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Revista n.° 36 - APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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ISSN 1516-9162REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREn. <strong>36</strong>, jan./jun. 2009CLÍNICA DA ANGÚSTIAASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE<strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>


REVISTA DA ASSOCIAÇÃOPSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREEXPEDIENTEPublicação Internan. <strong>36</strong>, jan./jun. 2009ISSN 1516-9162R454<strong>Revista</strong> da Associação Psicanalítica <strong>de</strong> <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong> / AssociaçãoPsicanalítica <strong>de</strong> <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>. - Vol. 1, n. 1 (1990). - <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>: <strong>APPOA</strong>, 1990, -Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica <strong>de</strong> <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>.SemestralISSN 1516-9162Título <strong>de</strong>ste número:CLÍNICA DA ANGÚSTIAEditores:Otávio Augusto W. Nunes e Beatriz Kauri dos ReisComissão Editorial:Beatriz Kauri dos Reis, Deborah Pinho, Maria Ângela Bulhões, Otávio Augusto W. Nunes,Sandra Djambolakdjan Torossian, Valéria Machado Rilho, Roséli Maria Olabarriaga Cabistani,Simone Kasper, Aidê Ferreira Deconte, Clara Maria Von Hohendorff, Gardênia Me<strong>de</strong>iros, LarissaCosta Scherer, Maria De Lour<strong>de</strong>s Duque-Estrada Scarparo e Ricardo Vianna Martins.Colaboradores <strong>de</strong>ste número:Marta Pedó, Paulo Gleich e Maria Lúcia SteinEditoração:Jaqueline M. NascenteConsultoria lingüística:Dino <strong>de</strong>l PinoCapa:Clóvis BorbaSobre Pesa<strong>de</strong>lo, <strong>de</strong> FuselliLinha Editorial:A <strong>Revista</strong> da Associação Psicanalítica <strong>de</strong> <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong> é uma publicação semestral da <strong>APPOA</strong> quetem por objetivo a inserção, circulação e <strong>de</strong>bate <strong>de</strong> produções na área da psicanálise. Contémestudos teóricos, contribuições clínicas, revisões críticas, crônicas e entrevistas reunidas em ediçõestemáticas e agrupadas em quatro seções distintas: textos, história, entrevista e variações. Além davenda avulsa, a <strong>Revista</strong> é distribuída a assinantes e membros da <strong>APPOA</strong> e em permuta e/oudoação a instituições científicas <strong>de</strong> áreas afins, assim como bibliotecas universitárias do País.ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICADE PORTO ALEGRERua Faria Santos, 258 Bairro: Petrópolis 90670-150 – <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong> / RSFone: (51) 3333.2140 – Fax: (51) 3333.7922E-mail: appoa@appoa.com.br - Home-page: www.appoa.com.br1. Psicanálise - Periódicos. I. Associação Psicanalítica <strong>de</strong> <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>CDU 159.964.2(05)CDD 616.891.7Bibliotecária Responsável Luciane Alves Santini CRB 10/1837In<strong>de</strong>xada na base <strong>de</strong> dados In<strong>de</strong>x PSI – In<strong>de</strong>xador dos Periódicos Brasileiros na área <strong>de</strong>Psicologia (http://www.bvs-psi.org.br/)Versão eletrônica disponível no site www.appoa.com.brImpressa em outubro 2009. Tiragem 500 exemplares.


CLÍNICA DA ANGÚSTIA


SUMÁRIOEDITORIAL............................ 07TEXTOSActualida<strong>de</strong> da angústia:consi<strong>de</strong>rações sobre transferência e<strong>de</strong>sejo do analista .............................. 09Actuality of anguish notes on transfer and the<strong>de</strong>sire of the analistRobson <strong>de</strong> Freitas PereiraUma carta perdida ............................. 20A lost letterMaria Cristina PoliAngústias contemporâneas ............... 28Contemporary anxietiesRosane Monteiro RamalhoDo resto ao lixo: a corrosãodo <strong>de</strong>sejo na era dareprodutibilida<strong>de</strong> técnica .................. 38From the residue to trash: the corrosion of<strong>de</strong>sire in the era of technical reproducibilityJaime BettsAngústia e a orientação do sujeito .. 60Anxiety and the orientation of the subjectIsidoro VeghA angústia no princípioda clínica psicanalítica ...................... 75Anguish as a principle in psychoanalytical clinicLucy Linhares da FontouraA economia da angústiana adolescência .................................. 85The economy of anguish in adolescenceRoséli M. Olabarriaga CabistaniA potência iconoclasta do objeto a:psicanálise e utopia ........................... 93The iconoclastic power of the object a:psychoanalysis and utopiaEdson Luiz André <strong>de</strong> SousaEsta velha angústia ........................... 102This old anguishMaria Ida FontenelleVertigo A cartomante: vertigemmachadiana ....................................... 111Vertigo A cartomante: machadian vertigoLucia Serrano PereiraRECORDAR, REPETIR,ELABORARNa transferênciae contratransferência ........................ 120Alice Bálint e Michael BálintENTREVISTAMundo cão? Para uma teoriada clínica das <strong>de</strong>pressões ............... 128Maria Rita KehlVARIAÇÕESNotas sobre a inibição... ................... 139Ricardo Gol<strong>de</strong>nbergO homem semqualida<strong>de</strong>s, mesmo ........................... 142Elida Tessler


EDITORIALDurante dois anos, entre 2007 e 2008, a temática da angústia foi o eixo emtorno do qual se organizaram as ativida<strong>de</strong>s da Associação Psicanalítica <strong>de</strong><strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>. Duas jornadas e um congresso, sustentados por intenso trabalho<strong>de</strong> cartéis preparatórios, foram realizados. A leitura e discussão do Seminário10 – A angústia –, <strong>de</strong> Jacques Lacan, foi <strong>de</strong>senvolvida no que convencionamoschamar na <strong>APPOA</strong> <strong>de</strong> Cartelão, sem esquecer dos textos freudianos fundamentaissobre a angústia.Esta <strong>Revista</strong> é o terceiro número sobre o tema e resulta da reunião dostrabalhos apresentados no Congresso que a <strong>APPOA</strong> organizou, em novembro<strong>de</strong> 2008, e elaborados no âmbito <strong>de</strong>sse vivo espaço <strong>de</strong> produção.A angústia é um afeto, não qualquer afeto, mas o único que interessa àclínica psicanalítica. Afirmação curiosa; ainda mais quando vinda <strong>de</strong> alguémque, como Lacan, dizia não se ocupar dos afetos. Índice da responsabilida<strong>de</strong> doanalista, a angústia o incita a questionar como está conduzindo seu trabalho esua posição na transferência. Nesse sentido, não cessamos nunca <strong>de</strong> interrogare pensar seu manejo no campo da palavra.Na letra <strong>de</strong> Lacan, a angústia revela-se fecunda. A propósito do tema,<strong>de</strong>senvolve o conceito <strong>de</strong> objeto a, ponto nodal em torno do qual se articulam ateoria e a clínica psicanalíticas.A psicanálise kleiniana também tem a angústia como conceito central,porém a aborda a partir da teoria das relações <strong>de</strong> objeto. A formulação lacanianasobre o objeto a se distingue <strong>de</strong> tais elaborações, que situam a dualida<strong>de</strong> darelação analista/analisante.7


EDITORIALEm Freud encontramos a concepção <strong>de</strong> objeto como objeto perdido; emLacan, como objeto faltante. Pensar que ele esteja à frente do <strong>de</strong>sejo, como umobjeto <strong>de</strong>sejado, é apoiar-se numa miragem <strong>de</strong> gozo; cena da fantasia <strong>de</strong> sermoso que faltaria para realizar a <strong>de</strong>manda do Outro. Cena fantasmática queorganiza o cenário <strong>de</strong> nossa realida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> nosso mundo. No entanto, o objetoque anima nosso <strong>de</strong>sejo está atrás, ele é causa; sua função, pois, é furtar-se àcaptação.Quando algo <strong>de</strong> nossa realida<strong>de</strong> muda, a cena também muda, e nãoconseguimos mais <strong>de</strong>finir a <strong>de</strong>manda do Outro. Ocasião <strong>de</strong> emergência da angústia:no lugar da miragem <strong>de</strong> gozo, ao invés do objeto <strong>de</strong>sejável, surge o<strong>de</strong>sejante, perante o qual o sujeito se pergunta “que objeto a eu sou para o<strong>de</strong>sejo do Outro?”. O sujeito não é senão signo do <strong>de</strong>sejo do Outro, em posição<strong>de</strong> objeto a para tal <strong>de</strong>sejo. Na falta <strong>de</strong> significante que represente o sujeito parao Outro, o Eu se <strong>de</strong>svanece. No lugar da unida<strong>de</strong> narcísica, há somente umcorpo tomado <strong>de</strong> sensações, reduto último <strong>de</strong> uma subjetivida<strong>de</strong> em risco.Ante a angústia, qual a direção da cura numa análise?Se a angústia é sinal, isso significa que ela remete a algo que não é elamesma, ela não representa a si mesma, mas ela po<strong>de</strong> dar pistas à intervençãoanalítica.No que diz respeito à transferência, não cabe ao analista domesticar aangústia, nem tampouco induzi-la, ensina Lacan no Seminário dos Quatro conceitosfundamentais. O <strong>de</strong>sejo do analista o colocará na via <strong>de</strong> suportar o lugar<strong>de</strong> semblante <strong>de</strong> a, fazendo aparência do objeto que causa o <strong>de</strong>sejo, para mantera abertura à posição <strong>de</strong>sejante do sujeito. Afinal, se a angústia surge noponto situado a meio caminho entre o <strong>de</strong>sejo e o gozo, não seria o <strong>de</strong>sejo o seumelhor “remédio”?8


Rev. Assoc. Psicanal. <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, n. <strong>36</strong>, p. 9-19, jan./jun. 2009TEXTOSACTUALIDADE DA ANGÚSTIAConsi<strong>de</strong>rações sobretransferência e <strong>de</strong>sejo do analista 1Robson <strong>de</strong> Freitas Pereira 2Resumo: O artigo contextualiza historicamente o Seminário da angústia, proferidopor Lacan nos anos 1962-63, <strong>de</strong>sdobrando seus efeitos político-institucionaise teórico-clínicos com relação à história da psicanálise, em especial os relacionadosà abordagem da transferência e ao conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo do analista. Aofinal, introduz um comentário sobre a própria produção em ato do texto, a partirdos efeitos das outras falas proferidas durante o Congresso.Palavras-chave: Lacan, seminário da angústia, transferência, <strong>de</strong>sejo do analista.ACTUALITY OF ANGUISHNOTES ON TRANSFER AND THE DESIRE OF THE ANALISTAbstract: This paper contextualizes the Seminaire of Anguish, of Jacques Lacan,pronounced in the years 1962-63. This contextualization was done in terms oftheir political, institutional, theoretical and clinical aspects, all of them vital to thefuture of psychoanalisis. These subjects have influenced the work on transferand also the concept of <strong>de</strong>sire of the analist. A comment on the conditions ofproduction in act, during a Congress with others psychoanalysts, is posted atthe end of the article.Keywords: Lacan, the seminaire of anguish, transfer, <strong>de</strong>sire of the analist.1Trabalho apresentado no Congresso da <strong>APPOA</strong>: Angústia, realizado em <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, emnovembro <strong>de</strong> 2008.2Psicanalista; Membro da <strong>APPOA</strong>; Organizador do livro Sargento Pimenta Forever (<strong>Porto</strong><strong>Alegre</strong>: Libretos, 2007); Coorganizador do livro Seminários espetaculares (<strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>:Corag, 2002). E-mail: rpereira@portoweb.com.br9


Robson <strong>de</strong> Freitas PereiraTexto e contextoAfim <strong>de</strong> situar o leitor e contextualizar o escrito que vem a seguir, optamospor advertir que a parte inicial aponta três aspectos importantes para apsicanálise, que po<strong>de</strong>m ser lidos a partir dos efeitos do Seminário proferido porLacan ([1962-63] 2005) nos anos 1962-1963. Anos em que, acompanhados pelotema da angústia, evi<strong>de</strong>nciam-se as mudanças clínico-conceituais e odirecionamento político institucional que viria marcar <strong>de</strong>finitivamente os rumosda psicanálise contemporânea. Para os analistas que acompanharam essesacontecimentos direta ou indiretamente, isso talvez não seja novida<strong>de</strong>; mas,passados quase cinquenta anos, achamos importante situá-los para as novasgerações <strong>de</strong> psicanalistas, que se responsabilizam pelos efeitos <strong>de</strong>ssas profundasmodificações em sua formação. Na parte seguinte do texto, tecemos consi<strong>de</strong>raçõesclínicas sobre a transferência e o <strong>de</strong>sejo do analista. Trata-se <strong>de</strong> conceitocuja <strong>de</strong>terminação mais precisa Lacan inicia neste seminário da angústia,e que segue sendo um legado a ser trabalhado por todo psicanalista que seaproprie da experiência <strong>de</strong> análise.O seminário A angústia, 1962-1963 – ObservaçõesPolítico-institucionais – 1963 encerra “nossos mais belos anos”, nodizer <strong>de</strong> Elisabeth Roudinesco (1988) em sua História da psicanálise na França,vol. II. Depois <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> seminários na SFP (Socieda<strong>de</strong> Francesa <strong>de</strong>Psicanálise 3 ) e negociações para o reconhecimento do novo grupo, termina olongo processo <strong>de</strong> avaliações. As críticas à análise didática (e consequentelugar dos didatas), às sessões <strong>de</strong> tempo variável e às mudanças conceituaissão inaceitáveis. A tentativa <strong>de</strong> impedir que Lacan continue com sua transmissãoe “análises didáticas” provoca sua <strong>de</strong>finitiva saída da IPA (InternationalPsycoanalytical Association) e subsequente fundação da EFP (Escola Freudiana<strong>de</strong> Paris) em 1964.Questões clínicas – Uma clínica propriamente lacaniana tem sua confirmaçãonesse momento. Analista não é sujeito (no senso comum) no <strong>de</strong>cursodo tratamento; ele está no lugar do objeto, faz aparência <strong>de</strong>sse objeto que écausa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo e resto simultaneamente. Por isso, interessa o corte que sustentaa abertura do inconsciente. Há a colocação em causa da concepção <strong>de</strong>contratransferência enquanto sustentação da i<strong>de</strong>ntificação ao analista como i<strong>de</strong>al3A SFP consistia num grupo, li<strong>de</strong>rado por Lacan, Dolto e Lagache, que rompeu com a Socieda<strong>de</strong>Psicanalítica <strong>de</strong> Paris, fundada por Marie Bonaparte.10


Actualida<strong>de</strong> da angústia<strong>de</strong> cura. A transferência implica uma imparida<strong>de</strong> 4 suportada pelo analista e suaescuta do significante. Essa escuta, essencial na condução do tratamento, recusaa dualida<strong>de</strong> e reconhece a primazia do significante enquanto elemento fundamentalno trato com a linguagem, em sua enunciação através das formações doinconsciente. A ultrapassagem da angústia implica o <strong>de</strong>sejo do analista.Questões conceituais – O <strong>de</strong>sejo do analista é o fio condutor do Seminário<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras aulas. Como é <strong>de</strong> seu estilo, Lacan ([1962-63] 2005)vai fazendo aproximações diversas para evi<strong>de</strong>nciar esse conceito novo. Entre asmais importantes, o questionamento da noção corrente (naquela época) <strong>de</strong>contratransferência. Não para <strong>de</strong>scartar os efeitos e vicissitu<strong>de</strong>s do cotidiano daclínica; mas justamente para reconhecer nela os efeitos da divisão subjetiva,apontando assim outro eixo <strong>de</strong> abordagem aos trabalhos da época, que seocupavam do tema da contratransferência. Além disso, Lacan inova ao afirmarque a angústia tem objeto (ela não é sem objeto); ele é o mesmo da estrutura dofantasma e do <strong>de</strong>sejo. Esse objeto não especularizável se mostra na operação<strong>de</strong> corte, numa topologia que evi<strong>de</strong>ncia a divisão do sujeito e respon<strong>de</strong> ao sinalda angústia. Índice da responsabilida<strong>de</strong> do analista, que se vê questionado eincitado a dizer como está conduzindo seu trabalho. Abertura <strong>de</strong> espaço paraque cada um possa dizer como está respon<strong>de</strong>ndo ao Che vuoi? 5 <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adopor seu <strong>de</strong>sejo.Os três tópicos, citados resumidamente acima, articulam-se borromeanamenteno percurso do analista, seja nos espaços <strong>de</strong> formação, seja na clínicacotidiana, ou mesmo nos <strong>de</strong>bates públicos com outros discursos 6 . Pois, quandofalamos, <strong>de</strong>screvemos 7 um Outro que se encarna: a) num discurso; b) num4No sentido <strong>de</strong> que não se trata <strong>de</strong> uma relação dual. É uma situação ímpar, não há parida<strong>de</strong>.Ela é, no mínimo, ternária.5Referência à novela <strong>de</strong> Cazotte (1992), O diabo enamorado, e ao grafo do <strong>de</strong>sejo, ainda emconstrução, mostrado na primeira aula do Seminário.6A partir do final do Seminário <strong>de</strong> 1962-63, no qual Lacan fala da transferência e do <strong>de</strong>svanecimentoda angústia, quando o Outro foi nomeado – pois só existe amor por um nome –,po<strong>de</strong>mos pensar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> articular o discurso psicanalítico com outros discursosque se ocupam da angústia e <strong>de</strong> suas representações/manifestações. Com a literatura e suasficções, que têm valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Com as artes plásticas, e sua função <strong>de</strong> apontar o furo eo mal-estar em que ancoramos nossa angústia. Com a economia e suas respostas para ouniverso das mercadorias. Com a música, produzindo esse efeito a partir do intervalo entre osom e o silêncio. Com a medicina, principalmente a ciência psiquiátrica, que tenta organizar oreal nomeando as manifestações sintomáticas.7Esta é uma <strong>de</strong>scrição muito particular; pois ela <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> das condições enunciativas, ou seja,inconscientes. Como afirmamos logo adiante, nomear também é uma maneira <strong>de</strong> performatizar o Outro.11


Robson <strong>de</strong> Freitas Pereirasemelhante. O que nos leva a cogitar que as diferentes formas <strong>de</strong> diálogo sãotambém formas diferentes <strong>de</strong> nomear o Outro, que, com sua <strong>de</strong>manda difusa,não enquadrada, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia o sinal <strong>de</strong> angústia. O sinal do Real. Real queirrompe no campo do imaginário, provocando uma série <strong>de</strong> efeitos.Isso difere a cada encontro, entrevista, a cada situação dada. E acrescente-seque, quando queremos transmitir algo, falamos como analisantes. Daíque, apesar <strong>de</strong> nosso arsenal conceitual (nossas ferramentas, como consi<strong>de</strong>ravaFreud, citado por Lacan no início do seminário da angústia), nosso linguajarpeculiar, nossos conceitos, não são suficientes para dar conta do que tentamosabordar. Assim, tentamos construir, performatizar um assunto, um tema – aangústia, em suas diversas abordagens.A partir daqui, po<strong>de</strong>mos perguntar: essas “diversas abordagens” não serão,elas mesmas, maneiras diversas <strong>de</strong> dar conta do sinal do Real, que é aangústia? Por que, ao reconhecer que a conceitualização psicanalítica não é aúnica, temos que admitir que há outras formas <strong>de</strong> dar conta <strong>de</strong>sse afeto primordial,outras formas <strong>de</strong> nomear 8 o Outro, o outro lugar on<strong>de</strong> se situa o objeto daangústia, que é o mesmo objeto do <strong>de</strong>sejo e que estrutura o fantasma (fantasia)primordial. Nomear o Outro implica outra questão: quem é o Outro a quem nosdirigimos?Quando se trata da psicanálise, da condução <strong>de</strong> uma análise, estamosreferidos a um trabalho que responsabiliza cada analista e se realiza a cadavez que o psicanalista contribui com algo <strong>de</strong> seu estilo, dizendo como estáfazendo, como está lidando com essa dimensão que irrompe no campo doimaginário (parafraseando uma das conceituações da angústia: o real queirrompe no campo do imaginário). Daqui po<strong>de</strong>mos passar a algumas consi<strong>de</strong>raçõessobre a clínica.Consi<strong>de</strong>rações clínicas a respeito da transferência e do <strong>de</strong>sejo doanalista“Certamente convém que o analista seja aquele que, minimamente, nãoimporta por qual vertente, por qual borda, tenha feito seu <strong>de</strong>sejo entrar suficien-8A psicanálise nos faz reconhecer esta especificida<strong>de</strong> no trato com o Nome. Lacan ([1961-62]2003) trabalhou bastante esse tema no Seminário 9, A i<strong>de</strong>ntificação, imediatamente anteriorao da Angústia. Mas neste caso po<strong>de</strong>mos nos referir também ao trabalho vindo <strong>de</strong> outroscampos, vi<strong>de</strong> T. Todorov (1991), em seu livro A conquista da América – a questão do outro.Aqui nos interessa reafirmar a contribuição forte da psicanálise à cultura e, simultaneamente,a influência <strong>de</strong>ssa cultura sobre o trabalho dos psicanalistas e sua elaboração.12


