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Revista n.° 36 - APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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Maria Cristina Polisem nome, mesmo que ele esteja, paradoxalmente, incluído e <strong>de</strong> certo modoescrito no texto (“faltam quatro gravuras”).Um outro modo <strong>de</strong> pensar isso também é proposto por Lacan, ao se valer,em diferentes momentos, da metáfora do pote <strong>de</strong> mostarda. A brinca<strong>de</strong>ira queele faz é com a metáfora do oleiro, introduzida por Hei<strong>de</strong>gger, como paradigmada produção do objeto <strong>de</strong> arte. O vaso <strong>de</strong> argila produzido pelo oleiro recorta umespaço vazio, a partir <strong>de</strong> seu contorno. A condição da arte é a <strong>de</strong> bor<strong>de</strong>ar umvazio, <strong>de</strong> modo semelhante ao contorno do objeto operado pela pulsão, produzindo,no mesmo movimento, o orifício erógeno no corpo.Imaginemos agora que esse vazio pu<strong>de</strong>sse extravasar as bordas que o contêm.Quando pensamos no pote <strong>de</strong> mostarda, é fácil, po<strong>de</strong>mos facilmente imaginarcolocar mostarda <strong>de</strong>mais e ela transpor as bordas <strong>de</strong> seu pote. No caso do vazio,é mais difícil imaginar, mas a experiência da angústia é o que nos <strong>de</strong>monstra asua possibilida<strong>de</strong>. Quase como se no jogo <strong>de</strong> figura-fundo, ao invés <strong>de</strong> vermos ovaso e o vazio <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, víssemos o vazio <strong>de</strong>ntro e fora, contendo o vaso.Na literatura <strong>de</strong> Clarice, algo assim se produz. Para o leitor, a experiênciaé a do encontro com um texto-vaso que constrói um veio <strong>de</strong> leitura tracejadopelas letras. Para sua autora, no entanto, a radicalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa escrita, a buscaque ela opera, se traduz (conforme Lacan ([1962-63] 2005): “a angústia é atradução subjetiva do objeto a”) na experiência <strong>de</strong> angústia que a acossa.A poe<strong>de</strong>ira e os efeitos da autoriaQuando trabalha a escrita <strong>de</strong> Joyce, no Seminário 23, Lacan ([1975-76]2007) compara o trabalho do escritor ao <strong>de</strong> uma poe<strong>de</strong>ira. Pôr um ovo é a figuraçãoevocada para a produção <strong>de</strong> um novo pedaço <strong>de</strong> real. Segundo Lacan, foiessa produção feita por Joyce que lhe permitiu ace<strong>de</strong>r a uma amarração subjetiva,a construção <strong>de</strong> um quarto nó (o Sinthoma), que fez suplência ao Nome-dopai.Tal foi o efeito <strong>de</strong> retorno que a produção da obra teve, no caso <strong>de</strong> Joyce,sobre seu autor. Será, no entanto, sempre assim? A pergunta se justifica porqueno caso <strong>de</strong> nossa autora, Clarice Lispector, a produção da obra parece que teveefeito contrário, teve um efeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>samarração subjetiva. Escrevemos “parece”,e sublinhamos a palavra, porque não temos elementos suficientes parasustentá-lo com certeza. É um tema <strong>de</strong> trabalho a <strong>de</strong>senvolver.Em todo o caso, gostaríamos <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar, através <strong>de</strong>sse contra-exemplo,que nem sempre a produção da obra e a nomeação subsequente (vale<strong>de</strong>stacar que também Clarice foi muito reconhecida em vida e que sua obra seráigualmente estudada pelos universitários nos próximos 200 anos) têm tal efeito<strong>de</strong> amarração subjetiva. Pelo contrário, a <strong>de</strong>smontagem que impôs a seus escritosparece ter incidido também sobre ela.26

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