud.(v.XX). Rio de Janeiro: Imago, 1976 .ALBERTI, S. Formações Clínicas do Campo Lacaniano. Escola Letra Freudiana, n°32, (p.214-6), 2003.CALLIGARIS, C. Cartas a um jovem terapeuta. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.72.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


debates.A “primeira filosofia” de Jacques Lacan 1Sonia Mara Moreira OgibaA topologia nos indica que em um circulo, há um buraco no meio. E mesmoque nos ponhamos a sonhar com o que faz o centro do círculo – o que se prolongaem todos os tipos de efeitos de vocabulário: o centro nervoso,por exemplo -, ninguém sabe ao certo o que isso quer dizer”...(Jacques Lacan, O Seminário, O Sinthoma)I – Antecedentes‘Antecedentes’ situa um interesse de estudo e as derivas ocorridas nomesmo desde que inicio um percurso pela Psicanálise. Com a palavra ‘derivas’desejo expressar a sensação de ver deslizar esse interesse a cada novotexto freudiano ou lacaniano estudado, como também, indicar a paradoxale espantosa relação de proximidade e de distância entre Filosofia e Psicanálise.Dois campos de saber que se cruzam e se enlaçam ainda que distintos.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .73


debates.Se, durante duas décadas, antes de aproximar-me da psicanálise, estiveem contato com a crítica filosófica buscando aí um suporte para umaprática do ensino no campo da educação, foi mesmo durante a idade juvenilque o gosto por esse tipo de saber se enraíza. Às clássicas interrogações‘Quem somos?’, ‘De onde viemos?’, ‘Para onde vamos?’; três grandes enigmas,portanto, acerca ‘das origens, do sexo e da morte’, por mais que encontremosno mundo dos adultos algumas respostas, é na juventude quetais questionamentos se fazem com uma grande dose de espanto, de admiração.Por essas não serem questões alheias a todos nós, já aí ‘filosofamos’sem mesmo o sabermos. Quase, pois, um tornar-se filósofo em potência ouem ato. Mas, pretendo partir de outro ponto. Contudo, à medida que escrevonão deixo de perceber nessa escrita certo tom biográfico. Nada de estranho,pois o que esse trabalho também irá revelar é o que de ‘memória’, de‘transmissão’ e de ‘herança’ está implicado na escrita em psicanálise. Ouainda, dizendo com Maurice Blanchot, “quem escreve (o livro) escreve-opor desejo”. Dito que se tornou herança de uma geração de escritores pósLe livre À Venir.A escrita freudiana, fundadora da Psicanálise na modernidade, o préfigura.O retorno que Lacan faz a essa escrita, além de retomá-la na suacondição de discursividade, situa a descoberta freudiana do inconscientecomo uma ‘prática escritora do Sintoma’. Pois bem, esse é o ponto ondepretendo situar-me para nesse momento do Percurso dizer algo sobre aafirmação lacaniana tomada como título deste trabalho. Encontro-a na leiturado Seminário O Sinthoma, e a apresento de maneira mais precisa nasegunda parte do trabalho.Ao refletir sobre a escrita no entrelace memória e transmissão da experiência,Ana Costa, em “Corpo e Escrita” (2001), dialogando com WalterBenjamin e Hannah Arendt, nos apresenta a ‘função escrita’ como experiência,no caso da adolescência, a experiência de uma travessia. Escrita74.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.pulsional que vai produzindo suas novas inscrições e ao mesmo tempoelucidando o fato de que a linguagem é antes de tudo a revelação de umafalta, da ‘falta de um significante’! Tal escrita inscreve aquilo que escapa eque carece de representação, ou seja, a articulação entre simbólico e real.Por outro lado, ao seguirmos no fio da implicação entre corpo e o escrever,e das relações entre Memória e Transmissão, logo de imediato parecemoster que caminhar entre as disciplinas, as ciências, além de suas fronteiras,porém, atentos ‘às partilhas’ dos saberes como nos adverte Michel Foucault.A singularidade da escrita freudiana está, sobretudo, no fato de ter demarcadoos limites do saber médico e do biologicismo da sua época, e fundadoas bases da psicanálise a partir de um novo estatuto do corpo e do sexual.Aos poucos fui percebendo o quanto há de quimera e vontade de domíniona experiência moderna de organização e classificação dos saberes.Pois, o