Actualida<strong>de</strong> da angústiatemente nesse a irredutível para oferecer à questão do conceito da angústiauma garantia real” (Lacan, [1962-63] 2005, p. <strong>36</strong>6) 9 .Ao longo <strong>de</strong> seu percurso clínico, muitos analistas certamente já se sentiram“enganados” pelos ditos do analisante. Inúmeros são os exemplos quepo<strong>de</strong>riam ser trazidos, mas gostaríamos <strong>de</strong> preservar a singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cadaum; por isso, vamos nos referir apenas a esse traço que remete ao momento emque se realiza um reconhecimento do equívoco. Quando as pessoas falam queestão em análise 10 por algum motivo e quando esse motivo ameaça tornar-serealida<strong>de</strong>, que está acontecendo ou dá gran<strong>de</strong> indícios <strong>de</strong> que po<strong>de</strong> acontecer,sobrevém uma intensa angústia, um <strong>de</strong>samparo que faz o analista pensar: “Maso que eu estava escutando até agora? Como pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar me enganar assim?”Momento <strong>de</strong> angústia em questões eminentemente transferenciais.Quando escutamos, estamos imersos na transferência. Talvez por issoLacan alertasse que a escuta do significante não nos livra do imaginário, nãofornece garantias antecipadas. Mas essa é a condição <strong>de</strong> qualquer análise;<strong>de</strong>ixar-se levar pelo equívoco. Deixar-se levar pelo engano amoroso que permitirá,no melhor dos casos/caos, produzir um saber que possibilita ao sujeito <strong>de</strong>cifrar-se.Lembremo-nos <strong>de</strong> que o inconsciente é nosso patrimônio <strong>de</strong> saber. Umsaber insabido, que não se confun<strong>de</strong> com o patrimônio em seu sentido <strong>de</strong> produção<strong>de</strong> signos e ícones históricos. Mas que está referido ao patronímico e aos<strong>de</strong>talhes que conformam a justa medida, a boa/plena palavra, ao bem dizer.Ao longo do seminário <strong>de</strong> 62/63, o trato com o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo doanalista está em pauta, às vezes explicitamente, outras vezes implícito na discussãodo que sustenta a análise – vi<strong>de</strong> a discussão dos autores da época. Sãovários casos analisados e sua trajetória 11 .Em <strong>de</strong>terminado momento, Lacan situa a angústia como o termo médioentre o gozo e o <strong>de</strong>sejo. Ultrapassar o momento <strong>de</strong> angústia é uma forma <strong>de</strong> irao encontro do exercício do <strong>de</strong>sejo e não ficar preso ao gozo que prece<strong>de</strong> a9“Assurément, Il convient que l’analyste soit celui qui ait pu, si peu que ce soit, par quelquebiais, par quelque bord, assez faire rentrer son désir dans ce a irréductible pour offrir à laquestion du concept <strong>de</strong> l’angoisse une garantie réelle” (Lacan, [1962-63], leçon du 03/07/63,p.385 ).10As queixas e o sofrimento que <strong>de</strong>terminam a procura da análise são os mais variados, todoseles da or<strong>de</strong>m do verda<strong>de</strong>iro. Estamos nos referindo àqueles momentos em que o motivo daprocura – “quero me separar”, “não aguento mais a vida que estou levando”, “não suportomais este trabalho”, “não suporto a solidão” – encontra sua realização. O <strong>de</strong>sejo manifesto serealiza e, imediatamente, tudo parece <strong>de</strong>smoronar.11De um Outro ao outro, título <strong>de</strong> seminário <strong>de</strong> Lacan ([1968-69] 2004). Análise é fazer o trajetoda castração imaginária ao objeto causa do <strong>de</strong>sejo.13


Robson <strong>de</strong> Freitas Pereiraangústia 12 . Dessa forma, o momento <strong>de</strong> surpresa, <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong> queestávamos enganados, junto com o outro a quem escutamos, é fundamental.Tanto para ser ultrapassado (dando uma chance ao <strong>de</strong>sejo), quanto para nãoficar preso na frustração, ou na crítica superegoica que atinge o narcisismo doanalista. Essa ultrapassagem da angústia dá-se pela realização <strong>de</strong> que nomearo Outro é também sustentar o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> que a análise esteja em pauta, sigaseu curso, uma vez que, no trabalho com a angústia, apren<strong>de</strong>mos que o Outrofunciona como espelho.O Outro como espelho, nas palavras <strong>de</strong> Lacan:Há, no estágio oral, uma certa relação da <strong>de</strong>manda com o <strong>de</strong>sejovelado da mãe. No estágio anal, há para o <strong>de</strong>sejo, a entrada emjogo da <strong>de</strong>manda da mãe. No estágio da castração fálica, há omenos-falo (menos fi), a entrada da negativida<strong>de</strong> quanto ao instrumentodo <strong>de</strong>sejo, no momento do surgimento do <strong>de</strong>sejo sexualcomo tal no campo do Outro. Mas, nessas três etapas, o processonão se <strong>de</strong>tém, uma vez que, em seu limite,<strong>de</strong>veremos encontrara estrutura do a como separado.Não foi à toa que hoje lhes falei <strong>de</strong> um espelho, não o do estádiodo espelho, da experiência narcísica, da imagem do corpo emsua totalida<strong>de</strong>, mas o espelho como campo do Outro em que <strong>de</strong>veaparecer pela primeira vez, se não o a, pelo menos seu lugar – emsuma, a mola radical que faz passar do nível da castração para amiragem do objeto do <strong>de</strong>sejo (Lacan, [1962-63] 2005, p. 251) 13 .Assim, o objeto do <strong>de</strong>sejo po<strong>de</strong> ser sustentado não somente como frutoda relação especular, como simples jogo <strong>de</strong> espelhos côncavos, convexos, ou12Vi<strong>de</strong> textos do Correio da <strong>APPOA</strong> – O seminário da angústia, n. 173, <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, out. 2008.13“Il y a, au sta<strong>de</strong> oral, um certain rapport <strong>de</strong> la <strong>de</strong>man<strong>de</strong> au désir voilé <strong>de</strong> la mère; Il y a austa<strong>de</strong> anal, l’entrée en jeu pour le désir <strong>de</strong> La <strong>de</strong>man<strong>de</strong> <strong>de</strong> la mère; Il y a au sta<strong>de</strong> <strong>de</strong> lacastration phallique, le moins-phallus –Φ, l’entrée <strong>de</strong> la négativité quant à l’instrument dudésir, au moment du surgissement du désir sexuel comme tel dans le champ <strong>de</strong> l’autre. Maislà, à ces trois étapes, ne s’arrête pas pour nous la limite ou nous <strong>de</strong>vons retrouver lastructure du a comme separe. Mais ce n’est pás pour rien qu’aujourd’hui jê vous ai parléd’un miroir, non pas du miroir au sta<strong>de</strong> du miroir, <strong>de</strong> l’expérience narcisique, <strong>de</strong> l’image ducorps dans son tout, mais du miroir, em tant qu’il est ce champ <strong>de</strong> l’Autre ou doit apparaîtrepour la première fois, sinon le α, δυ moins sa place, bref le ressort radical qui fait passer duniveau <strong>de</strong> la castration au mirage <strong>de</strong> l’object du <strong>de</strong>sir” (Lacan, [1962-63], leçon du 8/05/63, p.264).14


Actualida<strong>de</strong> da angústiaplanos, em que a experiência especular conforma o narcisismo, ao antecipar acompletu<strong>de</strong> corporal; mas também com uma relação com o campo do Outro,com o campo das palavras, com o lugar das enunciações ainda por encontrar.Isso po<strong>de</strong> relançar uma análise, além das expectativas <strong>de</strong> sucesso oufracasso pessoal do analista, ou mesmo ao atravessamento do malogro dastentativas <strong>de</strong> gozo do analisante. Sucesso e gozo sem pagar o preço, ou aqualquer preço, são esperanças maniqueístas, como se o mundo se resumisseao nosso “umbigo” 14 . Uma análise vai além do corpo do analista (e mesmo <strong>de</strong>seu espírito <strong>de</strong> corpo, ou ”espírito <strong>de</strong> porco”, na relação com seus pares). Seconfiamos no inconsciente e nos efeitos <strong>de</strong> nossa própria experiência comoanalisantes, temos a chance <strong>de</strong> não ficarmos presos no narcisismo especular.Superar a especularida<strong>de</strong> é reconhecer que há um outro lugar on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>moslocalizar o objeto do <strong>de</strong>sejo. Uma vez que o campo do Outro também é o lugar,por excelência, <strong>de</strong>sse objeto não especularizável.Pois como afirma Lacan na última aula do Seminário:Só há superação da angústia quando o Outro é nomeado. Sóexiste amor por um nome, como todos sabem por experiênciaprópria. No momento em que é pronunciado o nome daquele oudaquela a quem se dirige nosso amor, sabemos muito bem queesse é um limiar da maior importância” (Lacan, [1962-63] 2005, p.<strong>36</strong>6) 15 .Um limiar que implica nossa relação com a castração, com seus <strong>de</strong>sdobramentosimaginários e simbólicos, pois necessitamos <strong>de</strong> recursos e referênciassimbólicas para lidar com essa diferença que faz limite a nossa imagem,ou a uma i<strong>de</strong>alização <strong>de</strong>la.Qual é a função da castração nesse objeto, nessa estátua, <strong>de</strong>tipo tão comovente que é, ao mesmo tempo, nossa imagem e14Não vamos comentar aqui os <strong>de</strong>sdobramentos sobre a transferência feitos no seminário 11,em que automaton e tiché e alienação e separação são elementos essenciais. Em outromomento, Lacan vai afirmar que análise é uma experiência em fracasso. Fracasso do imperativodo gozo. Fracasso da dualida<strong>de</strong> winner or loser. Fracasso em que a religião po<strong>de</strong> triunfar.15“Il n’y a <strong>de</strong> surmontement <strong>de</strong> l’angoisse que quand l’Autre c’est nommé. Il n’y a d’amour qued’un nom, comme chacun le sait d’expérience et le moment ou le nom est prononcé <strong>de</strong> celui ou<strong>de</strong> celle à qui s’adresse notre amour, nous savons très bien que c’est un seuil qui a la plusgran<strong>de</strong> importance” (Lacan, [1962-63], leçon du 03/07/63, p. 384).15


Robson <strong>de</strong> Freitas Pereirauma outra coisa, ao passo que, no contexto <strong>de</strong> uma certa cultura,parece não ter relação com o sexo? (Lacan, [1962-63], 2005, p.251) 16 .Lacan aponta esse como um fato característico, <strong>de</strong> nossa cultura, diriaeu. Po<strong>de</strong>ríamos recorrer a mais uma citação que encerra o seminário e preparaOs nomes do pai, interrompido após uma única aula 17 . “O que faz <strong>de</strong> uma análiseuma aventura singular é a busca do ágalma no campo do Outro” (Lacan,[1962-63] 2005, p. <strong>36</strong>6) 18 .Para nomear, sempre parcialmente, o objeto que se situa no campo doOutro, é necessário o engano da transferência. Para ultrapassar o momento <strong>de</strong>angústia é necessário o <strong>de</strong>sejo do analista. Complementando a primeira citação:“Interroguei-os diversas vezes sobre o que convém que seja o <strong>de</strong>sejo doanalista, a fim <strong>de</strong> que seja possível o trabalho ali on<strong>de</strong> tentamos levar as coisasalém do limite da angústia” (Ibid., p. <strong>36</strong>6) 19 .No trabalho <strong>de</strong> elaboração das interrogações é que se articulam transferência,nominação, corte, para levar a análise além do limite da angústia. Certamenteque esse <strong>de</strong>sejo do analista se articula com o ato. Um ato <strong>de</strong> palavra, <strong>de</strong>corte que atualiza 20 a realida<strong>de</strong> do inconsciente – via transferência, como vimosno Seminário 11 (Lacan [1964] 1979) – que é sempre sexual, nesse sentido doque falha, da impossibilida<strong>de</strong> que faz interrogação na vida amorosa/sexual <strong>de</strong>cada um, analista incluído. Daí termos que nos haver com o horror ao ato: peloque se diz e por suportar suas consequências, indo além do sofrimento narcísico.A superação do engano/equívoco amoroso da transferência pelo que se escuta eprovoca angústia e aturdição; pois que se diga fica esquecido atrás do que se diz,16“Quelle est la fonction <strong>de</strong> la castration dans ce fait étrange que l’object du type le plusémouvant, pour être à la fois notre image e autre chose, puisse apparaitre à ce niveau, dansum certain contexte, dans une certain culture comme sans rapport avec le sexe” (Lacan,[1962-63], leçon du 08/05/1963, p. 264).17A interrupção dos seminários acontece no contexto citado anteriormente. Lacan, e seugrupo da SFP, seria aceito na IPA se renunciasse à coor<strong>de</strong>nação da transmissão e à condução<strong>de</strong> análises visando à formação <strong>de</strong> analistas.18“Ce qui fait d’une psychanalyse une aventure unique est cette recherche <strong>de</strong> l’ágalma dan lechamp <strong>de</strong> l’Autre” (Lacan, [1962-63], leçon du 03/07/1963, p.384).19“Je vous ai plusiers fois interrogé sur ce que convient que soit le désir <strong>de</strong> l’analyste pourque, là où nous essayons <strong>de</strong> pousser les choses au-<strong>de</strong>là <strong>de</strong> la limite <strong>de</strong> l’angoisse, le travailsoit possible” (Lacan, [1962-63], leçon du 03/07/63 , p. 384).20Insistimos nesta con<strong>de</strong>nsação <strong>de</strong> ato, atualida<strong>de</strong> e atual, para <strong>de</strong>monstrar que os atos<strong>de</strong>terminam a atualida<strong>de</strong> e estão articulados à realida<strong>de</strong> psíquica.16


Actualida<strong>de</strong> da angústianaquilo que se escuta. Vamos <strong>de</strong>ixar para outro momento o trabalho <strong>de</strong> nos interrogarmossobre outras referências que sustentam o <strong>de</strong>sejo do analista, apenasapontando que os Nomes do Pai são uma <strong>de</strong>las e não <strong>de</strong> menor importância.Pós-escrito ou texto e contexto IISeguem algumas observações posteriores ao texto, contextualizando suaapresentação no congresso da <strong>APPOA</strong>, em novembro <strong>de</strong> 2008.Ao iniciar a conferência, última antes do encerramento, começamos porreconhecer a persistência dos que ali ficaram. E muitos estavam presentes. Éum misto <strong>de</strong> surpresa e reconhecimento pelo interesse no tema.A modo <strong>de</strong> introdução, constatamos o fato <strong>de</strong> nossa fala estar influenciadapor tudo o que havíamos escutado ao longo daqueles dias. As mesas quenos prece<strong>de</strong>ram e <strong>de</strong>ram ensejo a que modificássemos ou acrescentássemospartes ao que iríamos <strong>de</strong>senvolver naquele momento.Nesse sentido, a mesa anterior, em que Mário Corso e Lucia Pereirahaviam <strong>de</strong>sdobrado situações, mostrando como a literatura influenciava nossotrabalho, era a mais recente, as palavras <strong>de</strong>les ainda ressoavam no ambiente.Assim, nos servimos <strong>de</strong>las para antecipar, ou ajudar a encaminhar o quegostaríamos <strong>de</strong> dizer: “Cuidado com aquilo que <strong>de</strong>sejas!”, pois po<strong>de</strong> acontecer.A cena <strong>de</strong> Franskenstein, 21 vendo o nascimento da criatura, é exemplar.Depois <strong>de</strong> todo seu esforço, o doutor está diante <strong>de</strong> sua criatura e, para seuespanto, ela abre os olhos! Está viva! Frankenstein se vê no olhar do outro, <strong>de</strong>sua criatura. Aquela que não terá nome ao longo da história, e só será nomeadacom o nome <strong>de</strong> seu criador. Terá, por fim, o nome do pai. Assim a advertência –“Cuidado com o que <strong>de</strong>sejas!” – vinda dos artistas plásticos, do cinema, alémdos psicanalistas, po<strong>de</strong>rá ser retomada mais tar<strong>de</strong>.Mas outras associações acrescentam-se. Uma <strong>de</strong>las, O jovem Frankenstein,<strong>de</strong> Mel Brooks 22 . Paródia mordaz do clássico, <strong>de</strong>sta vez reencenado com humore ironia. Uma <strong>de</strong>ssas ironias: o encontro com o cego na cabana. Entenda-se: acriatura, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> fugir do castelo, encontra uma cabana on<strong>de</strong> vive um ermitãocego. No filme, esse homem que não enxerga, mesmo contente com a inesperadavisita, involuntariamente inflige sofrimentos ao monstro, que não fala, só21Aqui estamos nos referindo ao filme <strong>de</strong> 1931, dirigido por James Whale e estrelado por BorisKarloff, que <strong>de</strong>u imagem ao personagem literário. A figura com os pinos nas têmporas permaneceaté hoje como representação do monstro criado por Mary W. Shelley.22O jovem Frankenstein, dirigido por Mel Brooks. Comédia em que o neto do Barão Franskensteinretorna ao castelo original, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tentar negar sua ascendência, modificando até a pronúnciado nome próprio. Ou seja, não queria assumir a herança que lhe cabia.17


