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Revista n.° 36 - APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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Maria Cristina PoliA psicanálise só se aplica, em sentido próprio, como tratamento, eportanto, a um sujeito que fala e ouve. Fora <strong>de</strong>sse caso, só po<strong>de</strong>tratar-se <strong>de</strong> método psicanalítico, aquele que proce<strong>de</strong> à <strong>de</strong>cifraçãodos significantes, sem consi<strong>de</strong>rar nenhuma forma <strong>de</strong> existênciapressuposta do significado. O que o livro em exame [A psicobiografia<strong>de</strong> Gi<strong>de</strong>] mostra brilhantemente é que uma investigação, na medidaem que observa esse princípio, pela simples honestida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quaçãoao modo como um material literário <strong>de</strong>ve ser lido, encontrana or<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> sua própria narrativa a própria estrutura do sujeitoque a psicanálise <strong>de</strong>signa (Lacan, [1958] 1998, p. 758).É possível, portanto, ler o texto literário em sua relação com a biografiado autor <strong>de</strong> modo a encontrar aí “a própria estrutura do sujeito que a psicanálise<strong>de</strong>signa”. Em relação a Gi<strong>de</strong>, o ponto salientado por Lacan é o episódio <strong>de</strong> suabiografia, retomado pelo próprio em um texto autobiográfico, no qual sua esposa,Ma<strong>de</strong>leine, se sentindo traída, queima as cartas <strong>de</strong> amor que Gi<strong>de</strong> lhe en<strong>de</strong>reçarapor muitos anos. A história é bastante conhecida: Gi<strong>de</strong> era homossexuale tinha com Ma<strong>de</strong>leine – que além <strong>de</strong> esposa era também sua prima – um“casamento casto” acordado entre ambos. O que não impediu Gi<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser efetivamenteapaixonado por Ma<strong>de</strong>leine e <strong>de</strong> lhe ter escrito uma longa correspondênciaamorosa, incinerada por ela.Após a morte <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>leine, Gi<strong>de</strong> escreve o livro no qual narra <strong>de</strong> modoressentido o episódio da queima das cartas: “talvez não tenha havido jamaistão bela correspondência”. Lacan, no texto sobre Gi<strong>de</strong>, analisa não apenas oato <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>leine (um ato que, segundo ele, faz <strong>de</strong>la uma verda<strong>de</strong>ira mulher ao<strong>de</strong>struir aquilo que lhe tinha sido dado <strong>de</strong> mais precioso). Ele consi<strong>de</strong>ra tambéma reação ressentida <strong>de</strong> Gi<strong>de</strong> ao luto pela morte <strong>de</strong> Ma<strong>de</strong>leine: reagindo àperda da mulher amada, ele a culpabiliza pela perda das cartas. Gi<strong>de</strong>, escreveLacan, reage como uma fêmea ferida no ventre (como a mãe que per<strong>de</strong> umfilho), sentindo a perda como a “<strong>de</strong>vastação <strong>de</strong> uma privação <strong>de</strong>sumana”. Ointeressante é que Lacan acrescenta ter sido esse ato (a <strong>de</strong>struição das cartas)que permitiu situar ali, em Gi<strong>de</strong>, a “letra do <strong>de</strong>sejo”. A ferida no ventre“preenche com exatidão o vazio que o ato da mulher quis abrir em seu ser”(Lacan, [1958] 1998, p.772). A perda das cartas (<strong>de</strong> seu objeto mais precioso)situa, portanto, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abertura para o <strong>de</strong>sejo.Qual o estatuto <strong>de</strong>ssa carta perdida? Aqui Lacan fala em luto, em <strong>de</strong>vastaçãoe ressentimento. Porém, trata-se <strong>de</strong> uma perda que permite, em suaelaboração pela escrita, algo <strong>de</strong> um acesso ao <strong>de</strong>sejo. Nem sempre, contudo –acrescentaríamos –, é assim que as coisas se passam.24

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