quê de fato parece estar em causa na ordem desses saberes para aexperiência moderna do individuo, e da subjetividade, é a tentativa de elucidara maneira pela qual cada ser vem a se constituir como corpo. Ao modo dalógica, diz Lacan: Lógica do significante, lógica da alienação-separação, lógicado objeto, lógica da sexuação, lógica da letra, lógica ‘de sacos e cordas’,...Evoco ainda em ‘Antecedentes’ a trajetória realizada com colegas deturma do Percurso de Escola. A colocação em ato da transferência de trabalhocom alguns textos filosóficos, a leitura conjunta que fizemos de algunsDiálogos platônicos, assim como o estudo que ainda estamos realizandosobre a obra de Maurice Merleau-Ponty, foi decisivo para a escolha da questão-títulodeste trabalho. Hoje, à distância, compreendo que aquele momentoreunia algumas das condições para que este trabalho e essa escritatomassem forma. Chego a vê-lo como aquele ‘outro’ tempo sem o qual qualquerescrita não vem a termo. Do “Crátilo”, um Diálogo platônico acerca‘dos Nomes’, ao pequeno-grande parágrafo lacaniano no texto “AAgressividade em Psicanálise” (Escritos,1998, p.104), por exemplo, foi umdezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .75


debates.passo importante e que me levou a perceber a força da herança filosóficados gregos em Lacan. Chegamos a nomeá-lo ‘Lacan, guerreiro da palavra’. Aleitura desse Diálogo nos conduziu à complexidade da linguagem. Pudemospercebê-la como lugar de nomeação e do registro do simbólico dosnomes, como, da mesma forma, do inominável. Encontramos Lacan às voltascom os limites da dialética socrático-platônica. Ao eleger as figuras deum sofista (Trasímaco) e de um filósofo (Sócrates) para ilustrar a irrupçãodo sujeito do inconsciente na linguagem, Lacan busca circunscrever umafalha no saber da filosofia. Na interpelação que Lacan faz à filosofia, “afilosofia, desde Sócrates” (op.cit. p.109), vimos emergir a construção doobjeto radicalmente perdido, origem da “falta ôntica da estrutura”, da estruturada linguagem.Assim como Freud inaugura outra maneira de ‘ler’ o corpo para fazê-loemergir como corpo sexuado e desejante, Lacan, operando através do diálogocom a filosofia, e aqui precisamente na interpelação com a filosofiacartesiana, elucida o núcleo mesmo do inconsciente. Na sua formulação “oinconsciente está estruturado como uma linguagem”, além de tomá-lo comosimbólico, aponta aí um furo, um real. Núcleo constituído pelo simbólico,mas, fundamentalmente, por um furo. Desse modo, a análise, diz Lacan(1985), veio “nos anunciar que há saber que não se sabe, um saber que sebaseia no significante como tal”. Parece ser nesse preciso ponto que o discursopsicanalítico, para Lacan, renova a questão do saber articulada porDescartes. É como se pudesse dizer que Lacan com essa “volta a mais”, comessa renovação do núcleo do inconsciente, buscasse escrever um diálogoplatônico sem Platão, sem dialética, portanto, inscrevendo o furo da linguagemna própria linguagem. Operação impossível porque faz operar aícom o próprio Impossível. E, um filosofar para além do cogito – a certezaestabelecida pela ‘Filosofia Primeira’, emergida no Cogito, ergo sum, deDescartes. O que Lacan se propõe nesse diálogo com a filosofia se asseme-76.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.lha com a operação freudiana sob a qual funda a psicanálise: desde o sabermédico, porém, nele inscrevendo uma falha ao ter encontrado na Literaturauma fonte para a clínica psicanalítica. Em Freud são os métodos científicosutilizados em Medicina que passaram a não ter valor para o estudo dahisteria, por exemplo. O que o faz apelar para os poetas e romancistas... Daclínica psicanalítica vemos emergir outra dimensão para o que seja a Verdade.Verdade e ficção estão postas lado a lado!Neste momento, e de modo intuitivo, não nos parecia uma impostura 2dizer que Lacan ‘faz filosofia’, se levássemos em consideração que na culturagrega do séc. VI A.C., por exemplo, o filosofar tem a ver com a busca daverdade, ainda que a mesma fosse buscada pela via do racional, da dialética.Acima de tudo, esse filosofar estava implicado mais na proposição de algoa