Robson <strong>de</strong> Freitas Pereiraemite grunhidos. De dor, quando sua mão é colocada no fogo, ou quando oceguinho <strong>de</strong>rrama água fervente no seu colo. Grunhidos e gemidos que ficammuito diferentes quando ele quer “fazer amor” com sua escolhida (que chega acantar árias ao ser penetrada). Temas esparsos, que não serão retomados: 1. Ocego, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Tirésias, é uma representação do psicanalista, no teatro ou nocinema, geralmente para fazer piadas. Tomando a piada como formação doinconsciente, para que não esqueçamos o quanto temos que ter cuidado parareconhecer que muitas vezes tateamos no escuro; e que com um pouco <strong>de</strong> luz,um saber se constrói com o outro; 2. Os grunhidos começam a se transformarem linguagem, quando buscam nomear formas diferentes <strong>de</strong> se relacionar como objeto do <strong>de</strong>sejo. Linguagem e sexualida<strong>de</strong> estão articuladas, para o bem epara o mal, ou parafraseando: para o <strong>de</strong>sejo e para o gozo, angústia mediante(sem esquecer o sintoma).Letra final, restos poéticosAo final, queria ler uma canção, com letra <strong>de</strong> Wally Salomão e AntonioCícero. Wally tinha sido citado, neste congresso, mais <strong>de</strong> uma vez, em trabalhosanteriores (lembro Ana Costa, Edson Sousa e Maria Cristina Poli).Babilaques, sua exposição póstuma, con<strong>de</strong>nsação <strong>de</strong> Babilônia e badulaques,seus livros, sua prosa caudalosa, po<strong>de</strong>riam servir <strong>de</strong> veículo para tocar no temaBabilônia, Babel. Nossa Babel <strong>de</strong> falas e letras. Nossa Babel necessária, paraque possamos exercitar um convívio e compartilhar nossa experiência com apsicanálise.Achava que a música se chamava Babilônia. Engano, equívoco meu.Título original: Holofotes (aqueles que iluminam coisas).Mas lembrava <strong>de</strong> parte da letra:“dias sem carinho, mas eu não me <strong>de</strong>sespero/rango alumínio, ar,pedra, carvão e ferro/Eu lhe ofereço, estas coisas que enumero/pois quando fantasio équando sou mais sincero/Eis a Babilônia amor, Eis Babel aqui/ algo da insônia/ do seusonho antigo em mim”(Holofotes, letra <strong>de</strong> Wally Salomão e Antonio Cícero, música <strong>de</strong>João Bosco).Busquei, encontrei o LP <strong>de</strong> vinil original, em que João Bosco havia propostoaos dois poetas uma parceria inédita. Ele forneceria as músicas, elescolocariam letra. Título do álbum: Zona <strong>de</strong> fronteira.18


Actualida<strong>de</strong> da angústiaImprimi a letra para levar ao congresso. Ao chegar no final da conferência,quando fui buscá-la, não encontrei. Estava perdida, esquecida em casa, sótinha o recurso da memória, do corpo, da pele do texto. Tive que aceitar oequívoco; não precisava da letra impressa, interessava a parte que estava impressaem mim, em algum lugar do corpo, do esquecimento, da memóriarememorada.“A letra voou”Nas discussões com o público, Élida Tessler lembrou um episódio curioso;há algum tempo, em 2007, Wally Salomão estava fazendo uma leitura <strong>de</strong>seus poemas na Usina do Gasômetro, em <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>. Quando quis mostrarjustamente a letra <strong>de</strong> Holofotes; pois estava falando do trabalho <strong>de</strong> parceria comAntonio Cícero e João Bosco, a folha voou. Um vento forte a levou mundo afora.Era isto. Tive que reconhecer que queria falar/mostrar isso mesmo queaconteceu, agregar o eusquecimento (o eu tem que ficar esquecido) para construiralgum saber, ou mesmo para constituir uma escuta analítica.REFERÊNCIAS<strong>APPOA</strong>. Correio da Appoa – O seminário da angústia, n. 173, <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, out. 2008.CAZOTTE, Jacques. O diabo enamorado. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1992.LACAN, Jacques. Le seminaire, Les non dupes errant. Paris: ALI, 1981. (Publicacionhors commerce)LACAN, Jacques. De um Outro ao outro – seminário [1968-69]. Recife: CEF, 2004.(Publicação não comercial)_____ . O seminário, livro XI – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise[1964]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1979._____ . Le seminaire l’angoisse [1962-63]. Paris: ALI. (Publicacion hors commerce)_____ . O seminário, livro X – a angústia [1962-63]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar,2005._____ . A i<strong>de</strong>ntificação – seminário [1961-1962]. Recife: CEF, 2003. (Publicação nãocomercial)_____ . Television [1974]. In: LACAN, J. Autre écrits. Paris: Seuil, 2001. [Ed bras.:Outros escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2003]ROUDINESCO, Elisabeth. História da psicanálise na França. Rio <strong>de</strong> Janeiro: JorgeZahar, 1988. v. II.TODOROV, Tzvetan. A conquista da América – a questão do outro. São Paulo: MartinsFontes, 1991.Recebido em 15/05/2009Aceito em 05/06/2009Revisado por Valéria Rilho19


Rev. Assoc. Psicanal. <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, n. <strong>36</strong>, p. 20-27, jan./jun. 2009TEXTOSUMA CARTA PERDIDA 1Maria Cristina Poli 2Resumo: A relação entre a literatura e a psicobiografia do autor é interrogada apartir da análise da obra <strong>de</strong> Clarice Lispector. Em particular, a segunda fase <strong>de</strong>sua produção, na qual se observa a inflexão no estilo <strong>de</strong> sua escrita, contemporâneaàs crises <strong>de</strong> angústia vivenciadas pela autora. Buscaremos <strong>de</strong>monstrar oefeito <strong>de</strong> “<strong>de</strong>samarração”, <strong>de</strong> “<strong>de</strong>senlace”, que uma produção literária po<strong>de</strong> ter.Trata-se, pois, <strong>de</strong> interrogar o quanto tal inflexão do estilo, tem relação com oobjeto da angústia, o que nos permite inferir os efeitos <strong>de</strong>ssa questão para aclínica psicanalítica dos estados <strong>de</strong> angústia.Palavras-chave: psicobiografia, literatura, angústia, estilo, Clarice Lispector.A LOST LETTERAbstract: This article interrogates the relationship between literature and theauthor´s psychobiography from the analysis of Clarice Lispector´s work. Speciallythe second phase of her production, in which an inflection in the writing style isobserved, meanwhile anxiety crisis were experienced by the author. We aim to<strong>de</strong>monstrate the effect of an unleashment which a literary production might have.This means that we interrogate if the inflection is related to the object of anxiety,what allow us to infer its effects to the psychoanalytical clinic of anxiety states.Keywords: psychobiography, literature, anxiety, style, Clarice Lispector.1Trabalho apresentado no Congresso da <strong>APPOA</strong>: Angústia, realizado em <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, emnovembro <strong>de</strong> 2008.2Psicanalista; Membro da <strong>APPOA</strong>; Doutora em Psicologia pela Université Paris 13 e Pós-Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professora adjunta do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduaçãoem Psicologia Social /UFRGS e do Mestrado em Psicanálise, Saú<strong>de</strong> e Socieda<strong>de</strong> da UVA/RJ. Coor<strong>de</strong>na, junto com Edson Luiz André <strong>de</strong> Sousa, o LAPPAP – Laboratório <strong>de</strong> Pesquisa emPsicanálise, Arte e Política. Pesquisadora do CNPq. E-mail: mcrispoli@terra.com.br20


Uma carta perdidaEste trabalho parte da indagação motivada pelos efeitos do encontro com aobra <strong>de</strong> uma das principais autoras da literatura brasileira: Clarice Lispector.Formularíamos inicialmente a questão do seguinte modo: qual a relação entreangústia e produção literária? Não a angústia do leitor diante do texto literário.Essa também existe e interessaria à psicanálise pensar <strong>de</strong> que modo o escritorconsegue incluir na arte da escrita a presentificação do objeto da angústia como qual o leitor vai se confrontar; questão, aliás, da qual se ocupou Freud ([1919]1988) na abordagem do Unheimlich. Não é disso que trataremos, no entanto.Tampouco nossa questão se dirige à angústia que move o autor na produção <strong>de</strong>sua obra. Questão igualmente pertinente e cuja relação com o que em literaturase <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> “angústia da influência” – uma espécie <strong>de</strong> “temor do plágio” –caberia precisar. A questão na qual nos <strong>de</strong>teremos neste trabalho é antes a daangústia como aquilo que “escapa” ao processo <strong>de</strong> escrita literária, sendo aomesmo tempo produzido por ele. A angústia como efeito <strong>de</strong> uma letra-carta queextravasa o texto, atingindo seu autor. Ou, dito <strong>de</strong> outro modo, para não incorrerem falsas generalizações, a angústia que acometeu Clarice a partir <strong>de</strong> dadomomento <strong>de</strong> sua produção literária e que, segundo nossa leitura, coinci<strong>de</strong> como exercício <strong>de</strong> certo estilo <strong>de</strong> escrita que se impôs a ela.Dessa angústia, temos o testemunho daqueles que lhe foram próximos,transcritas nas biografias, e <strong>de</strong> algumas cartas trocadas com parentes e amigos,publicadas postumamente. A obra literária <strong>de</strong> Clarice Lispector foi escritaentre 1944 (ano do primeiro romance, Perto do coração selvagem) e 1977 (ano<strong>de</strong> sua morte e da publicação <strong>de</strong> A hora da estrela). Alguns escritos foram aindapublicados postumamente, como Um sopro <strong>de</strong> vida, compilação <strong>de</strong> escritosrecolhidos e organizados por Olga Borelli, amiga inseparável <strong>de</strong> Clarice nosúltimos anos <strong>de</strong> vida.É <strong>de</strong> Olga que provêm os principais testemunhos sobre a angústia queacometia Clarice:Não é fácil ser amiga <strong>de</strong> pessoas muito centradas em si mesmas.Clarice era <strong>de</strong>ste tipo e portanto exigia e absorvia bastante todasas pessoas <strong>de</strong> quem gostava. Tinha gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> para dormire inúmeras madrugadas telefonava-me para se dizer angustiadae tensa. Acho que jamais esquecerei uma época em que fuipara Salvador dar um curso. Uma noite, ao chegar no hotel, recebirecado para lhe telefonar com a maior urgência. Sua voz ao telefoneestava estranha: ‘Olga, estou tão aflita. Numa angústia enorme.Não sei o que po<strong>de</strong> acontecer comigo. Volte o mais breve quevocê pu<strong>de</strong>r.’ Cancelei tudo e vim encontrá-la no dia seguinte na21


Maria Cristina Polihora do almoço rindo, bem disposta. Sabe o que me disse? Queeu a levava muito a sério e que tinha apenas me precipitado aovoltar. É claro, fiquei chateadíssima, mas aprendi muito com ahistória (Borelli apud Gotlib, 1995, p. 399-400).É preciso acrescentar que o que Olga apren<strong>de</strong>u foi a dimensionar o tamanhoda angústia que acometia Clarice, sua necessida<strong>de</strong> efetiva em se fazeracompanhar. Em outro momento, é ainda ela que confere o seguinte testemunhosobre a escritora:Ela sempre dizia: “E agora?”. Você imagina ser amiga <strong>de</strong> umapessoa que, a todo instante, pergunta: “E agora?”. Agora lanchar,tomar um chá num tal restaurante – nós íamos no Méridien. Terminava<strong>de</strong> tomar o chá, pagava a conta, ela perguntava: “E agora?” eagora nós vamos para casa ver televisão. “E agora? E agora? E<strong>de</strong>pois? E <strong>de</strong>pois?” Era assim (Borelli apud Gotlib, 1995, p. 441).Tomamos esses recortes sobre Clarice não para interrogar a angústiaque a acometia em sua relação exclusiva com sua biografia – o que não teríamoscondições <strong>de</strong> fazer: ler as biografias e conhecer a obra não autoriza atransformar sua autora em um caso clínico. Interessa-nos é o quanto po<strong>de</strong>mosreconhecer nesses testemunhos a assunção <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada posição suacomo autora e pensar a angústia como efeito <strong>de</strong> uma mudança operada em seuestilo <strong>de</strong> escrita.Na obra <strong>de</strong> Clarice, po<strong>de</strong>m-se reconhecer dois momentos bastante distintos.Um, primeiro, composto basicamente <strong>de</strong> seus quatro primeiros livros –Perto do coração selvagem, O lustre, Cida<strong>de</strong> sitiada e A maçã no escuro – nosquais o enredo já é perpassado pelas marcas estilísticas que a caracterizam (oimpressionismo, as elucubrações existenciais, etc.), mas que se sustentamem dramas passionais, nos quais as condições das relações amorosas e os<strong>de</strong>safios i<strong>de</strong>ntitários (masculino-feminino) dão a tônica da história. Já na segundafase <strong>de</strong> sua obra, a partir <strong>de</strong> A paixão segundo G.H., incluindo Água-viva e Ahora da estrela, entre outros, temos o que alguns críticos <strong>de</strong>nominaram <strong>de</strong><strong>de</strong>sficcionalização da obra. São textos cujo cerne não está propriamente noenredo e na construção <strong>de</strong> personagens, mas no cair das máscaras, na busca(impossível) do ponto <strong>de</strong> encontro entre ser e linguagem. A posição do narradoraí, sobretudo, é indiscernível daquela do autor, misturando-se com ela.Lucia Castello Branco (2000) <strong>de</strong>nominou esse tipo <strong>de</strong> escrita – reconhecívelem muitos autores, como Beckett, Joyce e Llansol – do trabalho com a22


Uma carta perdidaletra na produção <strong>de</strong> uma textualida<strong>de</strong> que é diferente daquela que se dá nosescritos que se organizam pela narrativida<strong>de</strong>. É a letra em sua dimensão <strong>de</strong>litoral, <strong>de</strong> lixo, fazendo lituraterra, como nomeia Lacan ([1971] 2003). Outra coisaé o trabalho com a letra como constituindo uma narrativa. Aí estamos naoperação literária propriamente dita. O que autores como Clarice, Beckett eJoyce produziram como estilo é da or<strong>de</strong>m da lituraterra, é da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> umaletra-carta que não chega ao seu <strong>de</strong>stino, como indica Claudia Rego (2005) apropósito da poetiza Ana Cristina César. Nesses escritos, rompem-se as fronteirasentre autor e personagem, entre ficção e realida<strong>de</strong>. Como escreve Rego,“o texto não é auto-biográfico. É ato biográfico” (Ibid., p. 105).Nesse sentido, parece evi<strong>de</strong>nte que diferenciar a angústia da pessoa <strong>de</strong>Clarice daquela da autora Clarice Lispector implica situar uma clivagem insustentável.Até porque é do segundo tempo <strong>de</strong> seu trabalho – tempo do trabalho <strong>de</strong>lituraterra – que a angústia que relatamos emerge. A primeira parte da obra épraticamente toda produzida no exterior, on<strong>de</strong> acompanhava o marido em suasfunções diplomáticas. Desse período temos as cartas trocadas com amigos eparentes, e que expressam períodos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> solidão e tristeza, porém nadasemelhante ao que será vivido como angústia posteriormente. Em 1959, separasee instala-se no Rio <strong>de</strong> Janeiro com os dois filhos. É nessa época que se dáa “virada” em sua produção.O eu do autor e a angústia da obraAntes <strong>de</strong> seguirmos essa via <strong>de</strong> análise, cabe situar melhor aqui umaquestão <strong>de</strong> método. Pois é preciso que se diga que a pergunta sobre a angústiacomo efeito da produção literária coloca para a psicanálise um <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> método,na medida justamente em que é impossível elidir <strong>de</strong>ssa questão a pessoado autor. Se é o “eu” a se<strong>de</strong> da angústia, como bem <strong>de</strong>stacou Freud ([1926]1988), é o “eu” <strong>de</strong> Clarice que está aí implicado. “Eu”, esse, que ela busca emsua obra reduzir a uma pura condição <strong>de</strong> enunciação, um eu que ao longo danarrativa experiencia o <strong>de</strong>spojamento <strong>de</strong> suas qualida<strong>de</strong>s (A hora da estrela), oatravessamento <strong>de</strong> suas posições i<strong>de</strong>ntificatórias (A paixão segundo G.H.), abusca última <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> dizer o indizível (Água-viva).Essa “paixão pelo real”, que conduz Clarice em sua última produção,cobra seus efeitos. Como ela mesma nos diz, em seu livro póstumo, Um sopro<strong>de</strong> vida: “O objeto – a coisa – sempre me fascinou e <strong>de</strong> algum modo me <strong>de</strong>struiu”(Lispector [1978]1999, p. 104).Retomemos, então, por um instante a análise <strong>de</strong> Lacan ([1958] 1998) sobreA juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gi<strong>de</strong> ou a letra e o <strong>de</strong>sejo, texto no qual tampouco Lacan se exime<strong>de</strong> incluir a psicobiografia do escritor (escrita por Delay) na leitura <strong>de</strong> sua obra.23


Maria Cristina PoliA psicanálise só se aplica, em sentido próprio, como tratamento, eportanto, a um sujeito que fala e ouve. Fora <strong>de</strong>sse caso, só po<strong>de</strong>tratar-se <strong>de</strong> método psicanalítico, aquele que proce<strong>de</strong> à <strong>de</strong>cifraçãodos significantes, sem consi<strong>de</strong>rar nenhuma forma <strong>de</strong> existênciapressuposta do significado. O que o livro em exame [A psicobiografia<strong>de</strong> Gi<strong>de</strong>] mostra brilhantemente é que uma investigação, na medidaem que observa esse princípio, pela simples honestida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quaçãoao modo como um material literário <strong>de</strong>ve ser lido, encontrana or<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> sua própria narrativa a própria estrutura do sujeitoque a psicanálise <strong>de</strong>signa (Lacan, [1958] 1998, p. 758).É possível, portanto, ler o texto literário em sua relação com a biografiado autor <strong>de</strong> modo a encontrar aí “a própria estrutura do sujeito que a psicanálise<strong>de</strong>signa”. Em relação a Gi<strong>de</strong>, o ponto salientado por Lacan é o episódio <strong>de</strong> suabiografia, retomado pelo próprio em um texto autobiográfico, no qual sua esposa,Ma<strong>de</strong>leine, se sentindo traída, queima as cartas <strong>de</strong> amor que Gi<strong>de</strong> lhe en<strong>de</strong>reçarapor muitos anos. A história é bastante conhecida: Gi<strong>de</strong> era homossexuale tinha com Ma<strong>de</strong>leine – que além <strong>de</strong> esposa era também sua prima – um“casamento casto” acordado entre ambos. O que não impediu Gi<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser efetivamenteapaixonado por Ma<strong>de</strong>leine e <strong>de</strong> lhe ter escrito uma longa correspondênciaamorosa, incinerada por ela.Após a morte <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>leine, Gi<strong>de</strong> escreve o livro no qual narra <strong>de</strong> modoressentido o episódio da queima das cartas: “talvez não tenha havido jamaistão bela correspondência”. Lacan, no texto sobre Gi<strong>de</strong>, analisa não apenas oato <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>leine (um ato que, segundo ele, faz <strong>de</strong>la uma verda<strong>de</strong>ira mulher ao<strong>de</strong>struir aquilo que lhe tinha sido dado <strong>de</strong> mais precioso). Ele consi<strong>de</strong>ra tambéma reação ressentida <strong>de</strong> Gi<strong>de</strong> ao luto pela morte <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>leine: reagindo àperda da mulher amada, ele a culpabiliza pela perda das cartas. Gi<strong>de</strong>, escreveLacan, reage como uma fêmea ferida no ventre (como a mãe que per<strong>de</strong> umfilho), sentindo a perda como a “<strong>de</strong>vastação <strong>de</strong> uma privação <strong>de</strong>sumana”. Ointeressante é que Lacan acrescenta ter sido esse ato (a <strong>de</strong>struição das cartas)que permitiu situar ali, em Gi<strong>de</strong>, a “letra do <strong>de</strong>sejo”. A ferida no ventre“preenche com exatidão o vazio que o ato da mulher quis abrir em seu ser”(Lacan, [1958] 1998, p.772). A perda das cartas (<strong>de</strong> seu objeto mais precioso)situa, portanto, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abertura para o <strong>de</strong>sejo.Qual o estatuto <strong>de</strong>ssa carta perdida? Aqui Lacan fala em luto, em <strong>de</strong>vastaçãoe ressentimento. Porém, trata-se <strong>de</strong> uma perda que permite, em suaelaboração pela escrita, algo <strong>de</strong> um acesso ao <strong>de</strong>sejo. Nem sempre, contudo –acrescentaríamos –, é assim que as coisas se passam.24