ser pensado do que na indicação de respostas. Ou ainda, se tomássemospor referência o que há de “sofia “ na palavra filosofia, ou seja, a indicaçãode um estado de espírito da pessoa que ‘ama’, que deseja o conhecimento.Que a Psicanálise, desde seu fundador, experimenta, no sentido experiencialdo gesto, o “Prazer do Texto”! É Roland Barthes, o escritor celebrado porLacan como seu querido amigo, ‘amantes da metáfora’, o qual, para alémdas identificações ou mesmo em virtude delas, vem em nosso auxílio. Auxíliopara quê? Para que possamos retirar as aspas na expressão ‘faz filosofia’e deixar emergir a háiresis lacaniana. Assim como, para que se possainterrogar essa ‘primeira filosofia’, naquilo que há na mesma de ‘primeira’ ede ‘filosofia’.II – A Háiresis Lacaniana .... O que falta à filosofia?Logo no início do Seminário “O Sinthoma” (1975-1976), Lacan diz:Mas é um fato que Joyce faz uma escolha e, nisso, como eu, é umherético. Pois haeresis (termo em latim derivado do grego háiresis que de-dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .77


debates.signa a ação de fazer uma escolha e se traduz por “heresia”) é realmente oque especifica o herético. É preciso escolher a via por onde tomar a verdade.Ainda mais porque a escolha, uma vez feita, não impede ninguém desubmetê-la à confirmação, ou seja, de ser herético de uma boa maneira(op.cit., p.16)No final desse Seminário, sob o título “A escrita do ego”, encontra-se àp. 141, da Ed.Jorge Zahar, a formulação a qual me senti concernida a trabalhara questão-título desta escrita. Porém, utilizo a tradução da Publicationhors commerce. Document interne à l’Association Freudienne et destine asés membres, apesar desta formulação, diversamente da tradução Zahar, tertransformado-se em dois longos parágrafos. Ei-la:Mas, o que resta é o significante, isto é, o que se modula na voz nãotem nada a ver com a escrita. É em todo o caso o que demonstra perfeitamenteo meu nó bo. Muda o sentido da escrita. Mostra que há algo em quepodemos enganchar significantes. E os enganchamos como, estessignificantes? Pelo intermédio do que chamo ‘dito-mensão (dit-mension)’;aí também, pois não estou nem um pouco certo de que isto não tenha escapadode vocês. É assim que eu o escrevo: ‘menção do dito (mension du dit)’.Isto tem uma vantagem, este modo de escrever. O que permite prolongarmenção (mension) em mentira (mensionge), ou seja, menção/mentira e o queindica, faz menção não é de forma nenhuma forçosamente verdadeiro.Dito de outro modo, o dito, o dito que resulta do que chamamos afilosofia não está ... está sem uma certa falta. Falta ao que tento... tentosuplementar com este recurso ao que pode, no nó bo, somente ser escrito.Oque só pode ser escrito para que tiremos partido disto. Não fica por menoso que o que há de philia no filo, o filo que começa a palavra filosofia, o quehá de philia pode tomar um peso. É o tempo, enquanto que pensado. Pensado,não pelo pensamento, mas o tempo pensado. O tempo pensado é aphilia. E o que eu me permito, enfim, adiantar, é que a escrita, no caso,78.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.muda o sentido, o modo do que está em jogo, e o que está em jogo é esta philiada Sabedoria. A Sabedoria, o que é? É o que não é muito fácil de suportar deoutra forma que com a escrita, a escrita do nó bo, ela mesma. De modo que, emsuma, modéstia à parte, ‘o que eu faço, o que eu tento fazer com o meu nó bo,não é nada menos que a primeira filosofia que me pareça suportar-se’ (grifo).Por que ‘primeira’ e por que ‘filosofia’? A qual ‘dimensão’ está Lacannos remetendo? A escolha foi feita... Pela via da ‘escrita’, do ‘corpo’ e da‘verdade’. “É preciso escolher a via por onde tomar a verdade”. Com essafrase Lacan apresenta James Joyce e a si mesmo na lição de 18 de novembrode 1975, como heréticos. Alguns meses antes, o nomeia “Joyce, o sintoma”.Uma reduplicação com grandes efeitos para o entendimento do lugar clínicoe teórico-discursivo da Psicanálise na ordem dos saberes moderno. De uma‘Verdade’ Primeira, cogito, ergo sum, com a qual a filosofia moderna situa-sena ordem desses saberes, inscrevendo nessa ordem a sua via de acesso aosmesmos, Lacan veio a mostrar que há ainda uma ‘Primeira’ verdade. Desdeque se faça a escolha do caminho, a via por onde tomá-la. Lacan, qual Joyce,um herético, e ‘arquifilósofo’, pois o mesmo sabe que a busca da verdade é oque há de mais arcaico e primordial para a espécie humana. Entretanto, foipreciso escolher a via por onde tomá-la. Com essa gesta a psicanálise, desdeFreud, vem perseguindo-a. Foi preciso escrevê-la de outro modo, desdeque se pôde demonstrá-la, como o desejou e o fez Lacan, por seu ‘Amor’ aoTexto. Eros e verdade articulam-se ao modo singular da psicanálise, o quenos situa diante da problemática do desejo e sua implicação ética.A háiresis lacaniana parece conduzi-lo à experiência do “não cederde seu desejo” (desejo de filosofia?). Interrogo-me sobre ‘o que é isto, odesejo de filosofia de Lacan’? Estará o psicanalista Lacan, ao inscreveruma falta na ‘A Filosofia’ por meio da escrita singular do nó bo, mostrandoà filosofia a via de acesso à Sabedoria? Ao discutir a problemática dodesejo no contexto das estruturas neuróticas e das formas de identifica-dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .79


debates.ção, no Seminário “As Formações do Inconsciente”, Lacan menciona:Poderíamos, nesta oportunidade, articular o ponto de vista do filósofoe questioná-lo da mesma maneira. O neurótico, de fato, está num caminhoque tem um certo parentesco com o que o filósofo articula, ou, pelo menos,com o que deveria articular, porque, na verdade, ‘esse problema do desejo,porventura vocês já o viram articulado efetivamente, e cuidadosamente, ecorretamente, e poderosamente, na via do filósofo? Até hoje, o que meparece uma das coisas mais características da filosofia é que isso é o que háde mais cuidadosamente evitado em seu campo’. (grifo) (1999, p.445)Das interrogações propostas por Lacan, ocorrem-me algumas: Por queo filósofo não articula “esse problema do desejo”? O que estará sendo “cuidadosamenteevitado” pelo filósofo e que impossibilita que caracterizemoso campo filosófico como aquele implicado na problemática do desejo? Pareceparadoxal, pois desde os gregos que a filosofia vendo sendo concebidacomo Desejo de Saber! Assim, que falta à filosofia e que a escrita do nó boveio a suprir? Ou teríamos que torcer a pergunta e formulá-la de outromodo: Se há falta na filosofia e Lacan veio a supri-la por meio da escrita donó bo, estaremos diante de uma ‘real’ partilha de saberes acerca do modo deoperar do significante, da “escrita grande S”? Pode-se dizer que uma dascaracterísticas da ‘primeira filosofia’ é o furo, o lugar vazio, o Real da estrutura,e que decorrem da ‘leitura’ lacaniana do ser como ‘suplência’? Suplênciaque vem a reparar uma falta estrutural. O que supre isso? Diz Lacan, épreciso escrever para ver como funciona...III – O que supre issoO desejo de filosofia de LacanRetornando ao Seminário “O Sinthoma”, encontramos Lacan com umaafirmação surpreendente.80.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.Esse nó [bo] é um apoio ao pensamento, mas, curiosamente, para tirardaí alguma coisa, é preciso escrevê-lo, ao passo que, se nos limitarmos apensá-lo, não é fácil representá-lo, mesmo o mais simples não é fácil vê-lofuncionar. Esse nó, esse nó bo, implica que é preciso escrevê-lo para vercomo ele funciona. (...) O que é curioso é esse nó ser um apoio [appui] aopensamento [pensée]. Vou me permitir ilustrá-lo com um termo que permiteescrever o pensamento de outro modo. É preciso que eu o escreva paravocês nessa folhinha de papel em branco – appensamento [appensée]. (...)Uma escrita é, portanto, um fazer que dá suporte ao pensamento” (op.cit.,p. 140)Surpreendente por quê? Por que parece esclarecer o enlace da filosofiacom a psicanálise. No “Para Concluir”, seção do Seminário “O Sinthoma”,busco razões para pensar que esse enlace mostra uma provável existênciade ‘permeabilidade’ entre esses dois campos de saber. De modo mais preciso:quando Lacan faz uso da escrita topológica do nó bo como uma formade demonstração daquilo que faz apoio ao pensamento. Na torção produzidapor Lacan na concepção do inconsciente, é o inconsciente mesmo quese transforma na