Uma carta perdidaNo seminário A angústia, no capítulo “De uma falta irredutível ao significante”,Lacan ([1962-63] 2005) retoma a diferença, antiga já nessa época, entrecastração e privação, tirando outras consequências. Ele propõe dois apólogos:um livro está fora <strong>de</strong> seu lugar na biblioteca. Tal or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> falta é perfeitamentenomeável, na medida em que há uma or<strong>de</strong>m simbólica, uma série (a biblioteca),na qual uma falta é reconhecida. O que “falta em seu lugar”, dá as condiçõespara que um significante (simbolizado pelo livro) possa representá-lo. Essa é afunção do falo na castração. Mas Lacan continua: suponhamos que nesse livroesteja escrito: “faltam quatro gravuras” (p.147). Nesse caso, não adianta restituiro livro ao seu lugar na prateleira, que as gravuras não retornam. Ou seja, háum outro tipo <strong>de</strong> falta – a privação – que situa um objeto insubstituível: o objetoa. É certo que ele po<strong>de</strong> ser cifrado, po<strong>de</strong> ser escrito, mas não é imaginarizável,nem apreensível. Conforme suas palavras:A falta é radical, radical na própria constituição da subjetivida<strong>de</strong>, talcomo esta nos aparece por via da experiência analítica. Eu gostaria<strong>de</strong> enunciá-la com esta formulação: a partir do momento em queisso é sabido, em que algo chega ao saber [em que algo é escrito?],há alguma coisa perdida, e a maneira mais segura <strong>de</strong> abordaresse algo perdido é concebê-lo como um pedaço do corpo (Lacan,[1962-63] 2005, p.148) (o acréscimo entre colchetes é nosso).E, mais adiante:Ele [o objeto a] é justamente o que resiste a qualquer assimilaçãoà função do significante, e é por isso mesmo que simboliza o que,na esfera do significante, sempre se apresenta como perdido, comoo que se per<strong>de</strong> para a ‘significantização’. Ora é justamente esse<strong>de</strong>jeto, essa queda, o que resiste à ‘significantização’, que vem ase mostrar constitutivo do fundamento como tal do sujeito<strong>de</strong>sejante (Ibid., p. 193).É esse tipo <strong>de</strong> falta, essa letra-<strong>de</strong>jeto, que se faz presente em <strong>de</strong>terminadasexperiências <strong>de</strong> angústia. Neste caso, a sua relação com a nomeação do<strong>de</strong>sejo não é tão direta como Lacan parece supor no texto sobre Gi<strong>de</strong>. Não setrata <strong>de</strong> situar ali – na experiência da angústia que condiz com o encontro comesse ponto <strong>de</strong> privação – o lugar no qual se po<strong>de</strong>ria ace<strong>de</strong>r a uma representaçãopossível do <strong>de</strong>sejo do Outro, à nomeação daquilo que lhe falta. A angústia, e éisso que o texto clariciano nos permite apreen<strong>de</strong>r, é a presentificação <strong>de</strong> um real25


Maria Cristina Polisem nome, mesmo que ele esteja, paradoxalmente, incluído e <strong>de</strong> certo modoescrito no texto (“faltam quatro gravuras”).Um outro modo <strong>de</strong> pensar isso também é proposto por Lacan, ao se valer,em diferentes momentos, da metáfora do pote <strong>de</strong> mostarda. A brinca<strong>de</strong>ira queele faz é com a metáfora do oleiro, introduzida por Hei<strong>de</strong>gger, como paradigmada produção do objeto <strong>de</strong> arte. O vaso <strong>de</strong> argila produzido pelo oleiro recorta umespaço vazio, a partir <strong>de</strong> seu contorno. A condição da arte é a <strong>de</strong> bor<strong>de</strong>ar umvazio, <strong>de</strong> modo semelhante ao contorno do objeto operado pela pulsão, produzindo,no mesmo movimento, o orifício erógeno no corpo.Imaginemos agora que esse vazio pu<strong>de</strong>sse extravasar as bordas que o contêm.Quando pensamos no pote <strong>de</strong> mostarda, é fácil, po<strong>de</strong>mos facilmente imaginarcolocar mostarda <strong>de</strong>mais e ela transpor as bordas <strong>de</strong> seu pote. No caso do vazio,é mais difícil imaginar, mas a experiência da angústia é o que nos <strong>de</strong>monstra asua possibilida<strong>de</strong>. Quase como se no jogo <strong>de</strong> figura-fundo, ao invés <strong>de</strong> vermos ovaso e o vazio <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, víssemos o vazio <strong>de</strong>ntro e fora, contendo o vaso.Na literatura <strong>de</strong> Clarice, algo assim se produz. Para o leitor, a experiênciaé a do encontro com um texto-vaso que constrói um veio <strong>de</strong> leitura tracejadopelas letras. Para sua autora, no entanto, a radicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa escrita, a buscaque ela opera, se traduz (conforme Lacan ([1962-63] 2005): “a angústia é atradução subjetiva do objeto a”) na experiência <strong>de</strong> angústia que a acossa.A poe<strong>de</strong>ira e os efeitos da autoriaQuando trabalha a escrita <strong>de</strong> Joyce, no Seminário 23, Lacan ([1975-76]2007) compara o trabalho do escritor ao <strong>de</strong> uma poe<strong>de</strong>ira. Pôr um ovo é a figuraçãoevocada para a produção <strong>de</strong> um novo pedaço <strong>de</strong> real. Segundo Lacan, foiessa produção feita por Joyce que lhe permitiu ace<strong>de</strong>r a uma amarração subjetiva,a construção <strong>de</strong> um quarto nó (o Sinthoma), que fez suplência ao Nome-dopai.Tal foi o efeito <strong>de</strong> retorno que a produção da obra teve, no caso <strong>de</strong> Joyce,sobre seu autor. Será, no entanto, sempre assim? A pergunta se justifica porqueno caso <strong>de</strong> nossa autora, Clarice Lispector, a produção da obra parece que teveefeito contrário, teve um efeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>samarração subjetiva. Escrevemos “parece”,e sublinhamos a palavra, porque não temos elementos suficientes parasustentá-lo com certeza. É um tema <strong>de</strong> trabalho a <strong>de</strong>senvolver.Em todo o caso, gostaríamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar, através <strong>de</strong>sse contra-exemplo,que nem sempre a produção da obra e a nomeação subsequente (vale<strong>de</strong>stacar que também Clarice foi muito reconhecida em vida e que sua obra seráigualmente estudada pelos universitários nos próximos 200 anos) têm tal efeito<strong>de</strong> amarração subjetiva. Pelo contrário, a <strong>de</strong>smontagem que impôs a seus escritosparece ter incidido também sobre ela.26


Uma carta perdidaFiquemos, então, com suas próprias palavras – com a impactante luci<strong>de</strong>z,na hora <strong>de</strong> estrela:Com essa história eu vou me sensibilizar, e bem sei que cada diaé um dia roubado da morte. Eu não sou um intelectual, escrevocom o corpo. E o que escrevo é uma névoa úmida. As palavrassão sons transfundidos <strong>de</strong> sombras que se entrecruzam <strong>de</strong>siguais,estalactites, renda música transfigurada <strong>de</strong> órgão. Mal ouso clamarpalavras a essa re<strong>de</strong> vibrante e rica, mórbida e obscura tendocomo contratom o baixo grosso da dor. Alegro com brio. Tentareitirar ouro do carvão. Sei que estou adiando a história e que brinco<strong>de</strong> bola sem a bola. O fato é um ato? Juro que esse livro é feitosem palavras. É uma fotografia muda. Esse livro é um silêncio.Esse livro é uma pergunta (Lispector, [1977] 1988, p.22-23).REFERÊNCIASBRANCO, L. C. Os absolutamente sós. Belo Horizonte: FALE/Autêntica, 2000.BRANCO, L. C.; BRANDÃO, R. S. A mulher escrita. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Lamparina, 2004.FREUD, S. Inhibición, síntoma y angustia. In: FREUD. Obras completas. BuenosAires : Amorrortu, 1988. v. 20._____ . Lo ominoso [1919]. In: Ibid., v. 17.GOTLIB, N. Clarice, uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.LACAN, J. O seminário, livro 7 : A ética da psicanálise [1959-60]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: JorgeZahar, 1988._____ . A juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gi<strong>de</strong> ou a letra e o <strong>de</strong>sejo [1958]. In:_____. Escritos. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Jorge Zahar, 1998._____ . O seminário, livro 10: A angústia [1962-63]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar,2005._____ . O seminário, livro 23: O sinthoma [1975-76]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar,2007._____ . Lituraterra [1971]. In: LACAN. Outros escritos. Rio <strong>de</strong> Janeiro : J. Zahar, 2003.LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1988._____ . A paixão segundo G.H. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1998._____ . Um sopro <strong>de</strong> vida [1978]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Rocco, 1999.MANZO, L. Era uma vez: Eu – a não-ficção na obra <strong>de</strong> Clarice Lispector. Curitiba:Secretaria do Estado da Cultura/ UFJF, 1997.REGO, Claudia <strong>de</strong> Moraes. Ana Cristina Cesar: uma carta nem sempre chega a seu<strong>de</strong>stino. Letra Freudiana – Do sintoma ao sinthoma. Rio <strong>de</strong> Janeiro, n. 17/18, p. 103-109, 2005.Recebido em 17/04/2009Aceito em 08/05/2009Revisado por Larissa Scherer e Simone Goulart Kasper27


Rev. Assoc. Psicanal. <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, n. <strong>36</strong>, p. 28-37, jan./jun. 2009TEXTOSANGÚSTIASCONTEMPORÂNEAS 1Rosane Monteiro Ramalho 2Resumo: O artigo parte do romance Homem comum, <strong>de</strong> Philip Roth, para abordaras angústias contemporâneas, manifestas na solidão, no <strong>de</strong>samparo, nafalta <strong>de</strong> sentido na vida, na extrema preocupação com o corpo e no temor emrelação à morte – mais do que com a morte física, com a morte psíquica, amorte do <strong>de</strong>sejo. Além da análise do texto literário, o artigo apresenta tambémum relato clínico para abordar a direção do tratamento psicanalítico nessescasos.Palavras-chave: angústia, contemporaneida<strong>de</strong>, solidão, <strong>de</strong>samparo, morte.CONTEMPORARY ANXIETIESAbstract: This article takes Philip Roth romance The common man to investigatecontemporary anxieties, shown in solitu<strong>de</strong>, in helplessness , in the lack of meaningin life, in the extreme worry with the body and the fear of <strong>de</strong>ath – not a physical<strong>de</strong>ath, but a psychic <strong>de</strong>ath, a <strong>de</strong>ath of the <strong>de</strong>sire. Beyond literary analysis, thearticle also presents a clinical case to discuss the direction of psychoanalyticaltreatment in such cases.Keywords: anxiety, contemporary, solitu<strong>de</strong>, helplessness, <strong>de</strong>ath.1Trabalho apresentado no Congresso da <strong>APPOA</strong>: Angústia, realizado em <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, emnovembro <strong>de</strong> 2008.2Psicanalista; Membro da <strong>APPOA</strong>; Mestre em Psicologia Clínica - PUC/SP; Professora daResidência Médica em Psiquiatria e da Residência Multiprofissional em Saú<strong>de</strong> Mental, do InstitutoMunicipal Philippe Pinel, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. E-mail: rosaneram@gmail.com28


Angústias contemporâneasUm dos maiores escritores americanos da atualida<strong>de</strong>, Philip Roth é autor <strong>de</strong>mais <strong>de</strong> vinte romances, entre eles: Complexo <strong>de</strong> Portnoy, Pastoral americana,Complô contra a América, A marca humana, O animal agonizante; a partir<strong>de</strong>ste último, recentemente foi realizado um filme cujo título em português é:Fatal 3 . Roth tem recebido vários prêmios literários, sendo candidato constanteao Prêmio Nobel. O sucesso <strong>de</strong> sua obra parece <strong>de</strong>correr não apenas <strong>de</strong> seuestilo peculiar, direto e contun<strong>de</strong>nte, mas também do tema central que atravessasuas narrativas: a angústia do sujeito contemporâneo, manifesta na solidão,no <strong>de</strong>samparo, na <strong>de</strong>pressão, na falta <strong>de</strong> sentido na vida, na extrema preocupaçãocom o corpo e com a limitação <strong>de</strong>ste – a doença, a velhice e a morte.Essa temática é retomada <strong>de</strong> maneira tocante num <strong>de</strong> seus últimos livrosHomem comum (Roth, 2007). O título original do romance, Everyman, vem <strong>de</strong>uma peça anônima do século XV, um clássico da dramaturgia inglesa, cujotema é a convocação dos vivos para o reencontro com os valores cristãos apartir <strong>de</strong> um confronto com a Morte, a figura trágica por excelência. Roth constróiuma história pungente do encontro <strong>de</strong> um homem comum com a morte, masesta se escreve com minúscula, sem o sentido religioso ou transcen<strong>de</strong>nte. Emsua narrativa, a morte é apenas o ponto final da existência. No entanto, a proximida<strong>de</strong><strong>de</strong>sse momento terminal acaba levando o homem comum a <strong>de</strong>parar-secom o vazio <strong>de</strong> sua vida. A crítica logo apontou a afinida<strong>de</strong> temática do livro coma obra prima <strong>de</strong> Leon Tolstói (1997), A morte <strong>de</strong> Ivan Ilich, <strong>de</strong> 1886, na qual umjuiz à beira da morte se dá conta <strong>de</strong> como sua vida havia sido convencional,supérflua, medíocre.Diferentemente do que ocorre na peça do século XV e no romance do fimdo século XIX, na narrativa <strong>de</strong> Roth (2007) não há nenhuma promessa <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção,ou <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> vida para além da morte. Seu personagem chega aofinal da existência para lá encontrar nada mais do que o inventário <strong>de</strong>solador <strong>de</strong>suas escolhas e a somatória pífia <strong>de</strong> seus atos. O homem comum <strong>de</strong> Roth, tãocomum que sequer recebe do autor um nome próprio, é uma metáfora quecon<strong>de</strong>nsa em gran<strong>de</strong> medida a perplexida<strong>de</strong> e a solidão do sujeito contemporâneo.O fato <strong>de</strong> não ter nome sugere ainda que po<strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> qualquer um <strong>de</strong>nós.A história inicia-se após a morte do protagonista – no enterro –, partindodaí para a recapitulação <strong>de</strong> sua trajetória <strong>de</strong> vida. Estamos num cemitério <strong>de</strong>ca-3Com direção <strong>de</strong> Isabel Coixet.29


Rosane Monteiro Ramalho<strong>de</strong>nte, situado no que fora outrora um lugar aprazível e calmo, mas que havia setornado ao longo dos anos um <strong>de</strong>sconfortável amontoado <strong>de</strong> túmulos à beira <strong>de</strong>uma movimentada estrada. Poucas pessoas estão presentes – apesar do cuidadoda filha em chamar alguns conhecidos, para que não estivessem na cerimôniasomente ela, um tio e sua esposa. Por conta <strong>de</strong> seu empenho, acabamindo ao funeral também a sua mãe (uma das três ex-mulheres <strong>de</strong> seu pai), seusdois irmãos do primeiro casamento – que <strong>de</strong>testavam abertamente o pai –,alguns alunos das aulas <strong>de</strong> artes que ele havia passado a dar após a aposentadoria,e alguns velhinhos do condomínio, uma espécie <strong>de</strong> asilo, em que elemorava no final <strong>de</strong> sua vida. Uma única pessoa presente não tinha sido convidada– uma enfermeira amiga que havia cuidado <strong>de</strong>le numa cirurgia anterior.Roth comenta:E assim terminou. [...] Em todo o estado, naquele dia, tinha havidoquinhentos funerais como este, rotineiros, normais. [...] É justamenteo que há <strong>de</strong> normal nos funerais que os torna mais dolorosos,mais um registro da realida<strong>de</strong> da morte que avassala tudo(Roth, 2007, p.17-18).Toda a história do livro gira em torno da angústia, insistente e sem remédio,do homem comum em relação à realida<strong>de</strong> da morte. Esse sentimento inquietantee atormentador o persegue. Desdobrado em várias cenas: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o seuprimeiro confronto chocante com a morte nas praias idílicas <strong>de</strong> sua infância, emque viu um cadáver inchado saindo do mar, passando pela cirurgia <strong>de</strong> hérnia aque se submeteu quando ainda era menino (e o fato <strong>de</strong> ter presenciado, naquelaocasião, a morte <strong>de</strong> outra criança, no leito ao lado do seu), a crise <strong>de</strong> peritoniteque, na sua infância, acometeu a seu pai e quase o matou, até, na velhice,<strong>de</strong>parar-se com a <strong>de</strong>terioração <strong>de</strong> seus contemporâneos, com seus própriosproblemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e a <strong>de</strong>cadência inexorável <strong>de</strong> seu corpo. Durante toda avida, sua angústia e a sua única certeza se misturavam na i<strong>de</strong>ia da inevitabilida<strong>de</strong>da morte.O homem comum trabalhara numa agência publicitária <strong>de</strong> Nova Iorque,tendo tido sucesso. Após a aposentadoria, <strong>de</strong>dicou-se à pintura <strong>de</strong> quadros –que era, na verda<strong>de</strong>, seu <strong>de</strong>sejo sempre adiado –, passando a morar na praia, amesma à qual ia com a família, quando criança, passar parte dos verões. Tevetrês casamentos, com mulheres muito diferentes. Separou-se da primeira mulherpara ficar com a amante, fato que causou gran<strong>de</strong> abalo e revolta na exmulher,e produziu nos filhos um sentimento do qual jamais se livraram – o <strong>de</strong>que não tinham mais pai. Do segundo casamento ele teve uma filha, uma das30


Angústias contemporâneasúnicas pessoas com quem conseguiu manter relação afetiva forte ao longo davida. Apesar do amor que reconhecia sentir pela esposa, e do valor que suafamília tinha para ele, no entanto, o homem comum se via sempre impulsionadoa buscar novas sensações eróticas. Assim, embora esse casamento tivessecorrespondido ao que ele sempre buscara para si em uma relação amorosa,acabou por ter <strong>de</strong>sfecho semelhante ao anterior, atropelado pelo seu envolvimentocom outra mulher – uma jovem mo<strong>de</strong>lo cuja ida<strong>de</strong> era a meta<strong>de</strong> da sua. Esseterceiro casamento durou, no entanto, o pouco tempo compatível com a superficialida<strong>de</strong>da relação. Com o passar dos anos, já na velhice, reconheceu que asolidão que sentia era consequência <strong>de</strong> suas escolhas ao longo da vida. Suaúnica companhia constante terminou sendo praticamente a do seu próprio corpo– agora, porém, frágil e hesitante – e as doenças que foram se suce<strong>de</strong>ndoaté que a última o conduzisse ao inexorável ponto final <strong>de</strong> sua existência.Como acreditava que nada havia além da morte, passou a vida inteiratentando driblá-la, fugir <strong>de</strong>la, embora o tempo todo pressentisse a sua insidiosapresença. Com o tempo, a <strong>de</strong>cadência física e as inúmeras doenças e internaçõestornaram sua presença uma realida<strong>de</strong> anunciada incontornável. Invejava a saú<strong>de</strong>do seu irmão mais velho, chegando a odiá-lo por isso, pois, ao vê-lo, saudável eforte, via a si mesmo como um corpo <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte. Passou a ter vergonha do serem que se transformara: “dava-se conta, humilhado, <strong>de</strong> que não era apenas noplano físico que se havia reduzido à condição <strong>de</strong> alguém que não <strong>de</strong>sejava ser”(Roth, 2007, p. 105). “Havia se tornado algo que jamais sonhara ser” (Ibid., p.117). Percebia, <strong>de</strong> forma contun<strong>de</strong>nte, que havia construído para si seu <strong>de</strong>stinosolitário e que já não havia mais como refazê-lo.Deprimido, não conseguia nem mais pintar. Certa vez, falando com a filhaúnica pessoa com quem mantinha contato no final <strong>de</strong> sua vida – disse ter sofridouma “vasectomia estética irreversível”.Sentia-se meio morto em vida, como se permanentemente esperassepela morte, ao mesmo tempo em que lutava contra ela. Mesmo nos momentosfelizes que havia tido ao longo da vida, por exemplo, ao estar na praia – que eraum dos seus lugares preferidos – ao lado da mulher a quem amava, ainda assim,uma angústia insistente o acompanhava.Vejamos a seguinte passagem:Os únicos momentos <strong>de</strong>sconfortáveis eram, à noite, quando caminhavamjuntos ao longo da praia. O mar escuro a rugir imponentee o céu a esbanjar estrelas lhe dizia <strong>de</strong> modo inequívoco queele estava fadado a morrer, e o trovão do mar a poucos metros <strong>de</strong>distância – e o pesa<strong>de</strong>lo daquele negrume mais negro sob o frene-31