estrutura formal do pensamento. Suporte para que a filosofiapossa suportar-se, e, expressão daquela ‘permeabilidade’? Escrever opensamento implica antes de tudo apoiá-lo já que se trata de uma operaçãoem que há furo, portanto, de um pensamento incapaz de apreender-se a sipróprio.O que está em jogo para Lacan é a philia da Sabedoria, e a philia é otempo pensado, mas não pelo pensamento, pois que se pode colocar agoraa questão de ‘quem o pensa’, assim como tomar o Tempo em outro registroque não o do pensamento. Que registro será esse? Tempo pensado é otempo como duração, mudança, mas acima de tudo, criação? O que estásendo interrogado por Lacan é a implicação do tempo (em sua dissolução)na relação do ‘saber com a verdade’? Será por isto que a Sabedoria, enfatizadezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .81


debates.Lacan, “é o que não é muito fácil de suportar de outra forma que com aescrita, a escrita do nó bo, ela mesma”? E, da mesma forma afirmar-se que averdade é um meio-dizer, é não-toda... Da Filosofia enquanto Primeira, comDescartes, à ‘primeira filosofia’ “que pareça suportar-se”, pode-se mostraruma relação da psicanálise com a filosofia desenhada ao modo de “umquiasma”, um ‘x’, se reconhecêssemos aí a figura do nó bo. Essa foi a boamaneira de ser herético de Lacan.Busco outra afirmação, no Seminário O Sinthoma:A simples introdução dos nós bo sugere que eles sustentam um osso.Isso sugere, se posso dizer assim, suficientemente alguma coisa que chamarei,nessa ocasião, ossobjeto [osbjet]. É isso que caracteriza efetivamente aletra com que faço acompanhar esse ossobjeto, a saber, a letra pequeno a. Sereduzo esse ossobjeto a esse pequeno a, é precisamente para marcar que aletra, nesse caso, apenas testemunha a intrusão de uma escrita como outro[autre] com um pequeno a. ‘A escrita em questão vem de um lugar diferentedaquele do significante”. (grifo) (op.cit., p.141)’.É o estatuto do objeto (pequeno a) em psicanálise que se vê perfilado ea demarcar a escrita autre. Será esta escrita um elemento sob o qual se podetomar a Psicanálise como uma ‘prática escritora do sintoma’? A prática deuma escrita que vem inscrever na ‘A Filosofia’ a falta, o furo, dando outrosuporte ao traço unário... O que isso tem a ver com o ‘desejo de filosofia’ dopsicanalista Lacan?notas.1Trabalho apresentado na Jornada do Percurso de Escola VIII em setembro de 2009.2O uso que faço da palavra impostura não deixa de estar, em certo modo, referido a obra de Alan Sokal & Jean Bricmont, ImposturasIntelectuais, RJ e SP, 2006. Entretanto, sem entrar em concordância com os argumentos e conclusões que a mesma apresenta.82.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.referências bibliográficas.Costa, Ana. Corpo e Escrita: relações entre memória e transmissão da experiência. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 2001.Lacan, Jacques. A agressividade em psicanálise. In: ___. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p.104-126.___. O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente, 1957-1958. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.___. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. 2.ed.rev., Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.___. O Seminário, livro 23: O sinthoma, 1975-1976. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.___. Le Séminaire, livre xxiii: Le sinthome, 1975-1976. Publication hors commerce. Document interne à l’Association Freudienneet destine à ses membres. (tradução não-comercializável, elaborada na íntegra – CEF. Mimeo).Merleau-Ponty, Maurice. O filósofo e a sua sombra. In: ___. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.Platão. Diálogo Crátilo. (tradução de Carlos Alberto Nunes). 3.ed.rev., Belém, EDUFPA, 2001.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .83


esenha.O conto machadianoredescobertofigura e forma da vertigemPereira, Lucia Serrano. O conto machadiano,uma experiência de vertigem. Rio de Janeiro:Companhia de Freud Editora, 2008. 239 p.A chegada do livro “O conto machadiano, uma experiência de vertigem”de Lucia Serrano Pereira é uma boa novidade para a fortuna crítica deMachado de Assis. Ele dá continuidade ao trabalho de análise iniciado noseu primeiro livro “Um narrador incerto entre o estranho e ofamiliar”(Companhia de Freud, 2004). Em ambos, Lucia aproxima com habilidadee fineza disciplinas que tanto devem uma a outra: a literatura e apsicanálise. Mesmo que a autora insista, com toda razão, que é a obra dearte que avança algo da emergência do real, e que as outras disciplinas nelase inspiram para dele dar conta, nada impede que, para a crítica literária epara os que ainda lêem literatura, uma leitura cuja perspectiva é psicanalí-dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .85


esenha.tica, como a da autora, resgate o valor fundamental de uma obra: o de lidarcom o que para cada um de nós traz problema, o real. Aquilo que nos éextremamente íntimo e desconhecido ao mesmo tempo e cujo valor maior osexo e a morte dão o peso e a medida. A prova disso é a própria feituradesse livro que, ao meu ver, pode interessar literatos, psicanalistas e simpatizantesdas duas disciplinas.Como leitores, somos levados a percorrer sua análise na qual cruzaleituras e autores diversos, mas com um cuidado, ao meu ver, preciso, queé o de seguir o fio de uma intuição que se abre a uma nova perspectiva deanálise do conto machadiano. A crítica literária sempre foi unânime aoconstatar a profundidade psicológica dos personagens machadianos, masfreqüentemente se deteve nas suas análises de caráter e da personalidade,numa perspectiva antes psicológica que psicanalítica.Sua homônima Lucia Miguel Pereira foi menos feliz em tentar colocarMachado e sua obra no divã num de seus primeiros livros 1 . Em certosmomentos, ela ficou em um face a face com a obra, psicologizando-a aoquerer reduzi-la à biografia do autor, buscando paralelismos, fundindo emesmo confundindo uma com outra, apesar da qualidade incontestável daanálise literária dessa autora. Para citar um exemplo, sua insistência emmostrar a partir de traços de certos personagens as antinomias do caráterdo escritor, ambicioso ao querer ascender socialmente e modesto, sem almejarriquezas e popularidade quando isso aconteceu.Lucia Serrano Pereira com tato e sutileza vai mostrando ao leitor queobra e autor estão ambos submetidos às determinações da linguagem e sobretudoàs emergências do real que ali se inscrevem muitas vezes à reveliade uma intenção de autor. Ela nos mostra o quanto o real que emerge marcasobretudo os contornos da forma literária. A passagem instantânea pelaexperiência da vertigem é captada pela forma não menos econômica doconto machadiano. O instantâneo surge dentro do instante, num vislumbre86.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.irrompe algo do desejo e de suas contradições. E é a escuta da psicanalistade significantes tais como morte, sexo, amor e ódio, as matérias primas porexcelência do desejo, que vai definindo igualmente a nova forma do contomachadiano assim redescoberto.ao trazer para o primeiro plano de sua análise a função própria davertigem no conto machadiano, leva o leitor a se interrogar sobre o queprovoca o desejo e o que faz com que queiramos sempre evitá-lo, fugir delee muitas vezes cair nessa espécie de turbilhão figurativo. Quando algo deuma possivel presentificação do objeto, quando o personagem machadianoDuarte, em “A chinela turca”, passa da impressão à certeza de que finalmenteencontrou o bom, o belo objeto de seu amor na figura da jovemCecília, ele é então tomado pela vertigem e sucumbe numa espécie de pointde fuite, de turbilhão vertiginoso. Assim, poderíamos dizer que a queda, ofato de ser aspirado por um vazio, já vem metaforizar o que instaura emotiva o próprio desejo, ou seja, a falta. A queda já seria uma formaimaginarizada de figurar essafalta de um objeto com o qual pudéssemosnos confundir, é nesse sentido que o gozo sexual mas igualmente a mortesão métaforas desse impossível.O “deixar-se aspirar pelo abismo” atinge seu ápice na análise do conto“A cartomante” no qual, após predição da cartomante, o “encontro verdadeiro”com o objeto de amor confunde-se com a morte dos personagens,dos amantes Rita e Camilo. Lucia S. Pereira nos lembra que em “A Hora daestrela” de Clarice Lispector é também a predição da cartomante do encontrode Macabéa com o príncipe de cavalo branco, o gringo rico que estariadestinado à pobre nordestina, que a leva ao encontro com a morte. A miragemdos faróis do carro que a atinge, cuja queda é “somente um arranhão”,seria já o início da profecia da cartomante.No conto “O enfermeiro”, não é mais o encontro com o objeto de amorque se confunde na morte, mas uma narração que se constrói em torno dodezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .87