Rosane Monteiro RamalhoE continua:si das águas – lhe davam vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> sair correndo daquela ameaça<strong>de</strong> aniquilamento para a casinha <strong>de</strong> praia acolhedora, iluminadae quase sem móveis (Roth, 2007, p.28).Não conseguia enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vinha aquele medo, e precisava<strong>de</strong> todas as suas forças para ocultá-lo <strong>de</strong> Phoebe 4 . Por que estariainseguro sobre sua vida, justamente agora que a dominavamais que em qualquer outro momento dos últimos anos? Por quese imaginava próximo da extinção quando um raciocínio tranquiloe objetivo lhe dizia que ainda tinha muita vida sólida pela frente?(Roth, 2007, p. 28).A angústia diante da morte tingia seu cotidiano e se manifestava <strong>de</strong> variadasmaneiras. Uma <strong>de</strong>las era a excessiva preocupação com o corpo, que seintensificou quando começou a envelhecer e as doenças passaram a se tornarmais presentes. O sucesso profissional alcançado fôra com certeza importantepara ele, por outorgar-lhe valor, não só aos seus olhos, mas também aos olhosdos outros. Apesar disso, o sentimento mais forte era <strong>de</strong> que sua potência paraa vida tinha relação muito mais direta com a vitalida<strong>de</strong> do corpo, com a tonicida<strong>de</strong>dos músculos. A imagem que tinha <strong>de</strong> si consistia na imagem que tinha <strong>de</strong> seucorpo. Desse modo, quando passou a ver o corpo em <strong>de</strong>cadência, também aimagem <strong>de</strong> si tornou-se a <strong>de</strong> um ser <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte.O homem comum sentia não ter com o que contar, algo que lhe <strong>de</strong>ssesustentação, para além da precária ancoragem na imagem <strong>de</strong> um corpo saudávele forte. Não é <strong>de</strong> espantar, uma vez que a falta ou precarieda<strong>de</strong> dos referenciaissimbólicos, da função paterna em nossa cultura – no caso a oci<strong>de</strong>ntal – faz comque os sujeitos tomem as imagens oferecidas pelo social como balizas paradizer <strong>de</strong> si, utilizando a imagem do corpo como um referente privilegiado parasua construção i<strong>de</strong>ntitária. Percebemos, ainda, que o que acaba fazendo limiteao sujeito, na falta <strong>de</strong> uma interdição simbólica, é justamente o real do corpo, ouseja, a doença, o envelhecimento e a morte.Po<strong>de</strong>mos dizer que a angústia e suas expressões: a sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>samparo,<strong>de</strong> vazio, a constante suposição <strong>de</strong> uma ameaça velada <strong>de</strong> aniquila-4Sua mulher na época.32


Angústias contemporâneasmento, o vago sentimento <strong>de</strong> se achar próximo da extinção, que encontramosno homem comum <strong>de</strong> Roth, fazem parte do leque <strong>de</strong> afetos que rondam a experiênciados humanos. A inevitável dor <strong>de</strong> existir faz parte da condição humana eé também o que move o sujeito. A angústia, porém, se apresenta em modalida<strong>de</strong>se intensida<strong>de</strong>s diversas, variando não só na singularida<strong>de</strong> da existência <strong>de</strong>cada sujeito, como também nos contextos sócio-históricos nos quais as coletivida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sujeitos constroem suas formas <strong>de</strong> vida. Nos dias atuais, a angústiaemerge em variadas formas, seguindo roteiros <strong>de</strong> configuração e expressão dosofrimento predominantes em nossa cultura. Transtorno do pânico, <strong>de</strong>pressão,adições em geral (<strong>de</strong> álcool, <strong>de</strong> drogas, <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> consumo, obesida<strong>de</strong> ououtros transtornos alimentares, tais como, anorexia, bulimia), são algumas dasformas com que a angústia se apresenta hoje.Além disso, há, como já é conhecido, o significativo aumento dos casoslimítrofes, também chamados estados-limite (segundo a nomenclatura francesa)ou bor<strong>de</strong>rline (conforme a nosografia americana) – casos que não consistemem quadros <strong>de</strong> neurose propriamente dita, tampouco <strong>de</strong> psicose, mas que apresentamem comum a problemática acerca dos limites, das bordas, enfim, dadiferença entre o eu e o outro.Freud já dizia que, em matéria <strong>de</strong> experiência humana, os escritores epoetas dizem melhor e mais cedo o que os psicanalistas se esforçam por tentarenten<strong>de</strong>r a seu modo. A <strong>de</strong>scrição que Roth faz das vicissitu<strong>de</strong>s da vida dohomem comum vale como uma chave para compreen<strong>de</strong>r algumas das característicasessenciais do modo <strong>de</strong> sofrer a que estão expostos os sujeitos atuais,membros <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> que, em nome da liberda<strong>de</strong>, livrou-se das amarrassimbólicas e que, em nome da autonomia e da autocriação, <strong>de</strong>sfez os laços,referências e horizontes que balizavam sentidos transcen<strong>de</strong>ntes em relação àsexistências.Num curioso efeito colateral, a socieda<strong>de</strong> que mais liberou os indivíduosdas proscrições do passado acabou por esvaziar também as prescrições emrelação ao futuro, tornando a experiência <strong>de</strong> existir um penoso <strong>de</strong>safio paramuitos. Donos do seu <strong>de</strong>stino ou entregues à própria sorte? Livres para escolherou sem bússola com que se orientar? Autônomos em relação aos outros ou<strong>de</strong>sgarrados? Nem sempre é fácil se situar nessa gangorra, e o preço a serpago pela oscilação é, frequentemente, o da angústia, seja na sua forma aguda,seja na sua forma mais difusa. É nessa inconsistência, nesse vazio <strong>de</strong> referenciais,que resi<strong>de</strong> a fonte <strong>de</strong> boa parte da angústia inominada, insistente e difusa queacometia o homem comum. É ela também que se revela por trás da dinâmicapsíquica <strong>de</strong> muitos que compõem o panorama – recorrente na clínica atual – dossujeitos à <strong>de</strong>riva, em busca <strong>de</strong> si mesmos e <strong>de</strong> um lugar para si no mundo.33


Rosane Monteiro RamalhoCerta vez, procurou-me para análise um rapaz que não conseguia viver asua vida. Sentia-se, em suas palavras, “morto em vida”. Havia concluído a faculda<strong>de</strong>a muito custo, mas não conseguia trabalhar. Seu mundo social era muitoestreito, limitando-se às idas à aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> ginástica três vezes por semana.Essa era praticamente a sua única ocupação. Tinha uma forte preocupaçãocom sua imagem, com as bordas do seu corpo – expressão <strong>de</strong> sua extremafragilida<strong>de</strong> psíquica. Mantinha uma vida reclusa, vivida entre as pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seujk (o chamado quitenete), on<strong>de</strong> escutava música, lia, ficava no computador.Costumava masturbar-se – o que passou a ser uma preocupação para ele, poisa julgava uma prática excessiva –, assim como comer compulsivamente. Nãoconseguia ter limite em relação a esses atos, através dos quais tentava <strong>de</strong>sesperadamentepreencher seu vazio psíquico. Também achava preocupante o usocontumaz que fazia <strong>de</strong> álcool e <strong>de</strong> maconha, como certa anestesia para suaangústia. Quando esta se intensificava, tornando-se insuportável, sentia queseu corpo se dissolvia, perdia seu contorno, suas bordas, ocasiões em queficava um longo período olhando-se no espelho, na tentativa <strong>de</strong>sesperada <strong>de</strong>sustentar uma imagem <strong>de</strong> si que lhe parecia se <strong>de</strong>sintegrar. Sentia um <strong>de</strong>samparo,uma insuficiência, um vazio e uma solidão enormes, encontrando-se semcondições <strong>de</strong> entrar na vida e, por isso, permanecia à margem <strong>de</strong>la, não encontrandolugar para si no mundo. Sua vida não tinha sentido algum para ele. Arelação com a família era bem difícil e mantinha sistemática distância em relaçãoa ela. Tinha uma irmã com graves problemas físicos congênitos e comcomplexas repercussões psíquicas – que ocupava praticamente toda a atenção<strong>de</strong> seus pais. Estes <strong>de</strong>positavam mensalmente uma quantia para o filho e eranisso que basicamente consistia o contato entre eles. Não encontrava um lugarpara si no <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> seus pais. Mantinha, porém, relação bem estreita com umaamiga, por meio <strong>de</strong> quem estabelecia seu frágil contato com o mundo, alguémque tinha em relação a ele uma posição eminentemente materna – algo que elenão encontrava na sua própria mãe. Era com essa amiga, por exemplo, quefrequentava a aca<strong>de</strong>mia.Assim como ocorria com a experiência <strong>de</strong> si, sempre precária e vacilanteao sentir seu corpo sem bordas – também a fronteira entre ele e o outro erabastante tênue, e, por isso, facilmente, em suas poucas relações pessoais,alternavam-se os sentimentos <strong>de</strong> invasão e o <strong>de</strong> abandono – ocasiões em quese tornava muito agressivo. Essa agressivida<strong>de</strong>, porém, consistia numa reaçãofrente à agressivida<strong>de</strong> experienciada como vinda do outro, sob a forma <strong>de</strong> invasãoou <strong>de</strong> abandono. Ele seguidamente incomodava-se com os barulhos dosvizinhos, barulhos que consi<strong>de</strong>rava como dirigidos propositalmente a ele, <strong>de</strong>forma a atormentá-lo. A força <strong>de</strong> sua convicção parecia fazer <strong>de</strong>la um <strong>de</strong>lírio.34


Angústias contemporâneasPorém, não se tratava <strong>de</strong> uma formação <strong>de</strong>lirante porque ele, às vezes, chegavaa duvidar <strong>de</strong> que fosse mesmo um ato intencional por parte do vizinho. Os ruídosvindos da pare<strong>de</strong> ao lado o atormentavam principalmente por evocarem a vidasocial da qual ele se sentia excluído. Nessas ocasiões, ele fazia um barulhoainda maior, <strong>de</strong> forma a revidar a agressão sofrida, batendo com a vassoura nochão ou na pare<strong>de</strong> divisória ao apartamento do vizinho, ou colocando uma música(um rock estri<strong>de</strong>nte) em volume ensur<strong>de</strong>cedor. Também nesse sentido, naanálise, muitas vezes ele era tomado pela fúria justamente nos momentos emque se sentia abandonado ou invadido, restando espaço muito reduzido paratransitarmos entre esse tudo ou nada. As bordas, os contornos entre ele e ooutro eram frágeis, pouco <strong>de</strong>finidos. Por isso, o estabelecimento <strong>de</strong> algum limitepor mais que fosse ansiado por ele – era, também, por <strong>de</strong>mais agressivo, quandonão impossível, por muitas vezes implicar a sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição psíquica.Como se, per<strong>de</strong>ndo o outro (esse outro sendo vivido como literalmente umaparte <strong>de</strong>le), ele não mais pu<strong>de</strong>sse existir. De modo semelhante, ao se sentirinvadido, sentia-se implodindo psiquicamente. Sua resposta a isso era aagressivida<strong>de</strong>, ora voltada a si mesmo, ora ao outro, algumas vezes, passandoao ato, colocando, inclusive, a vida em risco.Acredito que essa seja uma das situações mais difíceis com as quaistenho lidado na clínica, pois se trata <strong>de</strong> uma clínica <strong>de</strong> riscos. Nesses casos,muitas vezes, diante do excesso <strong>de</strong> real, há o risco <strong>de</strong> a angústia do analistatransformar-se em impotência, diante da dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> lidar nesse limite, nessefio da navalha, em que um <strong>de</strong>slize po<strong>de</strong> ser fatal. Mais do que o levantamento dorecalque para uma abertura significante, uma vez que justamente se trata dafalta da falta – da falta simbólica, ou seja, da castração 5 –, nesses casos, aclínica implica justamente o estabelecimento <strong>de</strong> um limite, <strong>de</strong> uma borda, enfim,<strong>de</strong> uma alterida<strong>de</strong>. Trata-se <strong>de</strong> um trabalho cuidadoso e <strong>de</strong>licado <strong>de</strong> construção<strong>de</strong>ssa possibilida<strong>de</strong>, visto o limite ser vivido por esses sujeitos comoimpossível. E como o <strong>de</strong>ntro e o fora se dão simultaneamente, num processodialético, ou seja, o <strong>de</strong>ntro pressupõe um fora – e vice-versa –, a construção <strong>de</strong>um limite, <strong>de</strong> uma borda, <strong>de</strong> um litoral, implica também a construção <strong>de</strong> umai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para si, ou seja, <strong>de</strong> certa consistência subjetiva. E isso só seráalcançado na medida em que o sujeito possa construir uma narrativa para o que,até então, era experienciado como pura angústia – sem palavras, portanto: na me-5Lacan, no Seminário 4, fala <strong>de</strong> três faltas: falta simbólica (ou castração), falta imaginária (oufrustração) e falta real (ou privação). E, também, no Seminário 10, ele formula a i<strong>de</strong>ia daangústia como sinal da falta da falta simbólica.35


Rosane Monteiro Ramalhodida em que possa dar um contorno a esse real, ou, em outras palavras, nominaresse indizível, transformando essa vivência numa narrativa compartilhada.O fato <strong>de</strong> o paciente colocar em palavras o que até então era vivido comopura angústia consiste na tentativa <strong>de</strong> dar inscrição simbólica ao real, <strong>de</strong> darforma ao vazio. Porém, não se trata <strong>de</strong> preencher esse vazio, mas <strong>de</strong> dar-lheuma borda, um contorno. Como no ato <strong>de</strong> falar há en<strong>de</strong>reçamento a um outro, oanalista, então, ao escutar, passa a ocupar o lugar <strong>de</strong>sse outro a que as palavrassão en<strong>de</strong>reçadas, ao mesmo tempo em que passa a exercer a função <strong>de</strong> testemunhoda narrativa que ali se produz. O reconhecimento, pelo analista, daquiloque é falado pelo paciente (<strong>de</strong>ssa sua experiência narrativa) outorga também àqueleque fala o reconhecimento enquanto sujeito – na medida em que supõe que aliexista um –, possibilitando-lhe, assim, ace<strong>de</strong>r à posição <strong>de</strong> sujeito.O trabalho clínico, nesses casos, requer que o analista se mantenhanem excessivamente longe, nem excessivamente perto do seu paciente, masque consiga sustentar a presença fundamental que possibilite instaurar umaausência, constituindo, então, a possibilida<strong>de</strong> da presença <strong>de</strong> uma ausência,ou seja, <strong>de</strong> uma via simbólica. A partir <strong>de</strong> relação transferencial intensa, quasefusional, sem diferença entre ele e o outro, o analista tenta instaurar um intervalo,tal qual o fort-da freudiano – o que muitas vezes é extremamente complicado,porém essencial, para que seja possível a construção <strong>de</strong> uma narrativa doque, até então, era só vivido <strong>de</strong> forma emu<strong>de</strong>cida ou atuada.Po<strong>de</strong>mos dizer que a angústia que atormentava o meu paciente era semelhanteà do homem comum: expressa no <strong>de</strong>samparo, na solidão, no vazio, na falta<strong>de</strong> sentido na vida – porém numa intensida<strong>de</strong> significativamente maior, potencializada,transbordante, ameaçando inclusive sua frágil consistência psíquica.Para concluir, volto novamente à literatura, <strong>de</strong>sta vez a Fernando Pessoa,mais exatamente ao seu heterônimo, Álvaro <strong>de</strong> Campos, que conseguiu colocarem palavras, <strong>de</strong> forma muito bonita e tocante, o indizível da angústia. É a poesiachamada: Bicarbonato <strong>de</strong> soda.Súbita, uma angústia...Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!Que amigos que tenho tido!Que vazias <strong>de</strong> tudo as cida<strong>de</strong>s que tenho percorrido!Que esterco metafísico os meus propósitos todos!Uma angústia,Uma <strong>de</strong>sconsolação da epi<strong>de</strong>rme da alma,Um <strong>de</strong>ixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...Renego.<strong>36</strong>


Angústias contemporâneasRenego tudo.Renego mais do que tudo.Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação <strong>de</strong>les.Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e nacirculação do sangue?Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?Não: vou existir. Arre! Vou existir.E-xis-tir...E—xis—tir ...Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!Renunciar <strong>de</strong> portas todas abertas,Perante a paisagem todas as paisagens,Sem esperança, em liberda<strong>de</strong>,Sem nexo,Aci<strong>de</strong>nte da inconsequência da superfície das coisas,Monótono mas dorminhoco,E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!Que verão agradável dos outros!Deem-me <strong>de</strong> beber, que não tenho se<strong>de</strong>! (Pessoa, 1980, p. 264-265).Essa é a angústia, a dor que afligia o homem <strong>de</strong> Roth e que aflige oshomens sem contorno, que seguidamente encontramos na clínica. Po<strong>de</strong>mosver também o quanto é comum essa angústia nos sujeitos, hoje, os quais, emsuas solidões, sentem não po<strong>de</strong>r contar com mais ninguém, além <strong>de</strong> simesmos...uma angústia que, mais do que em relação à morte física, diz respeitoà terrível experiência <strong>de</strong> morte psíquica, <strong>de</strong> morte subjetiva, <strong>de</strong> morte do<strong>de</strong>sejo. O nosso <strong>de</strong>safio na clínica, hoje, consiste, então, em como, diante<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> ancoragens, fazer emergir sujeitos <strong>de</strong>sejantes.REFERÊNCIASLACAN, Jacques. O seminário, livro 4: as relações <strong>de</strong> objeto [1956-1957]. Rio <strong>de</strong>Janeiro: J. Zahar Ed., 1995.______. O seminário, livro 10: a angústia [1962-1963]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: J. Zahar Ed., 2005.PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1980.ROTH, Philip. Homem comum. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.TOLSTOI, Leão. A morte <strong>de</strong> Ivan Ilitch. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Lacerda, 1997.Recebido em 20/03/09Aceito em 17/04/09Revisado por Ieda Prates da Silva e Larissa Scherer37


Rev. Assoc. Psicanal. <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, n. <strong>36</strong>, p. 38-59, jan./jun. 2009TEXTOSDO RESTO AO LIXO:a Corrosão do Desejo na Erada Reprodutibilida<strong>de</strong> Técnica 1Jaime Betts 2Resumo: O autor aborda, neste artigo, as consequências subjetivas e sociaisdo discurso da ciência e da tecnologia, assim como dos <strong>de</strong>sdobramentos daética protestante do trabalho no novo capitalismo, examinando como elas sãopercebidas inconscientemente pelo artista e pelo escritor, transmitidas no processocriativo e inscritas na obra, bem como as incidências subjetivas <strong>de</strong>ssasconsequências po<strong>de</strong>m ser lidas no caso clínico do “Homem dos lobos” <strong>de</strong> Freud.Palavras-chaves: incidência subjetiva, discurso da ciência e da tecnologia,criação artística, ética protestante do trabalho, novo capitalismo.FROM THE RESIDUE TO TRASH: THE CORROSION OF DESIRE IN THEERA OF TECHNICAL REPRODUCIBILITYAbstract: In the present article the author approaches the subjective and socialconsequences of the discourse of science and technology and unfolding ofprotestant ethic of work in the new capitalism, examining how theseconsequences are perceived unconsciously by the artist and writer, how theyare transmitted by the creative process and inscribed in the work, and alsoexamining the subjective inci<strong>de</strong>nce of these consequences as can be read in theFreudian case of the Wolf Man.Keywords: subjective inci<strong>de</strong>nces, science ant technology discourse, artisticcreation, protestant ethics of work, new capitalism.381Trabalho apresentado no Congresso da <strong>APPOA</strong>: Angústia, realizado em <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>, emnovembro <strong>de</strong> 2008.2Psicanalista; Membro da <strong>APPOA</strong>; Co-autor dos livros Sob o véu transparente – recortes doprocesso criativo, com Claudia Stern. <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>: Território das Artes, 2005; e (Re)Velaçõesdo olhar – recortes do processo criativo, com Liana Timm. <strong>Porto</strong> <strong>Alegre</strong>: Território das Artes,2005.