esenha.encontro com o objeto de ódio na morte. O submisso enfermeiro Procópioacumula humilhações e injúrias constantes de seu patrão enfermo, o coronelFelisberto, até o momento em que, não podendo mais suportá-las, ogolpeia mortalmente. O crime resta encoberto e o enfermeiro descobre-selegatário absoluto dos bens do coronel.A torsão operada por Machado, segundo a análise da autora, consisteem figurar o avesso, a inversão de algo da ordem do desejo do personagemque é antes efeito do contexto histórico do que do individual. Procópioherda o dote do coronel e com ele “um traço” particular do senhor: o caprichode sua posição moral dúbia, o interesse do ganho exclusivo, cuja “leiparticular” vigora, herança do regime escravocrata, onde é possível disporsem limites do trabalho e do corpo do outro. Meios que justificam fns,aparências salvas desde que mantidas, crime reduzido a uma luta onde ooutro é restrito à condição de puro objeto de gozo. Crime ou luta de morte?Vivo, o senhor depende do trabalho servil do enfermeiro. Morto, o legadodo senhor sobrevive na moralidade do enfermeiro. Crime e luta de mortemostram o avesso de uma dependência recíproca entre senhor e escravo,resultante de uma conjuntura histórica e colonial.Conjuntura, aliás, que marcou profundamente o real que determina eincide sobre o que é da subjetividade de cada um. Como poderia ser diferentese supomos, com Lacan, que o inconsciente é o social e que, paradoxalmente,de alguma forma somos responsáveis por nosso inconsciente? Aposição de Lucia S. Pereira em relação a essa questão é mais uma vez psicanalíticae respeitosa pois estaria na singularidade, no trato mesmo que cadaum precisa dar ao lidar com esse real para que o inusitado possa surgir.Outros elementos formais que a autora traz para o primeiro plano desua análise dos contos machadianos são as lacunas, os não-ditos, as fraturas,as descontinuidades – o que mostra o quanto na escritura machadianaeles são a expressão mesma desse real e do que as palavras não conseguem88.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009


A formação do analista.dar conta. Nisso vemos também o quanto a obra machadiana é moderna,pois figuração e forma aparecem ambas submetidas aos efeitos de uma estruturaque opera a partir desse fundo de negatividade, de irredutibilidadedafalta.E a prova da riqueza da obra machadiana é que ela continua a inspirarnovas análises, tanto do social quanto do que funda e determina a subjetividade,o que é extremamente enriquecedor para os leitores. Lucia S. Pereiraanalisa neste livro vários outros contos machadianos, tais como “Singularocorrência”, “Noite de almirante”, o “Capítulo dos chapéus”, etc. Nãofiz aqui que evocar algumas de suas análises e deixo ao leitor a curiosidadee o prazer de descobrir outras tantas. Fica, então, a sugestão de leituradesse livro que é bem-vindo pois dá importante contribuição para a análisedo conjunto dos contos de Machado de Assis.Maria Roneide Cardoso Gilnotas.1Em Machado de Assis, Estudo Critico-biográfico, 1936.dezembro 2009 l correio <strong>APPOA</strong> .89


agenda.agendadezembro . 2009dia hora atividade03, 10, e 17 19h30min Reunião da Comissão de Eventos03 21h Reunião da Mesa Diretiva04, 11 e 18 14h Reunião da Comissão da Revista07 e 14 20h30min Reunião da Comissão do <strong>Correio</strong>11 8h30min Reunião da Comissão de Aperiódicos17 19h30min Reunião da Comissão da Biblioteca17 21h Reunião da Mesa Diretiva aberta aosMembrospróximo númeromigrações e fronteiras entre estruturas90.correio <strong>APPOA</strong> l dezembro 2009

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