Do resto ao lixo...Toda arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Os que vãoabaixo da superfície o fazem por sua própria conta e risco.Oscar Wil<strong>de</strong>. O retrato <strong>de</strong> Dorian Gray.A ética do trabalho é a arena em que mais se contesta hoje aprofundida<strong>de</strong> da experiência. R. Sennett. A corrosão do caráter.Vou revelar-te o que é o medo num punhado <strong>de</strong> pó 3 .T. S. Eliot. Waste land.Depois <strong>de</strong> tudo, estarei sentada aqui, servindo chá aos amigos 4 .T. S. Eliot. Portrait of a lady.IntroduçãoO título <strong>de</strong>ste trabalho se inspira livremente em três autores. Do resto aolixo, parte <strong>de</strong> Lacan ([1962-1963] 2005), em seu seminário da angústia. A corrosãodo <strong>de</strong>sejo se inspira em Sennett (1999), que aborda a corrosão do carátercomo consequência pessoal do trabalho no novo capitalismo. E a era dareprodutibilida<strong>de</strong> técnica vem do ensaio homônimo <strong>de</strong> Benjamin (1994) sobre aarte.Três perguntas norteiam este escrito. Quais são as consequências subjetivase sociais do discurso da ciência e da tecnologia, assim como dos <strong>de</strong>sdobramentosda ética protestante do trabalho no novo capitalismo? Como essasconsequências são percebidas inconscientemente pelo artista, pelo escritor, etransmitidas no processo criativo e em maior ou menor medida inscritas naobra? Po<strong>de</strong>mos ler as incidências subjetivas <strong>de</strong>ssas consequências no casoclínico do Homem dos lobos <strong>de</strong> Freud ([1918] 1996)?Consequências subjetivas e sociais dos <strong>de</strong>sdobramentos da éticaprotestante do trabalho no novo capitalismoOs trabalhadores, até meados do século passado, trabalhavam duro eesperavam que a satisfação adiada ao longo da vida útil <strong>de</strong> trabalhador fosserecompensada por ocasião <strong>de</strong> sua aposentadoria. Doce ilusão. Nem a aposentadoriaé o paraíso, nem a renda é suficiente para levar a vida com o mesmopadrão que antes. No entanto, em que discurso civilizatório se sustentava essaforma <strong>de</strong> renúncia pulsional?3“I will show you fear in a handful of dust”.4“After all, I shall sit here serving tea to friends”.39


Jaime Betts“A ética do trabalho, como a enten<strong>de</strong>mos comumente, afirma o usoautodisciplinado <strong>de</strong> nosso tempo e o valor da satisfação adiada” (Sennett, 1999,p.117). Trata-se da antiga ética do trabalho, a do ascetismo leigo, que, paraWeber, <strong>de</strong>corre da ética da ascese protestante, que ”faz do trabalho diário emetódico um <strong>de</strong>ver religioso, a melhor forma <strong>de</strong> cumprir, no ‘meio do mundo’, avonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus” (Weber, 2005, p. 280). O ascetismo cristão promete uma vidaplena no céu, após a existência <strong>de</strong> sacrifícios, <strong>de</strong> sofrimentos e renúncias àssatisfações pulsionais aqui na terra, em nome da <strong>de</strong>voção aos <strong>de</strong>sígnios divinosatravés da vida <strong>de</strong>dicada ao trabalho.A satisfação adiada, entretanto, como um mérito <strong>de</strong> caráter do trabalhador,per<strong>de</strong> seu valor e sustentação quando as instituições em que isso se baseavapassam a mudar rapidamente.Segundo Sennett (1999), essa espera ilusória era sustentável por estarapoiada em narrativas que encontravam seu lastro em instituições suficientementeestáveis para que a prática do adiamento da satisfação fosse exequívelcomo um valor <strong>de</strong> caráter. As instituições mo<strong>de</strong>rnas tinham a perspectiva <strong>de</strong>longevida<strong>de</strong> temporal que se tornou líquida e, juntamente com suas promessas<strong>de</strong> satisfação no final, escorreram pelo ralo, como águas usadas, <strong>de</strong>scartadascomo lixo.A renúncia à imediata satisfação das moções pulsionais per<strong>de</strong> completamenteo sentido diante <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> em que as instituições mudam <strong>de</strong> umahora para a outra e, na empresa para a qual as pessoas <strong>de</strong>dicaram longos anos<strong>de</strong> suas vidas, “o patrão só pensa em ven<strong>de</strong>r e subir” (Sennett, 1999, p. 118). Asaquisições, as fusões ou divisões empresariais e as mudanças no controleacionário estão na or<strong>de</strong>m do dia do novo capitalismo.Até meados do século XX, o trabalhador tinha como valor e meta <strong>de</strong>dicarsua vida útil a uma mesma organização, sendo que a carteira <strong>de</strong> trabalho comregistro <strong>de</strong> muitos empregos em diferentes empresas era vista como algo negativo,sugerindo que seu portador seria mau funcionário. O ganho <strong>de</strong>ssa vida<strong>de</strong>dicada à mesma organização era <strong>de</strong> uma estabilida<strong>de</strong> nas relações <strong>de</strong>ntro efora do trabalho, pois a confiança recíproca entre colegas <strong>de</strong> trabalho tinha tempopara se <strong>de</strong>senvolver e ser aprofundada por se trabalhar sempre na mesmaempresa. Também assim se passava como com os vizinhos, pois não era precisoficar mudando <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> a cada três ou quatro anos. Hoje, um coach recomendaaos seus clientes que <strong>de</strong>senvolvam uma carreira em ziguezague, <strong>de</strong>empresa em empresa, para obterem sucesso em sua escalada profissional.Isso tem um custo. Quem já passou pela experiência <strong>de</strong> ser transferido <strong>de</strong>cida<strong>de</strong> em cida<strong>de</strong>, com cônjuge e filhos, sabe dimensionar o preço pago pelosucesso, ou apenas pela manutenção do emprego.40


Do resto ao lixo...Na cartilha do neoliberalismo <strong>de</strong> Milton Friedman (1984) – Estado mínimo,<strong>de</strong>sregulamentação e flexibilida<strong>de</strong> – o novo capitalismo é chamado <strong>de</strong> ‘capitalismoflexível’. Trata-se <strong>de</strong> uma variação sobre o mesmo tema – o sistemacapitalista – só que hoje as relações <strong>de</strong> produção exigem flexibilida<strong>de</strong> máxima.A burocracia empresarial é <strong>de</strong>smantelada juntamente com as tradições, os laçossociais e os <strong>de</strong> trabalho mais estáveis, e <strong>de</strong>manda-se dos “colaboradores”agilida<strong>de</strong>, receptivida<strong>de</strong> às mudanças em curto prazo, assunção <strong>de</strong> riscos otempo todo, e que <strong>de</strong>pendam cada vez menos <strong>de</strong> regulamentação por leis eprocedimentos formais.Segundo Sennett (1999, p. 118):A mo<strong>de</strong>rna ética do trabalho concentra-se no trabalho <strong>de</strong> equipe.Celebra a sensibilida<strong>de</strong> aos outros; exige “aptidões <strong>de</strong>licadas”,como ser bom ouvinte e cooperativo; acima <strong>de</strong> tudo, o trabalho emequipe enfatiza a adaptabilida<strong>de</strong> às circunstâncias. O trabalho <strong>de</strong>equipe é a ética do trabalho que serve a uma economia políticaflexível. Apesar <strong>de</strong> todo o arquejar psicológico da administraçãomo<strong>de</strong>rna sobre o trabalho <strong>de</strong> equipe no escritório e na fábrica, é oetos <strong>de</strong> trabalho que permanece na superfície da experiência. Otrabalho <strong>de</strong> equipe é a prática <strong>de</strong> grupo da superficialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>gradante(O grifo é nosso).Na mo<strong>de</strong>rna ética do trabalho, a exigência <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação full time exclusivaao trabalho continua a mesma, mas a velocida<strong>de</strong> crescente das mudançasdos meios <strong>de</strong> produção em função dos progressos tecnológicos e científicosleva à liquefação das relações <strong>de</strong> produção. As equipes <strong>de</strong> trabalho são pontuais,são líquidas, voláteis, virtuais e se dissolvem tão rapidamente quanto surgiram,sem <strong>de</strong>ixar sauda<strong>de</strong>s, pois o laço é superficial e objetivo <strong>de</strong>mais paratanto. Tomo o termo “líquido” emprestado da obra <strong>de</strong> Z. Baumman (2001), quefala da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> líquida, do amor líquido, etc.Uma vez que as equipes <strong>de</strong> trabalho se organizam por projetos, metas aserem atingidas e tarefas a realizar, assim que o projeto termina, frequentementeas equipes se volatilizam, passando diretamente do estado sólido <strong>de</strong> convíviona tarefa para o estado gasoso <strong>de</strong> não mais se verem nem se falarem, pois seusintegrantes são enviados para novos projetos, equipes, cida<strong>de</strong>s ou países.Trata-se da dança dos empregos, ameaça do <strong>de</strong>semprego e falta <strong>de</strong> trabalho.Assim como no jogo infantil da dança das ca<strong>de</strong>iras, a apreensão <strong>de</strong> ficarsem lugar é crescente no novo capitalismo, conforme o número <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras vaidiminuindo.41


Jaime BettsSegundo Sennett (1999, p. 115), “a apreensão é uma ansieda<strong>de</strong> (angústia)sobre o que po<strong>de</strong> acontecer; é criada num clima que enfatiza o risco constante,e aumenta quando as experiências passadas parecem não servir <strong>de</strong> guiapara o presente”. O autor consi<strong>de</strong>ra que a apreensão, com o tempo, está gravadaprofundamente em nós, pois a passagem dos anos parece nos esvaziar,<strong>de</strong>squalificando nossas experiências passadas, consi<strong>de</strong>radas obsoletas na novaeconomia, o que coloca em xeque nosso senso <strong>de</strong> valor pessoal.Freud ([1907] 1996), em seu artigo Atos obsessivos e práticas religiosas,fala que as moções pulsionais recalcadas são vividas como uma tentação, eque o processo <strong>de</strong> recalcamento é apenas parcialmente bem sucedido, gerandopor isso angústia. A angústia vivida em função da ameaça <strong>de</strong> retorno do recalcadoganha controle sobre o futuro na forma <strong>de</strong> uma expectativa ansiosa, ou seja, <strong>de</strong>uma apreensão em relação ao que aguarda o sujeito no futuro.Sem o reforço da sensação <strong>de</strong> segurança <strong>de</strong>positada na crença (religiosaética protestante) <strong>de</strong> instituições estáveis que apoiavam e justificavam o adiamentodas moções pulsionais em nome do trabalho no presente e recompensa no futuro,o sujeito contemporâneo se vê mais exposto à angústia, mais à <strong>de</strong>riva, sem sustentaçãosimbólica diante <strong>de</strong> um imperativo <strong>de</strong> gozo imediato, seja pela via do consumodos objetos, seja nas relações (<strong>de</strong> consumo <strong>de</strong>scartável) com os outros.Conforme diz Sennett acima, continua sendo o etos do trabalho que permanecena superfície da experiência, e a experiência <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> equipe hojeé a prática <strong>de</strong> grupo da superficialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>gradante. A moral parece ser a seguinte:como não sabemos se iremos nos ver amanhã (e nem queremos mesmo...)vamos aproveitar e satisfazer (superficialmente, é óbvio) todos os impulsosque sejam possíveis. A renuncia pulsional apregoada na ascese leiga daantiga ética do trabalho <strong>de</strong>u lugar à impulsivida<strong>de</strong> compulsiva da satisfação imediatae total, ou seu dinheiro <strong>de</strong> volta! (bela mentira, não é mesmo?). Em outraspalavras, tudo se flexibiliza, a ponto <strong>de</strong> usarmos as pessoas e nos relacionarmoscom os objetos em busca da satisfação imediata.Nos termos <strong>de</strong> Sennett, trata-se <strong>de</strong> uma corrosão do caráter, que é atacadapelo novo capitalismo flexível. Para o autor, subscrevendo a tradição, caráter é:[...] o valor ético que atribuímos aos nossos próprios <strong>de</strong>sejos e àsnossas relações com os outros. Horácio escreve que o caráter <strong>de</strong>alguém <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas ligações com o mundo. Neste sentido,“caráter” é um termo mais abrangente que seu rebento mo<strong>de</strong>rno“personalida<strong>de</strong>”, pois este se refere a <strong>de</strong>sejos e sentimentos quepo<strong>de</strong>m apostemar (apodrecer, supurar, infectar) por <strong>de</strong>ntro, semque ninguém veja. [....] Caráter são os traços pessoais a que42


Do resto ao lixo...damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que osoutros nos valorizem (Sennett, 1999, p.10).Traços <strong>de</strong> caráter po<strong>de</strong>m ser entendidos aqui em dois sentidos. Primeiro,como traços <strong>de</strong> caráter no sentido freudiano, como, por exemplo, no texto Carátere erotismo anal (Freud, [1908] 1996), em que traços configuram os i<strong>de</strong>ais doeu do sujeito. Como dar valor a traços pelos quais cada um se sente reconhecidopelos outros se estes outros mudam a toda hora? A pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> volatilizaesses traços pessoais e os valores que representam, e elimina progressivamenteas testemunhas oculares e auriculares <strong>de</strong> nossas histórias, em função daflexibilida<strong>de</strong> exigida <strong>de</strong> mudança a curto prazo da cida<strong>de</strong>, da língua e do país.Os amigos <strong>de</strong> anos ficam distantes e frequentemente se per<strong>de</strong>m no tempo. Osi<strong>de</strong>ais do eu ficam <strong>de</strong>sencontrados com os i<strong>de</strong>ais da cultura e ocorre uma expansãodo imaginário narcísico em socorro à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> ameaçada <strong>de</strong>estilhaçamento.Em segundo lugar, a corrosão dos traços do caráter po<strong>de</strong> ser entendidacomo o processo <strong>de</strong> forclusão dos significantes que representam o sujeito diante<strong>de</strong> outros significantes em <strong>de</strong>corrência do discurso da tecnociência, comoveremos adiante. A forclusão <strong>de</strong>sses significantes leva à corrosão do <strong>de</strong>sejo, àmortificação do sujeito, que fica alienado na <strong>de</strong>manda do gran<strong>de</strong> Outro. SegundoRoudinesco (2000), vivemos a era da morte do sujeito, fazendo com que osintoma social dominante passe a ser da or<strong>de</strong>m das <strong>de</strong>pressões.A alienação na <strong>de</strong>manda do gran<strong>de</strong> Outro e a superficialida<strong>de</strong> da experiênciasubjetiva com os outros, seja no etos <strong>de</strong> trabalho, seja no etos familiar esocial, ten<strong>de</strong>m à <strong>de</strong>gradação da experiência humana.A Experiência na Era da Reprodutibilida<strong>de</strong> TécnicaO que enten<strong>de</strong>mos por experiência? Qual o valor ético do <strong>de</strong>sejo?Aqui nos referimos, <strong>de</strong> um lado, ao conceito <strong>de</strong> experiência conformeelaborado por Benjamim (1994), e, <strong>de</strong> outro, à experiência analítica da divisãosubjetiva.Segundo Benjamin, leitor <strong>de</strong> Freud, uma das tarefas fundamentais dohistoriador é construir narrativas que escovem a história a contrapelo (Ibid., p.225), <strong>de</strong>smistificando a ilusão do progresso tecnológico e científico como evoluçãodas forças produtivas e dominação crescente sobre as forças da natureza.Progresso, enfatiza ele, que redundou na barbárie da primeira e segunda gran<strong>de</strong>sGuerras Mundiais.Ele argumenta que, na era industrial, fomos sendo progressivamente transformadosem autômatos coisificados, que repetem mecanicamente gestos e43


Jaime Bettsmensagens que liquidam e <strong>de</strong>gradam as experiências do sujeito. Para ele, segundoGagnebin, “o historiador materialista conta a história i<strong>de</strong>ntificando no passadoos germes <strong>de</strong> uma outra história, capaz <strong>de</strong> levar em consi<strong>de</strong>ração ossofrimentos acumulados e <strong>de</strong> dar uma nova face às esperanças frustradas” (Benjamin,1994, p. 8). Por outro lado, para Benjamin, as vivências precisam sernarradas e enraizadas no ouvinte, para que possam se transformar em experiênciaspropriamente ditas, articulando “passado e presente, indivíduo e tradição,passado individual e coletivo” (Kramer, 2008, p.17).Sendo a “faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> intercambiar experiências”, a “arte <strong>de</strong> narrar estáem <strong>de</strong>clínio”, afirma Benjamin. Comenta, nesse sentido, que os veteranos daPrimeira Guerra voltavam dos campos <strong>de</strong> batalha “mais pobres em experiênciascomunicáveis” (Benjamin, 1994, p. 197-198). A vivência do horror da barbárieten<strong>de</strong> a ser inenarrável, impossível <strong>de</strong> ser falada para um ouvinte e humanizadanessa troca simbólica com o outro.Como a arte procura expressar, mesmo diante do impossível, as experiênciasinenarráveis do horror?Em seu artigo A obra <strong>de</strong> arte na era da reprodutibilida<strong>de</strong> técnica, Benjamin(1994) examina algumas teses sobre como o “progresso” da técnica dascondições produtivas influencia as tendências evolutivas da arte, levando emconta que as mudanças nas condições da produção consomem mais tempopara se refletirem nos diversos setores da cultura.Benjamin argumenta que, embora a obra <strong>de</strong> arte sempre fosse reprodutível, aera da reprodutibilida<strong>de</strong> técnica representa um processo novo, no qual “mesmo nareprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra <strong>de</strong> arte,sua existência única, no lugar em que ela se encontra. É nessa existência única, esomente nela, que se <strong>de</strong>sdobra a história da obra” (Ibid., p. 167). Para o autor, “oaqui e agora do original constitui sua autenticida<strong>de</strong>” e que “a esfera da autenticida<strong>de</strong>,como um todo, escapa à reprodutibilida<strong>de</strong> técnica” (Ibid., 1994, p. 166).A autenticida<strong>de</strong> do original é da or<strong>de</strong>m do ato <strong>de</strong> criação. Um ato é simbólico,é sempre único; sua enunciação é singular, mesmo que repercuta eproduza efeitos, um a um, numa coletivida<strong>de</strong>.No ato analítico, a interpretação é o retorno autêntico no aqui e agora datransferência, na boca do analista, dos significantes recalcados na fala doanalisante. Nos termos <strong>de</strong> Benjamin, po<strong>de</strong>mos dizer <strong>de</strong> que não há análise semaura, e que a aura encontra seu ponto <strong>de</strong> ancoragem na interpretação, na transferênciada instância da letra, que articula o singular ao universal. A aura, paraBenjamin, “é uma figura singular”, “a aparição única <strong>de</strong> uma coisa distante, pormais perto que ela esteja” (Ibid., p. 168).44


Do resto ao lixo...Muito embora a reprodutibilida<strong>de</strong> técnica permita aproximar o indivíduo,em massa, da obra, algo da sua autenticida<strong>de</strong> como testemunho histórico seper<strong>de</strong>. Como este <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da materialida<strong>de</strong> da obra, “quando ela se esquiva dohomem através da reprodução, também o testemunho se per<strong>de</strong>. [...] O que <strong>de</strong>saparececom ele é a autorida<strong>de</strong> da coisa, seu peso tradicional” (Ibid., p. 168).A função social da arte se transforma quando o critério <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong><strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> se aplicar à produção artística, abdicando da função <strong>de</strong> ritual e passandoa ter função política e, nesse sentido, passando do polo <strong>de</strong> um valor <strong>de</strong> cultoao <strong>de</strong> um valor <strong>de</strong> exponibilida<strong>de</strong>.O advento da fotografia marca a transição do valor <strong>de</strong> culto ao <strong>de</strong> exposição,sendo que a última trincheira do valor <strong>de</strong> culto se dá com a encomenda <strong>de</strong>retratos aos artistas, assim como “a aura acena pela última vez na expressãofugaz <strong>de</strong> um rosto nas antigas fotos.” (Ibid., p. 174).Benjamin ressalta que, conforme o valor <strong>de</strong> exposição vai superando o <strong>de</strong>culto, o homem se retira da fotografia. E comenta a obra fotográfica <strong>de</strong> Atget, que fazum registro histórico do início do século passado, em que documenta as ruas<strong>de</strong>sertas <strong>de</strong> Paris, bem como suas vitrines, charmosas, com manequins e suasetiquetas – cabi<strong>de</strong>s <strong>de</strong> forma humana com seu preço <strong>de</strong> mercadoria (Imagens 1 e 2 ).Ruas <strong>de</strong>sertas e vitrines charmosas. Bela combinação. As ruas <strong>de</strong>sertas,cida<strong>de</strong> sem vida, sujeitos sem representação para outros significantes. Vitrinescharmosas, ofuscando a corrosão do <strong>de</strong>sejo através da sedução publicitária e suasubstituição pela mercadoria como sonho <strong>de</strong> consumo. Consumidores passivos,pacatos cidadãos, alienados na <strong>de</strong>manda do gran<strong>de</strong> Outro do marketing.Vera Chaves Barcellos, em sua obra fotográfica Manequins <strong>de</strong> Dusseldorf(imagem 3), capta algo semelhante a Atget com suas lentes, porém, com umséculo a mais <strong>de</strong> efeitos do “progresso” tecnológico. Ela consegue – na mesmasequência, feita no dia em que as vitrines estavam sendo reprogramadas – mostraro charme e a sofisticação das roupas da última moda, bem como sua contra-face,ou seja, sua face <strong>de</strong> horrores, com manequins <strong>de</strong>spedaçados, contorcidos,empilhados e empalados: o luxo e a barbárie <strong>de</strong>snudados lado a lado.Uma fotografia tirada mais recentemente, por André Betts (imagem 4),mostra a absorção e a mercantilização <strong>de</strong> uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> revolta contra a indústria<strong>de</strong> celebrida<strong>de</strong>s, em que o manequim, sexualmente ambíguo, tem em suacamiseta a inscrição retired sex simbol (símbolo sexual aposentado).A condição humana requer sua aura <strong>de</strong> singularida<strong>de</strong> – singularida<strong>de</strong> edignida<strong>de</strong>. A aura, como condição humana, é mais ou menos retirada da arte, domodo <strong>de</strong> produção, das relações sociais, conforme o avanço da reprodutibilida<strong>de</strong>técnica a massifica através da introdução da universalização pelo discurso daciência.45


Jaime BettsO avanço da reprodutibilida<strong>de</strong> técnica ten<strong>de</strong> a dissolver os laços <strong>de</strong> pertençadas pessoas, corrói sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> narrar as próprias experiênciaspara um ouvinte testemunha <strong>de</strong> sua história, e coisifica o resto pulsante causa do<strong>de</strong>sejo, transformando-o em lixo <strong>de</strong>scartado pelo consumidor alienado à <strong>de</strong>mandado Outro da publicida<strong>de</strong> e do consumo. Ou, pior, na barbárie explícita, em quetransformamos o ser humano em bucha <strong>de</strong> canhão, dano colateral no embate dosinteresses por ganhos econômicos <strong>de</strong>senfreados e por po<strong>de</strong>r. O outro, sobretudoo estrangeiro, é objeto da barbárie humana em nome do progresso.A era da reprodutibilida<strong>de</strong> técnica produz o estilhaçamento da aura, queper<strong>de</strong> seu registro simbólico, responsável por assegurar ao sujeito sua singularida<strong>de</strong>,e se multiplicam ao infinito suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s imaginárias (como se observanas fotografias dos manequins), os fenômenos do duplo e o ódio ao estrangeiro.Consequências subjetivas e sociais do discurso da ciência e datecnologia transmitidas pelo escritorSe per<strong>de</strong>mos a aura, se eliminamos a aura com a reprodutibilida<strong>de</strong> técnica,excluímos ao mesmo tempo o estranho, no sentido freudiano do termo. Seexcluímos do simbólico o estranho familiar, ele retorna como duplo ameaçador,como intolerância <strong>de</strong>lirante ao estranho estrangeiro, com consequências mortíferas,como po<strong>de</strong>mos constatar no conto William Wilson, <strong>de</strong> Edgar Allan Poe (1981).Este autor é um dos expoentes literários do movimento gótico, assimcomo foram nas artes plásticas William Blake e Henri Fuselli, este último tendopintado, em 1781, o conhecido quadro intitulado O pesa<strong>de</strong>lo (imagem 5).No conto <strong>de</strong> Poe, o personagem e narrador William Wilson se vê progressivamenteconstrangido, <strong>de</strong>safiado, atormentado diante <strong>de</strong> seus colegas, perseguidoon<strong>de</strong> quer que vá, observado o tempo todo por seu duplo, <strong>de</strong> mesmo nomee data <strong>de</strong> nascimento, roupas sempre idênticas, etc. Há somente uma diferençaentre eles: “meu rival tinha no aparelho vocal uma fraqueza que o impedia <strong>de</strong>jamais erguer a voz acima <strong>de</strong> um sussurro muito baixo” (Poe, 1981, p. 92-3).Essa voz sussurrada é ouvida somente por Wilson, embora ele não se dêbem conta disso, nem da invisibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu duplo aos olhos dos <strong>de</strong>mais,estranhando em certos momentos a aparente indiferença <strong>de</strong> seus colegas diantedos comentários do duplo.Após Wilson ter sido <strong>de</strong>smascarado por seu duplo, pela última vez, diante<strong>de</strong> seus colegas <strong>de</strong> universida<strong>de</strong>, trapaceando num jogo <strong>de</strong> cartas, em quelevava à ruína seu adversário, ele é obrigado a fugir novamente. O clímax, ouquem sabe, anticlímax, do conto se dá em seguida, na cena final: William Wilsonencontra seu duplo num baile à fantasia, vestindo uma máscara, capa eespada idênticas às suas, e disputando a mesma dama. Wilson, encolerizado,46


Do resto ao lixo...grita com a voz rouca pelo fogo <strong>de</strong> sua ira: “Miserável! Impostor! Vilão maldito!Não seguirás a minha pista… não me atormentarás até a morte! Segue-me, ouapunhalo-te aí on<strong>de</strong> estás!” (Ibid., p. 106).Duelam num recinto fechado. Wilson domina seu duplo e mergulha suaespada várias vezes no seu peito. Volta-se para assegurar que a porta estivessetrancada.Que ser humano po<strong>de</strong>rá traduzir suficientemente o espanto, ohorror que se apo<strong>de</strong>raram <strong>de</strong> mim, ante o espetáculo que se apresentouaos meus olhos? O curto instante, durante o qual me <strong>de</strong>sviara,fora o suficiente para produzir, aparentemente, uma mudançamaterial nas disposições do outro extremo da sala. Um vastoespelho – em minha perturbação pareceu-me assim, a princípio –erguia-se no ponto on<strong>de</strong> antes nada vira; e, enquanto me dirigiatomado <strong>de</strong> horror, para esse espelho, minha própria imagem, mascom o rosto pálido e manchado <strong>de</strong> sangue, adiantou-se ao meuencontro, com um passo fraco e vacilante.Foi o que me pareceu, repito, mas não era. Era meu adversário,Wilson, que diante <strong>de</strong> mim se contorcia em agonia. Sua máscarae capa jaziam sobre o soalho, no ponto on<strong>de</strong> ele as lançara. Nãohavia um fio <strong>de</strong> sua roupa – sem uma linha em toda a sua figuratão característica e tão singular – que não fossem meus: era oabsoluto na i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>!Era Wilson, mas Wilson sem mais sussurrar agora as palavras,tanto que teria sido possível acreditar que eu próprio falava, quandodisse:– Venceste e eu me rendo. Mas, <strong>de</strong> agora em diante, tambémestás morto… morto para o Mundo, para o Céu e para a esperança!Em mim tu existias… e vê em minha morte, vê por esta imagem,que é a tua, como assassinaste absolutamente a ti mesmo(Poe, 1981, p. 107).O conto inicia com o narrador pedindo, <strong>de</strong>sesperançado, a simpatia e apieda<strong>de</strong> do leitor, que creia no relato da inacreditável e maldita experiência pela qualpassou. Ele narra sua história como um sujeito, bor<strong>de</strong>rline talvez, que teve umaexperiência <strong>de</strong> loucura, <strong>de</strong> alucinação e <strong>de</strong> passagem ao ato. Ou, ainda, como umpsicótico fora <strong>de</strong> crise falando <strong>de</strong> seus momentos <strong>de</strong> surto. Wilson se pergunta:“Na verda<strong>de</strong> não terei vivido num sonho? Não estarei morrendo vítima do horror edo mistério das mais estranhas <strong>de</strong> todas as visões sublunares?” Ibid., p. 88).47


Jaime BettsNo <strong>de</strong>correr da narrativa, o duplo <strong>de</strong> William Wilson passa <strong>de</strong> duplo imaginárioincômodo a duplo real, alucinado, com quem ele luta até a morte, matandoa si mesmo por acreditar tratar-se <strong>de</strong> um outro. Somente então ele se dáconta do espelho que reflete sua própria imagem ensanguentada e a voz doduplo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um sussurro e passa a ser a do próprio Wilson. O narradorpassa da enunciação <strong>de</strong> uma neurose incipiente ao da narrativa <strong>de</strong> um episódiopsicótico em que o personagem alucina ser outro, ou ainda da passagem ao atono <strong>de</strong>lírio em que ele esfaqueia a si mesmo, crendo ser o outro persecutório aquem mata.Poe consegue criar progressivamente um clima <strong>de</strong> horror e suspense, <strong>de</strong>vertigem, em que se mesclam, conforme refere Pereira (2008), duas narrativassobrepostas: <strong>de</strong> um lado, conta a sua história, a suposta existência do duplo narealida<strong>de</strong>, que aparentemente é testemunhado por todos; e outra, em que onarrador vai enlouquecendo, ficando fora <strong>de</strong> si, até duelar com o duplo e matá-lo.Somente no final é revelado ao narrador e ao leitor que esse duplo, esseoutro que o persegue, está na verda<strong>de</strong> nele mesmo. É seu Unheimlich, seuestranho, íntimo e familiar, que retorna. Poe mantém o leitor em suspenso, sem<strong>de</strong>ixar claro se se tratou <strong>de</strong> um pesa<strong>de</strong>lo (do qual Wilson acorda horrorizado,narrando seu sonho ao leitor, tentando enten<strong>de</strong>r e explicar o que se passou), ouda narrativa <strong>de</strong> um sujeito psicótico que entra em crise, tem um acesso <strong>de</strong>loucura com passagem ao ato suicida, do qual virá a morrer por consequênciados ferimentos, ou bem <strong>de</strong> uma alucinação, <strong>de</strong> um fenômeno <strong>de</strong> psicose(Lacan,[1953]1987), <strong>de</strong> uma “visão sublunar” do narrador Wilson, que vê durantealgum tempo, horrorizado, sua própria imagem ensanguentada, “morto para omundo” (Poe, 1981, p. 88).O autor consegue <strong>de</strong>ixar o leitor diante <strong>de</strong> um enigma que aponta a bordado real, mas faz isso através da vertigem que <strong>de</strong>ixa o leitor em suspenso numafronteira movediça, numa zona sombria, cinzenta, nem clara, nem escura, semsaber se a borda é imaginária, simbólica ou queda no real.O conto <strong>de</strong> Poe captura o fenômeno mo<strong>de</strong>rno da dissociação dos registrosdo real, do simbólico e da multiplicação do imaginário como resultado dosefeitos sociais do discurso da ciência, como veremos adiante.Consequências subjetivas e sociais do discurso da ciência e tecnologiapercebidas no Homem dos lobosA mesma dissociação dos registros do real e do simbólico é <strong>de</strong>scrita, emoutras palavras, por Freud, no texto História <strong>de</strong> uma neurose infantil, em queconta a história infantil do caso que ficou conhecido como o Homem dos lobos(Freud, [1918] 1996): Sergei Pankejeff alucina, quando criança, horrorizado, ter48


Do resto ao lixo...<strong>de</strong>cepado seu <strong>de</strong>do mínimo. Na história clínica do Homem dos lobos, <strong>de</strong> suaanálise com Freud a todas as análises subsequentes, é <strong>de</strong>batida a questão <strong>de</strong>seu diagnóstico, que vai da neurose obsessiva a uma psicose paranoica hipocondríaca,passando por fenômenos <strong>de</strong> psicose ou <strong>de</strong> um caso bor<strong>de</strong>rline.Sabemos que a era da reprodutibilida<strong>de</strong> técnica é <strong>de</strong>corrência do progressoda ciência, do avanço do discurso tecnológico e científico na busca dasimbolização final do real. O i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> uma simbolização final do real leva àspráticas <strong>de</strong> solução final, como no holocausto.A “socieda<strong>de</strong> veiculada pela ciência”, diz Lacan, nos empurra celerementenessa direção:O que vimos emergir <strong>de</strong>les (dos campos <strong>de</strong> concentração), paranosso horror, representou a reação <strong>de</strong> precursores em relação aoque se irá <strong>de</strong>senvolvendo como consequência do remanejamentodos grupos sociais pela ciência, e, nominalmente, da universalizaçãoque ela ali introduz (Lacan[1967] 2003, p. 263).No artigo citado acima, Lacan diz que, se retiramos o mito edípico dosimbólico, somos jogados na alçada do <strong>de</strong>lírio do presi<strong>de</strong>nte Schreber. Por queretirar o mito edípico do simbólico remete à paranoia?O discurso da ciência se articula sobre a forclusão do sujeito dividido,fundando-se sobre o paradigma <strong>de</strong> uma linguagem sem fala, por um lado, e, poroutro, renegando a castração, tal qual na perversão, em que, embora se saibaque o real é impossível <strong>de</strong> simbolizar, mesmo assim, espelhando-se em seus“progressos”, o discurso da ciência promete que amanhã, sim, será possível oque é impossível hoje.Nesse sentido, Lacan ([1962-1963] 2005, p. 193) afirma que sempre escapaalgo da “significantização” <strong>de</strong>ixando um resto, sendo que o objeto a é “oresto da constituição do sujeito no lugar do Outro” (Ibid., p. 309). E que o objetoa, causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo, é “um objeto externo a qualquer <strong>de</strong>finição possível da objetivida<strong>de</strong>”no campo da ciência (Ibid., p. 99).Através da forclusão do significante do falo simbólico, que indica a bordado real, isto é, os limites da simbolização, o discurso científico promove, <strong>de</strong> umlado, a disjunção do simbólico e do real. Por outro, induz a uma autonomizaçãodo imaginário e provê os meios tecnológicos <strong>de</strong> uma multiplicação-reproduçãoinfinita das imagens especulares do eu.Ou seja, a imagem fálica, ilusória, das flores <strong>de</strong>ntro do vaso, se forma namente do consumidor passivo, alienado na <strong>de</strong>manda do outro da publicida<strong>de</strong>.Nesse sentido, a angústia do consumidor tem dois polos: um, quando mergulha49


Jaime Bettsno consumo, o vazio ten<strong>de</strong> a ficar tomado pelos objetos adquiridos, “e a faltapo<strong>de</strong> faltar” (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 51-2); um segundo polo se apresentaquando o sujeito não tem condições <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r à <strong>de</strong>manda do Outro da publicida<strong>de</strong>,a falta se revela sem o anteparo do véu, o sujeito se vê confrontado <strong>de</strong>modo <strong>de</strong>masiado direto com o real da falta.A autonomização do imaginário promovida pelo discurso da ciência e doadvento da era da reprodutibilida<strong>de</strong> que a promove, po<strong>de</strong> ser observada nasfotografias <strong>de</strong> Atget, que prioriza como temática as ruas <strong>de</strong>sertas <strong>de</strong> Paris, e aredução do humano à condição <strong>de</strong> objeto, à <strong>de</strong> manequins coisificados, cabi<strong>de</strong>sda indústria da moda, e as propostas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação imaginária se multiplicamnos espelhos das vitrines dos magazines, fornecendo as imagens do eu (moi)das quais cabe ao sujeito ficar alienado pelos enunciados da moda e per<strong>de</strong>r-sedas referências simbólicas <strong>de</strong> sua posição <strong>de</strong> enunciação <strong>de</strong>sejante.As características do discurso da ciência mencionadas acima promovema disjunção dos registros do simbólico e do real, assim como a inflação doimaginário. Porque o mito edípico fora do simbólico nos lança na paranoia, conformea afirmação <strong>de</strong> Lacan referida acima?O mito edípico se organiza em torno do complexo <strong>de</strong> castração. Lacan([1957-1958] 1999, p.178) <strong>de</strong>fine a castração como sendo a operação simbólicarealizada por um agente real em relação a um objeto imaginário chamado “falo”.Isso implica que “para operar a castração no sentido psicanalítico do termo”, épreciso <strong>de</strong>limitar a fronteira que separa e articula os registros do real e do simbólicoem relação ao objeto imaginário falo, sendo falo o objeto que supostamenterespon<strong>de</strong>ria à castração materna. Em outras palavras, no esquema ótico,são as flores que imaginariamente aparecem no vaso [i’(a)].Quando a operação <strong>de</strong> castração <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> unir e separar a fronteira entreo real e o simbólico, e ocorre a dissociação entre dois registros, nos <strong>de</strong>paramoscom equivalentes variados da castração simbólica, sob a forma <strong>de</strong> realizaçõesmutilatórias imaginárias da castração ou <strong>de</strong> realizações alucinatórias da mesma.Leclaire propõe “examinar aquilo <strong>de</strong> que se fala quando se menciona acastração, isto é, o pênis”, afirmando que “o sexo masculino nos indica o própriolugar da articulação do real e do simbólico, pois efetivamente só o testemunhoda fé ou da lei po<strong>de</strong> dar conta da paternida<strong>de</strong>” (Leclaire, 2001, p. 180).Atualmente, po<strong>de</strong>mos acrescentar que a ciência tenta afirmar a paternida<strong>de</strong>simbólica a partir <strong>de</strong> uma prova real <strong>de</strong> DNA, e que a lei sanciona e penalizacom multa e até prisão o não cumprimento da pensão alimentícia para a criança,como se o exercício da paternida<strong>de</strong> se reduzisse a isso ou que possa serobrigado por força <strong>de</strong> lei. Ou seja, é o problema da paternida<strong>de</strong> que melhorilumina o caráter simbólico do pênis (Ibid., p. 181).50


Do resto ao lixo...Conforme já dito em outro artigo:Proponho pensar o caso do Homem dos Lobos (Freud, [1918]1976) como um estado limite entre a neurose obsessiva e a psicosepropriamente dita. Entendo por estado limite a condição psíquicaque resulta das dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> articulação do simbólico com o realque levam a uma predisposição à psicose ou a estados em que arealida<strong>de</strong> se apresenta como puro imaginário, po<strong>de</strong>ndo inclusive apresentarepisódios alucinatórios, por falta da referência simbólica.O caso relatado por Freud nos coloca as dificulda<strong>de</strong>s relativas àarticulação entre o real e o simbólico no complexo <strong>de</strong> castração: “osexo masculino nos indica o próprio lugar da articulação do real e dosimbólico, pois efetivamente só o testemunho da fé ou da lei po<strong>de</strong>dar conta da paternida<strong>de</strong>... Nada ilustra melhor o caráter simbólicodo pênis do que o problema da paternida<strong>de</strong>”, diz Leclaire (2001, p.180).Na história do Homem dos Lobos, o pênis simbólico (o homempaiem sua função simbólica) foi rejeitado, forcluído, levando à“transformação progressiva <strong>de</strong> uma pergunta formulada pela neurosenuma resposta imaginária irrisoriamente exposta pela psicose.”Qual pergunta? Aquela em torno da qual se articula o simbólicoe o real. A pergunta em questão é: “O que é esse pai, <strong>de</strong> quemsou filho, e como posso eu, como filho <strong>de</strong> um tal pai, tornar-meverda<strong>de</strong>iramente possuidor <strong>de</strong> um pênis?” (Leclaire, 2001, p.189).Lá on<strong>de</strong> essa articulação claudica, o imaginário toma conta e ocomplexo <strong>de</strong> castração oscila entre a multiplicação infinita naneurose obsessiva das equivalências imaginárias do falo (pênis =fezes = filhos = etc.) e a castração sendo imaginarizada no realsob a forma <strong>de</strong> alucinações ou construções imaginárias <strong>de</strong>lirantes.Os estados limites contemporâneos centram-se em torno doenigma do falo e são abundantes em tudo aquilo que po<strong>de</strong> evocaro complexo <strong>de</strong> castração em sua vertente imaginária ou do ladodo retorno no R (alucinações, toxicomanias, <strong>de</strong>pressões, etc.) doque foi rejeitado no simbólico (Betts, 2004, p. 23-4).Uma mulher aparece grávida. Qual é a pergunta que surge? Temos basicamentetrês possibilida<strong>de</strong>s. Quem é o pai? – pergunta que aponta a bordasimbólica da questão, assim como indica o lado que a tradição ressaltava. Asegunda pergunta: Qual foi o pênis? – indica o lado real. A terceira pergunta<strong>de</strong>corre dos progressos da ciência e das tecnologias <strong>de</strong> fecundação artificial,51


Jaime Bettsem que a articulação entre o pênis real que fecunda e a paternida<strong>de</strong> simbólicase <strong>de</strong>sfaz:De quem é o espermatozoi<strong>de</strong>, <strong>de</strong> quem é o DNA?O pênis e sua ereção fálica não são mais necessários para a fecundação,que po<strong>de</strong> ser feita higienicamente in vitro. O pai é dispensável nas produçõesin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong>sconhecido nas inseminações feitas comespermatozoi<strong>de</strong>s retirados <strong>de</strong> bancos <strong>de</strong> sêmen, assim como é um ilustre <strong>de</strong>sconhecidoem gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> famílias, Brasil afora.O discurso da ciência forclui o sujeito do suposto saber e em seu lugarcoloca o objeto do suposto saber. Somos todos reduzidos à condição <strong>de</strong> cobaiase <strong>de</strong> nossa fala somente interessa a informação buscada no protocolo emquestão. Escutar a narrativa das experiências do sujeito é, no fim das contas,uma perda <strong>de</strong> tempo, pois a prescrição do psicofármaco sedará o sofrimento.Quais são os efeitos <strong>de</strong>ssa exclusão (forclusão) do sujeito nas relaçõesque estabelecemos com os outros? – pergunta-se Hassoun (1997). O autorafirma que, na paixão, o sujeito é capturado pelo outro a ponto <strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixar<strong>de</strong>spossuir <strong>de</strong> sua subjetivida<strong>de</strong> pela imagem apaixonante na qual ele é a presa.Na melancolia, o sujeito é tragado pelo terror e espanto diante <strong>de</strong> sua própriaindignida<strong>de</strong>, mergulhando num abismo <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong>, apatia e cruelda<strong>de</strong> queo <strong>de</strong>spossui <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong> sua fala e <strong>de</strong> sua voz, dando voltas infinitamenteem seu enigmático <strong>de</strong>sastre interior.No caso do ódio, o sujeito que é sua presa acaba <strong>de</strong>vorado pelo horrorque o outro lhe suscita e passa obstinadamente a tentar <strong>de</strong>struir essa supostacausa <strong>de</strong> sua indignida<strong>de</strong>. Obsedado por essa i<strong>de</strong>ia, o sujeito persegue portodos os lados o obscuro e estranho objeto <strong>de</strong> seu ódio, para melhor <strong>de</strong>struir ooutro. Primeiro, o outro estrangeiro, portador do significante da diferença, e,portanto, invasor em seu território narcísico. Progressivamente, o círculo <strong>de</strong> ódiovai se estreitando aos mais próximos, atingindo familiares, bem como a si mesmo(Hassoun, 1997, p. 13-14). Tal como no conto <strong>de</strong> Poe mencionado acima.No ódio ao estranho-estrangeiro, seja pela exacerbação do imaginárioespecular nas relações sociais, seja pelo surto alucinatório <strong>de</strong> retorno ao real daalterida<strong>de</strong> simbólica forcluída, as consequências são mortíferas.Consequências subjetivas e sociais do discurso da ciência e tecnologiatransmitidas pelo artistaTalvez tenha sido um artista quem melhor captou a <strong>de</strong>stituição do sujeitodo suposto saber e a promoção do objeto ao estatuto <strong>de</strong> suposto saber em seulugar, assim como a exclusão do sujeito das relações sociais e sua coisificação,juntamente com a promoção do objeto-mercadoria-fetiche ao lugar <strong>de</strong> primazia52


Do resto ao lixo...sobre as coisas humanas. A arte contemporânea, no espírito <strong>de</strong> seu tempo,procura ir abaixo das superfícies e eliminar o quanto possível qualquer forma <strong>de</strong>representação, visando a uma presentação do real.Penso que esse artista foi Marcel Duchamp. Duchamp se colocou noolho do furacão da “refuncionalização da arte” <strong>de</strong>corrente da “emancipação datécnica dos seus fundamentos no culto” (Benjamin, 1994, p. 176), na era dareprodutibilida<strong>de</strong> técnica e seu reposicionamento como valor <strong>de</strong> exponibilida<strong>de</strong>e valor <strong>de</strong> mercado.Quando ele inscreveu, sob o pseudônimo <strong>de</strong> R. Mutt, seu ready-ma<strong>de</strong>intitulado Fonte (imagem 6), para a exposição <strong>de</strong>s Indépendants, em 1917, elechutou o penico, <strong>de</strong>safiando as convenções e a pompa do mundo das artes.Causou escândalo, sua obra foi recusada e a polêmica <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada seguerepercutindo até hoje. Duchamp colocou o <strong>de</strong>do na ferida da crise da arte, transmitindoem sua criação provocativa as consequências subjetivas e sociais dodiscurso da ciência e da tecnologia, abrindo a caixa <strong>de</strong> Pandora 5 . Na verda<strong>de</strong>,ao ser aberta, a caixa <strong>de</strong> Pandora revela o estilhaçamento da aura e das tradições,que se pulverizam em todas as direções. Algumas se conservam <strong>de</strong>ntrodo campo da função da arte, outras seguem rumos distintos. Algo se per<strong>de</strong> napassagem do resto ao lixo.Com seus ready-ma<strong>de</strong>, Duchamp apontou que a última fronteira da criaçãoartística, da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> alguma aura humana na era daprodução <strong>de</strong> objetos em série industrial, se resumia à autoria intelectual, à escolha<strong>de</strong> objeto feita pelo artista, que é capaz <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong> uma coisa outra coisa,ao retirar o objeto industrializado <strong>de</strong> seu contexto funcional ou convencionado,subvertendo seu conceito, e renomeando o mesmo com títulos indissociáveisda natureza plástico-linguística proposta por ele.5A caixa <strong>de</strong> Pandora é uma expressão muito utilizada quando se quer fazer referência a algoque gera curiosida<strong>de</strong>, mas que é melhor não ser revelado ou estudado, sob pena <strong>de</strong> se vir amostrar algo terrível, que possa fugir <strong>de</strong> controle. Essa expressão vem do mito grego, queconta sobre a caixa que foi enviada com Pandora a Epimeteu. Pandora foi enviada a Epimeteu,irmão <strong>de</strong> Prometeu, como um presente <strong>de</strong> Zeus. Prometeu, antes <strong>de</strong> ser con<strong>de</strong>nado a ficar30.000 anos acorrentado no Monte Cáucaso, tendo seu fígado comido pelo abutre Éton todosos dias, alertou o irmão quanto ao perigo <strong>de</strong> aceitar presentes <strong>de</strong> Zeus. Epimeteu, no entanto,ignorou a advertência do irmão e aceitou o presente do rei dos <strong>de</strong>uses, tomando Pandoracomo esposa. Pandora trouxe uma caixa (uma jarra ou ânfora, <strong>de</strong> acordo com diferentestraduções), enviada por Zeus em sua bagagem. Epimeteu acabou abrindo a caixa, e liberandoos males que haveriam <strong>de</strong> afligir a humanida<strong>de</strong> dali em diante: a velhice, o trabalho, a doença,a loucura, a mentira e a paixão. No fundo da caixa, restou a Esperança (ou segundo algumasinterpretações, a Crença irracional ou Credulida<strong>de</strong>). Com os males liberados da caixa, teve fima ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro da humanida<strong>de</strong> (Wikipédia).53


Jaime BettsA obra mencionada acima, Fonte, carrega diferentes interpretações. Acomeçar pelo pseudônimo com que assina a obra, obviamente bem pensado ecarregado <strong>de</strong> ironia, como era seu estilo: em inglês, Mutt significa basicamenteum ser sem raça <strong>de</strong>finida, resultado do cruzamento <strong>de</strong> raças in<strong>de</strong>finidas, semclasse ou tipo <strong>de</strong>finido, <strong>de</strong> ascen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>sconhecidos; refere também a pessoacomum ou burra (Webster, 1986). Ou seja, “R. Mutt” <strong>de</strong>ve ser lido como ourmutt, isto é, metaforicamente, nossa burrice!Além <strong>de</strong> um irônico xixi na comissão curadora da exposição, em 1917, otítulo Fonte inverte os vetores <strong>de</strong> movimento, bem como as relações <strong>de</strong> recipientee conteúdo, pois a fonte é, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> sua funcionalida<strong>de</strong>, o receptáculoda emissão <strong>de</strong> urina oriunda da fonte masculina, e não o contrário. Oobjeto que é retirado <strong>de</strong> seu contexto e funcionalida<strong>de</strong>, que é renomeado einserido em outro contexto, torna-se enigmático e <strong>de</strong>manda ser <strong>de</strong>cifrado. São ametáfora e a metonímia reduzidas ao seu ponto <strong>de</strong> contração máximo, apontandoa um gozo da instância da letra.Lenir <strong>de</strong> Miranda, artista <strong>de</strong> Pelotas (RS), criou em 2006 uma instalaçãoe um ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong>nominados Visão pós-traumática do Déjeuner sur l´herbe (imagem7), obra que foi aceita na Documenta <strong>de</strong> Kassel virtual, em 2007. A artista pelotenseparte da obra <strong>de</strong> Edouard Manet (Le déjeuner sur l´herbe, 1863) e faz uma“contextualização iconográfica” da mesma.A obra <strong>de</strong> Manet foi inspirada em obra anterior <strong>de</strong> Ticiano (Concerto pastoral,1508-1509), e foi objeto <strong>de</strong> inspiração <strong>de</strong> muitas versões realizadas por diversosartistas. O Déjeuner <strong>de</strong> Manet provocou escândalo na época, e foi expostoapenas no Salão dos Recusados. O motivo manifesto <strong>de</strong>ssa reação parece tersido o fato <strong>de</strong> ele colocar uma mulher nua ao lado <strong>de</strong> homens vestidos, e outra,mais ao fundo, se banhando <strong>de</strong> camisa nas águas <strong>de</strong> um riacho. Se não bastasseisso para chocar a moral e os bons costumes <strong>de</strong> seus contemporâneos parisienses,Manet pinta essa mulher nua – em relação à qual os dois homens parecem indiferentes– em primeiro plano, olhando diretamente para o espectador! Seu olharinterpela quem contempla o quadro. Vemos na imagem o que nos olha, e o <strong>de</strong>sejoque esse olhar objeto pequeno a causa fez retornar o recalcado que escandalizouos parisienses do século XIX, para além das inovações <strong>de</strong> estilo, que servemao mesmo propósito <strong>de</strong> re-velar as formações do inconsciente.Talvez algo mais sombrio ainda contido nessas inovações <strong>de</strong> estilo tenhachocado os parisienses <strong>de</strong> 1863, como o prenúncio dos horrores da socieda<strong>de</strong>em vias <strong>de</strong> ser veiculada pela ciência (Lacan, [1967] 2003, p. 263).Duzentos e vinte e cinco anos mais tar<strong>de</strong>, aprés coup, na Visão póstraumáticado Déjeuner sur l’herbe, ao som da Pastoral <strong>de</strong> Beethoven, Lenir <strong>de</strong>Miranda faz um narrador masculino recitar um trecho do poema Waste Land, <strong>de</strong>54


Do resto ao lixo...T. S. Eliot (1981, p. 90): “Eu lhes mostrarei medo num punhado <strong>de</strong> pó”. Surgeem seguida o quadro <strong>de</strong> Manet, que vai sofrendo transformações progressivascom uma sobreposição digital <strong>de</strong> imagens. Inicialmente, as quatro figuras doquadro <strong>de</strong> Manet são transfiguradas para nossa época.As transformações da imagem nos dão a impressão, em câmara lenta,da <strong>de</strong>vastação que uma explosão nuclear produz. As figuras humanas contemporâneastêm seus esqueletos expostos, como numa imagem radiográfica, paraprogressivamente irem tomando as cores <strong>de</strong> um braseiro. Lentamente, assumema aparência <strong>de</strong> restos <strong>de</strong> carne humana amorfa, e <strong>de</strong> sangue coagulado,com uma fita preta e amarela, indicando que tais imagens <strong>de</strong> horror <strong>de</strong>vem serproibidas ao olhar. O lixo calcinado do que foi um dia a civilização, <strong>de</strong>stroços doque foi um dia a experiência do convívio humano são vedados pela fita, tantoindicando a interdição <strong>de</strong> acesso a uma zona contaminada pela radioativida<strong>de</strong>,quanto remetendo-nos à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> proibição, enquanto é tempo, <strong>de</strong>sse final melancólicoa que leva o gozo do Outro obsceno, fora da castração simbólica.O que sobra da bucólica e sensual cena <strong>de</strong> Manet? Apenas uma visãopós-traumática: sangue, lixo, vidas calcinadas, cinzas, objetos <strong>de</strong> uso cotidianoe <strong>de</strong> convívio queimados e quebrados, como xícaras, pires e bule <strong>de</strong> chá.No final da obra, o narrador traz uma segunda citação <strong>de</strong> T. S. Eliot, naqual somos convidados, ironicamente, a tomar chá com os amigos!Uma análise visa fazer <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stino um estilo. As duas citações <strong>de</strong> Eliot(1981, p. 64) – “I will show you fear in a handful of dust” e “after all, I shall sit here,serving tea to friends”6 – sugerem, por outro lado, dois finais possíveis para ahistória da humanida<strong>de</strong>. Qual <strong>de</strong>stino escolheremos? Haverá um estilo possível?REFERÊNCIASBAUMMAN, Zygmunt. Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> líquida. Rio <strong>de</strong> Janeiro: J. Zahar, 2001.BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política – ensaios sobre literatura e históriada cultura. In: Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1.BETTS, Jaime. A<strong>de</strong>uspai à a<strong>de</strong>usarazão – O pai na arte e a psicopatologia contemporânea.<strong>Revista</strong> Textura – <strong>Revista</strong> <strong>de</strong> Psicanálise, São Paulo, Publicação das ReuniõesPsicanalíticas, Ano 4, n. 4, 2004.DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTOCK, Gregory. A Nova arte. São Paulo: Ed.Perspectiva, 1986.FREUD, Sigmund. Atos obsessivos e práticas religiosas [1907]. In: FREUD. Ediçãostandard brasileira das obras psicológicas completas <strong>de</strong> Sigmund Freud, Rio <strong>de</strong>Janeiro: Imago, 1996. v. 9.6“Vou revelar-te o que é o medo num punhado <strong>de</strong> pó” e “Depois <strong>de</strong> tudo, estarei sentado aqui,servindo chá aos amigos”.55


Jaime Betts_____. Caráter e erotismo anal [1908]. In: Ibid. v. 9._____. História <strong>de</strong> uma neurose infantil [1918] . In: Ibid. v 17.FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberda<strong>de</strong>. São Paulo: Abril Cultural, 1984.KRAMER, Sônia. Educação a contrapelo. <strong>Revista</strong> Educação – Benjamin pensa aeducação, São Paulo, Segmento, n. 7, mar. 2008.LACAN, Jacques. O seminário, livro 1 – Os escritos técnicos <strong>de</strong> Freud [1953-54]. SãoPaulo: Ed. Zahar, 1987._____. O seminário, livro 5 – As formações do inconsciente [1957-1958]. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Jorge Zahar, 1999._____. Proposição <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1967. In: LACAN, Jacques. Outros escritos.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2003._____. O seminário, livro 10 – A angústia [1962-1963]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2005.LECLAIRE, Serge. Sobre o episódio psicótico apresentado pelo Homem dos Lobos.In: LECLAIRE. Escritos clínicos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2001.PEREIRA, Lucia S. O conto machadiano – uma experiência <strong>de</strong> vertigem. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Companhia <strong>de</strong> Freud, 2008.POE, Edgar A. William Wilson. In: POE, E. Histórias extraordinárias. São Paulo: AbrilCultural, 1981.ROUDINESCO, Elisabeth. Por que a psicanálise? Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2000.SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Rio <strong>de</strong> Janeiro : São Paulo, 1999.WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhiadas Letras, 2005.WEBSTER’S Third International Dictionary of the English Language. USA: Merriam-Webster Inc., 1986.WILDE, Oscar. The picture of Dorian Gray. Londres: Pinguin, 1984.WIKIPEDIA. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Pandora. Acessado em 10/04/2009.ANEXO:Imagem 1,2. Atget, 1913.56


Do resto ao lixo...Imagem 3. Vera Chaves Barcellos, Manequins <strong>de</strong> Dusseldorf, 1978.57


Jaime BettsImagem 4. André Betts, 2008.Imagem 5. Henri Fuselli, O Pesa<strong>de</strong>lo, 1781.58


Do resto ao lixo...Imagem 6. Marcel Duchamp, A Fonte, 1917.Imagem 7. Lenir <strong>de</strong> Miranda, Visão Pós-Traumáticado Déjeuner sur l´Herbe, 2006.Recebido em 23/06/2009Aceito em 15/07/2009Revisado por Clara Maria von Hohendorffe Gardênia Me<strong>de</strong>iros59

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